Céu escrita por Liminne


Capítulo 16
Capítulo 16 – Fé




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- E então? O rosa ou o vermelho? – perguntou a morena de lindos cabelos compridos e ondulados que batiam até o fim das costas viradas para o teto. Balançava as pernas dobradas no ar, as meias alaranjadas combinando com sua camisola de bolinhas. Tinha aberto, pousado na cama, um catálogo de lingeries e agora olhava para a amiga em dúvida.
- Pra
você o rosa. – a loira, atacando uma caixa de bombons importados, disse. Estava recostada ao respaldo da mesma cama grande o bastante para as duas e até mais uma.
- Certo. – a outra assentiu e passou a página.
Ficaram um tempinho
em silêncio. Só havia o barulho dos papeizinhos dourados dos bombons de Mai sendo amassados.
- E o Ashido? – de repente, a voz da escorpiana ressoou pelo silêncio, cumprindo expectativas. – Você o viu depois daquele dia?
Chiharu soltou um suspiro paciente. Sabia que na verdade, tinha sido chamada para dormir na casa da amiga para esse assunto e não parar comer chocolates e ver revistas de moda. Não porque nenhuma das duas estava a fim de viajar e queriam curtir a semana juntas. Finalmente a cerimônia havia acabado. Fechou então a revista e sentou-se de pernas cruzadas na cama. Fitou a amiga em seu baby doll menos glamoroso, aquele branco de gatinho preto da coleção retrasada.
- Mai... – disse devagar, mais do que se pode imaginar dizendo um nome tão pequeno. – Você terminou com ele. Não fique pensando no cara. – balançou a cabeça.
- Eu só estou perguntando se o viu! – fez-se de ofendida e pegou mais um bombom. – Nada de mais...
- Mai! – agora o rosto de Chiharu estava sério. – Mai, largue esse bombom! – falou com tanta firmeza na voz que a loira soltou o dito cujo e olhou-a assustada. – Droga! Você fica comendo, comendo, usando roupas velhas e falando obcecadamente de um homem que você deu o pé na bunda! Por favor, Mai, não fique tão acabada! – lágrimas quase surgiam em seus olhos por estar sendo dura com a amiga. Mas não podia vê-la afundar daquele jeito.

- Você não entende! – Mai contra-atacou. – Eu não terminei porque não o amo! Eu terminei porque não queria tomar o pé na bunda! Eu terminei porque eu não era boa pra ele... Porque sou covarde! – agora eram aqueles olhos opacos e negros que umedeciam. E numa velocidade bem alta.
Ficou calada. Mordeu o lábio inferior e deixou-se afundar no colchão. Mudou a posição das pernas que já ficavam dormentes.
- Eu... Eu não o vi... – admitiu enfim pregando os olhos na caixa de bombons. – Ele deve estar estudando...
- Será? – secou os olhos e voltou a voz ao normal. – Será que não está com a Rukia?
- Não fique paranóica, Mai! – a voz de Chiharu agora não era mais dura, e sim, carregada de uma piedade melosa. - A Rukia foi visitar os pais em Tofu.
- É Kofu. – corrigiu.
- Que seja! – balançou as mãos com descaso. – Ela está embrenhada no fim de mundo dela e o Ashido está aqui com os livros, certo? Não fique com medo.
Abanou a cabeça assentindo como uma criança assustada. Agarrou uma de suas almofadas em forma de estrela branca. Afundou o queixo em um dos intervalos de suas pontas. Ficou observando o ar e suas curvas... Quantas curvas podia haver em cada pensamento seu? Quantas dessas curvas eram realmente perigosas?
- Vamos, não fique assim! Vamos curtir o feriado! – tentou animar a amiga se balançando na cama. – Por que não chamamos a Fuu para uma festa do pijama agora mesmo? – sorria tentando contagiar a amiga a qualquer custo.
- Não... – porém ela recusou suspirosa. – Não estou no clima, Chi...
- Humm... Tá bom. – torceu o nariz. Mas não desanimou. – Então vamos ficar só nós duas mesmo. Que tal a gente se empanturrar de chocolate e comprar um filme na TV?
- Mas... Você disse pra eu parar de comer! – ficou confusa.
- Ah! Mas é que parece estar tão bom... – lambeu os lábios olhando para a caixa enfeitada.
- Tá certo. – a loira sorriu. – Vamos comprar um filme de suspense então?
- Tá. De preferência que tenha advogados! – falou toda empolgada sem perceber o erro.

Só notou a pontinha da faca na barriga quando os olhos caíram nos de Mai quase que algemadores. – Er... Que não tenha advogados, né? Muito, muito chato... Ninguém merece! – revirou os olhos e pegou o controle remoto.
Mai teve que rir um pouco. Agradecia por ainda ter quem realmente a amasse e a entendesse do jeito que realmente era... Do único e verdadeiro jeito que sempre foi.

****

É. De fato o céu estava incrivelmente belo e estrelado. De fato estava iluminado pela célebre e romântica lua cheia. O restaurante era agradável e ao ar livre. A brisa soprava favorável, com cheirinho de primavera. A sua parceira era linda, tinha incríveis olhos azuis e um rostinho angelical.
Seria tudo perfeito... Tudo perfeito se estivesse mudo. Tudo perfeito se fosse apenas uma imagem paralisada, uma pintura. O cenário perfeito se a personagem não estivesse tão mal humorada e, para completar, com mais ou menos o décimo copo de sake na mão. Mais ou menos não. Mais.
- É por isso que eu digo, a curiosidade matou o gato! – Rukia dizia balançando a cabeça e comprimindo os lábios e os olhos para o líquido do copo.
- É... – Ichigo apoiava a cabeça com a mão livre e o cotovelo na mesa. Reprimia um bocejo. Nem sabia mais do que ela estava falando. Se as reclamações dela já eram chatas, imagine com voz de bêbada!
- E você, ta olhando o quê, rapaz? – repentinamente mudou o tom e mexeu com um garoto que passou perto de sua mesa olhando a corrente curioso. – Nunca viu uma corrente não? Aposto que não vai querer vê-la no seu pescoço! – atacou feroz.
O garoto pré-adolescente que seguia os pais pulou longe se encolhendo de medo.
- Rukia! – agora Ichigo arregalou os olhos. Não sabia se estava mais assustado ou envergonhado. – Você não acha que já chega de sake, não? – fez uma careta embaraçada e repreendedora. Esticou a mão para tomar o copo dela.
- Fala sério, Ichigo! – ela franziu as sobrancelhas e bebeu mais um gole, tirando o copo do alcance do espetadinho. O rosto já estava cor-de-rosa.

A voz definitivamente não estava normal. – Deixa de ser caretinha! – franziu o nariz e terminou o copo. É... Com certeza nada estava normal.
- Você tem certeza que já bebeu na sua vida? – ele a encarava com o mesmo semblante repreensivo. – Você já está parecendo fora de controle...
- Ichigo... – ela se debruçou sobre a mesa e encarou-o séria. – Uma coisa que eu detesto nessa vida é perder o controle. Não suporto! Então relaxa... – encostou-se no respaldo da cadeira. – Eu vou saber quando perder o controle... – sorriu bobamente. Daquele jeito que só o álcool é capaz de provocar.
E o rapaz soltou um suspiro. Ela com certeza estava bem aborrecida para se comportar daquela maneira. Não. Estava desconsolada mesmo!
- Odeio que me controlem... – ela estava dizendo olhando para o copo vazio agora novamente séria. – Odeio. Qualquer um! Esse Infernal-sama... Essa corrente... Odeio quando não posso fazer o que eu quero... Odeio, odeio! – bateu o copo na mesa encarando-o. – Eu sempre fui dona do meu nariz... E essas pessoas com mais experiência sempre acabam engambelando a gente. Odeio me sentir perdida.
Ele ficou ali ouvindo. O garçom passou e ele pediu a conta. Voltou os olhos para a baixinha bipolar. Agora tinha uma expressão melancólica.
- As pessoas com experiência controlam a gente... – apertou o copo entre as mãos. – A Rangiku fez isso comigo. Só porque eu era uma perdida na cidade me fez entrar nessa loucura... – puxou de leve a corrente e olhou para o ruivo amarga. – E eu não estava preparada, por que eu fiz isso? – passou a mão na testa e fechou os olhos. – Por causa dele... Ele também me controlou porque eu era uma idiota... – ficou ali, de olhos fechados segurando a testa. – E meus pais achando que sou uma boa menina... Uma mulher responsável... – riu ironicamente. - E fazendo festa pra mim...
A conta chegou.
- Garçom! – ela rapidamente levantou a cabeça e o braço.
- Não! – Ichigo cortou-a antes que ela fizesse mais besteiras. – Não, Rukia! Já pedi a conta.

Ela emburrou a cara e resmungou umas palavras incompreensíveis.
- Vamos pro quarto. – ele disse depois de pagar.
Ela levantou-se ainda resmungando e fazendo caretas. Estava tonta, cambaleou.
- Rukia! – ele diminuiu a distância da corrente ficando mais perto dela. – Você consegue andar? – preocupou-se.
- Fala sério, Ichigo! – ela riu de novo. – Você também bebeu!
- Mas eu não sou desacostumado como você! – ficou irritado. – Sua teimosa!
Ela cambaleou de novo. Ele segurou os ombros dela.
- Ichigo... – a voz saiu mais mansa. Foi levantando a cabeça para ele devagar. – Eu sei me controlar sozinha... – o olhar dela era tão profundo... As bochechas vermelhas denunciavam uma certa fragilidade... Aquele rosto, os ombros levemente trêmulos confirmavam essa fraqueza. Era um lado de Rukia difícil de se ver. Era um lado que sempre quisera ver, mas não naquelas circunstâncias... De jeito nenhum naquelas circunstâncias.
- É claro que sabe. – ele afirmou, mas continuou segurando os ombros dela. – Vamos dormir.
Ela assentiu como uma criança teimosa finalmente cedendo à hora de ir para cama e começou a caminhar devagar. Sua cabeça estava quente... Seu estômago mais ainda. E de alguma maneira ela sentia vontade de fazer e falar coisas que nunca gostaria. Mas se conteve. Tinha que prestar atenção em seus passos.
Foram andando até o quarto. Chegaram lá e Ichigo acendeu a luz. Estava pensando. Pensando no que ela dissera. Arrependia-se muito de ter entrado nessa, não é? Amargamente... Mas seria por causa do tal controlador? E quem seria esse controlador?
- Anda, Ichigo! – ela agora andava na frente para a cama.
O ruivo foi seguindo-a ainda em seus pensamentos. Viu quando ela sentou-se na cama olhando para baixo. Estava linda em seu vestido azul escuro de alcinhas duplas e decote nas costas... E tão vulnerável... Devia aproveitar-se dela?
- Rukia... – murmurou hesitante.
Mas ela ouviu.
- Hun? – ergueu o rosto para ele quando se livrou dos sapatos.

Ficou instantaneamente corado ao se deparar com aquele rosto, aqueles olhos o fitando tão inocentes. Ela estava bêbada. Pela primeira vez na vida. Ela estava odiando aquilo tudo. Não podia ser egoísta daquele jeito. Tinha que ser paciente... Compreensivo... Afinal, como ia se sentir se tudo tivesse acontecido com ele?
- Er... – coçou a cabeça. – Acho que vamos ter que juntar um pouco as camas.
- Ah não! – ela protestou com sua firme voz de bêbada. – Não quero! Isso não! – quase esperneava.
- Mas a corrente só tem dois metros, não temos escolha! – ele elevou um pouco a voz impaciente. Como se fosse fácil pra ele praticamente dizer para que dormissem juntos!
- Tá bom! – ela uniu as sobrancelhas irritada. Levantou-se.
O canceriano puxou a outra cama até que ficassem com pouca diferença de distância. Rukia já foi deitando.
- Não vai trocar de roupa? – ele perguntou sentado no seu colchão.
- Não. – ela resmungou afundando a cabeça no travesseiro marrom e fechando os olhos. – Quem se importa com roupa de dormir? – falou bem baixinho, de um jeito quase ininteligível.
Ele bufou mais uma vez e olhou para o teto. Lamentou em pensamentos que não pudesse trocar a própria roupa também. Mas lamentou ainda mais alto no peito aquela noite perdida. Olhou mais uma vez para a capricorniana deitada de olhos fechados ao seu lado. Valia mesmo à pena tentar quebrar aquele gelo todo que a envolvia e a fazia tão distante?
- Ichigo... – ela resmungou e ele quase pulou de susto, culpado por estar ali a filmando.
- S-sim! – os olhos castanhos estavam grandes.
- Deixei minha mala perto da sua cama... Pode pegar um coelhinho pra mim...? – mantinha os olhos fechados.
Ele ficou paralisado absorvendo o pedido. Como era? Coelhinho?
- Desculpe... – ele arqueou uma sobrancelha e apurou os ouvidos. – O que disse?
- Meu coelhinho, Ichigo... – ela crispou o rosto e arrastou a voz quase num choramingo. – Na mala...
Ele então se esgueirou cuidadosamente até o pé da cama, com medo de arrastar a pequena bêbada junto.

Encontrou a mala dela e abriu-a com cuidado. A primeira coisa que viu foi uma protuberância peluda e branquinha. Puxou-a e descobriu que era só um de muitos outros. Não teve como não comprimir um risinho num sorriso de canto enquanto encarava o bichinho orelhudo com florzinhas na cabeça.
Estendeu-o para a criança semi-adormecida.
- Aqui está.
Ela pegou-o sem abrir os olhos. Abraçou-o e sorriu.
- Obrigada.
O ruivo meneou a cabeça incrédulo. Seria fruto da bebida que também havia tomado? Com a roupa de dormir ela não se importava... Mas com um coelhinho sim. Tanto que até sorria... E não um sorriso de álcool. Um sorriso de menina.
- Não tem de quê. – ele ainda ficou olhando-a até que o sorriso desaparecesse devagar.
Fechou os olhos e guardou-o consigo. Ainda bem que o gelo era transparente...

****

O dia chegou. A janela do hotel era bem grande, eles não haviam percebido. Tinha vista para o lindo jardim da casa. Se estivesse aberta, o Sol se atreveria a entrar por ela e acordar os dorminhocos com seu calor e luz insolentes. Mas estava fechada. E o quarto permanecia escuro como... Madeira.
Mas ainda havia o relógio biológico de certo ruivo. Não tinha bebido o suficiente para dormir até de tarde. Portanto, quando os ponteiros do relógio ensaiavam para bater as dez, os olhos castanhos foram se abrindo devagar, com piscadas.
- Hum... – murmurou. Ia se mexer, se revirar, mas lembrou-se do que foi lembrando a noite inteira: estava preso a uma pessoa. Esfregou os olhos e olhou para ela. Na mesma posição da noite passada, respiração leve e sono pesado. Os braços envolvendo o coelhinho. Os joelhos suavemente flexionados, os dois na mesma altura, o rosto de lado. Ela era assim mesmo, sempre perfeita?
- Uaaah! – bocejou. Olhou para o relógio que deixara pousado na cabeceira do outro lado de sua cama e constatou que estava bem tarde. Perderiam o café da manhã. – Rukia! – sussurrou em direção a ela. – Rukia, acorda!
Nada. Ela permaneceu imóvel como uma montanha.
Bufou.

Acordar uma estreante na ressaca não ia ser fácil.
- Rukia! – agora ele falava mais alto e tocava os ombros dela com a ponta dos dedos. – Rukia! – sacudiu-a de leve.
- Humm... – ela começou a mexer o rosto e a resmungar. – Que é? – fez questão de não abrir os olhos.
- Hora de acordar, Rukia. – ele disse paciente. – Vamos tomar o café-da-manhã.
- Ah... – ela abriu os grandes olhos devagar. Tentou levantar-se, mas sentiu um peso e uma dor na cabeça terríveis. – Ai! – parou o movimento no mesmo instante levando a mão livre à cabeça. – Que dor!
- Ai, ai... – ele suspirou. – Por que será, né?
- Ei... – ela olhou para o próprio corpo. – Por que eu estou com o mesmo vestido de ontem?
- Ué! – ele espalmou as mãos na defensiva. – Você disse algo como... “Quem se importa com roupa de dormir?”.
- Ai... – bateu na testa e fechou os olhos indignada consigo mesma. – Eu bebi mesmo ontem... – murmurou para si mesma. – Eu falei muita besteira? Fiz muita besteira? – diminuiu os olhos receosa.
- Humm... – ele fez-se de pensativo. – Só deixou escapar uma coisinha e outra. – lutou para dissimular um sorrisinho de provocação.
- Ai meu Deus! – fechou os olhos de novo, dessa vez bem apertados. – Aaai! – a dor de novo latejando na cabeça. – Ichigo... Pegue um remédio pra mim na minha mala, por favor? Está numa bolsinha branca.
- Certo. – ele foi até o pé da cama e procurou a bolsinha dentro da mala. Encontrou-a. Gorda de remédios. – Uau! – surpreendeu-se. – Você tem certeza que não é virginiana, sua hipocondríaca? – passou o remédio para ela.
- Haha. – ela fingiu um riso. – Eu não sou uma virginiana hipocondríaca. Eu sou uma capricorniana prevenida. – afirmou. E depois se questionou. – “Do que eu estou falando? Ressaca também faz falar besteiras?”
Levantaram-se os dois então com dificuldades e foram até o banheiro escovar os dentes. Rukia tomou seu remédio e eles começaram. Era estranho aquilo... Olhar para ela com a boca cheia de espuma, ao seu lado...

Era arrepiante vê-lo com a cara amassada e a escova de dentes enfiada na boca...
Pareciam até que eram...
- Então... – depois dos dentes escovados ele disse. – Vai querer descer pra tomar o café?
- É. Eu preciso de um café. – ela disse secando as mãos numa toalhinha. Seu rosto acalorou-se com a afirmativa. Os olhos desviaram-se. – Espero que a gente possa trazer a comida aqui pra cima... – acrescentou para si mesma.
Os dois então lutaram mais uma vez para trocar de roupa. Era impossível que um não visse bastante do outro. Aquilo a estava tirando do sério. E estava quase explodindo o ruivo! Mas o que podiam fazer? De algum jeito, a culpa de toda aquela situação era inteiramente deles.
Ichigo vestiu uma camisa cor de grama com mangas curtas mais escuras. Tinha um pequeno número 15 estampado no cantinho do peito, da cor das mangas. Escolheu uma bermuda cáqui de bolsos para usar junto. A roupa não combinava com a cor atrevida de suas bochechas.
Rukia lutava para tirar o vestido azul e vestir sua camiseta branca de alcinhas e lacinho fino pendurado no peito e a saia laranja com bordado inglês na barra.
Terminada a missão quase impossível, os dois já suando e quase estrangulados pelo constrangimento, trocaram olhares tímidos e puseram-se a andar até a porta.
- Er... Hum... – ele pigarreou. – Eu não vi nada, ta? Não se preocupe... – percebeu que ela estava vermelha. E sabia que também estava. Queria ouvir dela a mesma coisa.
- É bom que não tenha visto. – disse. – É uma sensação muito desagradável se deparar com uma pessoa seminua do seu lado, com a mesma corrente no braço. – estremeceu a cabeça de leve encarando algum ponto no ar como se quisesse esquecer o vislumbre.
O que fez o ruivo cerrar um punho e trincar os dentes. E, claro, ficar quase da cor de um suco de beterraba.
- “Desgraçada!”- pensava enquando andavam. – “Espere só até eu me encher de ser gentil com você...”
Mas caranguejos são muito teimosos. E deveras resistentes...

****

Tempinho curto depois, voltavam os dois acorrentados para o quarto de madeira. Aquele barulhinho embaixo dos pés... Ainda não tinham se acostumado.
- Quero sentar na cama. – ela declarou.
Os dois então foram andando até elas e sentaram cada um na sua. Já estavam quase coladas.
Ela ficou mexendo com o lacinho da blusa que já tinha se desmanchado numa fitinha. Pensava. Estava um dia muito bonito... O que estaria fazendo em Kofu? Provavelmente ajudando a mãe com o almoço e rindo das idéias absurdas que Orihime estaria dando para a refeição. Sorriu para si mesma. Quase deixou escapar um risinho.
O ruivo não percebera. Antes de voltarem para o quarto, tinha pegado umas revistas do hotel que estavam na mesa do café. Agora virava suas páginas distraído.
- Ichigo... – ela falou de repente, despertando do transe. Recostou no respaldo da cama obrigando o canceriano a fazer o mesmo na dele. – O que... O que exatamente eu falei ontem?
Ele a olhou. Sua voz tinha um tom amedrontado que desconhecia. Ela estava novamente puxando a fitinha da blusa sem encará-lo.
- Bem... – ele pensou um pouco fechando a revista nas pernas. – Você admitiu que ronca muito. E que uma vez um namorado seu terminou o namoro por isso. E francamente, eu mal preguei o olho a noite toda...
- O QUÊ?! – ela gritou indignada girando a cabeça para ele. – Mas eu... Eu... Eu nunca dormi com um namorado... E EU NÃO RONCO!
- Ora... Foi só o que você disse ontem... – obrigava-se a não rir da cara estupefata dela. – E também é o motivo das minhas olheiras. – apontou para os olhos.
- Idiota! – ficou vermelha. - Eu não ronco! Só pode ser mentira! – inflava as bochechas rosadas.
- Haha, idiota é você! – ele não agüentou. – Caiu numa provocação barata dessas... Eu devia ter dito algo mais sério, devia ter dito que você deu encima do garçom...
- E-eu fiz isso?! – esbugalhou os olhos.
- Não! – ele rugiu.
- Ah... – respirou aliviada. Logo em seguida empertigou-se. – Eu... Eu sabia que você estava mentindo. Só podia. Eu não ronco.

- É Srta Perfeição. Você não ronca. – ele ironizou contrariado. – “E ainda dorme como uma princesa, perfeita.” – pensou. Mas sacudiu a cabeça antes que pudesse pensar de novo em pensar uma babaquice dessas!
- Eu não sou perfeita. – ela encolheu-se agora emburrada. – “Não me esqueci da lista, ta?” – ela pensou
em dizer. Mas resolveu guardar para si. Não queria mais se humilhar por causa desse episódio idiota. Até parece que se importava tanto com a opinião dele, no fim das contas.
- Claro que não. – ele disse antes que pudesse se controlar. – Tenho pena do seu marido. Quando você casar e resolver beber, vai ser daquelas pessoas violentas que espancam o marido, os filhos, o cachorro... Vai virar até notícia: “Nanica bêbada com cara de criança e corpo de graveto agride família inteira”.
- Você é tão engraçadinho, Ichigo! – ela diminuiu os olhos chamejantes pra ele. – Mas pode ter certeza que não vou agredir meu marido. Porque ele NÃO VAI SER VOCÊ. E eu não vou ter porque bater num homem que, vou dar graças a Deus, não vai ser implicante, grosseiro, esquisito e com um cabelo que parece... – hesitou um pouco no veredicto com uma sessão de caretas. - Manga chupada! – declarou enfim. – Qualquer coisa é melhor que você, portanto, você não vai me ver nos jornais.
- Há! – ele emburrou e virou a cara. – E você acha que me ofende assim!
Contraditoriamente, quase saía fumaça de suas orelhas...
Ficaram em silêncio como costumavam após uma crise de “de volta aos sete anos de idade”.
Até que ela resolveu quebrá-lo.
- Então quer dizer que me comportei bem?
Olhou para ela.
- Você estava violenta e reclamando dez vezes mais. – pausou. – Mas afora isso, até que se comportou bem no seu primeiro dia de porre. Parabéns. – sorriu forçadamente com os olhos diminutos, como quem reconhece com dificuldade a vitória alheia.
- Ei! Quem disse que foi meu primeiro porre? – pôs a mão livre na cintura.

- Só pelo que eu te conheço... Dá pra saber que você não é de beber... – os olhos castanhos pareceram sonhadores. - E acho que não faria isso perto dos seus pais...
Disse isso e olhou para ela. Então percebeu que ela arregalou os olhos e entreabriu os lábios. Estava impressionada. E ele desesperou-se. Sua escolha foi fazer o mais próximo de se esconder na sua casca: olhar para o lado oposto ao do rosto dela.
- É... – ela deixou escapar. – Está certo... Eu... Eu não faço essas coisas e... Principalmente perto dos meus pais eu... Nunca tinha posto uma gota de álcool na boca.
Continuava encarando o piso de madeira. Conseguiu ver uma formiga passear camuflada naquele marrom.
- E... E você? Você também bebeu ontem. E não tem cara de quem bebe! – ouviu-se dizendo para descontrair. Ou para, quem sabe, se aproximar um pouco...
- Pois é... – foi voltando o rosto para ela devagarzinho. – Mas eu bebo... Não é meu feitio, mas... – censurou um sorrisinho no cantinho dos lábios. – Meu pai, aquele estúpido... Quando eu fiquei um pouco mais velho, uns dezessete anos, ele começou a reservar duas ou três vezes no mês para me encher de cachaça... Velho louco. Ele dizia que um homem que não sabe beber não é um homem... Tsc! – balançou a cabeça. – Mas na verdade ele queria era que eu me abrisse mais com ele, depois fui entender... E graças àquele lunático estamos aqui, grudados nessa corrente. Agradeça a ele.
Ficou sem entender. Absorvia aquela história e sem perceber estava quase sorrindo. Interessante esse pai do Ichigo. Parecia totalmente diferente dele... Mas não entendeu o final da história... O que a bebida e se abrir tinham a ver com os dois estarem acorrentados?
Abriu a boca para perguntar, mas ele a atropelou.
- Ontem você só falou sobre controle... Sobre as pessoas experientes controlarem as inexperientes...
O coração deu uma estocada violenta no peito. Não... Será que tinha se estendido nesse maldito assunto? Será que tinha revelado muito sobre ele .

Procurou não parecer muito ansiosa, mas os olhos mal piscavam esperando o que o ruivo teria mais a dizer.
- Disse que a Rangiku te controlou... Disse que um alguém te controlou... Quase pulou em cima de um pivete que estava intrigado com a corrente e teimou em dormir com aquele vestido. Foi só isso que fez. Se saiu melhor que eu.
Assentiu com a cabeça num esboço de sorriso aliviado. Então não tinha soltado nada demais, né? Que bom!
- Uaah! – ele se espreguiçou com o braço livre. – E agora hein? O que vamos fazer?
- Não sei... – ela afundou-se no colchão. – Estou com vontade de tomar mais um remédio e dormir. Ainda sinto muita dor. – massageava as têmporas.
- Então faça isso. – tentou esconder a decepção. – Eu vou... Ler um pouco.

****
Ela pegou no sono tal qual na noite anterior. Pesadamente e com pose imaculada. Suspirou pela milésima vez. Olhou para as paredes, sem realmente enxergá-las. Pensava no que estava fazendo ali... Pensava que queria andar, sair dali. Pensava que queria que as coisas fossem mais fáceis, que ela fosse mais doce. Ela não era aquela dureza toda. Uma mulher com olhos tão bonitos e um rosto tão delicado não podia ser tão dura. Aquela menina que vestia roupas de criança e que se encantava com coelhinhos não podia ser tão amarga. Alguém que tinha o sonho de adotar uma criança definitivamente tinha que ser calorosa!
Lembrou-se de quando dançaram juntos no primeiro encontro... Lembrou do olhar perdido dela e das mãozinhas pequenas nas suas... Lembrou-se da gentileza que usava com os colegas de classe todos os dias na faculdade. Pensou no jeito dedicado com que estudava e ajudava os amigos com problemas... Sua mente foi invadida por aquele dia novamente, aquela brincadeira na sala amarela cheia de estrelas, planetas e almofadas... O riso leve dela... Os cabelos ao movimento, a face corada de perto. A respiração... O mistério de se ver tão próximo àquele azul...
O que os tinha levado a se conhecerem?

Por que tinham que estar juntos se eram tão, tão diferentes e ela se negava a derreter diante dele? O que precisava fazer para quebrar a defensiva e mostrar a ela que não apareceu para quebrar seu coração, nem para lhe controlar? Por que é que tinha tanta vontade de ver um sorriso sincero brotar daqueles lábios perfeitos? Por que é que, no fundo, mesmo com todas as brigas e desesperanças, não conseguia pensar em desistir?
E por que é que ela não sentia o mesmo?
Olhou novamente para a bela adormecida. A corrente. De qualquer maneira, teriam que se entender para serem liberados. E ela não estava mesmo a fim de fazer esforço.
Não se importava mais. Pela primeira vez, ia provar a todos, ia fazer tudo sozinho. E ia conseguir.
Lembrou-se do pai, da mãe, das irmãs, de Keigo, de Mai e de toda a faculdade... Apertou as sobrancelhas e olhou para as pernas. As revistas ainda estavam ali.
- Nós ainda temos uns seis dias. – murmurou para si mesmo. – Seis dias para quebrar o gelo... Seis dias para acabar com esse medo... Só para acabar com esse medo... – fitou-a longamente pela última vez antes de mergulhar em idéias e pensamentos. Uma piscina formada de listas, uma ficha prévia, determinação, algumas revistas, uma fé inexplicável e um sorriso como meta.

*****

- Está faltando mais ação, não acha? – Yoruichi, debruçada na poltrona azul do loiro guru torceu o nariz mirando a tela.
- Sem dúvidas. – ele suspirou.
- Acho que foi muito inconveniente essa história toda de a menina ir para Kofu ver os pais... Isso a fechou ainda mais, irritou-a ainda mais...
- Eu não diria bem assim... Até que tudo isso pode ser bem conveniente, com ela mais sensível... E a propósito, não acho que o caranguejinho possa reclamar da sorte com uma Lua cheia daquelas...
Ela puxou um sorrisinho.
- É, tem razão. O céu nunca erra.
- Nunca erra. – ele repetiu abanando-se com o leque.


Continua...



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