Céu escrita por Liminne


Capítulo 18
Capítulo 18




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Três anos atrás...

Estavam sentados à mesa da cozinha. O rosto do jovem ruivo de dezessete anos já acalorado. Sua visão, já meio embaçada. Perdera as contas do número de copos daquela bebida que tinha ingerido. Sentia-se leve e pesado ao mesmo tempo.
- Isso aí, filhão! - o pai, sorridente e mais enérgico que nunca encheu o copo que o filho acabava de esvaziar. Serviu-se de mais sake também e tomou um gole comprido. - Você tem o mesmo fígado do seu pai! Logo logo vai estar prontinho para um duelo!
Olhou para o copo novamente cheio. O que estava fazendo? Aquele homem era um desajustado! Estava ali, rindo à toa, só por tê-lo convencido a encher a cara numa noite de sábado. Tentava ignorar o que ele arengava com a boca escancarada. Estava ficando cada vez mais tonto.
- Há muitas coisas que você deveria estar fazendo num sábado à noite... Mas acho que antes você tem que aprender as manhas com o papai! - piscou.
- Cala a boca, seu velho estúpido! - o ruivo esquentadinho grunhiu com sua voz de bêbado. Não sabia o porquê, mas continuava bebendo.
- Okay, okay! Eu calo a boca! - o sorriso abobalhado não saía da face barbuda de Isshin. - Mas aí você que vai ter que falar! - aproximou a cadeira da do filho e lançou-lhe um olhar inquiridor cheio de diversão. - E aí, Ichigo? Tem alguma gatinha balançando seu coração, ahn? - deu-lhe uma cotoveladinha amistosa na costela e pôs-se a rir.
O canceriano imediatamente encolheu-se e ficou escarlate. Então era aí que aquele desgraçado queria chegar, né? Devia ter desconfiado...
- Não. - respondeu despejando mais sake na boca e engolindo. - Não tem nenhuma. - emburrou a cara. Não gostava daquela pergunta. Lembrava das indiretas de Keigo... E aquilo sempre lhe rendia pensamentos de tirar o sono.
- Que é isso! - o sorriso sumiu dando lugar a uma boca aberta de espanto. - Então quer dizer... Que tem um GATINHO?
- COMO É QUE É?! - Ichigo quase saltou da cadeira pra cima do pai. - ESTÁ INSINUANDO QUE EU SOU GAY??

- Calma, calma! - Isshin voltou a sorrir espalmando as mãos para o filho. - Foi só uma brincadeira hahahaha! - jogou a cabeça pra trás para rir. – Mas se você for, pode falar, filhão! Eu vou continuar te amando!
Emburrou mais ainda. Contorceu o rosto todo. Afundou-se na cadeira e ficou pensativo com o copo na mão. Não era essa a impressão que queria passar, de jeito nenhum! Mas só que... Balançar o coração...
Não era qualquer coisa.
Não. Ainda não havia aparecido ninguém. Mesmo o relacionamento que tinha com sua prima de quinze anos... Mesmo que sentisse alguma coisa... Não era de balançar o coração, no termo mais brega que o pai usara. Não era como idealizava alcançar. Não era como eles foram...
Talvez já tivesse sentido as palpitações e o rosto corado. Mas não aquela calma. Não aquela cumplicidade. Não aquela força e nem a vontade de se entregar totalmente... Não quem olhasse para dentro de sua carapaça. Não alguém sem o qual não pudesse se imaginar sem. Definitivamente, ainda não como eles foram...
- Tudo bem, Ichigo... - de repente, tirando-lhe de seus devaneios, a voz de Isshin soou mais branda e próxima aos seus ouvidos. Sentiu que o braço dele passou ao redor de seu ombro e que sua mão aplicou-lhe uns tapinhas companheiros. E pela primeira vez não o empurrou para longe. Só ficou ali imóvel, tonto e com aquela queimação que só o álcool pode provocar. - Você é um cara diferente. - sorriu. - O amor de verdade só acontece uma vez. E você o está esperando.
Perguntava-se mentalmente como ele podia saber tanto sem nunca terem conversado sobre. E se o seu problema fosse apenas ser anti-social ou não-atraente?
As questões boiavam em álcool no seu cérebro... Tanto que nem percebeu que estava ali parado, curtindo aquele momento e prestes a soltar uma pergunta.
- Pai... - murmurou sério. - Como você e a mamãe se conheceram?
O pai encarou o filho por um momento. Abriu aos poucos um sorriso satisfeito. Parecia ter ansiado por aquela pergunta. Mas podia estar apenas... Contente.

E nostálgico. Os olhos começaram a sonhar para o alto.
- Eu e sua mãe foi... Foi o danado do destino. Foi o Céu e as estrelas. - riu curtamente. - Foi aquele Celeste-sama. - continuava a encarar o invisível.
Ichigo franziu as sobrancelhas. As imagens dançavam levemente diante de seus olhos. Será que as palavras estavam fazendo o mesmo em seus ouvidos? Estava entendendo direito? Ou o seu pai também estava apenas com o famoso papo incompreensível de bêbado?
- Céu? Celeste-sama? - perguntou confuso. As palavras soaram ainda mais idiotas na sua boca. Seu pai devia estar variando mesmo.
- Venha meu filho. - o homem de repente levantou. - Vou te mostrar. - sorriu e começou a andar em direção às escadas que davam no segundo andar da casa.
Movido pela curiosidade e pelo álcool, o espetado foi atrás do pai, devagar e com passos trôpegos. Principalmente quando começou a difícil tarefa de subir os degraus. Andava segurando a cabeça, como se assim pudesse manter o equilíbrio.
Foram seguindo até o fim do corredor, onde ficava o quarto de Isshin. Entraram lá com cuidado. E Ichigo viu o pai tirar de cima do guarda-roupa uma caixa cor de vinho, parecendo uma caixa se sapatos, só que mais funda e bonita, revestida com algo que lembrava camurça.
- O que é isso? - perguntou com a língua ainda mais enrolada. Temeu que nem seu pai pudesse ter entendido.
O sagitariano ouvira, porém, preferiu mostrar na prática. Abriu com cuidado a caixa e permitiu que o canceriano pudesse ter alguns flashes de seu conteúdo: um lenço, umas pulseiras, umas cartas, uma foto de sua mãe sorridente e barriguda abraçada com um radiante Isshin...
Imediatamente seu coração começou a bater forte e apertado, como se estivesse fazendo força pra encolher. Sentiu um nó na garganta e um desespero nos olhos. Aquilo era... Aquilo era... Como nunca tinha visto aquilo antes?

- Céu! - de repente o pai leu, tirando um cartão branco com letras douradas de dentro da caixa. - É isso, filhão. - estendeu o cartão para o filho e apanhou também um bracelete prateado com um símbolo central que lembrava o número dois em algarismos romanos.
Teve que espremer os olhos para enxergar o que as letras formavam naquele cartão. Céu. Era o título bem grande e com duas estrelinhas. Era como um contrato... Como um acordo com o destino... E era assinado por Celeste-sama e por Isshin.
Antes que pudesse expressar sua confusão, o pai começou a falar.
- É um programa... Chama-se Céu. Um cadastro e é só esperar. Quando sua alma gêmea aparecer, Celeste-sama trata de comunicar... E então começa a dar um empurrãozinho no destino para que ele possa fazer o favor de abençoar as duas almas... - sorria para o bracelete. - É só para quem tem muita sorte. - atirou o bracelete
em Ichigo.
- Uah
! - ele assustou-se e quase falhou em pegá-lo. - O que é isso, agora??
- É só uma lembrança... Tínhamos que usar os braceletes. - meneou a cabeça. - Esse é o da sua mãe. - percebeu que ele olhava curioso o símbolo. - Gêmeos.
Tirou os olhos do bracelete e pregou-os no pai. O que era aquela bobajada toda? Programa de união de almas gêmeas? Celeste-sama? Signos e braceletes? Aquilo parecia tão... Completamente estúpido! Sem sentido. Para lunáticos ou desesperados. Tinha um cheiro inegável de charlatice pura.
Voltou a olhar, porém para o bracelete. Ele esteve, anos atrás, no braço de sua mãe... E provavelmente seu pai tinha um também... E foi assim que eles se uniram. Foi o tal do Celeste-sama que pediu ao destino que os abençoasse. E foi assim que o pai ganhou a luz do seu sorriso. E a mãe a felicidade plena. E foi assim, mesmo que tão diferentes, formaram o casal mais lindo do mundo. De companheirismo, aprendizado e ternura... E foi assim que aquela família se construiu...
Apertou o bracelete nas mãos e o coração não parou de palpitar diminuído. Olhou para o pai que lhe sorria. Era isso que queria para sua vida.

Aquele tipo de balanço no coração.
- Pai... - foi dizendo, numa única oportunidade. Jamais faria de novo. - Eu quero encontrar alguém e ser como vocês foram. - com convicção. - É o que mais quero.
Isshin expandiu o sorriso. Guardaria também aquela frase, aquele momento, naquela caixa de camurça.


- Então, pronto? - Rukia perguntou, em seu vestido de meias mangas verde-água, naquela mesma noite, enquanto Ichigo terminava de calçar os tênis vermelhos que combinavam com a estampa da camisa branca.
- Sim. Estou morrendo de fome. - levantou-se junto a ela.
- Okay. Mas pode deixar que dessa vez eu pago.

****

Saiu do elevador ensaiando suas desculpas. Tinha criado milhares. Mas sabia que quando atravessasse aquela porta simplesmente todas iam escapar-lhe. Tudo bem. De qualquer modo, só não esperava que ela tivesse passado fome nem ficado tão brava a ponto de comunicar a Rukia, já pensou?
Tomou coragem e abriu a porta. Encontrou a pequena sentada à mesa, lendo aquele livro que tinha pegado emprestado.
- Oi! - sorriu quando colocou os dois pés dentro do apartamento. Esperou a reação de Momo.
- Oi! - a menina respondeu, surpreendentemente sorridente e simpática.
Talvez isso fosse o pior. Sentiu-se culpada.
- Momo... - murmurou agora séria, encarando o assoalho. - Me desculpa chegar só agora...
- Tudo bem. - a menina respondeu.
- Não! - Rangiku apertou as sobrancelhas. - Eu deixei você sem comida e... Só cheguei à noite, mas... - ponderou. Teve ímpetos de contar a verdade. - Bem... Uma amiga minha ligou e estava com problemas e... Eu fui até lá ajudá-la, mas... Ela estava mesmo muito deprimida e...
- Tudo bem. - Momo cortou com seu sorrisinho. - Eu não estou brava. Eu mexi no livro de receitas que a Rukia-chan deixou e fiz almoço pra mim, não se preocupe.
- Hum... - olhou fundo para a priminha. - Está certa de que...
- Estou. - ela afirmou. - Essas coisas acontecem, prima. - continuava sorrindo.

- Hum... Certo. - com alguma dificuldade, deixou-se sorrir de volta. Estava mesmo tudo bem daquela vez, né? - Então... Vou tomar um banho e vir fazer a janta.
- Okay. - Momo sorriu. - Estou quase no fim do livro...
A peituda então foi andando pelo corredor até o banheiro já mais leve. Deixou o pensamento escorregar para o seu dia e rememorá-lo. Sorriu bobamente. Mesmo que estivesse tão preocupada com como Gin seguiria sua vida agora, estava feliz por ter matado as saudades. E sem ressentimentos, como pensou que poderia haver. Realmente, a situação que ele passou mudava muita coisa.
Momo, por sua vez, continuou olhando para as palavras das páginas do livro... Olhando. Elas só chegavam aos seus olhos, não os ultrapassavam para o cérebro. Não. O cérebro estava cheio demais com as memórias de seu dia. O tinha ajudado muito fazendo almoço para ele. Com certeza Aizen-sensei ficara muito contente. E ainda puderam conversar tanto...
É. As duas sabiam que suas verdades seriam julgadas. Mas quem pode culpar corações apaixonados?

****

Finalmente estava na cama. O dia tinha sido exaustivo. Mas valeu à pena com certeza. Ah, com certeza!
Mesmo que não fosse muito confortável dormir com uma corrente prendendo-lhe a outra pessoa, sentia que um peso enorme lhe saía das pernas. Relaxou os músculos, o cérebro... Começou a pensar em coisas sem sentido... Até que caiu num sono merecedor.

...

Acordou. Franziu o cenho e abriu os olhos devagar, emburrado. Doido pra soltar um palavrão.
- Mas que merda... – resmungou. – Quem ta puxando... – foi aí que lembrou de Rukia. Olhou para a cama dela e teve uma surpresa: ela não era a senhorita perfeição dormindo. Estava enganado... Ela parecia estar incomodada com a corrente, se mexia sem parar e o estava puxando pelo braço.
- Ei! – ele berrou para que ela acordasse. – Quer parar de puxar?!
Ela nem sequer ouviu. Só resmungou e virou-se para o outro lado. E sossegou.
- Fala sério... – o ruivo voltou a deitar-se suspirando. – Vai ver que ela só queria mudar de lado...

Fechou os olhos de novo e mergulhou num próximo sonho.

...

Puxando de novo.

- Porra... – ele xingou baixinho abrindo os olhos. Era ela, virada pro outro lado, com o braço da corrente por baixo do corpo, se mexendo. – Parece uma minhoca essa garota... – cerrou o punho, mas tratou de respirar fundo. Não ia arrumar confusão por causa disso. Afinal, eles tinham tido um dia lindo. É.
Deitou-se na beirada da cama e fechou os olhos. Assim ela puxaria menos...

...

- Ichigo... – ouviu a voz sonolenta dela. – Ichigoo... – insistia.
Não acreditou. Forçou-se para não começar a chorar. Será que não ia ter paz aquela noite? Estava tão, tão cansado!
- Ichigo! – ela berrou como se ele tivesse a obrigação de estar à disposição o tempo todo!
- Que foi, saco? – ele abriu os olhos irritado.
- Ai, que mau humor! – ela encolheu-se. – É que eu quero ir ao banheiro...
Revirou os olhos e bufou. Tinha outro jeito?
- Tá bom... Vamos lá... – levantou-se muito a contragosto.
Foram andando até o banheiro. A sorte é que tinha como ele ficar do lado de fora.
Estava com tanto sono que quase dormiu
em pé.
- Pronto
, vamos. – dois minutos depois ela apareceu.
Ichigo foi capengando para a cama. Deitou novamente na beiradinha para que a corrente ficasse com distância menor e apagou instantaneamente.

...

Poft!

- Ahhh! Puta que pariu! – levantou-se furioso com a mão na testa.
É. Ela tinha puxado tão forte a corrente que ele foi pro chão. Mas não sem antes bater com a cabeça na quina do criado mudo que separava as camas.
- O que é isso?! O que houve? – Rukia acordou sobressaltada. – Ichigo! – olhou para ele ao chão. – Quer parar de fazer escândalo? Você me mata de susto!
- Sua... – engoliu a palavra imprópria que viria com a garganta apertada e os dentes trincados. E a mão ainda na testa. – Como se eu quisesse tomar um tombo! – berrou enfim.
- Ah! – ela sentou-se na cama empertigada. – Você é criança, é? Ainda cai da cama? Fala sério!

- Grr... – os dentes fizeram barulho no atrito. – Será que você não percebe que a culpa foi sua?! Você que puxou a corrente!
Ela abriu a boca pra continuar a discussão, mas resolveu fecha-la. A culpa foi... Sua?
- E-eu puxei a corrente? – perguntou com a voz mais branda, cheia de culpa e com algumas pitadinhas de incredulidade.
- É. – acusou agora sem dó. – Aii! – reclamou de dor. Tirou a mão da testa e o sangue fez um filete na lateral da cabeça.
- Ai meu Deus! – a pequena capricorniana cobriu a boca com as mãos. – Ichigo, está sangrando!
- Eu sei! – ele tentou limpar o sangue.
Rukia mordeu o lábio inferior e abaixou as sobrancelhas. Agora estava horrivelmente culpada e preocupada. Como pôde fazer uma coisa dessas e ainda gritar com ele?
- Espera. – levantou-se com cuidado da cama. – Eu vou pegar meus pronto-socorros.
Foi até as malas e tirou lá de dentro sua maletinha. Correu até Ichigo com o coração na mão.
- Sente-se na cama. – foi dizendo em seu tom profissional. Mas a culpa o estava invadindo devagar.
- Tá. – ele sentou-se.
Ela então abriu a maleta, passou alguma coisa num algodão e esfregou-o no corte dele.
A proximidade do rosto e da mãozinha dela no seu o fez corar... E esquecer a dor. Mas ela nem olhava diretamente para ele. Apenas para o machucado. E aqueles enormes olhos que pareciam querer engoli-lo estavam tão preocupados... Tanto que seu coração deu uma disparada. Aquilo queria dizer que... Dizer que...
- Vou colocar um curativo pequeno. Não foi nada grave. – ela disse remexendo novamente na maleta.
Ficou olhando todo paralisado quando ela voltou para ele e começou a fazer o tal do curativo com precisão.
- Ichigo... Desculpe-me. – ela disse baixinho, ainda sem olhar para os olhos dele.
E ele ainda olhando para aqueles olhos tão próximos. Estava mesmo arrependida. Estava tudo traduzido naquele azul.
- É né? – reclamou. – Tem outro jeito?
- Rancoroso... – ela resmungou quase inaudivelmente.
Ficaram em silêncio novamente. Até que ela terminou.

- Prontinho. – disse e suspirou, agora distante dele, com as mãos nos quadris.
- Obrigado. – ele agradeceu e acariciou o curativo.
- Sabe... – ela olhou para baixo meio sem jeito. – Eu tenho problemas... Quando eu durmo costumo me mexer bastante...
- Não foi o que pareceu nos primeiros dias. – ele parecia confuso.
- É. Num deles eu tava bêbada e no outro, entupida de remédios. – ela meneou a cabeça.
- Ah. Entendo.
- Então... Sabe como é, desculpa... – voltou a encarar os pés descalços no assoalho de madeira.
- Eu também gosto de me mexer quando durmo. – ele disse. – Mas eu tento evitar, porque lembro que você está logo ali e tal... Você poderia tentar não esquecer que estou do seu lado também, né?
- É... – sentiu suas bochechas corarem levemente. – Vou lembrar.
- Abusada. – murmurou com os olhos diminuídos para ela.
A pequena ignorou a careta e tratou de voltar para a cama.
- Putz, já são mais de quatro da manhã. – ele observou.
- É... – ela assentiu olhando para o teto. – O corte ainda dói?
- Não. – ele respondeu encarando o mesmo lugar. – Tem alguma idéia do que podemos fazer amanhã?
- Hum... – pensou um pouco com uma careta. - Na verdade, não faço a mínima...
- Ótimo. – sorriu satisfeito. – Porque eu tenho.
- Mesmo? Que ótimo. – ela surpreendeu-se. – Que idéia?
- Você vai saber se me deixar dormir e acordar amanhã... – fechou os olhos. – Boa madrugada.
- Hunf! – ela emburrou de curiosidade. – Boa madrugada. – e fechou os olhos também.
Mas ao contrário do ruivo, não dormiu de imediato. Ficou pensando em suas atitudes. E censurando-as.
Olhou para o canceriano adormecido ao seu lado, de boca aberta. Como pegava rápido no sono!
Ele estava mesmo se saindo surpreendentemente gentil, não é? A levara para patinar, uma coisa que sempre quisera aprender... E teve paciência com seu primeiro porre, ficou o dia todo na cama por causa da sua ressaca... Mas... Por que estava agindo assim? E por que continuava só gritando com ele o tempo todo?

Talvez aquela lista dos defeitos que ele tinha feito estivesse mesmo certa... Ela era fria como o Alaska e o desvalorizava...
Ei! No que estava pensando? Ele no mínimo, só estava sendo tão legal assim para compensar aquela lista idiota! Ou para se verem livres da corrente afinal! É.
Tratou de fechar os olhos mais apertados e mentalizar coelhinhos para pegar no sono. Se continuasse pensando tanto, ia acabar enlouquecendo... Com certeza!

****

No dia seguinte acordaram bem tarde. Mas pudera! Mal dormiram a noite toda!
Acordaram já na hora do almoço. Tomariam banho e iriam almoçar.
Rukia pegava alguma coisa em sua mala. Enquanto isso, Ichigo foi até a janela e abriu-a. Sentiram o sol gostoso entrar no quarto. E um perfume delicioso floral invadiu todo o ambiente.
- Uau! – Rukia admirou-se ainda remexendo em algumas roupas na sua mala. – Pensei que não fosse mais sentir o cheiro da primavera aqui em Tóquio.
Ichigo sorria para si mesmo olhando aquela paisagem lá embaixo. Eles ficaram com um quarto com a janela virada para o enorme jardim do hotel. Aquele sobre o qual tinha lido na revista que pegara no refeitório. Mas ele era mais bonito olhando de cima, ao vivo, do que nas fotos da revista. Imagina se estivessem lá.
Sentiu um arrepio correr-lhe pela espinha. Não faria isso... Não... Estaria se entregando demais...
Não. Era só um passeio normal. Eles não tinham nada pra fazer.
Não. Não era por causa da maldita ficha.
E daí que ela gostava de flores? Toda mulher gosta. É óbvio, não tinha nada a ver com isso...
Mas ela... Nem sempre se comportava como toda mulher...
E ele... O que eram aqueles batimentos descontrolados no peito?
Não! Não ia fazer nada disso! Ia ser gay demais, isso sim. Não estava desesperado a esse ponto!
- Vamos, Ichigo? – Rukia perguntou erguendo-se da mala.
- V-vamos. – gaguejou e praguejou por dentro. Por que estava agindo assim?
Como sempre, todos os procedimentos para um banho em dupla.

Quando já estavam dentro da banheira, naquela situação sempre constrangedora, Rukia olhou para a testa de Ichigo.
- Ahn... – começou. – Ichigo... Sua testa melhorou?
- É... – ele lembrou-se e colocou a mão no curativo. – Não dói mais. – apertou um pouco. – Ai!
Rukia riu um pouco. Como ele era idiota!
Mas de novo, não era um riso venenoso. Era mais um item de colecionador.
- Rukia... – o ruivo resolveu perguntar quando o silêncio voltou a reinar. – Você por acaso trabalha de enfermeira? Com aquele kit de prontos socorros pra cima e pra baixo...
- Ah... Na verdade sim... – ela mexeu a água com as mãos. – Eu arrumei um emprego numa espécie de escola integral infantil. – sorriu para as bolhinhas que provocou com os dedos. – Eu sou enfermeira lá.
- Nossa... Mal chegou à cidade e já arrumou até emprego fixo... É uma chata de uma nerd mesmo! – ele fez uma careta.
- Há! Invejoso! – ela fez bico. – Aposto que até hoje depende da mesada do papai. – provocou com um sorrisinho maldoso.
- Não! – ele devolveu carrancudo. – Eu trabalho com meu pai às vezes... E faço uns bicos por aí... É meio difícil achar bons trabalhos de meio período.
- É... Nisso você tem razão. Se não fosse o Ashido eu não teria conseguido...
- Se não fosse quem? – o canceriano aproximou-se para ouvir melhor.
- O Ashido! Um amigo meu da faculdade. – ela respondeu estranhando a reação dele.
- Eu sei quem é Ashido... – ele falou entortando a boca de desdém. Encostou-se às bordas da banheira. – É incrível como você consegue ser nerd e popular ao mesmo tempo. – virou os olhos.
- Ihhh... – ela cantarolou num tom de zombaria. – Que homem recalcado, meu Deus! – sorriu. – Olha, vou te dar umas dicas: faça mais perguntas aos professores e pesquise mais antes e depois das aulas. E se quiser ser popular, pinta o cabelo de preto.

- Sua... – ele mostrou o punho fechado para ela fumegando de raiva. – Quem você pensa que é? – armou uma tromba. – E eu não vou tingir o meu cabelo por nada. Estou muito feliz sendo como sou! – cruzou os braços do melhor jeito que conseguiu.
- Ótimo. – ela assentiu com a cabeça e continuou olhando para ele. – É esse tipo de atitude que eu admiro.
Ele olhou de volta. E, claro, corou instantaneamente por causa daquele olhar cheio daquelas palavras.
Desviou o rosto. E ela fez o mesmo.
- Quero dizer... – tentou consertar-se. – Você sabe... Ser você mesmo que seja esquisito demais... Mesmo que seu cabelo pareça um... Alguma coisa estranha que não seja um cabelo... Enfim. Isso é admirável.
Cerrou o punho embaixo d’água. Aquela baixinha orgulhosa...
Mas de algum modo, não conseguia sentir a ira que precisava para manter os dedos retesados.

****

Tinha acabado de almoçar com a prima. Ou tentado almoçar. Mesmo que a receita fosse fácil e até ela mesma conseguisse fazer, a prima continuava desastrada na cozinha.
Bom. O fato importante é que a loira peituda havia anunciado sua volta à casa da amiga deprimida do dia anterior. Então Momo concluiu que ela não voltaria tão cedo.
E teve a brilhante idéia de não voltar tão cedo também. De passar a tarde na casa do seu amor platônico.
- Hinamori-kun! – ele sorriu ao abrir a porta. – Estava mesmo pensando em você.
Ela corou e olhou para os sapatos boneca.
- E-espero não estar incomodando... – falou baixinho juntando as mãos.
- É claro que não. – ele sustentava o sorriso caloroso. – Entre, entre! – fez sinal para dentro da casa. – Hoje já terminei meus afazeres. Vou fazer um chá para tomarmos enquanto conversamos.
O coração palpitou e um sorriso se espalhou rapidamente em seu rosto. Era perfeito demais! Olhou para o céu azul e sentiu um raio de sol na bochecha. Como se estivesse lhe abençoando. Seria uma tarde maravilhosa.
- Com licença. – disse sem jeito e entrou atrás do homem alto de óculos.

****

- Huumm... E que tal esse aqui? – Rangiku apontou para um apartamento nos classificados. – Parece bom.
- Muito caro! – ele exclamou. – Eu estou mesmo sem dinheiro... E não tenho a vida toda pra ficar nesse hotel... – afundou-se com força no sofá soltando um longo suspiro. – Minha situação não está nada boa mesmo... – mesmo dizendo isso, continuava com aquele sorriso.
- Ah... – a loira jogou o jornal longe e colocou as pernas em cima das dele. – Eu sei que você vai dar um jeito... – sorriu. – Já melhorou bastante estando livre, não?
- É. – ele olhou para ela. – Você tem razão.
Ela então diminuiu a distância e chegou o rosto bem próximo do dele a fim de beijá-lo.
Mas ele desviou.
- O que foi? – ela franziu as sobrancelhas.
- Não é nada... Só... Não sei se deveríamos continuar isso...
O queixo dela quase caiu.
- C-como assim? – sentiu-se tonta. – Eu estava louca pra você sair da prisão... E...
- Rangiku... – segurou a mão dela. – Você sabe que é perigoso...
- Mas desde quando eu não quis correr o risco? – o encarava rezando para que as lágrimas não brotassem. – E você me disse que... Que íamos ver o Celeste-sama e...
Ele subiu os dedos longos e frios e foi parar no bracelete que só ela usava. Tirou-o do braço dela.
- Você não devia ter levado a sério o que eu disse naquele momento... A gente tinha acabado de... Bom.
- Gin! – ela quase berrou ressentida. – Você não está falando sério!
- Você sabe... Que é importante para mim... – brincava com o bracelete nas mãos. – E por isso... – foi interrompido pela mão dela puxando o bracelete bruscamente. – O que... – virou o rosto para ela confuso.
- Podemos desistir do Celeste-sama. Mas não vou desistir de você. – dava pra ver, os olhos agora estavam boiando em lágrimas. – Não vou! – parecia uma criança teimosa batendo o pé.
Mas ela era bem adulta. E ele sabia que ela estava falando sério.
O coração do virginiano espremeu-se. Ela o amava mesmo... Não precisava de provas... Mesmo o que ela tinha feito no passado... Nada podia fazê-lo duvidar disso.

Queria poder mostrar a ela que também não precisava duvidar do seu sentimento... Mas para ele era tão difícil... Com todas as circunstâncias... Não sabia se era certo. Não sabia por onde começar a agir com a única pessoa que lhe importava no mundo.
- É melhor você voltar para casa hoje. – ele disse. – Vou resolver o lance de onde vou morar. – levantou-se.
Tentando duramente engolir as lágrimas, ela foi até a porta. Parou do lado de fora quando ele curvou-se para dar-lhe um beijo.
- A gente se vê. – ele disse numa voz quase sussurrada.
E ela foi embora contando um ou dois pingos na rua. Não ia permitir-se mais que isso.

****

- Hum... Então você não quer ser médica... – Aizen conversava com a menina de doze anos sentada a sua frente.
- É. – sorriu com as bochechas rosadas e o chá a meio caminho da boca. – Quem sabe se... Se eu conseguir ser aeromoça como a minha mãe eu não a encontrasse mais? Podíamos trabalhar juntas.
- Então sua mãe deve ser bem novinha, não é? Mas mesmo assim... Em pouco tempo talvez ela não possa mais ser aeromoça. Se eu não me engano, tem idade máxima...
- É verdade? – ela pareceu surpresa.
- É sim. – ele assentiu. – Não sabia?
- Não... – olhou para baixo encabulada e ao mesmo tempo entristecida. – Então... Talvez ela volte logo... – bebeu um gole do chá. – Ou talvez... Ela nem pense mais em mim...
- Não fale uma coisa dessas! Sua mãe deve pensar em você! E quando voltar deve vir atrás de você sim! – ele sorriu para confortá-la. – Mas sabe... Você devia pensar no seu futuro para fazer algo que goste... Que você goste. Se não vai ficar frustrada...
- Hum... – ficou pensativa. – Algo que eu goste...
- Você é boa em Biologia. – terminou o chá sorrindo para ela.
- É. – ficou vermelhinha. – Eu gosto de Biologia. Mas prefiro algo com mais ação... Talvez ser jornalista... Ou alguma profissão que eu pudesse conhecer muitos lugares. E que não fosse aeromoça, porque na verdade eu não gosto muito de ter que usar um uniforme.

- Hahaha! – ele riu. – Você é interessante. – o comentário fez o coraçãozinho disparar. – O que acha de tentar ser modelo?
Os olhos dela iluminaram-se.
- É mesmo! Apesar de minha prima ser, eu nunca tinha pensado nisso... – ficou imaginando por um tempo o tanto de pessoas e lugares que poderia conhecer. Se ficasse famosa talvez... Talvez até sua mãe lembrasse dela. – Mas acho que não... – abaixou a cabeça. – Eu não tenho potencial pra isso.
- Por que não? Você é muito bonita. – ele assentiu com a cabeça, sério e afável como sempre.
- E-eu s-sou? – tinha certeza que podiam fritar alguma coisa nas suas bochechas. – Eu não...
- É sim. – ele confirmou. – Eu não diria isso se não fosse verdade. – sorriu. – E sabe... Tenho uma coisa pra te contar.
Mas ela não descobriu porque seu celular tocou. Pediu desculpas e teve que atender.
- Alô. – irritada.
- Momo, onde você está? – era a voz cantada da prima.
- Ah-ah... Eu... Er... Já estou indo. – ficou nervosa.
- Não demora, hein? Aluguei uns filmes pra gente. Espero que não esteja fazendo besteira.
- C-claro que não! – levantou-se desesperada. – E-eu já estou chegando. Até mais. – e desligou. – Desculpe Aizen-sensei... – ela fez uma pequena reverência. – Tenho que ir pra casa.
- Tudo bem. – ele sorriu novamente e levantou-se para acompanhá-la até a porta. – Volte quando quiser, viu?
- Muito obrigada. – calçou os sapatos. – E me desculpe por qualquer coisa...
Acenaram um para o outro e a geminiana, quando virou as costas, teve que se conter para não soltar um palavrão em alto e bom som.
Agora quando é que ia descobrir o que Aizen-sensei tinha para lhe dizer? Logo quando ele tinha dito que ela era bonita...
Aquele raio de Sol ainda teimava em queimar sua bochecha. Talvez fosse um bom sinal...

****

Passaram a tarde toda passeando pelos arredores do hotel. Parecia até que o clima da primavera havia amenizado as diferenças entre aqueles dois. Brigaram poucas vezes até. Bem... Consideravelmente.
Agora já era noite e os dois acabavam de chegar do jantar.

Embora tivessem conversado bastante sobre a cidade, sobre a faculdade, sobre Celeste-sama e alguns livros que tinham lido em comum, algo não saía da cabeça de Rukia: o que Ichigo tinha dito na noite passada sobre ter idéia do que iam fazer... Ele parecia tão convencido, parecia tanto ter algum propósito... E o máximo que fizeram o dia todo foi tomar sorvete e discutir com alguns idiotas por causa da corrente.
Bem. Talvez ele estivesse variando por causa do sono. Ou talvez nem se lembrasse mais. Por que afinal ela estava esperando tanto por isso?
- Rukia... – quando já estavam dentro do quarto, Ichigo tirou-a de seus pensamentos. – Você já olhou através dessa janela? – apontou para a janela que ficara observando quando acordou.
Ela franziu o cenho estranhando.
- Não. – admitiu.
- Olhe.
Os dois então foram andando até lá. Ichigo abriu a janela e Rukia olhou lá para baixo.
Mesmo que fosse noite, a Lua cheia já fazia o suficiente em seu trabalho de iluminar aquela lindíssima paisagem de flores. Era um jardim que com certeza compensava qualquer falta do hotel.
Tanto que a baixinha de olhos azuis arregalados ficou sem palavras.
- Nossa... – murmurou alguns segundos depois. – Que... Perfeito. Como não tinha visto isso antes? – os olhos brilhavam junto com as estrelinhas do céu.
- Pois é... – Ichigo murmurou alternando o olhar entre a paisagem e a pequena mulher. – Amanhã... Amanhã vão abrir o jardim para visitas. Parece que ainda estavam preparando algumas coisas...
- Que bom! – ela sorriu. – A gente vai, né?
- Bem... – ele bagunçou os cabelos. – Na verdade eu estava pensando em... Não esperar.
- Como assim? – ela pareceu decepcionada. – Acha que o Celeste-sama nos libertaria logo?
- Na verdade isso nem me passou pela cabeça... – tomou coragem e encarou-a. – Eu estava pensando mais em... Invadir o jardim agora mesmo.
Os olhões azuis quase saltaram e a boca quase ficou do tamanho de um prato. O que ele... Então era... Não podia...
- Ichigo... – conseguiu ofegar. – Você enlouqueceu?!

- Sim ou não? – perguntou com o coração na garganta, mas os olhos firmes.
- Mas...
- Eu quero um sim ou um não. – declarou. – O que vai ser?
Ponderou por uns poucos segundos. O que ele estava pensando? E se fossem pegos?
...

Mas e daí se fossem pegos? Era tão lindo... E não teria ninguém para atrapalhar a visão nem para tirar-lhes do sério por causa da maldita corrente. O seu coração não queria de jeito nenhum ouvir sua razão... E a Lua estava tão reluzente... Por que não?
- Sim. – decidiu. – É claro que sim. – sorriu.

Continua...


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