Shindu Sindorei - as Crianças do Sangue escrita por BRMorgan


Capítulo 4
Capítulo 4




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                Em seu braço esquerdo, Sorena terminava de raspar um pouco da pele perto do pulso, tirando uma tira de pele pequena. Derris a observava pelo canto do olho, temeroso que essa mania estúpida chamasse atenção de algum habitante do vilarejo perto da entrada de Undercity.

 - Por que faz isso? – perguntou ele, a jovem não mostrava dor pelo fio da adaga ferindo a pele e dando a sua carne cortada uma tonalidade vermelha.

 - Não possuo calendário, muito menos sei aonde consultá-lo. Marco os dias em meu braço. – e terminando a estranha tatuagem, pousou a adaga e observou bem a não-vida no vilarejo. – O que esperamos?

 - Permissão.

 - Você não é do Apotecário?

 - Sou um missionário enviado. Não posso retornar sem ter uma boa justificativa.

 - E eu sou uma boa justificativa?

 - Você é a minha salvação. – a jovem riu e cobriu o ferimento do braço com uma faixa. Derris debochou um pouco com um risinho abafado. – Tão cuidadosa, assim como o valoroso pai...

 - Fui bem criada.

 - Quantos dias fora de casa? – ela ficou intrigada pela pergunta, mas não teve medo de responder. Retirou seu manto e Derris ficou impressionado. O braço esquerdo dela estava coberto por finas tatuagens como aquela que ela acabara de fazer, algumas com runas élficas aprendidas durante a viagem exaustiva desde o Sudeste de Azeroth, outras com palavras de poder, todas com números ao lado.

 - De acordo com o meu braço... 4 anos e 2 meses... Tenho mais que 21 anos...? – perguntou-se com estranheza. – Isso quer dizer que morrerei logo! – disse ela com um sorrisinho maléfico. Derris coçou a cabeça.

 - Criança, perder a imortalidade não quer dizer que você irá morrer cedo...

 - Oh não! E aquele Kaldorei na fronteira de Khaz-Modan? 3.500 anos?! Eu estou pedindo arduamente para chegar aos 35...

 - A vida não é só isso, criança... – ela o olhou de cima abaixo.

 - Oh sim, porque o meu sonho é morrer lutando e voltar como um de vocês... – disse sarcasticamente.

 - Bem, se não houver opção...

 - Nem pense nisso! – disse ela enojada e voltando ao seu ferimento.

 - Algum problema com a minha estirpe?

 - Apesar de simpatizar com os seus e seus ideais, não me agrada ter um fim igual. Não consigo conceber a idéia de voltar como meu objeto de trabalho para outros necromantes me estudarem.

 - Diz isso, pois não sofreu na pele o que o Flagelo nos trouxe... – disse o mestre ainda desconfiado da opinião contrária da menina. A Sin’dorei riu alto.

 - Como se eu não soubesse... – olhando para seu próprio pulso.

 - Quatro anos são muita coisa, não é criança...? Carregando essa velha carcaça por aí, lutando contra esses malditos... O que você quer, Sorena Atwood? – ele perguntou diretamente para os olhos esverdeados dela.

 - Conhecimento é poder, caro mestre. Quanto mais eu aprender com teu povo, mais serei capaz de fazer o que quero.

 - Ambição válida para uma jovem tão pretensiosa... – respondeu ele. Um conselheiro chegou na sala em que esperavam na “prefeitura” de Brill.

 - As estradas estão perigosas esses dias. Uma escolta ia levá-los a Capital. – disse o emissário. – Espero que descansem da longa viagem... – indicando os soldados com montarias esqueléticas e reanimadas. Sorena esfregou os olhos para ter certeza do que estava vendo.

 - Não é possível...? É possível? – perguntou tocando em um dos cavalos reanimados reservados para ela.

 - É para isso que serve os feiticeiros em Undercity... – e dando um suspiro alto, ele espiou os estábulos. – Está vendo aquele ali? – apontando um cavalo com chifres e que fumegava pelo focinho e patas em fogo constante. – Dreedsteed. São conjurados de uma dimensão extra-planar. Difíceis de domar, mas poderosos aliados. Existem apenas dois lá em Undercity. O terceiro será seu, compreendido? – Sorena concordou animada, subindo no esquelético cavalo reanimado. Ficou a observar o cavalo diferente enquanto a escolta seguia lentamente para a Capital dos Abandonados.


Stormwind no mesmo instante, porto.

 - Protejam os refugiados!!

 - Catapultas!! Agora!! – Oxkhar acabara de acertar uma cria de dragão negro no focinho. Seu escudo entortara tanto que ele não mais suportava carregá-lo no braço. De todas as provações em sua vida, aquela era a pior, pois nunca previra que isso iria acontecer.

 - Mantenham o cerco!! Mantenham!! – muitos gritos vinham de todos os lados. E ele só conseguia se concentrar no choro tímido de um menininho machucado na praia. Um daqueles monstros blindados estava para chegar perto dele, mas Oxkhar foi mais rápido, sacou o seu martelo de guerra e com um golpe rápido esmagou a cabeça do aparentado dracônico. Sangue oleoso e malcheiroso espirrou em seu manto que usava por cima de sua armadura prateada da Ordem Sagrada. O menininho tentou correr para ele, mas outra cria de dragão o feriu mortalmente na cabeça. Oxkhar apenas assistiu a criança agonizar insuportavelmente de dor e morrer aos seus pés.

 - Recuar!! Recuar!!

 - Isso não está... certo... – um de seus colegas de Missão o empurrou para trás.

 - Vamos Ox!! Essas coisas estão se multiplicando!!


                Hrodi prendia bem o curativo de um bispo machucado na invasão. Ele olhava para os cantos e não achara seu filho.

 - Graças a Luz...

 - O que disse? – perguntou o bispo não entendendo o alívio de Hrodi.

 - Oh, nada não monsenhor... Vá ao clérigo Danto. Ele irá cuidar melhor de sua cabeça do que eu... – o bispo o abençoou com uma oração e se afastou. Stormwind estava uma bagunça. As muralhas da cidade estavam para cair e o pior vinha de dentro do Palácio. Katrana Prestor, a tão fiel conselheira do Rei Varian Wrynn era a traidora, uma dragoa negra, filha mais nova do terror de Azeroth, Asaletal. Anos e anos de servidão e ninguém percebera que a ameaça vinha de dentro. O pobre menino Anduin fora raptado e o pai vociferava contra conselheiros e soldados.

 - Pai? – uma voz familiar fez Hrodi se virar. Oxkhar acabara de chegar com mais refugiados das terras sitiadas por Onyxia. – Está tudo bem? – Hrodi concordou e indicou o Rei na sala mais a frente.

 - Tudo na medida do possível... – e com um suspiro aliviado, ele beijou o seu símbolo da Ordem no pulso. – Graças a Luz que Sorena não está aqui...

 - Pai... – Oxkhar tentou falar, mas o velho começou.

 - Você já pensou em como seria se ela estivesse aqui?! – esganiçou Hrodi com lágrimas nos olhos. – Já não basta eu recear de você não voltar no final do dia, imagina ela com seu temperamento?!

 - Sor era uma coisinha difícil de se manejar mesmo...

 - Mas tinha poderes mágicos...

 - Temos dezenas deles como ela lá fora e não adiantou muita coisa... – comentou o filho limpando seu rosto suado. – Tenho que ir, há mais refugiados vindos do Portão Sul. O Rei Varian pretende resgatar o príncipe imediatamente?

 - Ele irá invadir o Covil de Onyxia. Levará os mais valorosos com ele.

 - Eu irei! – Hrodi segurou a ombreira do filho.

 - Eu não deixarei!

 - Pai, esse é o chamado de nosso povo! Não irei permitir que esses monstros destruam tudo que tanto protegemos!

 - Ox, escute seu velho pai. Fique. Stormwind precisará de você mais do que você pensa. – um dos conselheiros se aproximou e tocou o ombro de Hrodi.

 - É hora. – Hrodi concordou e se afastou.

 - E além do mais, meu filho. Você é Oxkhar, o Piedoso. Não Hrodi, o Matador de Dragões! – exclamou ele sorridente indo com o conselheiro.

 - Seu velhote salafrário! Me enganou direitinho! – Oxkhar chutou o ar com certa irritação, mas teve que rir depois por toda situação. Ele realmente não serviria muito para matar dragões. Foi até os seus companheiros da Ordem Sagrada e todos estavam em silêncio, na pequena Capela dentro do Palácio. Oxkhar se ajoelhou assim como estavam seus companheiro e orou para que as defesas de Stormwind estivessem prontas para o que viesse. Levantando a cabeça para a abóboda no teto da capela, ele percebeu que uma rachadura fazia um raio de luz ser refletido em uma estátua ao fundo do cenário. O raio de Sol logo se dissipou e Ox se sentiu sozinho e desesperado. Lembrara de como sua irmã adotiva costumava cantar e dançar ridiculamente uma antiga canção infantil sobre um raio de sol. Caiu no choro em silêncio, esperando que algum milagre viesse do céu.


Nas ruínas do Palácio de Lordaeron.

 - Desculpe pela acomodação, criança. – disse o mestre ajeitando a sua cabeça no novo corpo. Era o seu original guardado na sua cripta. Sorena espirrou pela umidade do lugar, mas se ajeitou perto de uma fonte d’água no meio do conjunto de criptas de um imenso mausoléu dos Abandonados.

 - Tudo bem, melhor aqui do que lá fora com fantasmas de senhoras aflitas... – o mestre cutucava sua cripta e caixão. Jogou alguns objetos para ela, um manto pesado, algumas jóias e uma pistola de cano médio com uma baioneta acoplada abaixo do cano.

 - O que é isso? – o mestre mostrou a arma obra-prima.

 - Eu construí quando era jovem... – engatilhando a velha arma e mostrando como ela funcionava. – Foi minha primeira invenção como engenheiro...

 - Engenheiro...? Você era engenheiro?

 - De tudo um pouco nessa vida... – e abrindo a mão da aprendiz, depositou 3 balas pesadas de ferro na palma da mão de Sorena. – Munição dessa belezinha só pode ser feita por um alquimista competente. Se não tiver um por perto, improvise... – e se afastando da garota, empunhou a arma com maestria e acionou o gatilho em direção dela. Sorena gritou de susto e se abaixou, sem ter tempo de conjurar qualquer feitiço protetor. Derris riu e do cano da arma mediana saiu um ramalhete de flores fúnebres, arroxeadas e pálidas de cheiro marcante.

 - Isso não foi engraçado!

 - Só estou mostrando uma das utilidades de minha invenção... – e depois dando a arma para ela. – Não precisa de munição se você tem uma mente astuta. Para quê guardar aquelas pedras de poder nos seus feitiços? A sua sacola de viagem está cheia delas, inúteis. Coloque-as aqui... – mostrando o coldre vazio da arma. – E conjure seu feitiço. O efeito é bem mais canalizado do que esperar ele vir. Sem perigo de alguém impedir o efeito durante a conjuração.

 - E qual é o porém disso?

 - Sabia que essa minha aprendiz era muito esperta! – puxando a orelha dela de leve. – Após o uso, não tente usa-la novamente até o cano esfriar.

 - Por que não...? – ela disse examinando a engenharia da arma.

 - Você será lançada para trás como uma fruta podre...

 - Qual é a vantagem de ter essa coisa então???

 - Foi minha primeira invenção, certo? Estou te dando por consideração! Não reclame!

 - Tá... tá... obrigada pela arma mortífera... – guardando em sua bolsa de viagem (que pesou ainda mais). Ela recolheu as jóias e notou que algumas eram preciosas, um anel em especial era acompanhado por uma fina cota de escamas pequenas vermelhas. Ela colocou o anel no dedo médio do braço esquerdo e ajeitou a cota no braço, o tilintar das escamas chamou sua atenção. – Escamas de dragão... – disse ela maravilhada com a íris multi-colorida que as escamas produziam na luz fraca das tochas da cripta.

 - Ofertadas pelo Príncipe Kael’Thas Sunstrider após a Guerra dos Anciões. Bem antes de ele decidir pirar na batatinha e ir conversar com Nagas e feiticeiros mais pirados ainda que dão seus olhos por mais poder que conseguem agüentar... Cada uma que esses elfos me arranjam... – Sorena admirava as escamas enquanto seu mestre resmungava abertamente contra o pretenso Príncipe dos Elfos do Sangue e o Terrível Illidan dos Elfos da Noite. – Isso serve para muitas coisas... Ajuda em alguns feitiços também, e bem, no meu tempo fazia uma fogueira e tanto... – Sorena exclamou a palavra de poder para convocar chamas e a cota respondeu com um estampido leve e brilhante. Logo seu braço estava em chamas azuladas, ela riu do feitiço potencializado.

 - Oh puxa! Oh puxa!!! – estava extasiada pela magia aflorar da escama para seu corpo.

 - Ela canaliza magia de fontes naturais... Acho que sua incômoda tarefa de roubar dos outros está no fim.

 - Mas como é possível...? – o mestre assoprou outra palavra de poder e as escamas apagaram. Ela se assustou. – Um presente de minha esquecida irmã mais velha, acho eu... Não tenho muita certeza de minhas lembranças... O que foi que está tão pálida que o normal? Engoliu uma barata?

 - C-como o senhor fez isso?! Anular o meu feitiço...?

 - Sou bem mais poderoso que você, Sorena. Posso anular até a sua vida...

 - Isso é reconfortante... – disse ela decepcionada, colocando a cota na sacola. – Viu por que devo aumentar meu poder? Assim ninguém como você vai ousar anular meus feitiços quando estiver em uma luta...

 - O manto não me serve mais. Vantagens de ser morto-vivo, não preciso mais de sentir frio... – ela sorriu em agradecimento e vestiu o manto, sentiu-se confortável e segura, alguns bolsos internos tinham alguns objetos nada usuais, ossos de pássaros, dentes de animais, moedas desconhecidas e um dedal espetado por uma agulha dourada. – Oh, olhe só... Achei que havia perdido...

 - Mestre também é costureiro? – perguntou ela com um sorrisinho no rosto cansado.

 - Era de minha esposa...

 - O senhor teve esposa? – perguntou a garota interessada no dedal.

 - Costureira de Quel’Thalas... Não escapou do desastre, uma lástima... – disse ele tediosamente e perdido no objeto. – Mas bem, fique com ele, você sabe fazer algo com isso não? Há um armazém nos arredores de Brill, arrume alguma linha e conserte suas roupas, elas estão precisando. – Sorena não resistiu e abraçou o mestre. O Abandonado ficou aturdido pelo gesto e deu alguns tapinhas nas costas dela. – Tudo bem, demonstrações de carinho como essa também mancham a minha reputação...

 - Você tem sido um bom amigo, mestre. Não tenho como recompensá-lo a não ser pela minha fidelidade e confiança. – o morto-vivo a encarou. – E sim, eu sinto falta de abraçar alguém de vez em quando... – disse ela tímida para o chão, o mestre riu pela atitude, era a primeira vez que Sorena se mostrava emotiva desde que saiu de Goldshire.

 - Só não vá fazer besteira quando sair de minha tutela. Ainda tenho alguns feitiços para te ensinar quando você estiver pronta. – indo para seu caixão e deitando seus ossos renovados no tecido aveludado e negro. Antes de fechar a tampa do caixão de pedra, ele disse: - E se a curiosidade for maior, aquele corredor ali à direita leva à sala do trono... Eu teria cuidado com as sentinelas, estão bem precavidos ultimamente. – Sorena ficou sozinha com o baque da pedra do caixão. Não estava com sono, mas morria de fome por comida fresca. Verificou sua sacola e a ração estava mofando no fundo da mochila, bufou impaciente e deixou seus pertences escondidos na cripta do mestre, ajeitando sua cinta de couro ao manto pesado, ela tomou um longo gole da fonte de água límpida e se sentiu renovada. Voltou a circular o mausoléu, deliberando como iria aplacar a fome. Parou na frente da cripta do mestre e viu a placa mortuária, tocou-a tirando o excesso de poeira e teias de aranha.

 - Aqui jaz Sylvos Windrunner. – a jovem fitou a cripta de seu mestre. Mas por que ele estaria ocupando a cripta de outro alguém? E por que esse alguém tinha um nome familiar aos seus olhos? Bateu na pedra da cripta e tentou levanta-la, mas não tinha força suficiente. – Mestre Derris! Mestre, acorde! – mas o silêncio tomou o mausoléu. Indignada e revolvendo perguntas, ela saiu pelo corredor da esquerda, entrando em um complexo de canais de esgotos intermináveis e com cheiro levemente azedo. O lugar parecia um labirinto circular, e não havia ninguém para lhe informar sobre o caminho a seguir. Passou por alguns deles, mas não sentiu “vida” dentro deles. Objetos de decoração e tapeçarias enfeitavam algumas câmaras mortuárias, um outro corredor cheio de intricados labirintos a fez parar na hora. Se seguisse, se perderia, se voltasse ruminaria faminta pela noite com suas perguntas sem respostas. Sorena começou a ficar entediada e sentou-se em algumas escadas que levavam a um outro complexo. Bufou para cima e fechou a cara, como gostaria de comer o ensopado de galinha que a Taverna servia! Seu estômago reclamou, uma barata passou por ela, olhou bem para o inseto e pensou se serviria para preencher o vazio do estômago. – Na-não... – ela balançou a cabeça firmemente e colocou as mãos nos bolsos de seu casaco. Quando seu mestre acordasse, pediria para ajudá-lo a conjurar comida. Ou talvez transformar algo em comida boa e quente.

 - O que fazes aqui sozinha, novata? – perguntou alguém descendo as escadas com uma pilha de livros nos braços. Era uma Elfa do Sangue particularmente diferente de todo o resto que vira circulando pela cidade subterrânea. Usava um manto escuro com detalhes em runas de alguma língua perdida, a capa que se estendia até o chão era dourada e sobressaia no colarinho como um protetor de nuca. Sorena achou a roupa um tanto exótica, até mesmo para alguém que nunca havia visto uma clériga na sua frente. – Perdeu-se na Grande Undercity?


 - Não, estou apenas descansando.

 - Oh sim, um belo lugar para se descansar. – algo muito pesado e brilhante esbarrou ao lado de Sorena quando a clériga passou por ela. – Pode me ajudar aqui? Conhecimento é pesado. Ainda mais quando está enfurnado dentro de livros pesados. – Sorena pegou alguns livros dos braços da clériga e caminhou atrás dela para que não se perdesse. Tropeçou algumas vezes nas fissuras do chão de Undercity, mas ao ganharem o caminho para um corredor circular e extenso, a clériga se virou com dificuldade. - Seria você a aprendiz de Derris? – Sorena não sabia o que responder, não poderia confiar muito no que eles haviam de falar. A clériga sorriu cinicamente. – Sou Imladris, e já pertenci ao seu povo na outra vida. Agora pertenço aos desígnios da Dama Sombria.

 - Ahn? Outra vida? Você está morta... também? – a clériga sorriu novamente e suspirou orgulhosa.

 - Oh tanto a aprender esses novatos... – Sorena sentiu seu coração querer sair pela boca por ver que realmente havia mais como ela daquele jeito. Se tudo indicava (E se fosse esperta suficiente), a clériga a sua frente era uma deles, uma dos Abandonados. Mas nem parecia! Parecia estar na flor da idade, com seus cabelos tão loiros que confundiam com a pele pálida. E as orelhas! Pela primeira vez que saiu de casa, Sorena se sentiu confortável com aquele par de orelhas pontudas apontadas para o teto. E de certa forma eram graciosos, eram marcas de alguma coisa que a aprendiz de feitiçaria ainda não sabia identificar. - Mas deixe-me ajudar. Procura algum lugar para descansar melhor? Acima dos Canais... – apontando para o complexo de esgotos e depois para uma escada mais a frente. – Há o Sr. Rasn que cuida de nossos “hóspedes”, se é que são hóspedes, a maioria vem do Sepulcro ou de Tarren Mills... A única coisa que eles necessitam mesmo é de um belo caixão e olhe lá... – tagarelava a clériga. - Lá, você poderá encontrar algumas coisinhas para se alimentar direito, mas não compre aquele suco de melão, faz um mal danado se você tomar com estômago vazio e os cogumelos! Não compre daquele salafrário do Jeremiah debaixo das pontes no Hall principal! Ele saberia embromar você direitinho novata...

 - E-eu não estou com fome...

 - Novata, eu posso escutar o seu estômago roncar lá do outro lado do Canal... – ela disse apontando para atrás dela. – Ali é o Apotecário Real, onde os nossos se encontram... – indicando ela com a cabeça. Ela não entendeu. – Derris é membro do Apotecário. Se você é a aprendiz dele, quer dizer que é bem-vinda ao nosso espaço de aprendizado. – ela agradeceu com uma reverencia confusa. – Mas eu creio que você queira saber onde é que esses túneis todos levam, não? – ela concordou. – Um deles vai para o Norte, onde a terra castigada está. Lá é perigoso para aventureiros inocentes, eu não me atreveria a sair sozinha por aí sem um cara bem grandão e forte para me proteger enquanto lanço meus pequenos feitiços. E bem, atrás do Apotecário é a Sala do Trono. Será um pouco difícil de achar, mas os guardas indicarão o caminho. – Andaram mais um pouco e subiram uma pequena escadaria que levava para um pequeno cubículo que servia de moradia para Imladris. Abaixo dele havia a sala de preparação dos Clérigos e aprendizes de Magia. Sorena percebeu na decoração amontoada do cubículo, cartazes e bandeiras cobriam as paredes do quarto, a pequena cama encostada na parede oposta estava amontoada de livros e alguns mantos parecidos com aquele que a clériga usava. Os tocos de vela se espalhavam igualmente pelo chão, em cima de uma escrivaninha comida por cupins e em um armário de quinquilharias e potes do lado direito de quem olhava vindo da porta. Imladris recolheu os livros dos braços de Sorena e os jogou em cima da cama, separando um em especial e levando consigo debaixo do braço. A pequena elfa percebeu o que era a coisa brilhante e pesada que balançava ao lado da clériga: uma maça de base feita com material arroxeado, mas de brilho intenso. Achou um absurdo ela carregar aquele peso, mas pelo jeito que Imladris andava, a maça poderia nem pesar tanto assim.

 - M-meu Mestre pediu para eu não me afastar muito da cripta. – a clériga chiou algo em seus pulmões.

 - Bem, não tenho muito que fazer agora. Não deixei o “caldeirão aceso” como eles falam por aqui, mas acho que posso te levar a Sala do Trono. Eu adoro andar por lá, fabuloso! – e de repente ao exclamar a última frase, a clériga se encolheu timidamente olhando para os lados.

 - O que foi?

 - Eles podem me ouvir...

 - Quem?

 - Meus mestres... Eles não gostam muito quando eu me empolgo... – e dando de ombros. – Também não gostam quando eu visito demais a Sala do Trono. Sinceramente acho que eles não gostam muito de qualquer coisa, então... – o estômago de Sorena roncou novamente. - Até chegarmos lá, mandarei alguém buscar uma bela provisão para você.

 - N-não precisa, e-eu...!

 - Acredite! O seu descanso será bem mais aproveitado na Sala do Trono. Eu já disse o quanto aquele lugar é lindo e fabuloso? Eu passaria meus dias definhando por lá, se é que você me entende... – curiosa como estava, Sorena ficou atrás da clériga, observando cada detalhe da construção subterrânea. Ela contava como aquele complexo de túneis fora feito em gerações anteriores pelo Rei Terenas de Lordaeron, como as Guerras atingiram a superfície e como a população se abrigou do Flagelo naquele lugar. – Mas nem tudo é protegido, criança... Alguém dentre os humanos traiu a confiança do Rei. Seu próprio filho, Arthas. Virou-se contra o pai e seu povo, tomando as rédeas do Flagelo para si e dizimando as terras tão prósperas de antes.

 - O mesmo Arthas que invadiu Quel'Thalas? – a clériga sorriu novamente e fez o mesmo chiado.

 - Oh, alguém que sabe da invasão a Silvermoon? Sim, sim, péssimas lembranças...

 - Desculpe, eu não queria...

 - Não se desculpe, novata. Todos nós devemos saber quem é o verdadeiro inimigo, não? - Com uma lufada de ar quente bafejando em suas costas, Sorena ouviu uma voz ressonante e distante em um determinado túnel. A clériga seguiu por aquele lugar. – Arthas foi o Grande Traidor dos humanos, mas o nosso era Dar'Khan. – estremecendo ao dizer o nome. – O desgraçado encontrou seu fim no bafo de um dragão, pelo que as notícias contaram. E olha que dragões não costumam fritar elfos por aí... Ele mereceu o que teve, sim, sim... – a elfa mais velha ia tagarelando até atingirem o final do túnel. Sorena ofegou ao vislumbrar a sala do Trono. Era tão enorme do que qualquer lugar que já esteve na vida, os vitrais na abóbada do teto eram coloridos e refletiam das tochas bruxuleavam nos cantos e dezenas de pessoas passavam por ali, consultando seus superiores, falando umas com as outras, e principalmente ouvindo as aias banshees da Dama Sombria cantarem uma canção lamuriosa em língua desconhecida. – Oh chegamos na hora certa. Ouvir as aias da Dama Sombria é um privilégio para poucos, novata. Fique, sente e escute. Aprenderá muito mais assim do que consultando pergaminhos em uma estante velha. Eu é que o diga... – a clériga afastou sua capa e sentou-se na escadaria, abrindo seu livro e consultando algumas páginas como se tudo ali ao redor fosse a coisa mais trivial do mundo. Sorena não sabia o que fazer. Nunca vira uma banshee na vida, nem aquelas coisas estranhas, remendadas, cheias de pedaços ali no canto do salão, nem vira orcs andando livremente (Apenas aqueles mortos e derrotados nas fronteiras de Goldshire), muito menos um ser absurdamente enorme e com asas abertas rosnando ordens para alguns que passavam por ali. Mesmo com a impressão de que a criatura desconhecida era maléfica e poderia fazê-la em pedacinhos só com um olhar, a elfa estava hipnotizada pela canção ao fundo. Suas pernas tremiam a cada passo tímido que dava em direção ao pequeno público perto do trono da Rainha Banshee, ajoelhou-se no tapete estendido no chão e ouviu atentamente. Com a garganta engasgada de emoções desconhecidas, ela fitou o trono tão sombrio e descascado da Rainha e voltou-se para as banshees. Por um momento achou que iria morrer por falta de ar ao ver que a figura da Dama Sombria estava à espreita na escuridão da Sala do Trono. Parada com um dos seus servidores observando cada intruso que passava por ali com seus olhos avermelhados opacos, obstruídos pelo pálido da morte, os cabelos prateados cobertos por um capuz preto, a roupa tão sombria quanto a dona. Por um momento os olhares se encontraram, o investigativo mortífero de Sylvanas e o curioso angustiado de Sorena. A mais nova mordeu os lábios para não deixar uma exclamação de dor sair de sua garganta, havia reconhecido a verdadeira Rainha. Era a mulher triste de seus sonhos de criança.

                Após ouvir a canção, a clériga Imladris tocou seu ombro com delicadeza. Em uma de suas mãos estava uma trouxa de pano de cheiro forte. Sorena identificou o aroma de carne defumada na hora.

 - Oferta do Apotecário. Somos solidários com aqueles que já foram vítimas do Massacre. Coma, novata, vai te fazer bem.

 - M-mas eu...

 - Não discuta. – Sorena obedeceu, mesmo se o pensamento mórbido da carne estar envenenada passasse em sua mente o tempo todo a cada mordida que dava. O naco estava delicioso, no ponto certo para se sentir todo o sabor, levemente salgada e com um toque de tempero caseiro, talvez orégano ou uma especiaria exótica, ela sabia reconhecer certas coisas, passara um bom tempo na cozinha da Taverna do Sol, observando o cozinheiro Yzilder fazer a comida com o seu pai Hrodi.

 - O-obrigada... – ela agradeceu ao terminar de comer, seu estômago farto e seu corpo mais revigorado. – Qual massacre você fala? Não me lembro de ter lido isso nos anais de Stormwind...

 - Eca! Você leu sobre isso em Stormwind? – e a clériga virou para um pequenino orc ali perto – Temos bases perto de Stormwind? – ele negou a informação. – Como você sabe sobre a gente? Da onde você veio?

 - E-eu... eu...

 - Você nasceu em Storwind? Mas nenhum Elfo do Sangue jamais viveu em Stormwind! – e pegando a cabeça de Sorena e fazendo um exame em suas pálpebras e língua e ouvidos, ela sentenciou. – Você não é um Alto-Elfo nem aqui nem em Booty Bay, então desembucha logo!

 - Eu nasci em Goldshire... – a clériga fez uma cara de asco mais feia.

 - Você vivia com humanos...?

 - S-sim, mas...

 - Você sabe quem é a tal da Jaina Proudmoore?

 - N-não... Mas conheço Karin, a Arqueira...

 - Você nasceu na cidade mais problemática de Azeroth depois de Darnassus.

 - O que é Darnassus? – perguntou a mais nova timidamente, a clériga pulou no lugar.

 - Pela Luz que me ilumina! Você não sabe onde é Darnassus? Ainda bem!

 - Eu nunca saí de Goldshire... Só uma vez que fui a uma Caverna perto da Floresta Elwynn e... – o mesmo orc baixinho (que não era um orc, mas sim um goblin, mas Sorena mal sabia o que um goblin era.) exclamou algo quando chegou perto dela.

 - Yiiircs! Outro deles? O que querem dessa vez?

 - Nada que seja de sua conta, Halfni. A novata está de passagem, veio com Derris. – explicou Imladris.

 - Derris e suas andanças. A Dama Sombria não tolera esses...

 - Algum problema aqui, clériga Imladris? – perguntou a criatura enorme e com asas. Sorena se encolheu na parede só de imaginar que aquilo ali era realmente um demônio!

 - Nada, Lorde Varimathras. Uma hóspede, apenas isso. – a clériga abanou as mãos em um gesto ansioso. Sorena tremia de medo, Imladris de expectativa.

 - Hóspede? – dando uma olhada mortífera em Sorena. – Parece-me mais um ratinho saído de Silvermoon. O que ela faz aqui? Procurando aventuras, menina elfa? – a garganta de Sorena travou novamente e seu corpo engelerou. Era mesmo um demônio! Podia sentir isso em suas veias, pulsando como um vício irritante, o poder que ele exalava era maior que qualquer criatura que já tenha visto. – Responda! – ordenou Varimathras.

 - Ela não é muito de falar, Milorde... – desculpou-se Imladris e com um gesto rápido cutucou Sorena nas costelas para que ela respondesse qualquer coisa... – Diga de onde você veio, aprendiz de Derris... – Sorena tentou abrir a boca, mas a Rainha Banshee desceu os degraus do elevado para seu trono e lançou um olhar de puro desprezo a todos ali. Todos se curvaram em reverência, menos Sorena, ainda paralisada pelo medo.

 - Derris voltou com algum resultado? – perguntou ela em voz espectral. Só aquilo deixou os joelhos de Sorena bambos, se curvou inutilmente aos pés da Rainha. Pés que estavam descalços.

 - Infelizmente não sabemos, milady. Ele repousou após a sua chegada. – respondeu Imladris de cabeça abaixada.

 - Tolo inútil... – ela praguejou olhando para a mão suja de carne que Sorena não tivera tempo de ocultar. – E o que essa criança faz aqui?

 - Era exatamente isso que eu perguntava, minha Dama. – disse Varimathras sutilmente. A clériga sorriu e respondeu polidamente.

 - É ela é a aprendiz de Mestre Derris, talvez lhe indique a sorte de nosso Apotecário. – Sylvanas chiou impaciente e voltou ao seu trono, sentou-se sem pomposidade alguma e colocou um dos braços apoiado no encosto da cadeira, segurando o queixo com ligeiro tédio. Varimathras espetou as costelas de Sorena com uma de suas garras e a obrigou a ir até onde a Rainha estava.

 - Todos para fora, AGORA!! – gritou Varimathras. Todos ali presentes se arrepiaram em temor ao General dos Exércitos dos Abandonados, Conselheiro Fiel da Dama Sombria. A clériga Imladris deu um breve aceno com a mão e saiu apressada com seu livro. Logo a Sala do Trono estava vazia, restando apenas a Rainha, Varimathras e Sorena, olhando apavorada para os lados e algum meio de escapar.

 - Fale. – ordenou Sylvanas entediada em seu trono. Sorena estava confusa e sentindo a carne tão bem degustada girando em seu estômago. – Fale, menina, não tenho tempo para... – Varimathras iria falar algo para admoestar o silêncio de Sorena, mas Sylvanas lançou um olhar para ele. O General se afastou do elevado e saiu por um dos túneis. Sorena respirou aliviada, todo seu temor pareceu dissipar ao ver que aquela criatura não estava mais ali, mas ainda havia o medo pela Rainha dos Abandonados. Medo e curiosidade. – Você não sabe de nada que seu mestre fazia lá fora, não? – Sorena concordou. – Nem sabe por que está aqui?

 - E-eu... – sua voz saiu esganiçada e trêmula. – Eu só queria saber mais sobre... – o silêncio que se seguiu fez Sorena mexer as mãos nervosamente. Coçou uma das mãos com tanta força que brotou arranhões nas costas da mão coçada.

 - Diga como está Silvermoon...

 - Silver o quê?

 - Silvermoon! Sua cidade, sua tola! – Sorena sentiu que a carne dera pontadas dentro de si.

 - E-eu não sei do que Vossa Majestade fala...

 - Oras!! – vociferou Sylvanas se endireitando no trono comido por cupins e mofado nas almofadas. – Você veio de Silvermoon! Como ousa não me informar como está... – a Rainha silenciou quando ouviu o choro contido de Sorena.

 - Eu não sei o que é isso... Eu não sei, eu juro que não sei... – a menina elfa ajoelhou-se aos seus pés e baixou a cabeça em servidão. – Eu não sei, minha Senhora, não sei... – repetia desesperadamente. Sylvanas compreendeu de imediato, a menina estava apavorada com tudo ali. E quem não estaria?

 - Não há motivos para chorar. – e olhando para qualquer lugar menos para a incrível semelhança de Sorena com seu próprio rosto, Sylvanas voltou a se largar no trono. – Se não vens de Silvermoon, de onde vens?

 - Goldshire...

 - Goldshire de Stormwind?! – a Rainha sussurrou em resposta. – Estás mentindo, criança tola?

 - E-eu jamais mentiria, minha Senhora! – devolveu Sorena ainda com lágrimas em seu rosto. – Hrodi é meu pai e minha mãe era Maeline, morreu quando me deu a luz. – mentiu Sorena para apaziguar suas memórias familiares.

 - Como ousa dizer-me tal disparate?! – a Rainha se lançou contra ela, pegando seus ombros e a sacudindo energicamente. – Retire o que disse! Retire o que disse agora mesmo!

 - Não! Não! – revidou Sorena tentando fugir daquela agressão sem motivo, uma das portas da Sala abriu, Derris subiu em passos apressados e empurrou Sorena de lado, enquanto com a outra mão segurava as vestes de Sylvanas.

 - Sylvanas, está perdendo a razão! – sussurrou ele para a Rainha.

 - Nosso passado nos condena mais que os sábios predisseram, seu tolo inútil! Olhe bem para ela! Não vês? Não reconheces?

 - Não importa agora! Nada disso importa agora! – Sorena se recuperou do impacto da discussão e empurrou Derris na altura do peito, o jogando contra Sylvanas.

 - Deixe-me em paz!! – ela gritou descendo as escadas e correndo o máximo que pode para a direção do Apotecário Real. Chorava muito quando alcançou a ponte vazia aquela hora, atravessou alguns túneis e chegou ao andar de cima do subterrâneo. Muitos olhavam para ela, muitos a vigiavam. – Diga-me o caminho para a superfície, por favor? – perguntou ela mais resolvida de seus passos. Um guarda descarnado indicou o elevador mecânico para a sala do trono de Lordaeron, ela nem agradeceu subiu em direção ao lugar apontado e tomou o rumo para fora daquele covil. Ao atingir a superfície, ficou estupefata. O antigo palácio estava bem pior que lá embaixo. As ruínas cobriam toda a parte. Acomodou-se debaixo de uma escadaria larga e seca. Enfurnou-se no manto ofertado pelo mestre Derris e fechou os olhos. Seu corpo convulso no choro silencioso não chamou atenção de ninguém ali, nem que soubessem, não havia ninguém nas ruínas para atormentá-la.



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