Shindu Sindorei - as Crianças do Sangue escrita por BRMorgan


Capítulo 7
Capítulo 7




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                O nariz de Sorena doía e estava enorme em seu rosto fino. Ela mal conseguia respirar direito e respirar pela boca era horrível de se fazer ali embaixo. Um pequeno chumaço de agua congelada conjurada por ela conseguiu dar conta do recado para apaziguar a dor. Ela estava sentada ao lado de uma barraquinha cheia de ervas medicinais e objetos de enfermagem na Quadra dos Magos do outro lado dos esgotos. Balançava as pernas pela ansiedade de terminar aquela consulta logo e ir fazer algo na biblioteca. Ontem lera sobre a Queda de Lordaeron e como os Clérigos de Silvermoon ajudaram os sobreviventes a voltarem para Silvermoon em segurança. Um nome ali pulara praticamente de uma página intitulada: “Os sacerdotes da Velha Cidade”, era a família Serenath da Ilha de Quel’Danas a detentora de toda uma tradição de clérigos desde a época em que os Sin’dorei se separaram dos Kaldorei. Queria saber mais sobre seus pais, sobre a cidade que ficava do outro lado do Continente, mas agora deveria ficar ali, parada e sentadinha pacientemente esperando a enfermeira chegar para colocar seu nariz no lugar. Não entendeu o porque de Imladris não poder fazer isso na mesma hora em que estavam lá discutindo com aquele ser repugnante, mas depois pensou melhor. Talvez Imladris não soubesse curar os vivos e sim os mortos... Até fazia sentido...

 - Então, então... O que temos aqui...? – disse uma voz feminina rasgada pela garganta atrofiada e se aproximando pelo corredor principal. – Mais outro elfo machucado? Como vocês conseguem se machucar tanto? – a mulher morta-viva perguntava baixinho, em uma voz tranquila, mas que transparecia a falta de vida em seus pulmões.

 - Senhora é a enfermeira? – perguntou Sorena obedecendo a mulher ao tirar o chumaço congelado do local machucado. A mulher não tinha olhos nas órbitas.

 - Sou sim... Mary Edras é meu nome, menina elfa... – examinando o nariz quebrado com um aparelhinho esquisito. Um flash de luz foi direto nos olhos de Sorena e ela se afastou instintivamente pelo susto. – Calminha... Estou só verificando se houve alguma outra lesão maior... Saiu bastante sangue não? Um vaso sanguíneo pode ter causado isso, mas se o osso interno perfurar seu seio nasal, menina... Vai precisar fazer uma cirurgia urgente antes que perca o olfato...

 - A senhora também faz cirurgias?! – perguntou Sorena desesperada. A mulher morta-viva com um vestidinho rosa bebê e uma mortalha amarelada em volta do pescoço esquelético colocou as mãos na cintura fina.

 - Eu tenho cara de bruxo-doutor? – Sorena olhou para os lados em dúvida. – Acho que não... – indo para trás de sua barraquinha e esmagando algumas ervas dentro de um pote de ferro, para depois envolver a mistura em uma gosma esverdeada tirada da concha vazia de caracol. Com o pilão ela foi moldando uma pasta de cor amarelada e de cheiro levemente gostoso. Parecia cheiro de chá de hortelã. – Prontinho... – colocando a pasta em um outro chumaço e prendendo bem com barbante em volta. – Toda vez que for se deitar, coloque esse preparado no local... Ele é fofinho, não vai atrapalhar seu sono.

 - Tou precisando de um soninho bom mesmo...

 - Obrigada senhora Mary Edras... – disse alguém com a voz embargada de vergonha atrás de Sorena. Era Imladris amassando a barra de sua manga várias vezes. Sorriu timidamente para a elfa mais nova e deu um tapinha em seu ombro. – Era pra eu fazer isso, sabe? Mas tenho ordens de não... ahn... bem...

 - A menina Imladris não pode fazer magias de cura dentro de Undercity...

 - Por que não? – Sorena perguntou aplicando o travesseirinho feito por Mary Edras na parte do rosto que doía mais.

 - É meio que... ahn... Quando eu faço magias de cura, eu... acabo machucando o pessoal aqui... – disse mais envergonhada ainda e ficando vermelha.

 - Como assim...? – a Abandonada preparava agora um chumaço com folhas de chá medicinal. Uma chaleirinha ali fumegava com o mesmo cheiro da pasta em seu rosto.

 - Magias de cura são altamente nocivas para os Abandonados... Mesmo quando não são direcionadas a um Abandonado, o efeito duradouro da Cura acaba se espalhando pelo local e atingindo qualquer um que está morto...

 - Atinge como?! – Sorena estava perdida naquela conversa.

 - Eles derretem... É horrível de ver... – Imladris explicou confusamente, não queria se lembrar da primeira vez que usou uma Cura Maior quando era pequena ainda e atingiu um guarda de Brill sem querer. O guarda virara um amontoado de ossos praguejante, se não fosse sua Mestra Aelthalyste, aquele guarda seria a primeira vítima de Imladris. – Mestra Aelthalyste pediu para eu apenas me concentrar nos afazeres burocráticos... Mas quando é lá fora e preciso me defender, posso fazer o que eu quiser...

 - Menos curar Abandonados, querida... – Mary Edras disse oferecendo uma xícara de chá para Sorena e outra para Imladris (Esta havia plantado um bico enorme de tristeza por tocarem em um assunto delicado de sua educação no clericato). Guardou o chumaço de folhas medicinais no bolso externo do manto de Sorena e cruzou os braços assistindo as meninas tomarem chá. – Uma pena não acompanha-las meninas, mas... – Sorena quase engasgou com a fala, mas Imladris sorriu alegremente.

 - Não se preocupe, senhora Edras... Seus cuidados conosco são valiosos... Não é Sorena?

 - Arram... – a mais nova concordou animadamente, aquele chá estava delicioso.

 - Não se esqueça de colocar o travesseirinho no rosto quando dormir, menina elfa...

 - Arram... – Sorena concordou novamente, mas sua atenção foi presa em um símbolo marcado atrás da barraquinha. Mary Edras percebeu o olhar curioso da menina e sorriu ao perceber o que era.

 - Lady Raven está em todos os lugares, meninas... – Sorena levantou as sobrancelhas. Fazia tempo que não ouvia sobre Aviana, a Deusa das Arqueiras de Azeroth. – Ela protege os desígnios da Dama Sombria, assim como minhas poções... – Imladris fez um sinal protetor no próprio queixo e beijou o símbolo dos Abandonados costurado em uma de suas mangas da túnica azul escura que usava.

 - Que a vontade da Dama Sombria esteja conosco... – murmurou. Sorena a olhou confusa depois para Mary Edras.

 - Lady Raven é uma deusa...? – perguntou sem ter medo, Mary Edras riu um pouco. – Nunca ninguém dizia sobre o que ela era lá em Goldshire... – o sorriso da enfermeira murchou e deu lugar a uma inquietude em suas mãos ao organizar vasilhas e ingredientes de poções.

 - Vocês conhecem a Lady Raven lá naquele interior?

 - As arqueiras de Karin costumavam falar de uma Lady Raven que as ajudava... Sempre achei que era uma arqueira mais poderosa, sabe?

 - Você veio de Goldshire, menina elfa? – perguntou Mary Edras com certo rancor na voz.

 - Sim... – Sorena percebeu na mudança de humor da Abandonada e depositou sua xícara na barraquinha, levantou-se e a reverenciou algumas vezes em agradecimento. – M-muito obrigada mesmo, senhora Edras... Prometo não voltar a incomodá-la com machucados... – a Abandonada abanou o ar na frente delas.

 - Ora menina... Não precisa me agradecer, é meu dever como curandeira... – Imladris olhou as duas e percebeu que uma hostilidade ali fora criada depois da palavra “Goldshire”. Pigarreou com seu último gole no chá e pegou o braço de Sorena para si.

 - Vamos desastrada... Não vou mais te deixar dormir nas ruínas. Lá é muito frio e tem lobos por toda parte...

 - Não vou dormir num caixão... – espantou-se Sorena com a força que Imladris a puxava para fora do alcance da barraquinha. Mary Edras deu um aceno breve com a mão, mas não esboçou nenhuma emoção.

 - Agradecida senhora Edras! Que a Dama Sombria vele por ti!

 - Sempre, menina elfa! Sempre! – ela respondeu em tom calmo e deu a volta para ficar sentada atrás de sua barraquinha.

 - O que houve ali...? – perguntou Sorena para Imladris quando atravessavam a ponte para o alojamento dos clérigos.

 - Sei lá, e realmente não quero saber... – a clériga falou com uma careta nada animadora. – Toda vez que alguém fala da Aliança ou algo a ver com a Aliança perto dela, a senhora Edras fica... ahn...

 - Como se quisesse morder a jugular de alguém...?

 - Essa seria uma ótima expressão se não denotasse canibalismo latente... – ela abriu a porta de seu alojamento e foi direto para seu armário maior. Tirou cobertas grossas e um colchão de palha enrolado firmemente. Colocou ao chão perto de sua cama e Sorena a ajudou cobrir tudo com lençóis remendados e limpos.

 - Então vou ser sua colega de quarto agora é?

 - É... Vai se acostumando...

 - Há regras de conduta...? Algo assim? – Imladris riu alto e apontou o indicador para uma placa de madeira atrás da porta do quarto. Era uma lista de afazeres que conservara desde criança. – Uau, você tem até placas de advertência... – Sorena se aproximou e foi ler o que estava escrito. – “Não acender velas sem vasos de barro por baixo” okay... “Deixe a porta do alojamento fechado”...

 - Faz frio demais lá fora... – a clériga explicou apontando o pedaço enorme de tecido que cobria as frestas na porta de madeira do alojamento.

 - “Vangloriar a figura do Warchief Thrall antes de dormir” ahn?! – Imladris puxou Sorena para longe do seu quadro de avisos.

 - Isso é pra mim... Você é café-com-leite na Horda...

 - Café-com-leite?! Desde quando eu sou isso?

 - Sua opinião não vale até você provar que tem amor ao time...

 - O quê?! – um barulhinho de toctoc foi ouvido na porta. Imladris abriu e o dragon hawk ressuscitado veio cambaleando em seu corpinho anormalmente inchado para se alojar debaixo da cama de Imladris, perto de Sorena.

 - Olha só isso...! É seu?! – Sorena deu de ombros.

 - Sei lá... Tua Rainha que reviveu ele... Desde então fica me perseguindo... – Imladris se curvou ao chão e pegou o dragon hawk com esforço nos braços.

 - Como ele pesa! – o colocou em cima de sua mesa de estudos e sentou-se para observá-lo melhor. – A Dama Sombria o reviveu? Interessante...

 - Ela trazer gente e bicho morto de volta a vida? Acho que ela faz isso por hobby... ou algo assim...

 - A Dama Sombria não costuma reviver animais de estimação... E como foi que esse dragon hawk parou aqui?

 - Achei ele nas tubulações perto dos túneis para o alojamento dela...

 - Okay, regra implícita que não está no quadro: Nada de chamar a Dama Sombria por pronomes comuns.

 - Quê?!

 - Nada de “Ela, dela, nela” essas coisas... É “A Dama Sombria” e tudo mais majestoso, sim?

 - É só um nome... – Sorena disse se ajoelhando em sua cama e ajeitando o travesseiro feito com um lençol enrolado em sua sacola de viagem. Imladris a encarava com desprezo.

 - Repita isso novamente e te chuto pra fora do quarto...

 - Tááá... – Sorena se ajeitou na cama debaixo e colocou o travesseirinho no lado do rosto que doía mais. – Bitolada...

 - Vai dormir, Sorena...

 - Tou indo...

 - Vou ficar aqui com seu bichinho... Ele é adorável... Qual é o nome dele? – cutucando as asas e fazendo cócegas na barriga para que o dragon hawk levantasse as asas para que ela pudesse ver o buraco da flecha.

 - Ox...

 - Ox...? – Imladris parou de mexer no bicho e olhou curiosa para Sorena.

 - De Oxkhar... É o nome do meu irmão mais velho... – fechando os olhos e sentindo seu nariz relaxar a dor com o odor agradável do sachê.


Quadra dos Magos – Undercity.

                Manhã cedinho, era isso que o corpo de Sorena dizia. Tão acostumada a acordar antes de o sol nascer para colocar os animais para fora, aprontar a Taverna do Sol para o dia que viria e acordar o seu pai. Às vezes se surpreendia por Oxkhar adormecido no sofá de entrada, ainda com a armadura da Ordem, completamente sujo e maltrapilho. Era nessas horas em que Sorena odiava a Ordem por explorar tanto do irmão e não dar nada em retorno para quem acreditava na Fé deles. Drenavam Ox como ela fazia com seu Roubo de Magia, a única diferença é que seu irmão se recuperava da exaustão trabalhando na plantação da taverna.

 - Bando de canalhas... – ela pensava nessas horas e lembrou bem do dia em que Imladris disse o quanto a Ordem era subversiva e má com o povo da Horda. Também se lembrou de ficar bem irritada na hora por esse comentário. Sorena não tinha muito conhecimento sobre a fidelidade da facção e como funcionava essa coisa toda de “orgulho à Horda”.

                Já a clériga orgulhosa estava encolhida em seu livro tedioso, na cama acima, lençóis cobrindo a cabeça, mas deixando seus pés descobertos. Ela às vezes dava reflexos involuntários e murmurava algumas coisas. Sorena percebeu que na canela de Immie havia uma marca visível de uma cicatriz recente. A mais nova gostava de marcas corporais, não gostava da dor de provocá-las em si mesma, mas a necessidade era a razão de se mutilar no braço. Mestre Derris não via nada contra, mas sabia que se chegasse em Goldshire com aquele aspecto, seu pai Hrodi a deixaria de castigo até o fim de seus dias.

 - Immie...? – ela chamou balançando a clériga um pouco, mas não obteve resposta. Decidiu então tirar o livro pesado de perto de Immie e a cobrir direito (Ali realmente fazia frio de madrugada, mas parece que Immie dera seu cobertor para ela), ainda sentada em sua cama no chão. Sorena bocejou longamente, mas não encontrou mais sono algum. Espiou por debaixo da cama da clériga e viu Ox, o dragon hawk em um estado de dormência estranho, com os olhinhos avermelhados abertos, mas a boca aberta como quem está hipnotizado. Preferiu não incomodar o “sono” do seu bichinho e levantou. Calçou suas botas de viagem e se cobriu com o manto de Mestre Derris, abriu a porta devagar e saiu em silêncio. Deparou-se com uma cidade imersa em silêncio e quietude.

                O vento dos corredores era o único som que se ouvia ali, na margem oposta um Abandonado sentado ao chão, varinha de pescar em riste, mas imóvel no mesmo sono incomum. Os olhos sem vida estavam abertos, mirando o Nada, o corpo tão rígido quanto em verdadeira morte. E todos que encontrou pelo caminho estavam assim, estáticos no mundo. Apenas as Abominações que vigiavam a cidade estavam a pleno vapor, indo para lá e para cá como locomotivas de pedaços de carne resfolegando sua pressa.

                Deixou uma moeda de bronze com o dono da “Taverna” improvisada na cidade e pegou uma fruta com o aspecto mais saudável possível. Ele também estava parado e sem reagir a nada ao redor. Inevitavelmente Sorena escolheu a direção de seu passeio, a Sala do Trono. Com a maçã já na metade e a curiosidade beirando a fome que sentia, parou na frente do imenso corredor para a Sala. As sentinelas estavam do mesmo modo, todos e um sono temporário, olhos vazios sem demonstrarem animosidade pelos visitantes. Entrou em passos cautelosos e percebeu que a abóboda do teto do imenso corredor era cravejada de crânios humanóides. Não tinha certeza se sentia medo ou vontade de rir. Uma das caveiras estava desdentada e parecia sorrir. Ao centro da Sala, notou que o imenso dreadlord general dos Abandonados (E que agora escapava o nome por temor de pronunciá-lo telepaticamente) não estava. Suspirou de alívio e subiu as escadinhas em direção ao Trono Real.

                Espirrou pelo excesso de poeira e se encolheu dentro do manto, um rastro de sangue seguia para um alçapão perto do Trono. Ouviu grunhidos de dor e móveis sendo derrubados, algumas palavras inteligíveis.

 - Eu falei para você não se adiantar nesse jogo! – murmurou alguém familiar. – Agora pare quieta, estou tentando te remendar!

 - Malditos! – ofegou alguém. – Não conseguirão o que querem...

 - Por isso Putress deve ficar alojado em Fowling e não nós... Undercity precisa de você, você sabe bem disso... – o alguém tossiu rudemente. – Ótimo, esse é o seu pulmão... Vamos tentar adivinhar qual dos dois é? – o alguém deu uma risada fraca.

 - Esquerdo...?

 - Só posso ter certeza se você me deixar te abrir novamente... – outra risada fraca seguida de uma tosse.

 - Deixe-me como estou... – silêncio por muito tempo que fez Sorena se remexer no lugar. Alguém estava gravemente ferido e talvez precisasse de cuidados! Queria sair correndo e chamar Imladris, mas preferiu ficar escutando a conversa. – Sylvos... está doendo... – a voz era tão fraca que Sorena quis abrir o alçapão e ver logo o que a pessoa ferida precisava tanto. E Sylvos! Sylvos novamente! Então tudo estava se encaixando! Afoita pela descoberta e pelas possibilidades que viriam com isso, ela se segurou para não gritar algo para o pai verdadeiro. O esqueleto que havia a ensinado tudo que deveria aprender. Quatro anos ao lado dele e nenhuma palavra, apenas evasivas e lembranças fragmentadas. Agora sabia o porque dele tanto a proteger, de levá-la para Undercity.

 - Eu sei... Por isso você deve ficar quietinha no lugar antes que eu... Viu?! – um grunhido de dor a tirou do lugar.

 - Mestre Derris! Quer ajuda?! – ela perguntou esganiçadamente, a garganta seca pela emoção. A mão do Mestre abriu o alçapão e sua cabeça remendada saiu.

 - Mas que diabos você está fazendo aqui a essa hora, Sorena Atwood?!

 - Eu sempre remendei o senhor! Se tiver mais alguém que precise de meus serviços, eu o farei... – barulho de móveis arrastados e Derris foi puxado para dentro por uma mão esverdeada e coberta de sangue coagulado. – Hey, eu posso ajudar!! – ela exclamou tentando espiar para dentro.

 - Isso não é da sua conta!! – a voz do alguém a assustou imensamente, como se uma adaga invisível atravessasse sua alma e atingisse exatamente o ponto que ela mais escondia de todos, seu crescente e secreto amor incondicional pela tia, a dona daquela cidade.

 - Sylvanas, a menina sabe fazer essas coisas... – E chamando a aprendiz com a mão, Derris a deixou entrar. A Rainha de Undercity estava sentada em uma cadeira modesta, roupas maltrapilhas, suja de lama e sangue. O rasgo no rosto cobria parte de seu nariz e bochecha esquerda, parte de seu ombro esquerdo estava dilacerado e resíduo de pólvora estava por todo o dorso e pescoço. Um dos ossos da clavícula estava à mostra. Sorena não se intimidou com o aspecto mutilado da Rainha, mas ao encontrar os olhos avermelhados de Sylvanas, ela desviou seu olhar para qualquer coisa, menos na tia. – Acha que pode dar um jeito nisso?

 - Eu conserto...

 - Nem eu saberia fazer isso, minha Dama Sombria... – o cubículo estava escuro, iluminado precariamente por um castiçal de velas pretas. – E acredite, ela já fez coisa do arco da velha com linha e carretel.

 - Nem me lembre do dia em que tive que colocar essa mandíbula de ferro feia em seu rosto, Mestre... – ela disse ligeiramente ruborizada e chegando bem perto do rosto da tia. Sylvanas a encarava tão altiva e desconfiada que a menina se sentia uma intrusa no espaço. – Vou precisar de mais luz... Podemos ir lá fora?

 - De jeito nenhum! – vociferou Sylvanas. – Jamais sairei assim para meus súditos me verem desse jeito!

 - Desde quando você é vaidosa, minha Rainha? – provocou Derris com um sorrisinho.

 - Precisarei de mais luz, senão posso errar o ponto... – explicou Sorena indo para a única vela dali.

 - E seu nariz ficar no queixo... – gracejou Derris de maneira amigável e gentil. A Rainha o olhava com desprezo. – Foi só uma brincadeirinha boba, oras...!

 - Providencie iluminação suficiente para a menina, Mestre Derris... – Sylvanas ordenou. Sorena agora verificava o ombro dilacerado. O Abandonado abriu a porta do alçapão com cuidado e foi saindo.

 - Traz essência anestésica? – ela pediu tirando um pedacinho de ferro derretido encravado na pele do ombro. Parecia uma ponta de flecha.

 - Posso conseguir com Ezekiel...

 - Se ele não estiver dormindo...

 - O quê?! – questionou Sylvanas.

 - Ué... Todos dormem aqui... Estão todos assim desde que acordei... – Derris já havia saído pelo alçapão e deixado as duas sozinhas. Sorena tentava entender no que começaria primeiro, se o ombro poderia ser reconstituído com mágica, ou naturalmente, mas duvidava muito que um morto-vivo conseguiria tal coisa. Voltou ao rosto mutilado, mas o olhar avermelhado a fuzilou novamente. Não queria que aquele olho descobrisse coisa alguma de suas conclusões.

 - Não preciso de anestésico. – afirmou a Rainha com certo orgulho na voz.

 - Mas eu preciso... – tocando a pele solta do rosto de Sylvanas e pegando algo dentro de um dos bolsos internos do manto. Pequenas cicatrizes marcavam o pescoço da Rainha, assim como algumas marcas do tempo e pouca decomposição. Sorena estranhava como os Abandonados cheiravam tão bem apesar de estarem mortos há anos. Sylvanas Windrunner, por exemplo, tinha um leve aroma de flores silvestres. E a terra e a ferro do sangue coagulado e a suor.

 - Eu não sinto dor. – sentenciou a Rainha.

 - E eu sou um murloc doutor-bruxo... – recolhendo a sua cota de dragão e a colocando na mão esquerda. Com essa mão, ela foi prendendo a pele solta na face da líder com um cuidado exagerado.

 - Bruxo-doutor... – corrigiu a mais velha.

 - Esse mesmo. – pegando linha e agulha, mas parou ao começar a operação.

 - O que está esperando?

 - Essência anestésica?

 - Já disse que não sinto dor!!

 - E eu já informei que sou um murloc bruxo-doutor...?

 - Do jeito que é teimosa, tem cérebro de murloc... Um daqueles bem burros...

 - Obrigada querida Dama Sombria... – ela debochou forçando o dedo polegar no remendo do rasgo, pressionando o começo do machucado. - Tenho uma Soul Shard só e vou ter que gastar com vossa Majestade...? – Sylvanas bufou e esperou a agulha atingir seu ombro.

 - És tão fraca que não consegue pegar mais delas?

 - Vamos dizer que não desperdiço meu tempo indo atrás de pedras... Elas são para casos de emergência...

 - Eu sou um caso de emergência para você, pirralha? – Sorena ajeitou o carretel e ativou a Soul Shard para se alojar no objeto.

 - Troca de favores.

 - Com licença? – a voz da líder foi ameaçadora.

 - Você me diz quem eu sou e eu remendo o seu braço e seu rosto.

 - Isso é uma chantagem?

 - Troca de favores. – e indicando o pedaço de pele solto. – Você não vai querer aparecer assim na frente de seus súditos... E eu quero saber quem eu sou pra você.

 - Você é uma ratinha vinda de Silvermoon... – disse a Rainha se ajeitando na cadeira.

 - E você é fraca.

 - Do que você me chamou?

 - Não quer admitir que precisa de uma feiticeira-júnior para fazer pontos em sua carcaça.

 - Você se ofereceu!

 - Quem eu sou, por favor? – espetando a agulha no ombro e extraindo um pequeno fragmento de pólvora intacto.

 - Não irei ceder as suas...

 - Você é tão boa assim pra não querer desviar de flechas explosivas? Você é esquisita!

 - Eu não preciso de você!! – dando um empurrão na menina, mas subitamente perdendo o equilíbrio. Sorena a segurou a tempo e se espantou pela leveza do corpo de Sylvanas. – Não preciso de ninguém...! Não preciso...

 - Se você estivesse viva, eu chamaria alguém aqui que realmente precisa de você... É a Immie e ela não pára de falar em você! Tanto que eu cansei de só ouvir de você e não do que você era, de quem você era... – a colocando na cadeira e encostando a cabeça da líder cuidadosamente. – Você está me ouvindo?

 - Eu não preciso de você... – balbuciou Sylvanas com o queixo tremendo. Sorena abriu o alçapão e se deparou com seu Mestre Derris caído no chão, o frasco de essência analgésica quebrado. Qualquer um ali perto, inclusive as Abominações estavam imóveis. Deixou Sylvanas sentada na cadeira com o cuidado que ela não caísse desmaiada. A Rainha dos Abandonados murmurava sobre Quel’Thalas e arqueiros.

 - Immie!!! – gritou Sorena saindo correndo pelo corredor circular e encontrando a Quadra dos Guerreiros. – Immie!!! – gritou novamente, mas não obteve resposta. Não poderia ir até a Quadra dos Magos, nos alojamentos e chamar Imladris, a Rainha estava ali atrás desacordada. Acuada e completamente sozinha, Sorena começou a imaginar que tudo aquilo era culpa sua. Que forçar demais com a Rainha fizera isso e conseqüentemente com a cidade. Seu Mestre poderia estar realmente morto! Immie poderia ter morrido! Com o peso do mundo nas costas ela voltou ao cubículo e arrastou o corpo de Sylvanas para um local bem iluminado e prosseguiu em seu trabalho, lágrimas nos olhos turvos e mãos tremendo. Gastou metade de uma hora tentando não errar o ponto e deixar o rosto simétrico. Com um último esforço, foi obrigada a correr pela parte da cidade para achar algo vivo para poder drenar a energia vital. Descobriu a fábrica de Abominações ali abaixo da Sala do Trono, onde os Apotecários faziam reféns humanos e os testava como cobaias. Um senhor de olhos fundos e trêmulo foi seu alvo. Os prisioneiros a xingaram de todos os nomes possíveis que existiam, rogaram pragas, cuspiram em sua roupa e mãos, mas era necessário. Era necessário?

                A cidade estava tão silenciosa que parecia cada vez menor a sua volta. Correr o mais rápido possível era o que poderia fazer naquela hora. Tentou não pensar na fábrica de Abominações, nos lamentos dos reféns, nas palavras rudes, no estado degradante dos prisioneiros, no cadáver de uma criança na mesa de um dos Apotecários, em um livro aberto com a página “Nova Praga” ainda não preenchido. Era necessário?

 - Você irá queimar pela culpa e servidão ao Inimigo!! – gritava uma moça de sua idade, refém em uma das jaulas. Tropeçou em um goblin alheio ao mundo silencioso e voltou a Sala do Trono. Verificou como a líder estava e deu uma olhadela para seu Mestre, ainda imóvel e desacordado. Era necessário matar alguém para manter uma idéia viva? Era isso que Imladris queria tanto? Era isso que qualquer um ali seria disposto a fazer? Ela acabara de fazer aquilo que jamais acharia que faria, e foi tão rápido e súbito que sua mente só pensava na vida do velho senhor agora, prestes a imbuir a Soul Shard em sua cota de escamas e reativar os músculos mortos da Rainha. Um corvo negro a olhava de canto, pousado no lustre central da Sala do Trono. Tarefa completada. Sorena sorriu bobamente pelo seu esforço maluco, por matar um velho refém das criações absurdas do Apotecário. Nada mais fazia sentido naquele lugar, nem o chão que agora ondulava abaixo de seus pés e a escuridão que a chamava vagarosamente.



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