Shindu Sindorei - as Crianças do Sangue escrita por BRMorgan


Capítulo 55
Capítulo 55 - Início do Terceiro Ato


Notas iniciais do capítulo

Novas aventuras nas férias/lua-de-mel de Ox e Immie!



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Dias depois em Ratchet no início do verão:


Sorena ficou a tarde toda de chegada visitando todos os goblins que pertenciam ao cartel Steamwheeler. A maioria conhecia o Diário de Bordo de Sylvos e estavam empolgados pela motivação da menina em construir a primeira Geringonça Voadora ali em Ratchet. Com a propaganda certa e exagerada, isso chegaria aos ouvidos de toda Azeroth e logo o cartel estaria lucrando bilhares de moedas de ouro por esse projeto. Sorena não se importou com a ganância da espécie, eles gostavam de dinheiro, ela gostava de peças para encaixar, logo teriam uma boa relação de comércio e serviços. O mecânico experiente e antigo Mestre de Sylvos, o goblin Wretched, abrigou Sorena em sua garagem empilhada de peças, cheirando fumaça o tempo todo e quente como uma fornalha (Mais do que do lado de fora). O casal recém-casado entendeu o recado da ausência da mais nova, mas Kalindorane procurava alguma coisa para fazer aos arredores.

O Capitão Fabius foi uma distração por alguns dias, contando as incríveis histórias da pirataria Azerothiana, chamando-a para beber na Taverna, ficar até a madrugada cantando e dançando a luz da fogueira com a tripulação e os residentes do vilarejo, cair de cansaço na cama fofa no 2º andar da Estalagem do Javali e dormir até a hora que fosse, e no outro dia fazer tudo novamente. Mas ainda assim não era o bastante. Numa dessas noites de festança e contação de causos entre os marinheiros e velhos habitantes, Sorena finalmente apareceu. Rosto suado, macacão avermelhado cheio de fuligem e as luvas pesadas escorregando de suas mãos. Os óculos especiais que ela usava para aumentar o zoom estava pendurado em seu pescoço e os olhos alaranjados denunciando algo mais atribulado que o necessário.

Quem narrava a história lendária do primeiro goblin a pisar em Outland era o mais velho do vilarejo, o goblin Zikkel, o banqueiro de Ratchet. Todos prestavam atenção no pequeno ser, alguns embargados pelo sono, outros pelo rum bebido demais, alguns atentos ao redor, como Kalindorane. Sorena chegou perto do grupo, tirou as luvas e sentou ao chão. Os olhos alaranjados grudados no Capitão Fabius e nada mais. Com temor, Kali notou nitidamente o que aquilo significava: Ciúmes. Levantou-se de seu lugar, foi até ao lado da elfa e sentou-se bem perto.

 - Ele só me convidou para uma viagem até Booty Bay... – sussurrou em seu ouvido de modo inocente. Sorena não moveu um músculo. – Você vai ficar chateada com isso?

 - Não. – a resposta foi tão seca que a arqueira apurou as vistas no rosto gélido de Sorena. Era uma mistura de completa indiferença disfarçando uma fúria insana. Ox percebeu do outro lado da fogueira e cutucou Imladris que brincava com o seu filhotinho de algo indecifrável que aparecera do nada debaixo de sua cama no dia anterior. A coisinha branca e peluda rolava para lá e para cá, mordiscando e batendo a patinha na mão da clériga.

 - É a Sorena mesmo? – perguntou o marido. Imladris olhou para a amiga com dificuldade, a luz da fogueira não iluminava bem o rosto dela.

 - É sim... E está num péssimo humor se quer saber... – comentou para si mesma e ajudou a coisinha peluda e branca rolar no chão e girar em círculos.

 - O que as duas tanto brigam...? É estranho! A Kali salvou a vida dela lá em Tranquillien... – Imladris riu da cambalhota que o mascote dera para tentar alcançar sua mão e depois espreguiçou-se fingidamente para dar um breve beijo no esposo.

 - Ai Ox... Você é tão bobinho... – pegando o queixo dele e dando outro beijo mais demorado. – E tá na hora de fazer a barba...

 - Mas querida...

 - Com essa barba pra fazer te dou o chão pra dormir...

 - Oh Mi... Faz isso não...

 - A barba ou eu... – o marido coçou o rosto em uma atitude de protesto e depois fez um bico de manha.

 - Isso é chantagem... Chantagem do pior tipo: Emocional...

 - E você vai com ele? – Kali perguntou no mesmo tom de voz.

 - Só vou se você for...

 - Não quero ir.

 - Mas será maravilhoso! Um passeio lindo e cheio de coisas pra se fazer... – a arqueira a cutucou levemente com o cotovelo, Sorena levantou-se rapidamente e se afastou com os olhos grudados no chão.


                Deitados na mesma cama fofa e confortável. A noite estava tranqüila e a brisa fria vinda do Oceano balançava as cortinas do modesto quarto na Hospedaria do goblin Tinttler. Imladris não pregara o olho. Insônia. Isso a perseguia desde criança, quando estudar os livros era mais importante que dormir, se alimentar, lembrar que existia um mundo lá fora do seu quartinho bagunçado na Quadra da Guerra em Undercity. Oxkhar ressonava baixinho ao seu lado, segurando bem o travesseiro e com um leve sorriso nos lábios. A clériga queria entender o que se passara nas últimas horas antes de dormirem (Ou só ele dormir? Por que não estava dormindo?!), entender de uma vez por todas porque ao ficar olhando demais para Oxkhar o seu coração descompassava e aquela leve tontura passava pela sua visão. Sorena dizia que isso era paixonite aguda. Kali disse que era assim mesmo que as pessoas se sentiam quando se casavam. Sorena replicou com algo sobre atingir o cérebro e afetar o coração drasticamente, mas aí Oxkhar segurou sua mão e pediu para ela olhar para ele. Aí a briga entre as duas elfas se tornou um borrão e tudo que ela via era só o ex-paladino segurando sua mão do jeitinho gentil dele. Nem muito forte, mas também não deixando nenhum de seus dedos fora do alcance dos seus. Oxkhar fungou no travesseiro e sua mão direita procurou por algo na cama, atrás primeiro e depois na frente. A mão subiu pelo o corpo de Immie e puxou o lençol para cima. Ele queria protegê-la do frio mesmo dormindo. Depois de ajeitar o lençol até a altura dos ombros de Immie, ele a puxou devagar e grudou seu rosto no ombro direito dela. Deu um beijinho e se ajeitou um pouquinho para não deixá-la desconfortável com o abraço de lado. A clériga o olhava confusa de soslaio, pedindo para que ele não acordasse e a visse naquele estado fragilizado.

 - Immie, tenta fechar os olhinhos e pensar em coisas boas... – sussurrou ele perto dela. – Você precisa dormir pelo menos um pouquinho... – beijando o ombro dela novamente.

 - Você estava acordado?

 - Arram...

 - Por quê?

 - Porque você não dormiu. – silêncio dos dois. – Quer que eu conte carneirinhos com você?

 - Contar o quê?! – ela murmurou de volta.

 - Carneirinhos... Faz a gente ficar com sono...

 - Faz...? Pra mim só livros complicados de Botânica faziam dormir... – Oxkhar a puxou mais para si e plantou um beijo em seus cabelos. Imladris encolheu no carinho dado pelo marido.

 - Quer que eu comece...? – ele perguntou. – Um carneirinho pulando o tronco de árvore... – dizia em voz sonolenta e calma - Dois carneirinhos pulando o tronco de árvore...


                O Mestre Wretched babava de sono ao lado de uma maquinaria estranha e confusa de se definir. Na garagem dos Venture C.O. e Associados, Sorena dormia com metade do corpo estirado em cima da mesa. Mãos ainda segurando instrumentos de engenharia e rosto afundado em um Manual comido por traças. Às vezes seu braço esquerdo dava espasmos rasos e voltava a posição original. Às vezes ela murmurava coisas desconexas, mas se calava depois. O vilarejo de Ratchet estava coberto de calmaria, tanto na terra quando no Mar. Kalindorane circulara o vilarejo algumas vezes, de pés descalços, roupa de dormir e na companhia de seu arco e alvaja. A guarda do Vilarejo já trocara de turno e conversara bastante com a milícia que cuidava dos Portos e das fronteiras. Ratchet era tão pacata que a última invasão fora no ano antes da Guerra entre Orcs e Humanos. E nenhum habitante ali da vila nem nascera na época. Piratas? Sim, muitos, mas de alguma forma eles só arrumavam confusão em Booty Bay. Em Ratchet era apenas negociações e descanso para malfeitores do Mar. Aquela torre da Aliança ali atrás no sul do vilarejo? A milícia subornava muitos soldados – e também como não iria? Ratchet fechava todo o tipo de comércio para a Torre de Northwatch, logo os soldados passavam fome e necessidade – e até mantinham o bando de piratas encrenqueiros do Corvo Prateado longe da vila. A arqueira vigia não estava acostumada com aquela vidinha calma dali. A essa hora da madrugada, ela estava empoleirada em uma árvore, espreitando grupos do Flagelo e sincronizando sinais luminosos com a patrulha igualmente em vigília e escondida na Floresta de Eversong. Sinceramente Kali achava Ratchet o Paraíso. Estar apenas de camisola e descalça era uma coisa que ela desejava desde criança. Poder andar livremente por um lugar sem morto-vivos, sem perigos naturais, sem Lethvalin ao lado apenas falando sobre o orgulho dos Farstriders. Sentia saudades do marido, mas ali naquele Vilarejo perto da praia, ela se sentia finalmente como Kalindorane. Uma pessoa só.

 - E deixa a minha ovelha em paz!! – exclamou Sorena na garagem acordando assustada e derrubando sua maleta de ferramentas no chão. O goblin Wretched ao seu lado bocejou guturalmente. – Droga... – a elfa se abaixou e foi catar os instrumentos.

 - Obrigado por me acordar. Dez pontos negativos... – o goblin falou voltando a dormir colocando um abafador de som exageradamente maior que as próprias orelhas. Sorena ficou escandalizada pela perda de pontos.

 - Deixar sua ovelha em paz... É... Deveria ter sido um pesadelo bem tenebroso...

 - O que você está fazendo aqui...? Não deveria estar dormindo não? – ela cochichou para não acordar o goblin já roncando.

 - Como se uma Farstrider conseguisse fazer isso... Aliás, você é que deveria estar dormindo.

 - Estava com essa idéia na cabeça e resolvi descer. Eles deixam a garagem para eu trabalhar sabe? – juntando tudo e colocando na maleta.

 - Você não descansou um minuto desde que chegou. E sequer deu atenção a gente...

 - Olá...? Ficar de vela para os pombinhos é a última coisa que eu vim fazer aqui... E eu não vou dividir o quarto com você de jeito nenhum... – Sorena bocejou e recolheu algumas peças soltas em cima da imensa mesa de maquinaria. – Sabia que havia deixado aqui...! – ela ajeitou um par óculos bizarro com lentes azuladas e com feixes luminosos nas bordas.

 - Por que não? Está com raiva de mim?

 - Ahn... É de madrugada e para não estender demais a conversa: Sim, estou com ódio mortal de sua pessoa, então cai fora. Deixa eu trabalhar.

 - Você precisa dormir, Sorena!

 - Não preciso de babá Farstrider.

 - Você é uma teimosa mesmo! Não mudou nada! – Kali deu meia volta e saiu da garagem do Venture C.O. e Associados. Sorena a acompanhou alguns passos atrás e regulou a modulação das lentes dos giróculos, focalizando a saída de Kali, deu um sorrisinho malicioso e apreciou o momento. Kali virou-se imediatamente e a pegou fazendo isso. – Myrtae Windrunner!! O que você pensa que está fazendo?!

 - Pesquisando! E não me chame desse nome feio! – Sorena levantou os óculos para a testa e tentou voltou para a oficina.

 - Sua tia me disse que esse era seu nome verdadeiro e é assim que irei te chamar!

 - Vai caçar coquinhos ali nas palmeiras, vai? – a mais velha a alcançou antes de entrar e a empurrou. – Oooh então é assim que você resolve os impasses de sua vida adulta? Empurra os outros?

 - Não, só você! – e empurrou de novo quase derrubando a elfa mais nova. – O que é? Está com medo de me encarar?

 - Que maturidade a sua!

 - Medrosa! – dando um cutucão provocador. – Vem resolver isso da maneira dos Farstriders, vem? – Kali levantou os punhos e se aprontou.

 - Eu estou morrendo de sono, com dor nas costas e você me chama pra brigar que nem criancinha birrenta? – Kali desferiu um tapa de leve no rosto de Sorena e esperou o troco.

 - Medrosa como uma galinha chocadeira... – batendo no rosto de Sorena diversas vezes e esperando ela revidar. A ex-feiticeira apenas a olhou entediada.

 - Você acha mesmo que eu vou ficar brava por essas provocações bobocas? Querida arqueira, eu fazia isso com 4 anos de idade...

 - Sua cabeça vazia de murloc! Ainda acha que vai trazer honra ao nome dos Windrunner se comportando desse jeito?! – o risinho de Kali fez a pele de Sorena ferver e em uma investida súbita, a elfa menor derrubou a arqueira ao chão poeirento e os olhos alaranjados demonstravam a fúria despertada. Sorena erguera a mão esquerda onde a cota de escamas ficara anteriormente e seus dedos faiscavam com correntes elétricas esverdeadas.

 - Essa vai ser a última vez que você insulta o nome da minha família...! – ela sussurrou bem perto do rosto de Kali e abaixando a mão esquerda. A arqueira foi mais rápida e levantou o corpo e deu um breve beijo nos lábios da feiticeira. Sorena parou imediatamente, até os olhos alaranjados saíram de foco quando sentiu os lábios de Kali encostarem-se aos seus. As duas se separaram e se encararam por alguns instantes. Kali com o mesmo sorrisinho provocador, Sorena confusa. Logo a arqueira teve que ceder o corpo e a cabeça ao chão quando foi pressionada pela mais nova em um beijo mais angustiado. Deixou-se envolver pela situação e tentou se concentrar em acalmar a agressividade do beijo dado. Alguns instantes se passaram até Kali sentir o seu corpo esfriando repentinamente. Abrindo os olhos devagar ela viu que Sorena agora corria em direção contrária ao vilarejo, indo para a os fundos de Ratchet. Levantou-se ainda tonta pela demonstração de carinho bruta. Um gatinho completamente preto estava ali testemunhando a cena.

 - Temperamental ela, não? – comentou Kali levantando do chão e seguindo para a taverna.


Na manhã seguinte.


 - Bom dia a todos! – disse Imladris descendo as escadas da Hospedaria e ajudando a goblin esposa de Tinttler a servir as mesas.

 - Bom dia recém-casada empolgada... – disse Kalindorane já comendo algumas uvas.

 - Nham... – Sorena estava debruçada na mesa de madeira e praticamente dormindo.

 - Vocês não vão acreditar no que me aconteceu! – ela disse sentando animada e confidenciando as duas.

 - Nham... – Sorena devolveu.

 - Finalmente descobrimos um modo de curar minha insônia! – a mais nova das elfas levantou a cabeça em alerta, as orelhas amassadas em cada lado da cabeça.

 - Ox descobriu que meio-elfinhos não nascem em pés de alfaces?

 - Sorena... – foi Kali a primeira a intervir.

 - Você mostrou a ele como se faz meio-elfinhos?

 - Sorena!!- foi a vez de Immie se escandalizar.

 - Então sei lá... – deitando de volta na mesa e se aconchegando nos próprios braços.

 - De qualquer forma... Contamos carneirinhos...

 - Ahn?

 - Ele começou a contar carneirinhos, o que acho ridiculamente insano para se ter sono. Como assim mentalizar números enquanto se quer dar descanso a mente? – a clériga foi falando rapidamente e completamente eufórica. – Aí ele começou a contar e depois de um tempo... acho que depois do quadragésimo segundo carneirinho eu capotei!! Dormi direto! Só acordei hoje de manhã com uma linda rosa branca no travesseiro ao meu lado... – suspirando intensamente. – Ele foi receber a Comitiva de Warsong nas fronteiras de Crossroads.

 - Isso é tão romântico! – disse Kali segurando a mão de Imladris e sorrindo gentilmente. – Você deve estar...? – Imladris sorriu de volta com um jeito sonhador. – Como eu queria que o meu fizesse isso todos os dias! – ela riu, mas Sorena levantou do lugar e se arrastou para as escadas.

 - Contarei carneirinhos sim... Estripados e colocados em tiras em cima das cerquinhas e troncos de árvore... – Imladris virou-se assustada para a mais nova.

 - Pressinto mau-humor matutino... – alertou Kali.

 - Nhé. – a elfa subiu lentamente e sumiu no final das escadas.


                O colchão afundou um pouco na beirada. Sorena sentiu alguém a cutucando na costela fraturada.

 - Vamos começar a brigar antes mesmo de tomar o café-da-manhã? – perguntou Imladris.

 - Quando eu conseguir dar respostas boas, aí sim... – virando para o outro lado e dormindo agarrada ao travesseiro.

 - Quero brigar agora... – o tom na voz da clériga era ameno e até infantil. – Vamos...! Quero brigaaaar...

 - Me deixa dormir, oras...!

 - Briga, briga! Quero briga!

 - Quer me deixar? Eu não dormi a noite inteira!

 - Fez besteira de novo?

 - Não?

 - Sorena...

 - O quê?

 - Olha pra mim. – a mais nova obedeceu e a clériga chegou bem perto de seu rosto, verificou cada pálpebra e depois a língua da menina. – O que foi então? – Sorena deu de ombros.

 - Coisas...

 - Coisas? Coisas que não te deixam dormir?

 - É, essas coisas...

 - Alguém em específico?

 - Ahn?

 - Algum fantasma, espírito, aparição, alma penada...? – Sorena colocou-se de barriga pra cima e suspirou entediada.

 - Tédio.

 - Tédio de Ratchet. Você está com tédio do lugar onde mais queria ir? Que gastou parte de suas economias, que vendeu praticamente a roupa do corpo pra vir?

 - Não era o que eu esperava...

 - E o que você esperava?

 - Coisas...

 - Coisas?

 - Essas coisas que nos deixam empolgadas...

 - Fogos de artifício?

 - Tem aqui, aos montes com o Rezzel... Fogos são legais... – sorriu a mais nova bobamente.

 - E a engenharia...?

 - Vai indo, é bom às vezes... Na maioria do tempo é “Eba, eba! Vou fazer um mechano-motoca!”, mas depois de tentar trocentas vezes atarraxar o parafuso B no encaixe T5, acaba com a diversão...

 - Confuso isso...

 - Tou na profissão errada?

 - Você sempre pergunta isso... – suspirando e deitando na cama com a amiga, barriga para cima e olhando o teto. Apenas o barulho do vilarejo a beira-mar que atravessava a janela delas.

 - Sinto falta de Undercity... – confessou Sorena. Imladris levantou as costas e a encarou atônita. – Pelo menos lá eu sabia que estava sendo vigiada...

 - Vigiada...? É isso que você sente falta? – Sorena deu de ombros. – Tem certeza que você está realmente lúcida?

 - Eu sempre fui vigiada... A vida inteira... Papai, Oxkhar, arqueiras da Karin, cabeça decepada...

 - Sorena... – Imladris avisou.

 - Aí Undercity: Você, qualquer um que passasse por mim, Rainha déspota. – Imladris riu do apelido por um momento. – Você riu de eu chamar ela assim?

 - Você é tão idiota que ainda fica falando bobagem quando está se confessando...

 - Obrigada...

 - Ao seu dispor... – as duas apertaram as mãos. – Vigiada... então...?

 - Aí quando papai me disse que isso tudo era por uma razão só, que não era ódio a distância, não era “não estou nem aí se você é minha sobrinha”, eu fiquei com vergonha do que falei antes...

 - Então a questão é simples... Quando sairmos daqui e voltarmos as nossas vidinhas, você vai comigo para Undercity, andaremos até a Sala do Trono e pediremos desculpas de verdade pelas faltas cometidas, sim?

 - Ahn... não?

 - Por que não?!

 - Pedir desculpas é a pior coisa do mundo... – a clériga a olhou com pena. – E ela não vai querer escutar...

 - Você nunca tentou... – a mais velha disse com uma voz musical.

 - Ela vai me matar... E esperar eu voltar sem noção e me fazer acordar como uma Abandonada...

 - Isso é tão ruim assim? – a pergunta foi carregada de otimismo. – Eu sempre quis ser... Quer dizer: Eu sou! – se atrapalhando toda no raciocínio.

 - E ser corcunda, ter ossos expostos, vísceras escorregando pelos buracos gangrenosos... E mancha sua roupa, sabia?

 - É, não seria bom, mas eu tenho bastante prática em lavar roupas com manchas horrorosas...

 - E todo mundo iria te julgar pela sua cara. Sem segunda chance.

 - Ainda acho o que vale é as ações que fazemos para moldarmos nossa reputação.

 - Estamos falando mesmo da mesma pessoa que se arruma todinha só para ir ali na esquina? – a cara da clériga foi de irritação. – Mas você é assim! Toda arrumadinha e jeitosa com suas coisas e tem todo um modo especial de arrumar os cabelos e deixar cada detalhinho das roupas com um toque seu... Ninguém vê suas roupas quando você é uma morta-viva!

 - Como sabe disso? – Sorena desviou o olhar para a janela e suspirou alto.

 - Como é que você acha que eu vi a minha tia quando entrei naquela Sala pela primeira vez...? E não sou só eu... Já viu como os Farstriders ficam quando estão ao lado dela? E meu tio Andrus? Até o Oxkhar se recusa a descer por achar a cidade “pitoresca”...

 - Isso não tem nada a ver. Acho que Karazhan um lugar pitoresco...

 - Karazhan é um cemitério com muros de concreto e cheio de andares.

 - Por que é tão difícil pra você entender...?

 - Immie, eu não fui criada com uma banshee e dois clérigos cadavéricos desde criança...

 - Então a culpa é minha por eu ter sido criada com eles?!

 - Claro que não! Você não teve escolha... O negócio é ver que tem o outro lado também...

 - Você nunca diz o seu lado... Só choraminga... – outro suspiro alto e uma fungada disfarçada, silêncio entre as duas.

 - Quando era pequena, pelo menos o que lembro... Eu sonhava todas as noites com uma arqueira... Ela era a melhor sabe? A musa inspiradora, a divina deusa vinda sei lá da onde. Ela me ajudava, me fazia rir, me segurava no colo, brincava comigo... E eu até brincava com ela mesmo...

 - Ahn?!

 - Amiga imaginária?

 - Ah! Tive uns dois, mas eles se cansaram de mim depois de um tempo... – as duas riram. Sorena se virou na cama para ficar com a cara enfiada no travesseiro. A cor de suas bochechas era igual de seus cabelos.

 - Aí quando eu acordava, eu esperava lá na Taverna por ela, sabe? Todos os dias eu esperava bonitinha, com meu melhor vestido, toda enfeitada e de banho tomado e ninguém entendia muito bem porque eu fazia isso... Papai achava que eu esperava pela mamãe, mas eu sabia que ela já tinha ido embora pra sempre... Ele me deu uns sermões e tudo mais, mas eu nem ligava pro que ele dizia... Aí eu fui crescendo... E vendo que ela não chegava... Que a minha cabeça que estava confundindo as coisas...

 - Arram... Você faz isso direto não? – acariciando a orelha da mais nova.

 - Aí a cabeça do Mestre Derris apareceu lá de novo... E os sonhos bons se tornaram pesadelos. A arqueira não aparecia mais, nem pra dizer um oizinho e sair depois... Era tudo com coisas ruins e gente morrendo... Gente que nem eu morrendo... Eu nunca tinha visto um elfo-do-sangue na vida, por isso eu me sentia toda poderosa lá em Goldshire... Mas quando dormia eu via muita gente como eu, e ninguém contava piadas...

 - Só você mesmo... – riu Imladris ajeitando o travesseiro dela para que ela pudesse falar sem estar abafada pelo tecido.

 - Aí um dia... Depois de eu ter provocado uma confusão básica com as arqueiras...

 - Que confusão seria essa?

 - Eu entrei em uma mina abandonada lá na Floresta Elwynn...

 - Arram...

 - Lá é infestado de aranhas gigantes carnívoras...

 - Primeira aventura!

 - Eu sei lá como entrei... Só sei que quando acordei em casa, meu irmão tinha um pedaço do braço arrancado, dois amigos de missão dele estavam nos curandeiros sofrendo de envenenamento e uma das arqueiras da Karin havia sido partida ao meio... – Imladris piscou várias vezes ao ouvir isso. – Meu pai ficou quieto, não falou nada, nem para os guardas de Stormwind. Ele mentiu. Um paladino nunca mente, sabe? Eu vi que ele começou a me vigiar de perto e não me deixava sair, e ficava a noite toda na cozinha da Taverna já que era o único cômodo que eu passaria se por acaso sofresse outro desses... ahn... Como é que chama pessoas que andam ao dormir?

 - Sonâmbulos...

 - Isso aí... – e pausando por um momento com o olhar perdido no nada. – Aí eu sonhei com a arqueira de novo...

 - Era nossa Dama Sombria...?

 - Era parecida... A voz era a mesma, o uniforme e tudo mais... Mas ela havia mudado de rosto... – e mordendo um dos lábios. – E sempre aquele maldito portão... Sempre a mesma coisa... Sempre eu chegando atrasada demais, sempre não podendo ajudar, com os pés presos na lama, ou morta no meio dos corpos dos outros, ou como espírito vagando e vendo a cena, ou simplesmente só vendo como se fosse um teatro...

 - Sor... – a clériga tinha lágrimas nos olhos, ela sentira a sensação de impotência para salvar a sua Rainha certa vez. – E eu nunca podia ajudar quando ela mais precisava... O ruim era acordar com ela gritando daquele jeito macabro que ela faz...

 - Eu gosto quando ela berra como banshee... – Imladris sorriu entre as lágrimas ao se lembrar de como sentia falta de ver sua líder gritando com os outros. A cara de Sorena era de sofrimento, havia escondido o rosto no travesseiro para não mostrar as lágrimas.

 - Eu odeio quando ela grita daquele jeito...

 - Não fale isso...

 - Eu fazia xixi na cama quando tinha pesadelos desses... Oxkhar ria de mim por muito tempo... Ninguém chegava perto porque achava que eu era louca... Tinha alguma doença ou sei lá... Era feiticeira...

 - Pessoas podem ser cruéis quando querem...

 - E teve uma coisa ruim que aconteceu no orfanato quando eu tinha uns quatro anos... Ox que lembra mais... Uns órfãos piraram na batatinha certa noite e só sabiam escrever coisas sem nexo nas paredes das casas e matar galinhas com pedras e depois só foi piorando...

 - E eu aposto que culparam você...

 - Quase isso... Disseram que depois que eu chegara à vila, coisas estranhas aconteciam...

 - Malditos...

 - Eu nem entendia que a maioria falava, mas você vai acostumando a ouvir que é uma aberração e quando te dão a oportunidade de mostrar que é realmente uma aberração...

 - O que houve?

 - Papai foi para Darkshire, ali perto... Resolver um problema com mortos-vivos do Flagelo... Eu não lembro direito...! – ela tentou focalizar o olhar em um detalhinho da blusa que Imladris usava. – Nem vou conseguir, memória ruim pacas...

 - Tudo bem... Continua...

 - E papai mudou... Assim radicalmente. – limpando os olhos com as costas das mãos. – Parou de ir às missas, de ir às missões. Foi largando a Fé. Ox foi ficando nervoso com isso, papai sempre foi o herói pra ele sabe? O cara que foi exemplo por gerações? – a clériga concordou. – Aí Ox foi pra missão, Papai aposentou a armadura, pediu baixa na Ordem, e começou a chorar. Todos os dias de manhã, perto do rio, pescando lambaris. Essa era a desculpa dele.

 - “Vou pescar...”?

 - Eu peguei essa mania dele...

 - É mesmo...?

 - Sabe quando você se sente uma caquinha por dentro e por fora e não adiantava limpar com boas ações porque a sujeira nunca iria sair? – a clériga concordou vigorosamente. – Essa era eu com uns 11 anos... Comecei a drama-lhamice muito cedo, cara sra. Atwood... – Immie riu e a abraçou de lado, passando os dedos entre os cabelos de Sorena. – Depois dos 13 eu já tinha cansado de acordar com ela gritando no meu ouvido, meu pai chorando por motivo nenhum de manhã, sendo uma completa panaca ao esperar a tal arqueira de tarde e morrendo de medo de dormir à noite.

 - Então resolveu fugir?
 - Arram... Era mais fácil...

 - E porque Mestre Derris ficou falando no seu ouvido...

 - É... por isso também...

 - Você fugiu pra ir atrás de um sonho?

 - É, idiota não?

 - Acho a coisa mais incrível que você já fez nesse tempo todo que te conheço... – Sorena a olhou com olhos fundos. – Você desistiu de uma vida chata e sem novidades, se entregou a uma missão desconhecida tudo por causa de nossa Dama Sombria!

 - Immie, não começa... Não foi por causa dela!

 - Claro que sim! A arqueira, os sonhos, você queria vê-la não? – perguntando totalmente empolgada pela brecha que a mais nova dera. – E conseguiu!

 - Eu vi uma pessoa morta-viva... – a cara da clériga foi de irritação. – Ela não é minha Rainha...? É a minha tia...

 - Vai ter que começar a tirar isso da cabeça então... – Immie cutucou a testa da amiga com delicadeza. – Porque para todos nós ela é a Rainha Banshee de Undercity... E ela não vai te tratar diferencialmente só porque você acha que ela é ainda a sua tia... Eu a respeito por ter salvado minha vida quando eu era criança e minha vida antes disso nada vale. Ela me deu forças e vontade de ser alguém na vida. Você deveria copiar a idéia.

 - Prefiro guardar isso pra mim. – Imladris tapou o rosto de Sorena com o travesseiro.

 - Viu? Agora sabe como me sinto sobre a Dama Sombria...

 - Temos que voltar a essa conversa interminável? – tentando se desvencilhar do travesseiro no rosto.

 - Não é um sentimento de eterna gratidão, respeito e euforia?

 - É, pode ser, mas não vou idolatrar o chão em que ela pisa.

 - Mas se eu soubesse que você era a sobrinha da Dama Sombria, eu idolatraria o chão que você pisa...

 - Está de brincadeira, não é? – a cara de Immie não mentia sobre sua afirmação. – Ficar apaixonada detonou os seus miolos, sabia? Sério mesmo!



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