Shindu Sindorei - as Crianças do Sangue escrita por BRMorgan


Capítulo 73
Capítulo 73 - Interlúdio para Myrra




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 - Era uma vez uma... ahn... – Lady Annie olhou para os lados e viu a mãe, sentadinha ao seu lado, cozendo algumas roupas das duas com agulha e linha emprestadas de Imladris. – Abandonada! – se empolgou ao saber no que poderia disfarçar o conteúdo da história que iria contar. – É, uma Abandonada, tipo que nem minha mãe aqui... E ahn... ela vivia feliz em um cantinho afastado de todos de um vilarejo cheio de humanos chatos e sem graça e ela gostava de viver lá...

 - Algo me diz que essa história vai render... – bufou Oxkhar já se sentando a beira do fogo e puxando Imladris para sentar em seu colo. Os dois ficaram abraçados sem sentirem que todos os olhares estavam sobre eles.

 - Se rolar beijo, eu juro que faço a minha mãe furar seus os olhos e cortar suas línguas, né mãe? – virando para a Abandonada atenta a sua tarefa, Joannes sorriu para o fogo e concordou com a cabeça como se aquilo fosse qualquer coisa trivial.

 - Continua aê! – pediu um Abandonado chamado Molko. – Fala da Abandonada lá...

 - Tá, calma... – e pigarreando, Lady Annie continuou. – Aí ela vivia felizinha por lá e adorava plantar flores no cemitério ali perto...

 - Tipo que nem no Sepulcro? – perguntou Molko interessado.

 - Sim, sim que nem lá... E ela gostava de plantar rosas negras no terreno fértil do cemitério...

 - Não existem rosas negras... – disse o taurino Manteiga de Amendoim, Sorena espirrou e uma chama serpenteou pelo ar um pouco mais alta.

 - São rosas carmim plantadas em terrenos com combinação de substâncias ácidas. Cemitérios têm um monte disso. – ela disse rapidamente.

 - Como é que sabe tanto...? – Imladris perguntou intrigada.

 - Vovô, herbalista, lembra?

 - Eu juro que se alguém me interromper mais uma vez, vou fazer o massacre eu mesma, sim? – todos concordaram com a menina raivosa que falara isso. – Bem, estávamos lá com a Abandonada certo?

 - Estávamos?

 - Modo de falar sim? Tipo, pra personificar a história? Entra no clima poxa! – Lady Annie tinha um espetinho de peixe assado em riste no rosto de Molko. – Aí nossa Abandonada tinha um nome bem interessante... Era... era... ahn... – olhando para os lados procurando por algo menos o olhar de Sorena. – Myrra! Myrra era seu nome, seu nome era Myrra. – falando apressadamente. – Aí ela plantava rosas negras no cemitério certo? Uma roseira em especial era que ela tinha mais cuidado, era bem assim no final das lápides, no fundo do cemitério, porque a mãe e o pai dela haviam morrido há muito tempo antes dela virar Abandonada e ela vivia sozinha e não gostava muito de ficar sozinha, por isso ela plantava flores, porque assim ela podia ficar ocupada e as plantinhas serem amigas dela e... – Joannes pegou a mão da filha e a encarou com seriedade.

 - Até onde sei, eu que morri aqui. Respirar antes de falar é uma prática boa para você, sim?

 - Arram... – a filha concordou comendo um bom pedaço do espetinho e respirando fundo. – Alguém perdeu alguma coisa?

 - Ah não... Deu pra entender...

 - Tá indo bem... – disse Molko.

 - Gostei dela... Ela gosta de plantas... – opinou Manteiga de Amendoim. A sua irmã-gêmea Bertulina chegou ali em sua forma de tigre, sentou-se perto do fogo e se chacoalhou toda para se livrar da fina camada de neve que cobria seu pelo.

 - Bertulinaaaaa!! – reclamou a mais atingida, Lady Annie. – Vai apagar a fogueira!

 - História, cemitério, rosas... Por favor? – pediu Sorena encolhendo as pernas onde estava sentada e cobrindo bem suas orelhas.

 - Aí a Myrra sentia falta dos pais... Arram... E sentia muita falta de seus amigos...

 - Coitadinha, ela não tem mais os amigos? – disse Imladris. – Aposto que viraram as costas para ela depois que ela virou Abandonada!

 - Eles meio que não sabem que ela virou uma Abandonada... Ela esconde isso deles...

 - Boa decisão. – disse Molko.

 - Como assim?! Não podemos nos esconder para sempre! – protestou Immie, Lady Annie abaixou a cabeça e batia o espeto sem peixe na testa.

 - Deixa a criança contar a história?! - Opinou Bertulina voltando sua forma taurina e se esticando bem. Kalindorane chegou ali com um fardo de peixes junto ao Campeão de Orgrimmar. O rosto de Sorena virou um pimentão de tanto ciúmes que ela sentira.

 - Eba, comida! – esse foi Manteiga de Amendoim, já que Annie estava ameaçando Bertulina por chamá-la de criança.

 - Acalme-se Sorrow - disse Joannes para a menina, Annie ficou estática, como se tocassem em uma ferida bem profunda dela. – E deixe-me que conto essa história...

 - Sorrow, é esse o seu nome? – gracejou Sorena, os olhos sem vida de Joannes foi da filha para a elfa.

 - E quem me interromper vai ser desmembrado aos poucos e me servir de jantar, entendido?

 - Sim senhora. – disseram todos ao mesmo tempo. Um silêncio abaixou no grupo de aventureiros. O atual Campeão de Orgrimmar não estava tão interessado, mas tomou para si o trabalho de limpar a pescada e salgá-la com muito sal grosso e especiarias. Oxkhar tirou algumas moedas do bolso e ofereceu ao amigo de arena, ele não aceitou.

 - Isso é pela nossa parte. Não quero te dar mais trabalho.

 - Gosto da companhia... – dando uma olhadela na arqueira ao seu lado, Kali agradeceu com um aceno breve de cabeça. - E pesquei com minhas mãos, não aceito recompensas pela comida que quero ofertar aos meus amigos.

 - Vou te ajudar aí com o preparo. – os dois cochichavam, já que Joannes havia começado a contar a história novamente.

 - Nossa jovenzinha Myrra era uma Abandonada e assim como nós Abandonados, ela não nutria muita expectativa para sua pós-vida, nem pelos outros. Amizades, amores, parentesco, dívidas, tudo isso virou cinzas no mesmo momento em que ela fechou os olhos para a sua antiga vida e despertar dolorosamente para o nosso mundo... – os olhos de Imladris estavam marejados com a narrativa tão fiel aos sentimentos dos Abandonados. – E todas as noites ela colhia suas rosas negras, na última lápide ao fundo do cemitério. Não queria ser vista por ninguém, não queria virar uma piada pretensiosa de um fofoqueiro que vê um de nós vagando pela noite e nos chamam de “monstros”... – essa última parte foi dita com um certo rancor, os dentes caninos amarelados de Joannes apareceram sob seus lábios carmim. – Como se fossemos os “monstros” e não eles que se trancam em casa, fomentam sua bravura e em um belo dia de “pura sorte” decidem pegar suas armas e irem atrás de nós... “Monstros”... – Annie estava muito pálida e trêmula. O tom de Joannes amenizou quando ela soltou um bufo impaciente ao errar um ponto na linha. – Mas nossa Myrra se cuidava bem, prestava bem atenção no movimento do vilarejo, não se atrevia a sair de seu esconderijo até ter certeza de que não seria oportunada por um “deles”... Saudades tinha da vida antiga, de correr entre os seus, de ser vista como um deles, mas essa é a verdade, meus jovens... – apontando a linha em sua mão para Imladris. – Não importa da onde você veio e quem você é, todos nesse mundo apenas verão o que você é por fora, poucos saberão o que tem dentro, e ninguém irá saber mesmo o que tem debaixo do “dentro”... – Manteiga e Bertulina concordaram ao mesmo tempo. – Então todas as noites ela plantava rosas negras e as vendia para um famoso mago da vila. Um homem sábio de suas decisões e cauteloso com suas ações. O chamavam de “indomável” porque seu nome verdadeiro fora esquecido após a última guerra... Indomável compreendia os segredos de Myrra, entendia sua dor por ser órfão, entendia a preferência por exílio e segredo... Ele era um mago sábio aquele rapaz... – suspirou Joannes para suas mãos rápidas no tecido poroso de lã que fazia parte de um casaco de Annie.

 - Mãe, eu não quero usar isso. – apontando o suéter rosa consertado com um gorrinho branco de pele de lobo.

 - Mas vai usar... – disse calmamente, a menina ladina se sentiu derrotada e se aninhou com a cabeça no colo da mãe em um pedido mudo de trégua. – Myrra vendia suas flores para Indomável, ele revendia suas poções e grimórios a Myrra. Uma troca justa, já que o mago precisava de essência das rosas para preparar seus experimentos, já Myrra necessitava das poções para se manter... ahn... – a mais velha do grupo olhou para a filha em seu colo.

 - Estado de dormência, mãe...

 - Isso, isso... – a mãe concordou.

 - É quando o Abandonado precisa de meios mágicos para se manter em pé... – explicou Imladris para o pessoal.

 - Não é todo mundo que é sortudo com magia... – gracejou Sorena bocejando e apartando outro espirro.

 - Então Myrra estava na dormência dos Abandonados... Um estado tranqüilo, mas perigoso ao meu ver... Você pode manter uma conversa amena com a pessoa que mais ama, mas não quer dizer que algo dentro de você vai entrar em frenesi e o animal residente em seu peito decidirá acabar com toda a dor, a fome, o rancor, o ódio pelos vivos que todo Abandonado guarda com sua existência... – todos olharam para Molko, ele deu de ombros.

 - A vida é assim... – disse se desculpando. Imladris se mexeu no lugar.

 - M-mas! – ela iria falar, mas Joannes continuou.

 - Os dias se passaram e todas as noites Indomável encontrava com Myrra no mesmo local, a beira de uma estrada onde havia uma imensa árvore escura e retorcida, a que chamavam de “Arvore do Enforcamento”.

 - Temos uma dessas nas Terras Fantasmas... – comentou Kali que mudara de roupa e fizera sua higiene pessoal, sentando ao lado de Sorena e dando um sorriso morno apenas para ela. A elfa menor empertigou-se no lugar e tentou não olhar para nada além de seus pés. – Sentiu minha falta...? – ela sussurrou e Sorena concordou timidamente.

 - Nesta árvore, dezenas de pessoas já haviam sido executadas. E foi apenas para isso que ela serviu durante sua vida toda, antes frondosa e cheia de folhas amareladas, agora um tronco retorcido pelo tempo e chuva e pelas almas dos desesperados que vagavam em seu interior e raízes, procurando o Outro Mundo eternamente... – a mais velha parou por um instante, encarando a escuridão além com a boca aberta. Annie se apurou novamente e tentou chamar a atenção da mãe. – Querida, você pode pedir ao bondoso Oxkhar para deixar aquele grandão ali para nós duas? – ela pediu e Annie deu um pulo no lugar catando o peixe para si sem pedir. A menina espetou logo no seu graveto e colocou na fileira de gravetos que estavam já no fogo.

 - Senhora quer mal passado ou...?

 - É pra você querida... – fazendo carinho nos cabelos novos e acobreados que surgiam no cocuruto da menina. Todos observaram o comportamento incomum das duas, mas Sorena foi obrigada a deixar um sorriso vir em seus lábios, como se isso a lembrasse de algo muito bom. – Uma bela noite de lua cheia, quando todos os monstros estão atacados e as bestas em viés de se estriparem umas as outras, Myrra percebeu que o Mago tão responsável e sábio estava atrasado. E você sabe: Magos nunca se atrasam, apenas chegam no exato momento em que deveriam chegar.

 - Desculpa de velhotes de chapéu largo... – Joannes cutucou o graveto do peixe e ofereceu a Annie.

 - Comer minha mocinha...?

 - Sim, nham nham! – a menina não recusou comida e ficou calada pelo resto da conversa.

 - Myrra esperou e esperou. O sol nasceu e ela ousou ficar a espreita, entre as árvores, longe dos olhos da estrada, longe dos olhos humanos e o Mago não apareceu. Preocupada com a chegada do dia, ela se arrastou até seu esconderijo, uma simples casinha derrubada por grossas figueiras, mas que dava acesso a um porão vasto de uma antiga adega de um rico fazendeiro, ela desceu os degraus de seu então chamado “lar” e deparou-se com o corpo de Indomável, estirado ao chão, vítima de uma flecha envenenada. Infelizmente era tarde demais para arrancar uma confissão do amigo de vendas, ele estava inerte e azulado como a Morte gosta de nos deixar quando suas mãos tocam nossa pele, retiram nossa alma e extirpam qualquer vestígio de sanidade... Myrra não pensou em nada no momento. Esconder o corpo? Enterrá-lo com dignidade? Deixá-lo na estrada para que outros o vissem? Ela não sentiu nada, nenhuma urgência de retirá-lo dali. Como disse antes, quando se torna um morto-vivo perambulando por aí, a única coisa que prevalece é a sua consciência de não ter que prestar contas a ninguém. – todos comiam de seus modos, interessados na história, Oxkhar esquentava uma sopa de legumes para Imladris e mexia no vasilhame lentamente. – Myrra não chorou, ou expressou dor ou perda ou vingança de quem havia feito tal atrocidade com seu único amigo... Então ouviu vozes vindas do cemitério acima, vozes que conhecia. Vozes de outra vida, vozes que antes riam e conversavam com ela livremente, vozes como a dela, mas que infelizmente não a ouviriam mais. O óbvio, vocês já sabem... – acertando a linha de um outro tecido e amarrando com força. – Eles entraram, derrubaram a porta do alçapão, com armas, tochas fumegantes, olhos ferozes, línguas ferinas e ouvidos surdos. Todos procuravam pelo assassino, o “monstro” da região, o maldito que tirara o sábio mago do vilarejo todas as noites para depois matá-lo a sangue frio na beirada da estrada... O primeiro a puxar a espada foi um bravo cavaleiro da região, cingido de armadura reluzente, espada sagrada nas mãos, escudo imaculado de sua religião. Dela retirou-lhe um braço, que voou despregado de seu corpo como se fosse um simples remendo em um boneco de palha. Ela não se moveu ou expressou emoção. Ela sabia que era assim a ordem das coisas, não esperava muito sobre as pessoas, nem coisas boas ou más, todavia sempre as coisas más cairiam mais em suas costas do que as boas... – Oxkhar deu uma colherada cheia de sopa para a sua esposa e sentou-se ao lado dela. Todos estavam grudados ao chão, esperando o final trágico. – O segundo a desferir um golpe foi um sacerdote do vilarejo, que apesar de anos protegendo todos igualmente com unhas e dentes, queimou o rosto cadavérico de Myrra com sua água santificada. Os olhos de Myrra que enxergavam o mundo sombrio e em preto e branco enegreceram até a escuridão tomar conta da sala. – Imladris se sentiu um pouco revoltada com a parte do sacerdote, mas preferiu ficar quieta até chegar a conclusão. – O último era um arqueiro, valoroso herói do vilarejo, tão conhecido por sua pontaria certeira como seus olhos de águia, irmão mais velho do sábio mago. Uma das flechas envenenadas cravou no que fora antes o coração de Myrra. A mesma flecha que tirara a vida de seu amigo mago. O grupo não demorou a perceber no que realmente acontecera. O arqueiro atingira o mago de raspão com uma de suas flechas, o mago precavido correra até a casa da amiga para preparar a cura provinda de um extrato de rosas negras, mas chegara tarde demais, o veneno alastrara em seu organismo, ganhara seu sangue por completo e o matara no mesmo instante. Mas antes de dar o último suspiro, o jovem mago descobrira em uma das estantes do esconderijo um relicário familiar de sua infância. Um simples anel com um rubi que todos seus amigos usavam, marca da confiança e da devoção.

 - E-eles eram os amigos dela...? – Joannes concordou com a opinião de Molko. Sorena olhou para a própria mão esquerda. O anel que sua mãe enviara de Silvermoon era um anel prateado com uma única pedra vermelha. Escondeu a mão debaixo da manga do casaco por precaução.

 - Eram mais que amigos... O cavaleiro era seu irmão, o sacerdote seu melhor amigo e o arqueiro o seu grande amor... – o olhar misterioso e pálido da Abandonada foi para todos ali. – E todos sabemos como acaba essa história...?

 - Eu ia colocar uma batalha épica pra poder agitar as coisas, mas tudo bem... – Lady Annie disse mastigando o seu peixe com vontade. – Myrra mortinha da Silva mesmo, os outros tristes e chorando e o arqueiro deve ter se matado por ter atingido o próprio irmão com a flecha envenenada.

 - Sinto certa ironia nessa história... – suspirou Sorena se espreguiçando e levantando do lugar. Imladris estava estagnada no lugar processando toda a história. Annie devorava o final do peixe e chupava os dedos sujos de tempero.

 - Qual é a moral da história, senhora Joannes? – perguntou Molko coçando o pouco cabelo que tinha. A mais velha deu de ombros e continuou sua fazenda.

 - Talvez seja algo como: “O futuro prega peças...”... – opinou Oxkhar um pouco abalado. Kali engolia em seco, mal sabendo o que dizer depois disso. – Ou “Se você é um Abandonado, não faça negócios com elfos...”

 - Eles eram elfos?

 - Elfos, humanos, o que for... – explicou-se a mulher.

 - Ainda bem que deixei meus parentes em Tarren Mill... Não quero problemas do tipo... – confessou Molko se levantando e estalando os ossos. – Vigília da meia-noite Manteiga? – o taurino levantou-se causando um leve estrondo no chão e bateu com os cascos no chão para aquecer as patas.

 - Eu quero ir!! – Annie levantou a mão bem alto. Joannes a abaixou imediatamente. - Nhaaaaa mãe...?!

 - Me obedeça ou eu irei nomnomnom o seu cérebro...

 - Eu gosto do meu cérebro... – a menina disse protegendo sua cabeça com os braços.

 - Kali? – Molko perguntou a arqueira-vigia.

 - Oh não! Hoje eu passo... Preciso acordar cedo para o tiro-ao-alvo...

 - Então é só eu e você grandão? Que lástima... – resmungou o Abandonado mago, o taurino deu um empurrão forte nele com o seu martelo de guerra. Bertulina transmutou-se em sua forma de tigre e espreguiçou-se para depois dar algumas voltas em si mesma e deitar perto do fogo. Imladris e Oxkhar também se retiraram para sua tenda mais afastada do grupo. Todos trocaram “boa-noite” de maneira tímida e cautelosa.

 - Cara arqueira Kalindorane, a vejo nas arenas amanhã? – perguntou o Campeão de Orgrimmar, a elfa concordou e agradeceu pela refeição. Joannes ainda estava em sua tarefa com os tecidos, Lady Annie cutucava o dente com uma espinha de peixe alheia ao silêncio constrangedor dali. Bertulina agora ressonava altamente, com o corpo de lado e a bocarra cheia de dentes aberta e sua língua escapando para o chão gelado, salivando bastante. Kali se mexeu um pouco no lugar e pigarreou, Joannes levantou o olhar de sua costura para ela.

 - Não havia moral alguma não é? – murmurou para não ser ouvida. – É o que vai acontecer, não?

 - Não diga bobagens menina elfa...

 - Era sobre a Myrtae não é? Era o futuro dela! E era em Tranquillien? Era lá que ela viveria para o resto dos dias dela caso virasse uma... morta-viva? – Lady Annie olhou para a mãe. Joannes olhou para a filha e assentiu com um aceno.

 - Papai passou essa coisa estranha pra mim. Eu posso ver essas coisas, mas não quer dizer que elas vão acontecer mesmo...

 - É o futuro?! Você consegue ler o futuro?

 - Ler não! – a menina protestou. – Eu só vejo... Você sabe... Ser filha do “Controlador do Tempo” tem suas desvantagens...

 - Não reclame, Sorrow...

 - Mãe... – a menina a olhou ofendida. – Mas Kali, preocupa não... São coisas aleatórias... Podem acontecer ou não...

 - Acontecem se você realmente querer... – opinou Joannes em sua habitual voz cavernosa.

 - O que eu devo fazer então? Ficar sentada e esperando esse futuro vir?

 - Eu sugeriria que passasse mais tempo ao lado dela. – disse Lady Annie com um sorrisão.

 - O Inimigo está de olho em qualquer brecha que nossa defesa der... Aquela Windrunner tem tanto chamariz para coisas maléficas que fica difícil não me preocupar com ela também... – murmurou Joannes vendo o resultado da costura.

 - Como assim com “ela também”? – Joannes indicou a filha ao lado.

 - Heeeey! – e obrigou a menina a levantar os braços e colocar o casaco rosa com o gorrinho branco. Annie fez isso com má vontade.

 - Tenha uma filha encrenqueira com um Dragão do Tempo...

 - Tou parecendo um sorvete de morango com isso... – Lady Annie verificou as mangas e o gorro. – Tou ridícula! Minha reputação como ladina vai para o beleléu! Os outros irão rir de mim! – protestava ajeitando o suéter no corpo miúdo e arrumando os cabelos para caber dentro do gorro.

 - Está uma gracinha... – opinou Kali. A menina a olhou contrariada.

 - Mãe! Não podia ser preto? Ladinos usam preto! – a cara de Joannes não foi das melhores.

 - Você veste o que eu quero e sem reclamação.

 - Vou me revoltar! Vou fugir de casa! Vou... seilá! Botar fogo em alguma coisa bem importante e grande! – o gesto que a Abandonada fez para a filha, fez a menina sair de sua rebeldia e ir até ela.

 - Desculpe-me se meu bebê aqui está praguejando demais, Srta. Kalindorane... – Kali suprimiu o riso pelo tratamento de “bebê” que a menina levada recebera. A cara de Annie se escondeu dentro do gorro.

 - Manhêêê!! Não pode fazer isso na frente da Kali! A Kali é minha ídola! É mancada! Mancada das feias!

 - Fazendo o quê? – disse Kali chegando na carroça, Sorena estava ajoelhada ao fundo, aquecendo as mãos em sua mais nova invenção, o pingüim-lareira. Ele expelia um fraco vapor por um orifício no minúsculo rabinho que estava conectado a uma brecha na carroça, assim a fuligem e a fumaça ia toda para fora sem ficar pairando dentro do alojamento. Scido estava capotado em seu lugarzinho favorito, a pilha de roupas usadas pelas duas que ficava no fundo da carroça para serem lavadas no final da semana.

 - Esquentando minhas mãos? – a arqueira entrou silenciosamente e se sentou em seu lugar costumeiro de dormir. Sorena colocava água para esquentar em uma bolsa de couro de carneiro e já preparava outra.

 - Sor...

 - Quê...? – o silêncio não respondeu a nenhuma das duas. Tampando bem o buraco das bolsas, Sorena enfiou as bolsas debaixo dos travesseiros que usavam. Voltou-se novamente para o pingüim e esperou um apito agudo, mas baixinho sair de um compartimento localizado na barriga do construto. – Quer chá? – a arqueira negou. – Não vou deixar você ficar bebendo do meu. Quer chá? – Kali se ajoelhou e se arrastou para perto dela. Abraçou-a devagar e pressionando bem seu rosto nas costas da mais nova.

 - Fica comigo...

 - Eu já estou com você grudada nas minhas costas... Não tem como não ficar mais que isso...

 - Você sabe do que estou falando...

 - E eu querendo evitar confusão de novo, senhora Lethvalin...

 - Eu não sou...! – a arqueira se desgrudou rapidamente quando ouviu o nome do marido. – Ele não é nada!! Nada, ouviu?!

 - Tá, não precisa gritar? Só não quero mais confusão pro meu lado... E você trata de acordar pra vida. Você é casada, tem suas responsabilidades a cumprir.

 - Eu não o amo... Não tenho que voltar.

 - É, mas não espere que eu vá fazer algo a respeito. – o tom de Sorena era tão baixo que só Kali a escutava por estar bem perto de seu rosto. – Eu não posso fazer nada! – o momento em que Sorena a encarou bem nos olhos pareceu que o mundo parara para as duas. – E eu não estou apaixonada por você. Isso é uma afirmação. – o sorrisinho de Kali anunciou o quanto ela acreditava na afirmação.

 - Mas eu sim. E isso também é uma afirmação... O que vai fazer a respeito?

 - Refutarei a sua idéia em menos tempo que você imagina.

 - Vai ser difícil essa... Tem bastante tempo que estou assim com essa “idéia”. – Sorena virou-se para o pingüim com uma sobrancelha levantada.

 - Isso é só uma coisa passageira, você vai ver...

 - 8 meses e 14 dias... Quer que eu conte as horas também? – a ex-feiticeira continuou a fazer o chá.

 - Quando chegar aos 9 meses, me avisa. Está cientificamente provado que humanóides se mantém apaixonados por algum período de tempo apenas para terem conexão suficiente para se reproduzirem...

 - Eu não sou qualquer uma...?

 - Só a mulher mais chata e insistente de Azeroth... E desconfio que de Northrend também... – recebeu um carinho após ser abraçada novamente pela arqueira. Kali sorriu ao beijar o ombro direito de Sorena.

 - Você está tremendo por que...?

 - Eu poderia dizer que é o frio lá de fora? – a arqueira riu baixo e beijou o rosto da mais nova. A careta que Sorena deu era de derrota.

 - É bonitinho isso...

 - Não é. – levantando os braços, já que Kali ajeitava as faixas que ela usava por debaixo da grossa camiseta de algodão.

 - Ainda dói?

 - Um pouco quando respiro... – a mais nova indicou um ponto entre as costelas fraturadas anteriormente e uma mancha de queimadura cobrindo o local.

 - E quando está deitada?

 - Melhora com as compressas... – e suspirando cansada. – E quando você me abraça...

 - Aaaaaw isso é tão fofinho...

 - Quer parar? É pegajoso. Me sinto idiota.

 - Paixonite aguda faz isso com os pobres mortais...

 - Me dê 9 meses e isso acaba assim como chegou... – Kali abaixou os braços dela e massageou levemente os ombros de Sorena. O chá estava em infusão na xícara.

 - Não sei não... – puxando Sorena para bem perto e a arrastando para se deitar.

 - Quer parar? Eu tenho que tomar meu remédio...

 - Você deita e eu te dou seu remedinho, pirralha...

 - Isso é humilhante... – resmungou ela obedecendo e se colocando em uma posição que não a machucasse no lado ferido do abdômen. – Você tem 15 anos a mais que eu!

 - E isso atrapalha?

 - Sim!

 - Então sou velha demais para você? – protegendo a xícara de chá com um paninho de retalhos e puxando outro sache de um varalzinho de condimentos perto do pingüim construto. Colocou tudo ao lado da elfa menor e foi até a entrada da carroça e fechou bem a portinhola dos fundos, depois puxou bem as cortinas pesadas de lona escura que ficava por dentro até não restar nenhuma fresta para a friagem passar. Sorena bebericava o chá com uma careta nada feliz. – Saiba que posso fazer muitas coisas que você nem acreditaria...

 - Poderia ficar calada por um segundo? Porque eu acho isso impossível... – dando um gole a mais e quase cuspindo tudo de volta no copo. – Por que sou obrigada a tomar isso? Parece óleo de motor diluído em fluido de bile de mantícora...

 - Sua mãe mandou, você obedece...

 - Qual delas. Tenho 3 ao todo.

 - 3 mães...? – Está me incluindo nessa?

 - A Immie, sua tonta... Ela é a quase-irmã-mãe-unidas-pelo-murloc-de-pelúcia... – Kali sorriu gentilmente e voltou se arrastando de sono até Sorena. – Poderia não fazer isso, por favor?

 - Por que você acha que isso é provocante demais para testemunhar com seus olhos inocentes? – desabotoando suas calças de frio e se enfurnando debaixo dos grossos cobertores de pelagem de urso.

 - Porque parece que você quer me comer viva quando faz isso... – tomando os últimos goles e fazendo caretas de vez em quando.

 - Canibalismo nunca foi meu forte... Talvez quando você virar uma Abandonada poderemos falar sobre isso...

 - Você não acreditou na lorota, sim?

 - E se acreditei?

 - Então você é bem mais idiota que eu imaginava... – Kali respondeu com um forte beliscão no nariz da garota que quase deixou a xícara cair em seu colo. – Pára-pára-páraaaa!!

 - Repita o que disse, sim? – aumentando a pressão nos dedos. Sorena se contorcia na careta e tentava colocar a xícara no chão para se defender. – Ouse repetir o que acabou de dizer?

 - Eu disse que você é bem mais linda que eu imaginava!

 - O quê mesmo? Que sou linda e...?

 - Linda e maravilhosa!

 - Hmmm está ficando bem... Mais alguma coisa a acrescentar? Algo sobre o quanto não vive sem mim, que sem a minha pessoa você não consegue dormir e só pensa em mim o tempo todo? – Sorena concordava com cada palavra dita e a pressão diminuiu e a mais nova fungou até conseguir respirar direito.

 - Se eu não estivesse ferrada nas costelas, você estaria dormindo lá fora... – virou-se no colchão no chão da carroça e puxou bem a coberta para si mesma. Kali sorriu do comportamento infantil e se aproximou calmamente até conseguir abraçar a mais nova por trás com uma delicadeza amorosa.

 - Porque tem muita coragem de me chutar lá pra fora não é?

 - Eu tenho sim... Quando eu me curar, vamos ver quem vai dormir com pingüins... – se aconchegando bem ao corpo da mais velha e entrelaçando os dedos bem presos aos dela. – Se você sobreviver, colocarei bolinhas cintilantes e luzinhas de vagalumes em sua volta.

 - Que nem árvore de Banquete de Inverno?

 - Algo assim...

 - Sor...

 - Quê...?

 - Cala essa matraca e vai dormir... Preciso acordar cedo amanhã.

 - Se você acordar...

 - Por que diz isso? – Sorena estapeou o seu travesseiro de leve.

 - Coloquei essência de malva na água quente dos travesseiros. É narcótico. Bons sonhos.

 - Ahn...? – e as duas caíram no sono na mesma hora.


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