Céu escrita por Liminne


Capítulo 17
Capítulo 17 – Colecionando sorrisos




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- Eu já disse para sair. – a mulher de óculos ajeitou os ombros séria e empertigada.
- Mas Ise-san... – ele insistia com seu sorriso que naquele momento parecia de deboche.
- Não tem, mas! – ela aumentou o tom e apertou as sobrancelhas encima das lentes. – Vá embora daqui agora!
- Ei, ei, ei... – de repente surgiu o homem que nunca desgrudava da sua capa florida. – O que está acontecendo aqui, hein? – sorria amigável.
- Kyouraku. – ela disse sem tirar os olhos daquele rosto pálido medonho. – Esse senhor está resistindo em se retirar. Eu já o mandei procurar o caminho dele mais de cinco vezes. – seu tom era firme e autoritário. Mas ele sabia... Ele sabia que o medo estava por trás daquela expressão dura.
- Ora, ora, Nanao-chan... – o homem de cabelos castanhos e compridos deu uns passos a frente e pousou a mão sobre o ombro dela. – Não seja tão rude. – olhou para o ex-presidiário. – Como vai, Gin? O que veio fazer por aqui?
- Kyouraku! – a mulher irritada repreendeu, mas acabou ficando quieta. No fundo sabia que não tinha plena autoridade sobre a república. Não no papel.
- Eu vou bem, Kyouraku-san. – o homem de cabelos claros curvou o corpo respeitosamente. – É bom vê-lo de novo. – o sorriso não saía do rosto, como um carrapato na pele.
- Mas o que foi que aconteceu? – Shunsui mantinha a mão no ombro de Nanao. – Sua pena já foi cumprida?
- Bem... – ele não mudou a expressão. – Na verdade, eu fui um bom menino. E aliviaram pro meu lado. Afinal, acho que meus motivos até são compreensíveis, não é? – riu um pouco.
A mulher de cabelos presos e olhos azuis encolheu-se. Não era por causa do crime dele. Mas pela sua simples presença.
- É... – o dono da república coçou a barba por fazer. – Digamos que, é compreensível perder a cabeça... Mas que não é aceitável numa próxima vez.
- Oh, eu sei disso, senhor. – ele assentiu. – Eu já tive o meu castigo...
Nanao olhou para o chefe.

Tentava desesperadamente chamá-lo para um cochicho ou até mesmo por telepatia e dizer que não caísse nessa. Que era perigoso.
- Então você quer... Quer mais uma chance? – os olhos castanhos caíram sobre a mala que as mãos delgadas carregavam.
- Sim. – ele suspendeu levemente a mala e seu sorriso. – Será que... Seria pedir demais?
Os punhos de Nanao quase explodiam de tão apertados. Seus olhos já doíam de não piscar, olhando fixamente para o rosto de Shunsui. Por que ele não a olhava, não a captava de uma vez?
- Humm... – segurou o queixo pensativo. – Eu não quero por em risco meus moradores... Principalmente agora que a Rukia-chan está morando aqui... Praticamente minha sobrinha!
- Eu não vou fazer nada de mau. Eu mudei, aprendi. – ele afirmava no que era para ser seriamente. Mas o diabo do sorriso não saía dos lábios!
- Nesse caso eu... – o homem de barba ia dizendo, quando teve que arregalar os olhos.
- Nesse caso EU tenho que tomar uma providência! – Nanao se livrou da mão do homem e de qualquer amarra da relação empregado/patrão que estivesse sobre ela e agarrou ferozmente as malas de Gin.
- N-Nanao-chan... – murmurou boquiaberto.
- EU JÁ MANDEI SAIR DAQUI! – gritou pausadamente com as malas nas mãos e o rosto do criminoso surpreso. – SAIA DAQUI AGORA! – arremessou as malas pela porta fazendo com que se espatifassem na rua.
- Nanao-chaaan! O que está fazendo, bonitinha? – Shunsui fazia alarde desesperado, agitando os braços e com o queixo quase no pé.
- Estou protegendo você, a mim e a todos os moradores seu idiota! – e virou-se vermelha de raiva com o rosto todo agressivo para Gin. – E você?! Vai embora logo! Senão vai ter o mesmo destino das malas!
- Kawaii, kawaii, que violência! Se acalme, se acalme! – o moreno brandia as mãos espalmadas para a barraqueira a fim de acalmá-la. E continuava cantando ao falar.
- Não me acalmo não! Eu tenho que cuidar de tudo nesse lugar! – bateu o pé no chão. – Dá o fora! – apontou para a rua firmemente e encarou o indesejado. – PARA FORA!

Ele não pôde fazer nada que não fosse recuperar o sorrisinho e sair por aquela porta, em direção as malas que iriam ser atropeladas.
- Me desculpem o incômodo... – murmurou e partiu.
- Hunf! – olhava carrancuda para o homem que ia ficando menor às suas vistas.
- Lindinha, tome um copo d’água... O que aconteceu, está tão estressada... – Shunsui se aproximava com um copo.
- Cala a boca! – ela deu um tapa que derrubou todo o líquido na roupa do patrão. – E vê se aprende a cuidar melhor dos seus negócios! – e foi pra trás do balcão da recepção de cabeça erguida e rosto contraído, ajeitando os óculos.

****

Abriu os olhos devagar. Tinha dormido muito no dia anterior. Tinha se entupido de remédios. Nunca mais iria beber. Nunca mais! Era uma promessa para si mesma.
Mas pelo menos... Pelo menos um dia de tortura e prisão havia se passado sem que pudesse perceber tanto... Esfregou os olhos e olhou para o lado. Ichigo adormecido, reto, com o braço livre dobrado sobre os olhos e a cabeça pendendo de lado.
Olhou para si mesma. Dessa vez estava vestida com seu pijama rosa claro de mangas curtas e botõezinhos brancos. Ainda bem. E não sentia dor de cabeça. Estava curada!
Espreguiçou-se do melhor modo que conseguiu com uma corrente no braço. Foi acordar seu parceiro.
- Ichigo! – chamou baixinho. – Ichigo! – aumentou.
- Que é? – ele perguntou num suspiro.
- Já está acordado? – inclinou-se para ele.
- Acordei agora... – respondeu interrompido por um bocejo. Tirou o braço dos olhos inchados e ficou com eles diminuídos até que eles desembaçassem.
A baixinha esticou o pescoço e viu no relógio do ruivo que ainda estavam nas nove e pouca.
- Vamos descer pra comer? – ele perguntou sentando-se na cama.
- É. – ela respondeu. Estava pensando como ia passar mais um dia naquela prisão.
- Okay! – ele esfregou os olhos e encarou alguma coisa no ar determinado. - Escolha uma roupa bem confortável. – começou a levantar da cama obrigando-a a fazer o mesmo.
- Hum... Por que, hein? – perguntou desconfiada.

- Porque nós vamos num lugar hoje... – não a encarava. – E você vai precisar se sentir confortável.
- Que lugar? – já franzia as sobrancelhas intrigada.
- Você vai ver. – assentiu com a cabeça e começou a caminhar para o banheiro.
- Me fala Ichigo! – ela ordenou carrancuda. – Anda logo, pára com esse mistério idiota!
Mas ele ignorou o showzinho dela. Tratou de encher a boca com a escova e a pasta de dente e ficou calado, deixando que ela disparasse seus resmungos às paredes brancas, à pia ou ao espelho.
Esperava fervorosamente que eles fossem substituídos por um sorriso quando descobrisse.

****

Rukia olhava pela janela do carro curiosa. Não conhecia Tóquio. Não podia imaginar o que lhe aguardava. Sobre perguntar? Tinha desistido. Ele não ia mesmo falar. Ao mesmo tempo em que aquilo lhe deixava furiosa, um calorzinho ia crescendo em seu peito... Ele estava lhe fazendo uma surpresa! Ele estava tentando agradá-la.
Ei! No que estava pensando? Ele devia estar levando-a para um lugar que ela fosse totalmente odiar, mas que ele fosse se divertir sozinho, claro. Mas como não tinha jeito de separar-se dela, teve que enganá-la. Sentiu-se uma criança com esse pensamento. Ou um bicho. Arrastada de um lado pro outro.
Olhou para o rosto dele. Não estava sério nem sorridente. Estava... Leve. Mas as mãos, que agora estavam pousadas no volante, estavam instáveis. Como poderia traduzir aqueles gestos, aquela expressão?
Não agüentando de curiosidade, abriu o zíper do casaco azul claro de moletom. Estava com calor. Por que raios Ichigo tinha dito para que vestisse um casaco? E meia-calça grossa por baixo da saia? É... Tinha viajado no primeiro pensamento. Boa coisa não podia ser!
- Chegamos. – ele anunciou e ela por um momento achou que ele sorriu. Mas saiu um pouco mais trêmulo do carro, quase esquecendo que estava acorrentado a ela, e então se esqueceu do possível sorriso. Ou descartou-o.
Ela saiu do carro meio torta e ocupou-se em ajeitar a saia que era bem mais curta do que as que estava habituada a usar.

E ele ficou olhando para o lugar por um momento. A dúvida pegou carona em seus batimentos cardíacos. Tinha medo da rejeição que ela emanava...
- Vamos logo! – saiu em passos grandes na frente, adentrando o estabelecimento.
- Ei, Ichigo! – ela reclamou, ainda estava ajeitando a saia. – Espera, droga! Olha o tamanho das suas pernas e olha o das minhas!
- Você não está curiosa? – ele não diminuiu o passo. Talvez estivesse tentando fugir daquela praga chamada insegurança e tivesse que andar depressa para que ela ficasse longe. – Então anda rápido.
Ela virou os olhos pra cima e se esforçou para acompanhá-lo.
Entraram e Ichigo foi falar com um homem na frente de uma pequeníssima arquibancada. O resto ela não reparou. Ficou encantada com o que reluzia ali no centro, fria, lisa e traiçoeira. Mas nem por isso não sedutora: uma pista de patinação. Uma pista de gelo.
- Uau! – deixou escapar sem notar. Os olhos grandes eram todo estrelinhas. A pele alva tinha uma maquiagem natural de alegria, um rosado suave. E os lábios carregavam o maior brilho de sua beleza naquele momento. Estavam sorrindo. Sorrindo de modo a maquiar as bochechas, estrelar os olhos e encantar um canceriano ruivo. – Ichigo... – ela murmurou ainda olhando para a pista, sem se aproximar, sem dar um passo. – É uma pista de gelo! – ofegou debilmente como uma criança a ver uma casa de doces.
- Ela é sua namorada? – o homem que recebera o dinheiro de Ichigo perguntava. Pôs os olhos na corrente que os ligava e sorriu malicioso. – Estão em lua-de-mel, é?
O que qualquer pessoa imaginaria aqui? Sim. Um Ichigo muito vermelho. Um Ichigo irado, com uma veia saltando-lhe na testa. Um Ichigo cerrando os punhos e os dentes e dando uma resposta malcriada, gritada ou contida-enfurecida. Mas o jovem surpreenderia as pessoas. Mesmo sendo tão previsível.
O que tinha no seu rosto era um rubor. Mas era um rubor de satisfação. Seu coração fazia tanto barulho no peito, que tinha ensurdecido qualquer pergunta que qualquer pessoa pudesse ter feito.

Seus olhos nem se mexiam. E nos lábios, foi nascendo um sorrisinho minúsculo, desacreditado, sonhador.
Ele estava vendo... Estava vendo a recompensa mais cedo que esperava. Mais brilhante que esperava.
- Ichigo, vamos! – ela sacudiu o braço com a corrente, empolgada.
- É claro. – ele sussurrou quase inaudível para ele mesmo. – Vamos.
E ignorando o homem, os dois foram em direção à pista branca. Uma inundada de um egoísmo infantil. E o outro embebido de um altruísmo que também atende por um nome bem conhecido...
- Não pode ser... – sentada na arquibancada, a garota quase deixou o queixo cair. Espremeu entre os dedos o copo americano de cappuccino e esticou o pescoço. Espremeu os olhos para o casal que se sentava num pequeno sofá branco para calçar os patins. – São eles mesmo! – exclamou baixinho para si mesma.
- Maninha, maninha! Vamos patinar mais! – uma menininha beirando os sete anos insistia com sua vozinha de boneca falante, batendo o pé ritmicamente no chão.
- Já vou, Ayumi, espera eu terminar o cappuccino! – respondeu impaciente a garota de cabelos cor-de-rosa. Deu mais uma olhada nos dois só para ter certeza. Eram eles! Passou a mão na bolsa luxuosa e tirou o celular de dentro. Discou um número e já estava com o aparelho grudado no ouvido. Balançava as pernas enquanto esperava que atendesse.
- Oi Fuu. – ouviu a voz do outro lado da linha.
- Mai-chan! – soltou um agudo. – Você ainda está recolhendo dados sobre a Rukia-chan, não está?
Pensou um pouco. Fuu não sabia a verdadeira razão por ela ter dado o fim no relacionamento com Ashido.
- Hum... – fez-se de distraída. – Não tenho motivos mais pra isso... – temeu por um instante que a jovem desistisse de lhe dizer o que ia dizer. Mas lembrou-se de repente de que ela se tratava de uma geminiana que, digamos... Adora espalhar informações. – Por que, hein? Recebeu um postal dela de Kofu?
Fuu ouviu Chiharu rindo ao fundo.

- Não, boba! – ela riu também. – Você é muito ingênua de achar mesmo que ela voltou pro interior... – disse toda reticente, aguçando a curiosidade da loira escorpiana.
- Como assim? – ela agora estava séria e denunciando sua posição. – E-ela... Ela não viajou?
- Claro que não. – ela tomou um gole do cappuccino se deliciando com o próprio suspense. – E devo dizer que ela não perde tempo... – riu.
- C-como assim? – o coração da escorpiana instantaneamente virou pedra. Pedra doída. Que trava os músculos e a garganta. – Fuu, o que...
- Eu vim trazer a Ayumi pra patinar no gelo... E peguei a pequenininha no flagra!
O medo estava sufocando Mai. Ela não tinha ouvido nada, não devia estar se sentindo assim.
- Fala logo o que você viu! – controlou-se para não gritar.
- Tá bom! – rendeu-se. - A Rukia-chan está acompanhada de, nada mais nada menos que... Kurosaki Ichigo!
Kurosaki... Ichigo...? Kurosaki Ichigo?! Como assim??
- Hã? – a surpresa devolveu-lhe o coração. – Ichigo? Você tem certeza disso? – sua voz era incredulidade pura.
- Tenho! – ela afirmou com força. – Se quiser posso tirar uma foto. Os dois estão num encontro, parece que estão namorando... Se não me engano... Estão presos numa corrente! – a essa altura do campeonato já tinha levantado da arquibancada para aproximar-se discretamente da dupla.
- Mentira! – agora Mai era toda sorrisos. Sentia-se derreter por dentro. – Safadinhos!
- Pois é! – a geminiana sorriu. – Os dois ficam engraçados juntos... Fico imaginando que tipo de coisas os dois estão fazendo escondidos, acorrentados, sob o álibi de ela ter ido pra Kofu...
- Interessante... – de repente Mai lembrou-se de como o vermelho do seu quarto a fazia sentir viva. - Maninhaaa! Vamos patinaaar! – a garotinha sardenta de cabelos escuros trançados fazia pirraça.
- Aiii. – Fuu revirou os olhos. – Mai-chan, preciso desligar... Se souber mais te conto depois.
- Ah, sim. – não cansava de sorrir. – Divirta-se, Fuu.
- Vocês também. Manda um beijo pra Chiharu.
- Okay. Manda um beijo pra Rukia.

Fuu riu, despediu-se e desligou. E foi acompanhar a irmã na pista, fazendo duas pessoas felizes, uma atrás da outra.
E Mai ganhou o dia, talvez a semana, e algumas idéias em forma de milho, que logo pipocariam.
- Vamos. – Ichigo já estava pronto em seus patins. Pôs as mãos nos joelhos para levantar-se, mas Rukia forçou a corrente para baixo. – Ai! – ele sentou-se novamente. – O que foi? Não está pronta?
Ela ficou calada. Olhou para os sapatos deslizantes e suspirou pequenamente.
- É que... Eu não sei patinar muito bem... – falou muito baixinho, quase imperceptível.
- O quê? – ele aproximou-se para entender.
- Eu não sei patinar muito bem! – ela repetiu meio impaciente, o rosto vermelho. Virou-o para o outro lado um pouco tímida. - Nunca patinei em Kofu...
- Eu sei... – ele reprimiu um sorrisinho. – Eu sei disso.
Ela o olhou com as sobrancelhas levemente franzidas, um olhar meio perdido e seduzido.
- Você sabe... – entoou baixinho.
- “Ela não se lembra da lista...?” – o ruivo pensou com o coração querendo passagem na garganta. O rosto em brasas. - B-bem... – bagunçou os cabelos e fechou os olhos por um instante. – Vamos logo, certo? – fez menção de levantar-se de novo. Mas antes declarou espiando-a da casca. – Não precisa se preocupar... Eu não vou deixar você cair.
Ficou piscando para ele por alguns segundos. Quatro, cinco... Talvez seis.
Quando ele levantou, ela fez o mesmo, meio desequilibrada. Pensou com um frio na barriga que talvez aquela empolgação toda devesse ser esquecida. Não queria pagar o mico de cair ali na frente de todo mundo. Não queria parecer uma idiota e nem uma perdida. Mas quando viu a pista... Pensou logo no consolo de não ter ido a Kofu... Sempre quis aprender a patinar de verdade.
Pôs-se finalmente de pé, conseguiu equilibrar-se, com umas gotinhas de suor na testa. Secou-as. Ele não a deixaria cair...
Ichigo começou a andar para a pista e foi inevitável que seu coração quase parasse. Não. Tinha certeza que tinha parado!

Ela agarrou o braço dele sem ao menos perceber, com medo de cair.
- Desculpa... – ela murmurou, mas não o soltou. – É que... – enrubesceu e perdeu as palavras.
Não. Não podia deixar a chance escapar. Lembrou-se do sorriso dela quando viu a pista. Lembrou-se da noite que passou em claro pensando. Olhou para o rosto dela e teve de novo a certeza de como aquele sorriso fazia falta ali. E finalmente sentiu que estava bem. Algo estava acontecendo enfim. Não podia estragar tudo.
- Okay. – ele olhou-a finalmente. Ignorou o coração frenético e a cor de insolação que a pele parecia ter pela ardência. Ignorou que os joelhos também não estavam tão mais firmes que os dela e pegou-a pelas duas mãos. – Vamos começar devagar.
Ela assentiu. E ele teve que dar tudo dele para não sorrir, sentindo aquela maciez tão pequenina em suas mãos simuladamente profissionais.

****

Saía do mercado cantarolando. Era chato não ter nada pra fazer, tão chato que até fazer as compras do almoço parecia divertido. Tinha se disposto a ajudar a prima. Afinal, sabia como era complicado para ela essas coisas de arrumar a casa e cozinhar. Pensou
em Rukia. Se não fosse por ela, a prima teria viajado e a deixado sozinha ou coisa parecida... Falando em ficar sozinha, lembrou que até que ela queria ficar sozinha um pouco mesmo... Dessa vez...
- Olá! – ouviu uma voz familiar.
Sentiu aquele cheirinho de perfume e café inconfundíveis e seu coração começou a pular alto. Tirou os olhos das nuvens e fixou-os no homem a sua frente.
- A-Aizen-sensei! – ela corou imediatamente agarrando forte as alças das sacolas. – Olá! – sorriu como era impossível não fazê-lo.
- É uma coincidência muito prazerosa encontrá-la por aqui. – ele sorriu também. – Fazendo compras, é?
- Ahh... É. – assentiu. – E o senhor?
- Eu só estava tomando um café na cafeteria ali ao lado. – apontou. – Agora vou comprar algo pro almoço e voltar para casa. Foi bom encontrá-la! Não sabia como ia fazer para falar com você de novo...

- Aizen-sensei ainda quer a minha ajuda? – piscou os olhos brilhantes.
- Ah, quero sim. – sorriu. – Mas é claro, se estiver com tempo.
- M-mas é claro que estou com tempo! – a voz saiu até mais aguda de emoção. Envergonhou-se um pouco do tom tão exagerado. – Aizen-sensei pode contar comigo a qualquer hora.
Ele sorriu.
- Você é mesmo uma pessoa doce, Hinamori-kun. – fez um afago nos cabelos presos dela. O que a deixou tão derretida que era capaz de cair ali mesmo. – Bem, agora tenho que ir. Muito trabalho me espera. Não vou ter tempo nem de cozinhar, algumas coisas tenho que terminar até a tarde...
- E vai comer comida pronta? – franziu a testa com pena.
- É o jeito. – sorriu. – Bem, a gente se esbarra por aí. Você sabe onde me encontrar. – foi andando.
- Até mais, Aizen-sensei! – acenou contente, corada de alegria. Suspirou e olhou para as nuvens novamente. Agora todas elas pareciam de cores diferentes.
Foi andando quase saltitando para o apartamento. Passou pelo saguão principal voando, tomou o elevador e abriu a porta sem número.
- Primaa! – cantarolou depositando as compras em cima da mesa. – Cheguei!
Nenhum som. Ninguém respondeu. A garotinha espiou apartamento adentro e chegou a uma conclusão: a prima não estava.
Quando voltou para a cozinha, entretanto, foi que percebeu o bilhetinho escrito às pressas pregado na geladeira:


“Querida priminha,
Eu saí. É só um pouco... Algumas horas e estou de volta. Não se preocupe, ta? Beijos.
Rangiku.”


Arrancou o bilhete e encarou-o furiosa. Olhou o relógio, já era quase meio-dia.
Algumas horas... Ela era sempre assim. Não tinha jeito. Mesmo depois de Rukia, não mudaria muita coisa. Não adiantava ter esperanças.
- Certo. – disse a si mesma jogando o bilhete no lixo. – Talvez isso não seja tão ruim afinal... - Passou a mão no livro de receitas que Rukia havia separado e sentou-se na cadeira com ele na frente. – Aizen-sensei... Eu vou te ajudar o máximo hoje! – sorriu e pôs-se a ler o livro com uma ruga na testa.

****

 

- Pronto, viu? – Rukia já dava seus passos segurando as mãos de Ichigo. – Não é difícil se equilibrar.
- É... – ela encarava os pés como se eles estivessem fazendo mágica. O sorrisinho começou a tentar escapar de novo pelos cantos dos lábios.
Ichigo então começou a soltar as mãos dela devagar. E o sorriso ficou quietinho de repente, reprimiu-se, e os olhos azuis se arregalaram. Sentiu imediatamente que ficava desequilibrada e apavorou-se.
- Seu idiota! Por que é que me soltou tão rápido?! – esbravejou equilibrando-se sozinha, hesitando alguns passos por conta própria.
- Ora, quem diria! – ele reagiu. – A independente Rukia toda medrosa! Nós estamos presos por uma corrente de dois metros! Você não vai muito longe!
- Hunf! Eu não sou medrosa, você que não sabe ensinar! – ela retrucou emburrando.
- Vamos então! Prove que não é medrosa e se mexa! – provocou-a satisfeito de ver aquele leve rubor nas bochechas fofas e alvas.
Ela ficou parada por um tempinho. Olhou para o chão. Espalmou as mãos na frente do corpo e foi encolhendo-as devagar. Mexeu um pé, o outro. Sentiu-se balançar, mas continuou. As sobrancelhas tão apertadas que pareciam querer espremer a testa. Tentou mais dois passos meio desajeitada, tombando pra um lado ou outro. Olhou disfarçadamente para o rosto do ruivo e viu que ele a esperava. Sentiu seu orgulho provocado. Estava parecendo uma criança aprendendo a andar. E ele a tinha chamado de medrosa!
Aumentou o passo imprudentemente e tombou de vez.
- Cuidado! – rapidamente, o canceriano diminuiu a distância das correntes e segurou-a. – Tenha mais cuidado! – advertiu segurando-a nos braços.
Ela ficou quente na hora. Livrou-se dos braços dele para levantar-se bruscamente e acabou se desequilibrando de novo.
- Rukia, cuidado! – ele falou mais alto segurando-a de novo. Olhou para o rosto dela. Aquela expressão fechada.
- Eu posso ficar em pé sozinha. – disse toda cabeça-dura.

- Hunf! Teimosa, orgulhosa! – ele disparou agora também de cara azeda. – Não precisa disso tudo. Não precisa provar que é a melhor. Você está aprendendo, certo? – colocou-a de pé na segurança do equilíbrio de novo. – Não tem o mínimo espírito de esportista.
- E você? Tem algum espírito de professor? – atacou.
- Eu não trouxe você aqui para isso, droga! – ele gritou.
- Não grite comigo! – ela fez o mesmo.
- Grito sim! – ele bateu o pé. – Você estava tão feliz quando viu a pista. Até sorriu. E admitiu que não sabia patinar. E eu sei que você queria tanto aprender. E não consegue ter a humildade de deixar que eu te ajude, droga! O que você quer afinal?!
Abriu a boca para contra-atacar, mas fechou-a. Ficou em silêncio fitando o gelo branco. Ele estava certo afinal... Sempre o julgava mal humorado, mas estava sendo bem mais ranzinza. Afinal, ele a tinha levado até lá. Era algo que ela realmente gostava. E ele a tinha visto sorrir. E tinha segurado sua mão. Por que estava sempre teimando em boicotar todas as bolas que ele acertava?
Olhou para ele. Encarava algum ponto invisível, ou alguma patinadora ou patinador, distraído e com aquela cara toda crispada. Só não estava de braços cruzados por causa da corrente, tinha certeza.
Deu um pequeno passo. Dois, três, quatro, cinco. Patinou até ele com todo o cuidado, quase roboticamente. Tocou seu braço quando chegou.
Ele a olhou já pronto para qualquer ataque. E ela levantou a bandeirinha branca.
- Perdeu a minha evolução. Cheguei sozinha. – sorriu. E não amargurada nem irônica. De verdade. De novo. Daquele modo que iluminava todo o rosto e toda a aura ao seu redor. E a sua alma também.
Corou.
- M-muito bem. – ficou olhando aquele sorriso surpreso. E acabou deixando que um escorregasse pelos seus lábios também. Bem pequeno. Mas existente e atrevido. – Agora... Com uma mão só, que tal?
- Certo.
Olharam-se. Desviaram o olhar para as mãos. Era profissional! Era profissional!

Alguém que já enfrentava um terremoto por dentro por causa de um sorriso podia piorar sua situação com as mãos dadas?
Resolveu que queria descobrir. Segurou a mão dela enfim. E sentiu que ela confiou a sua a ele. E descobriu que o terremoto ficou mais brando... E agradável... Como uma massagem...
Talvez tivesse passado o abalo para ela. É... O coraçãozinho capricorniano abalou-se dentro do gelo. De alguma forma. Pequena ou grande.
- Vamos... – ele disse. – Direita... Esquerda... Direita... Esquerda. Isso. – incentivou-a. – Estamos indo bem.
Ela sorriu de novo. Para os pés
em trabalho.
Eram
três sorrisos. Três!

****

Já estavam há algum tempo na pista. Era hora do almoço, mas o estômago de nenhum dos dois dava sinal de vida. Tinham órgãos mais importantes necessitando de nutrientes mais importantes naquele momento.
- Acabou o tempo! – o homem com quem Ichigo falara assim que chegou avisou quando o ruivo passou perto da saída da pista.
Ichigo olhou para Rukia. Os dois tinham acabado de dar uma volta pela pista inteira de mãos dadas. Ela o olhou de volta inocente. Não tinha ouvido o homem.
- Mais uma? – perguntou iluminada, animada. – Agora eu posso tentar ir sem as mãos!
Ela estava feliz por terem concluído uma volta. E agora estava se sentindo segura para ir sozinha. Não. Ela ainda não tinha aprendido.
- Não. – ele disse ao homem – Pode anotar o tempo. Eu pago no final.
- Ichigo! – ela ouviu e interveio. – O que...
- Você ainda não aprendeu, certo? – ele disse. – Eu quero ver você patinar sozinha. Não vamos sair daqui enquanto não conseguir.
- Mas o dinheiro... – os olhos brilhavam sem querer. – Vou te ajudar a pagar. – fez uma cara de ponto final.
- Não. – ele apagou o ponto. – Fui eu que te trouxe aqui então eu pago.
- Mas Ichigo...
- Se quiser me levar a outro lugar depois você pode pagar. Esse eu faço questão.
O homem assentiu para Ichigo e saiu sorridente.
Rukia ficou só olhando paralisada.

- Vamos logo! Quero ver você patinar sozinha! – ele começou a andar, bem devagar, obrigando-a a fazer o mesmo.
O coração o estava sufocando, mas dessa vez ele ia conseguir. Não sabia bem o porquê de toda aquela vontade, já que o prêmio tinha sido atingido... Mas ele ia seguir aquela vontade. Ia cumprir as promessas de mudança que fez a si mesmo. Ia provar a si mesmo. Ia provar a ela.
- Tá. – ela assentiu e começaram a segunda volta. Foi soltando a mão dela devagar... E agora a segurando com os olhos. – Olha! – ela espantou-se. – Estou conseguindo! – viu que já aumentava a velocidade e não se desequilibrava tão facilmente. Sorriu pela quarta vez.
- É... – a voz dele tinha um quê de emocionada. – Até que você não é tão dura... Não pra patinar!
- Há há há... – ela forçou a risada e fez uma careta para ele. Logo voltou a concentrar-se nos pés. – Ichigo... – de repente sua voz de sarcástica mudou para curiosa. – Como é que você aprendeu a patinar? Quero dizer... Você não parece o tipo de pessoa que sai por aí patinando... Você parece mais duro que eu pra esse tipo de coisa...
- Ah... – sentiu uma pontada de nostalgia. Nem se sentiu espetado pelo alfinete dela. – Era minha mãe... Ela adorava patinar... E quando eu era criança ela me ensinou... Sempre me levava com ela...
- Humm... – continuava olhando para os próprios pés. Vez ou outra esticava os braços em ímpetos de segurar-se
em Ichigo. Mas agüentava. – Você... Era mesmo ligado a ela... – disse mais como um pensamento próprio. – E seu pai? O relacionamento de vocês é ruim?
- Não diria ruim. – ele disse. – Meu pai só é louco. E eu não consigo entender tanto exagero nas atitudes dele...
- Oh sim! Isso me lembra que você tinha dito algo sobre a corrente ser culpa do seu pai... Eu não entendi essa. Por acaso seu pai é o Infernal-sama? – riu.
- Tá louca! – ele olhou espantado pra ela. – Sinceramente, não sei qual dos dois é pior!
- Mas e então? – parou de rir aos poucos. – Vai me responder ou vai me enrolar?

Ele hesitou. Por que contaria? Olhou para o rosto dela, agora o encarando na expectativa. O encarando de verdade e sem qualquer sombra de hostilidade... Por que não contaria?
- Você tem que prometer que não vai rir. – ele disse baixinho, já se escondendo parcialmente na casca que tanto amava.
- Humm... – ela ponderou diminuindo os olhos e torcendo o nariz. – Só se você prometer que não vai rir se eu cair.
- Okay. Prometo.
- Okay. Prometo também.
Olharam-se assentindo. Em seguida os olhos azuis que alternavam cor de céu de verão e céu de inverno começaram a pressioná-los.
- Humm... – tirou seus olhos dos dela. – É que... Quando eu era adolescente... E meu pai me embebedou pela primeira vez a fim de tirar de mim coisas que eu não contaria... – hesitou mais, encarando o gelo branco debaixo dos seus pés. – Eu perguntei como ele e a mamãe se conheceram...
Estava interessada. Muito. Tanto que nem olhava mais para os pés. Concentrava-se no rosado das bochechas dele.
- E ele me contou que... Participou desse programa. Na época não era um site. E talvez não fosse o Infernal-sama, quem sabe fosse o pai dele? Ou quem sabe esse cara tenha mais de cem anos? – o rosa mudou para vermelho. – Eu os considerava o casal mais perfeito... Mesmo sendo tão diferentes... Mesmo minha mãe sendo perfeita e meu pai um perfeito idiota... Eles eram certos juntos. Simplesmente... Nunca tiveram um momento de infelicidade que eu tivesse presenciado... Então eu... Eu... Resolvi que queria isso pra minha vida... – agora não olharia mais pra ela de jeito nenhum. Estava se arrependendo amargamente de ter aberto a boca!
Ela estava sorrindo. Pena que ele não pôde contar o quinto sorriso.
Ele era uma criança sonhadora... Invejava isso nele...
Mas espera! Isso queria dizer que... Que ele estava apostando no relacionamento deles a qualquer preço?
- Uaaah! Saiam da frenteee! – a voz desesperada de um jovem não deixou que a baixinha concluísse seus pensamentos.

Olhou para trás e um garoto de cabelos tingidos e piercings vinha se aproximando em altíssima velocidade dos dois. Ou melhor, entre os dois. Eles se afastariam para o desenfreado se estabacar direto na parede mais à frente... Se afastariam se não fosse a corrente que os unia.
Então ele colidiu.
- Ahhh! – Rukia capotou com a saia pro alto e a bochecha beijando o gelo.
- Merda! – Ichigo foi junto quase quebrando o nariz.
- Ai, ai, ai... – o garoto levantou-se rapidamente. – Foi mal, foi mal, pessoal... – massageou a testa dolorida. – Minha namorada me empurrou!
- E DAÍ, SEU OTÁRIO? – Ichigo berrou ainda ao chão. – Ninguém perguntou nada, some daqui!
- Ihh, que maluco esquentado! – o tingido chiou. – Ninguém mandou andar de corrente, se desse mais liberdade pra irmãzinha mais nova nada disso teria acontecido. – fez uma careta. – Você está bem, menina? – dirigiu-se a Rukia.
- Qual parte do SOME DAQUI você não entendeu, seu bucha? – Ichigo gritou mais uma vez caprichando na sua cara que afugentava. – Vai pra...
- Desculpa, desculpa! – ele se redimiu. – Estou indo... – e seguiu seu caminho resmungando de dor e revolta.
- Ai! Aai! – Rukia gemeu tentando se levantar.
- Você está bem? – Ichigo também tentava.
- Estou... Gelada. – riu. – Não tinha mesmo jeito de você rir de mim, não é? A gente ia cair juntos de qualquer maneira. – continuou rindo.
- É... – ele quase riu também. Terminaram de levantar e se olharam. Recuperaram-se do riso e do tombo e continuaram a patinar até que ela aprendesse bem.
Continuaram até que, na medida que a corrente permitisse, ela já estivesse livre.

****

Já estava tarde quando entraram no carro. Rukia estava cansada. Cochilou no banco da frente ao lado do ruivo. E ele estava pensativo enquanto dirigia. Não se importava com as roupas meio úmidas e nem com as partes do corpo doloridas dos tombos. Não. Ele pensava nos sorrisos...
Antes era como se fosse uma meta. E ele atingiu essa meta. Mas por que sentia como se ela não tivesse sido alcançada?

Não. Tinha certeza de que todos aqueles sorrisos foram verdadeiros. Lindos e iluminados. Foram sim. Melhor do que os imaginara nos lábios dela... Mas acontece que, quanto mais ela sorria, mais um buraco aparecia em seu peito...
Olhou para ela. Os lábios estavam levemente curvados para cima no sonho qualquer que ela estivesse tendo. Ou em seu simples descanso.
E com aquela sensação, descobriu o mistério. O sorriso dela era viciante. Só queria poder vê-lo de novo após vê-lo. Sempre...
Voltou a atenção para a estrada se achando ridículo. Não importava. A luta estava começando. E ele só estava ficando mais forte. Ainda teria muitos sorrisos para colecionar...

Continua...


 


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