Shindu Sindorei - as Crianças do Sangue escrita por BRMorgan


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Por alguma razão bizonha, decidi traduzir os nomes conforme o mangá lançado no Brasil.
Se estiver estranho, favor me dizer, aí eu volto com o nome original.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/20900/chapter/3

 

Em algum lugar perto de Tirisfal Glades, quatro anos depois.

 

O estrangeiro feiticeiro Abandonado havia derrotado uma das bestas cruéis que infestavam. O calor da batalha cansara o Feiticeiro Abandonado, ao seu lado uma menina elfa revirava a pilhas de corpos de servos maléficos da besta. O mestre Derris se sentia exausto pela empreitada, já estava decrépito demais para aventuras como aquela, mas por alguma razão que Sorena não entendia, ele perseverava na campanha. Insistia em manter seus poderes ao limite, cobria o espaço pestilento das cavernas com seus servos reanimados. Se fosse questionada tempos atrás se gostava de seguir um esqueleto como ele, Sorena diria que odiava, mas por outra razão que ela não entendia direito, Sorena agora apreciava cada momento passado ao lado do seu mestre.

                Derris era direto, frio e deveras sarcástico. Matava seus inimigos como quem matava uma mosca, reanimava os mais fortes e os tratava com indulgência. Percebia que tinha carinho com o golem de fogo que os protegia do frio e do perigo durante as investidas dentro das cavernas e ruínas de lugares antes históricos em Azeroth. Às vezes o Abandonado lembrava de sua juventude, comparava a força de vontade de Sorena a sua própria, e muitas vezes a deixava experimentar o prazer do poder do Ocultismo. Sorena ainda portava sua adaga roubada das arqueiras de Karin, mas pouco a usava. Quando se viu cercada de monstros de aparência indizível, ela empunhou uma foice danificada pelo tempo e decapitou um daqueles terríveis. A sensação fora tão prazerosa, que Sorena pensara que enlouquecera. Mais corpos enfileirados no chão escuro e sanguinolento da caverna e quando se deu conta, já estava frente a frente com o maldito que comandava o lugar. O primeiro golpe foi rude, atingiu o estômago do demônio e vísceras saltaram do corte, caindo em seus pés e empestando o lugar com mais podridão. O Mestre Derris estava bem ocupado conjurando seu golem e carbonizando qualquer animal imundo que se aproximasse. Foi a primeira grande matança de Sorena e ela se sentia extremamente orgulhosa.

                Com outro golpe precisamente calculado, ela atingiu o ombro do monstro, mas sofreu um ataque furtivo de pequenos demônios administrados por um xamã perverso. Sem conter o ódio da dor e o prazer da luta, Sorena libertou-se dos seus temores e de seus preceitos. O espírito tão cerrado dentro de seu peito tomou forma, um cadáver ali perto explodiu com tanta força que atingiu os inimigos por perto e assim seguiu-se sucessivamente.

                Derris estava em apuros, suas forças estavam minadas com o golem de fogo, os servos mortos-vivos não sobreviviam muito aos ataques, sem contar que a sua cabeça estava descolada de seu pescoço.

 - Larápios de uma figa! Verão o que é mexer com um Abandonado!! – gritava ele para os que o cercavam. Risos e gargalhadas no meio de sangue, fogo e magia, Derris via-se no limiar de todas as coisas, no momento entre matar ou morrer, entre manter o Equilíbrio que sua feitiçaria prezava e tanto lutara para manter, Sorena o auxiliava e deixava seu espírito mais livre para a magia Oculta.  – Use seu Roubo de Magia, menina! O grandão vai ficar tonto só com isso! – ao receber a ordem de seu mestre, Sorena concentrou bastante energia mística na mão e com movimentos rápidos, se esgueirou atrás do monstro e com um breve toque de sua mão na pele enrugada, enquanto o velho o mantinha preso a um feitiço enfraquecedor, o demônio se debatia e blasfemava em todas as direções. Sorena se aproximou do ser corpulento e ativou seu poder de drenar a energia vital. Para acabar com o tormento, um golpe rápido de foice separou a cabeça do monstro, que rolou e espirrou sangue no manto do velho Derris, o manchando para sempre.

 - Oh cripta maldita em que acordei um dia...

 - O que foi Mestre? – perguntou Sorena empolgada com o que havia conseguido do demônio.

 - A minha cabeça... O corpo não vai agüentar ela não... – Sorena se aproximou do Mestre e com um jeitinho carinhoso, desamarrou a linha que costurava o resto de pele decomposta do pescoço do corpo que o mestre havia pegado emprestado. Com mais cuidado ainda, ela deu um nó bem apertado e verificou se a cabeça do mestre estava para frente. – Por que acho que isso não é torcicolo?

 - Está tudo bem, só ficou um pouco... torto...

 - Belo dia em que acordei naquela cripta maldita... – resmungou ele ajeitando suas vestes e olhando bem para os espólios espalhados no chão. – Está esperando o quê?! Pegue o que for de interesse! – a elfa do sangue bateu continência e com um sorriso largo no rosto machucado saiu atrás de tesouros nos detritos. Ela encontrou uma runa em um baú nas tendas que vigiavam a entrada da caverna. A primeira Soulstone de Sorena foi para dar vida ao seu primeiro Voidwalker, demônio interplanar que obedecia quem o conjurasse. Com uma ajudinha de mestre Derris para poder dominar o servo, mas saiu vitoriosa na dominação.

 

                Açoitados pela chuva que não cessava na parte Oeste de Tirisfal Glades, foram obrigados a se abrigarem em uma fazenda abandonada em uma das estradas que iam para a grande Capital de Lordaeron, agora reduzida a ruínas e mortos-vivos. O Voidwalker fez uma limpa na fazenda e arredores, caçando qualquer ameaça que pudesse incomodá-los durante a noite. Mestre Derris não dormia ou comia, mas às vezes parecia se desligar do mundo e sentado ficava em silêncio por horas. Era nessas horas que Sorena se sentia a única elfa do sangue ali naquele lugar hostil e assombrado.

                O fantasma de uma menininha com cabelos claros e amarrados em uma trança longa deu um breve olá para ela. Ela não se assustou tanto quanto costumava, tentou parecer segura de si e deu um olá de volta. O ruído da respiração de seu Voidwalker atrapalhou o começo da conversação, a menininha desapareceu e só sobrou o imenso campo de milho que outrora existira. A noite se aproximava lentamente com as densas nuvens de chuva. Sorena bufou para o céu nublado e olhou para seu Mestre, inerte, sentado com as pernas cruzadas, a cabeça levemente tombada para o lado e a mandíbula costurada a um fio de cair. Ela pegou um dos biscoitos que roubara de um viajante e mastigou-o bem. Voltou a olhar o céu, suspirou. E uma vontade estranha de chorar veio em seu coração. Sentia falta de casa. Sentia muito por deixar todos para trás e seguir o que seus sonhos diziam: “Encontre-me em Tirisfal Glades”. Finalmente chegara e até agora não soubera o que o destino reservara para ela. Mestre Derris a ensinara sobre muitas coisas, mas quando ela mencionava essa tarefa, ele logo mudava de assunto.

                O Voidwalker encostou um de seus grilhões em seu ombro, ela não se assustou, pouco assustava a ela agora.

 - Tudo bem aí? – ela perguntou já sabendo que o ser não entenderia o que ela falaria. Ele respondeu com um ruído baixo e gorgolejante. – Você parece bem... – e olhando lá para fora. – Desculpe se não posso te deixar descansar. – mostrando a Soulstone que carregava em uma bolsinha na cintura. – Mestre Derris acha que não sei me cuidar sozinha nas redondezas... – e ela riu um pouco para si. – E não sei mesmo. E não gosto de ficar sozinha, você entende? – o Voidwalker a encarou com os olhos vazios. – Certo, não está mais aqui quem falou... Vocês são tão temperamentais! – se encostando na janela e observando as nuvens de chuva irem devagar no céu.

                Sem querer adormeceu. O Voidwalker estava ao seu lado, ela sabia, ele deixava uma impressão mágica por aonde ia. A tranqüilidade do sono a atingiu por completo e ela sonhava com sua infância em Goldshire, com dezenas de árvores enfeitadas com lâmpadas coloridas e tendas de feirantes por todo caminho para Stormwind. Nas encruzilhadas, abóboras enormes com velas embutidas dentro de seu miolo oco mostravam o caminho para os viajantes. Sempre desenhavam coisas nas abóboras e alguns mais generosos deixavam doces e brinquedos dentro delas. Sorena gostava de sair de noite com seu pai e Ox para pregar peças nos vizinhos e viajantes, e sempre conseguiam rir muito ao assustar alguém com a fantasia de troll montanhês que seu pai guardara. Ox era forte para sua idade e ela subia em seus ombros, assim os dois vestiam a enorme capa de couro fino cheia de remendos e buracos para os olhos esverdeados de Sorena. Apenas aquilo assustava os visitantes, os olhos de Sorena brilhavam na menor luz que os iluminava. Seu pai Hrodi pegava muitas maçãs no caldeirão das Arqueiras e ganhava toda competição de tiro-ao-alvo com facas. Ela estava ali mesmo, em uma das encruzilhadas, abrindo o tampo de uma abóbora e espiando para dentro se havia alguma surpresa, o grito agonizante de uma mulher a fez cair de costas no chão de pedras de Goldshire.

 - Hey! O que estão fazendo aqui?! – exclamou alguém sacudindo ela pelo braço. Sorena acordou em alerta e o Voidwalker respondeu com ataque súbito no esqueleto maltrapilho que entrara na casa sem ser notado. Seu Mestre já estava a postos, feitiço nas mãos e rosnando por ser acordado de sua “meditação”.

 - Maldição Nathanos!! Precisava nos assustar?!

 - Estou procurando você há dias!! – a gritaria fez o humor de Sorena piorar. Sair de um sonho bom e encontrar uma realidade bruta era o que mais odiava naquela nova vida de Feiticeira-mirim. – Aonde pensa que vai humana? – o Voidwalker que respondeu com um golpe rude na capa do Abandonado Nathanos Brightcaller.

 - Sorena, contenha-se. Conheço o sem-educação aqui...

 - Estarei lá embaixo... Estou com sede...

 - Você vai deixar essa humana sair assim?

 - Seu idiota desprezível! Ela é uma elfa do sangue, não vês?! – dando um safanão no corpo pútrido do Campeão de Undercity. – O que quer? – puxando seu corpo do chão e vigiando os passos de Sorena lá fora no campo. O Voidwalker estava em seu encalço.

 - A Dama Sombria exige seu relatório.

 - Só para isso que você armou esse escândalo?

 - Escute aqui, carcaça ambulante. Se minha posição superior te incomoda, explique isso a Nossa Rainha! – bradou Nathanos com a mão no punho de sua espada. – Não sou o Campeão por escolha popular! Fiz muito pela nossa cidade e pelo nosso povo.

 - Enrole logo essa sua língua, Nathanos, não quero saber se você tem méritos ou não para ter tal título.

 - Bem, isso vindo de você só pode significar uma coisa: Ciúmes e inveja.

 - Ooooh temos um vencedor no concurso de insanidade!

 - Você me inveja por eu ter ganhado mais reconhecimento. A Dama Sombria é sábia e sabe quem são os leais combatentes dos Abandonados. – Derris balançou o braço pouco se importando. – Ela não confia mais em você Mestre Derris. Não depois da acusação séria que fizeste contra Apotecário Putress... Um de nossos mais brilhantes estudiosos!

 - Como você mesmo disse: Devo explicações apenas para a própria Rainha. – e apontando uma adaga para o nariz do Abandonado. – A menina irá subir em alguns minutos. Não quero uma palavra sua sobre minha missão em Stormwind ou qualquer outra coisa vinda de Undercity. Se ela souber, tudo estará perdido!

 - Certo, certo! Seja lá o que essa sua mente corroída por traças esteja planejando... – e se afastando para descer as escadas, ele quase trombou com Sorena. – Estarei aqui embaixo Mestre Derris. Escoltá-los-ei a Undercity.

 - Para onde? – perguntou Sorena tomando um bom gole de água de seu cantil.

 - Da onde você tirou isso?

 - Havia um poço lá atrás. Fiz todo procedimento, sem neurose. – bebendo mais. – Para onde vamos? E quem é o mal-encarado decrépito?

 - Undercity. O enjoado é Nathanos Brightcaller. Voz de galã, mas é um belo almofadinha.

 - Whoa, eu sinto ciúmes no ar...

 - Ele é um desgraçado cheio de si. Merecia ter todos os órgãos arrancados pelas narinas.

 - Acho que ele não sentiria dor se isso acontecesse. Vocês sentem dor?!

 - Claro!

 - Oh sim, porque você demonstra tanto...

 - Sou um Feiticeiro, não posso me dar ao luxo de demonstrar dor. Dor é para os fracos de espírito.

 - Certo.

 - Certo o quê?

 - Anotando essa para revisar posteriormente.

 - Vamos logo, não quero ficar muito tempo ao lado do ignóbil lá embaixo. – indicando as escadas com a mão.

 

                Um vulto sombrio e veloz passou por eles e atingiu o maior no braço, a flecha se instalou no flanco do ombro e a clavícula.

 - Oh maldição! Odeio quando isso acontece! – exclamou ele com a voz tediosa. Outro gritou uma palavra de poder, mas sucumbiu ao choque provocado pela magia de drenar forças que a elfa do sangue Sorena Atwood conjurou.

 - Tudo bem, eu conserto depois...

 - Conserta o quê? Não há nada pra me consertar aqui! – até mesmo nos gritos o ser disforme e decomposto parecia entediado.

 - Olha só, outro ali! – e quando o cadáver mutilado de Derris virou-se para encarar o inimigo, teve a cabeça decepada.

 - Oh maldição... – disse quicando pelo morro e a elfa correndo atrás. A criatura convocada por Sorena estava ocupada, fritando os miolos do grupo de cadáveres animados pelo poder do rei Lich. O Campeão de Undercity Nathanos Brightcaller estava muito ocupado fatiando mais carcaças reanimadas pelo Flagelo mais a frente na estrada.

 - Onde você está? – gritou Sorena olhando ao redor.

 - Atrás de você... – disse o mestre Derris. – Cuidado aí, não pise em mim, oras... Toda vez é a mesma coisa... Não posso nem possuir o corpo de um desgraçado que isso acontece... Será que é outro tipo de sina em meu destino? Não poder jamais ocupar um corpo novamente? Viver como um...

 - Você fala demais, mestre Derris...

 - ... uma cabeça decepada lazarenta que não compartilha do aconchego mútuo de um corpo pronto para servir a razão... – a jovem Elfa do Sangue o olhou curiosa.

 - Você pode ficar com o meu corpo quando eu morrer!

 - Generoso de sua parte, cara aprendiz, mas não necessário. Eu não macularia o seu corpo perfeito com o Flagelo. Além do mais... – sendo colocado na bolsa de viagem dela e cuspindo um pouco do musgo e capim que havia entrado na boca decrépita remendada no rosto com pregas de metal. – Se souberem que ocupei o corpo da filha de Serenath e Sylvos, me matariam... Novamente... E outra vez... Bem, que seja...

 - Você fala tanto deles, mas não me parecem grande coisa...

 - Eu bateria nessa sua cabeça oca se tivesse um braço agora... – Soren riu com a repreensão do seu mestre de magia. – Seus pais eram exemplos na nossa comunidade. Defenderam a cidade dos Elfos da Ameaça Rubra.

 - A cidade daquele cara que deixou todos para morrer?

 - Não falo essa! Essa veio depois de Quel’Thalas.

 - Quel o quê? – o Abandonado fez um silvo de impaciência.

 - Digo a cidade antes do Flagelo chegar a essas Terras. Quando a Floresta Eversong cobria toda a extensão do Leste de Lordaeron, quando... Você nem está prestando atenção, não é?

 - Tou prestando atenção no carinha mal-encarado ali na frente. Ele sabe lutar.

 - Não chamam ele de Campeão de Undercity por nada...

 - Campeão? Tipo, ele ganhou alguma competição? – a cara de Derris dentro da sacola foi irritada.

 - Campeão da Dama Sombria. Apenas os melhores combatentes são escolhidos a dedo pela Dama Sombria para serem os Campeões.

 - Quem escolhe o quê?!

 - A Rainha dos Abandonados, a minha Rainha!!

 - Imagino o bem que ela faz aos seus… Dizem que ela é uma banshee azulado enfurnada nas catacumbas de Undercity...

 - É esverdeado e ela é linda de se admirar. – repreendeu Nathanos limpando a espada. – Você deveria respeitar os poderes da Dama Sombria. Não ensinou isso ao seu bichinho de estimação não Derris?

 - Bichinho de estimação?! – o Voidwalker gorgolejou algo rude em língua demoníaca. Sorena cruzou os braços e olhou para seu mestre. – Eu não sou seu bicho de estimação! – Derris pediu para ela ficar calada.

 - Eu tenho as minhas razões, assim como todos nós temos as nossas. E as nossas são importantes para a razão dela, entendeu?

 - Ahn, não...?

 - Crianças... Se você fosse mais velha entenderia...

 - Se eu fosse mais velha, eu não estaria aqui com você agora...

 - Não me responda! – o Voidwalker estava ao lado deles e resfolegava sangue, Sorena tocou nele com a palma da mão e proferiu palavras de poder. A forma decomposta e corcunda da criatura arroxeada elevou-se do chão e ganhou nova estatura, era agora um ser maleável coberto por uma penumbra roxa escura e irradiava uma luz azulada onde deveria ser seus pés, grilhões de prata estavam em seus punhos musculosos. Nathanos encarou o bicho com desdém e continuou o caminho pela estrada. Derris pediu atenção dentro da sacola com um pigarreio.

 - Mas fale-me de meus valorosos pais defensores dos bons e justos...

 - Longe disso, menina... Eles protegiam a sua espécie, isso basta. Malditos esfomeados... – ele comentou dando uma breve olhada para uma carcaça de um cavalo.

 - Está cogitando ocupar animais também?

 - Mais rápido, bem mais ágil...

 - Mais outra visão aterradora para meus pesadelos...

 - Você se faz de vítima! Seja menos pretensiosa e procure o cavaleiro.

 - Sim, mestre Derris... – foi a vez de ela ser tediosa na voz e se arrastar a procura de algum esqueleto ou corpo nas imediações. A sua criatura ficava alerta ao seu redor, bufando fumaça mágica e babando aquela secreção ácida que alimentava a aura azulada dos pés invisíveis. – E se não acharmos nenhum?

 - Deixe de ser pessimista. Preciso de um corpo, não quero ficar nessa sua sacola a viagem toda. A minha reputação em Undercity vai baixar caso me vejam desse jeito.

 - Como se sua reputação já não estivesse na cova, não é? – Nathanos comentou rapidamente, a menina riu da piadinha, a criatura gorgolejou um pouco em tom de riso e o mestre-cabeça tinha o cenho apodrecido com uma expressão de escárnio.

 - Tão infame Brightcaller...

 

                Tudo parecia novidade para ela, os pântanos borbulhantes, as árvores curvadas e apodrecidas, os bichos rastejantes e cogumelos que subiam dezenas de metros do chão e serviam de abrigo nas chuvas torrenciais daquele verão. O clima era abafado e hostil, a sua capa não protegia da friagem ou dos efeitos nocivos do terreno, quem era mais preparado para aquele lugar parecia ser sua criatura conjurada que a colocava sob sua proteção na aura azulada e não permitia que nenhum animal, fosse pequeno ou grande chegasse perto dela.

 - Maldita Horda e Aliança... Maldita hora em que fui me meter com aqueles bois super-desenvolvidos... Maldita seja a hora em que... – praguejava seu mestre ajeitando os ossos faltando que compunha seu corpo refeito. Parecia um amontoado de ossos de diferentes corpos com a cabeça ainda preservada, pegou um manto velho que encontrara no caminho e se cobriu com certo pudor. – Estou danado... A minha reputação com a Rainha... – repetia até virar um murmúrio incompreensível na língua Thalassiana. Sorena não se interessava muito pelos costumes dos elfos e muito menos gostava de ostentar que era uma. Em casa, Goldshire, se sentia poderosa e intimidadora ao revelar sua natureza élfica com os humanos tão insignificantes, mas ali no mundo do lado de fora era difícil se manter segura de si, ainda mais quando seu caminho para a cidade dos Abandonados era cheio de aventuras nada agradáveis. – Dê-me as quelíceras de aranha? – pediu o mestre encaixando o joelho no fêmur. Ela deu a parte da cabeça da aranha morta e espiou ele injetando o muco venenoso e isolante ainda presente em uma das glândulas. Quando terminou, passou um pouco do muco nas juntas e principalmente em volta do pescoço para pregar o corpo firme em sua cabeça. Com a glândula vazia, rasgou com as mãos esqueléticas e fixou em uma vértebra perto da região do coração (Que não existia mais.). Impaciente e ainda xingando seu infortúnio, o mestre seguia sua montagem. Ela respirava calmamente o ar noturno e forçava sua postura arrogante a não cair no choro por tantas saudades de casa.

 - Acha que vai ficar inteiro até chegarmos a Undercity? – perguntou Nathanos ajeitando seu elmo pela terceira vez.

 - Se depender dessa criaturinha ao meu lado, não.

 - Grata pela atenção, caro mestre Derris... – ela cruzou os braços e verificou se sua adaga estava ali.

 - Já não foi fácil passar por aqueles anões rabugentos, temos mais algumas milhas para percorrer. – o Campeão vigiava o perímetro e em algumas vezes rodeava o lugar onde estavam abrigados para vigília.

 - Eu não consigo mover nem mais um músculo. Quero dormir. – Derris a olhou com os olhos leitosos e sem vida. – Estou cansada, não quero mais andar por hoje.

 - Não podemos parar. – sentenciou Nathanos.

 - Caro Campeão, caso não tenha percebido, a menina ESTÁ viva. Ela tem que descansar para continuar a jornada.

 - Não é minha culpa se você resolveu levar um deles para casa.

 - Será que ninguém vê que eu ESTOU aqui mesmo, e vocês não deveriam estar se referindo a minha pessoa desse jeito tão casual?

 - Aonde aprendeu a falar assim? – perguntou Derris impressionado, ela deu de ombros.

 - Meu tutor de leitura era bem eloqüente. – e soltando um suspiro ansioso. – Sinto falta das aulas de leitura.

 - Acho que não é só isso que você sente falta...

 - Tá, estou com fome também...

 - Não...

 - Também tenho vontade de fazer aquilo que eu não posso fazer... – ela confessou baixinho.

 - Isso não vem ao caso...

 - Aonde quer chegar?

 - Saudades de casa, não é?

 - Deixa de ser simplório, mestre. E deixe-me dormir. – virou-se em seu casaco remendado e fechou os olhos, a criatura conjurada a protegia dos gases venenosos do imenso cogumelo.

 - Essas crianças são tão teimosas... – disse Derris cobrindo bem a cabeça de Sorena com o seu chapéu de viagem.

 - Por isso não costumamos levá-las para Undercity. – concluiu Nathanos.

 

 - O que é aquilo depois da trilha? – perguntou ela ofegante, acabara de sorver um troll do pântano e alguns animais menores. Estava sentindo a euforia que acometia qualquer Elfo do Sangue ao drenar a energia vital de algum ser vivo. Derris não via mal naquilo, era necessário para que a garota continuasse tanto tempo andando sem se cansar. Gostava até da disciplina da menina, que não roubava demais a energia vital, mas não poupava ter aquilo que tanto saciava sua sede de poder.

 - A grande Lordaeron... Em ruínas e entregue aos corvos... – disse Nathanos com rancor.

 - O que aconteceu?

 - O Flagelo atingiu em cheio essa cidade, depois que Quel’Thalas sucumbiu ao poder do Rei Lich, os mortos precisavam de comida mais macia, se é que você me entende... – Derris explicou estalando os ossos das costas ao se espreguiçar na trilha fora da estrada. – Homens são fracos de constituição. Não agüentaram muito os ataques, não suportaram ver seus mortos se juntarem aos inimigos. – E indicando a cara brava de Nathanos, os dois sorriram um para o outro. – E então Nathanos... Como você foi mastigado?

 - Isso não lhe interessa Mestre Derris.

 - O Campeão aí era humano. Filho de fazendeiro... – Sorena riu alto e cobriu a gargalhada com a mão.

 - Você fala como se vocês elfos imundos também não tivessem culpa disso... – replicou o Campeão.

 - Tivemos, mas isso é algo que nem eu ou você iremos mudar, não é? – o outro Abandonado ficou emburrado pelo resto do caminho, mastigando as palavras do mais velho com certo rancor. Sorena fazia o mesmo, mas em silêncio. Querendo ou não, ela tinha os mesmos ideais de seu pai adotivo, Hrodi. O ex-paladino contava suas aventuras para os filhos depois da pescaria ou durante o trabalho na Taverna do Sol, todas tinham algo em comum: Hrodi apenas queria o Bem para o seu povo. Sorena concordava com o pai, mas queria não só o bem, queria saber o porquê de tanta miséria e desgraça na história de seu povo. – Bem... Agora teremos que combinar algumas coisas, certo? Nada de respostas ferinas, nada de brincadeirinhas fora de hora...

 - Tudo bem... – disse ela chateada.

 - E pelo amor da Dama Sombria! NADA de comentar da onde você veio. Isso seria a sua morte aqui.

 - A idéia não me é tão horrorosa. – disse Nathanos com um sorrisinho malicioso, Sorena se afastou dele na mesma hora.

 - A Morte definitiva não é nada bonita, criança.

 - Oh! – ela exclamou ao ver uma carcaça imóvel se levantar bem a sua frente, atrás dela havia mais guerreiros que pudesse contar. Derris ajeitou a postura e pigarreou.

 - Que a vontade de nossa Dama Sombria esteja sempre em nossos ossos, amigos.

 - Não somos seus amigos, forasteiro... Como ousa invadir nosso território? – disse um dos líderes mortos-vivos.

 - Ora, ora... Sou eu! Nathanos Brightcaller! – Sorena notou que as carcaças se encolheram no lugar, temerosas por alguma coisa.

 - D-desculpe nossa rudeza, caro Campeão da Rainha... Nossas ordens...

 - Oh sim, oh sim... Sei bem delas... – e indicando Sorena com a criatura conjurada. – Se importam se esses dois inúteis irem para nosso lar? – Derris fechou a cara e pigarreou para ganhar atenção.

 - Sou Apotecário Derris, e levo minha fiel escrava até a presença de nossa querida Rainha. É de muito tempo que ela desejava uma aprendiz de feiticeiro com o Apotecário Real, eis aqui! – Sorena iria retrucar a mentira, mas preferiu ficar calada já que as carcaças não eram nada gentis com seus machados e espadas a postos.

 - Precisam de escolta? Estamos indo para Brill conter alguns malfeitores...

 - Hmmm, isso me é de bom grado... Mas me diga: Malfeitores? – perguntou Brightcaller com um brilho assassino no olhar.

 - Malditos Necromantes do sul. Como se não bastasse a Cruzada Escarlate e o Rei Lich, temos que nos defender de um bando de fanáticos necrófilos que querem dominar as mentes dos acólitos.

 - Isso é um disparate! – exclamou Derris assegurando em tomar o pulso de Sorena firmemente e trata-la rudemente como uma prisioneira. – Deixa-me enojado a atitude de tais humanos...

 - Aqueles elfos malditos também não ficam para trás... – disse um outro do destacamento, a marcha dos Abandonados seguia em direção Noroeste. – Meses atrás acordaram um feiticeiro, resultado: Metade de nossos recém-chegados foram triturados...

 - Por acaso seria o Culto dos Condenados agindo, caro soldado? – o esqueleto pareceu se sentir intimidado e confidenciou.

 - Não falamos deles, mas sinto isso... – e depois de uma pausa olhando para os companheiros igualmente intimidados e esqueléticos. – Não estou a par dos planos de nossa Rainha e qualquer um aqui morreria de novo por ela caso fosse-nos mandado... Mas mesmo assim... Não confio muito no julgamento dos Apotecários...

 - Eles nos usam como escudo para a Horda... – silvou um outro com um machado maior que ele. Derris sorriu com seus poucos dentes podres e olhou para a aprendiz visivelmente amedrontada pela menção do nome da Horda. O Campeão grunhiu algo contra a acusação e fechou a cara para a única viva ali no grupo. Derris a puxou para perto.

 - Viu como há esperança até no mais ínfimo guerreiro...? – disse. – Muitos procuram a salvação de nossa condição amaldiçoada, mas muitos querem exterminar a vida nessas terras... Pobres coitados...

 - Não há perigo em ir à cidade...? – perguntou ela alarmada com o silvo de uma espada rente as suas costas, era um soldado testando um golpe. Era Brightcaller se exibindo aos outros guerreiros.

 - Hey, “Campeão”, cuidado com minha donzela. Quero que ela chegue inteira a presença de nossa Rainha.

 - Salve a Dama Sombria... – disseram todos em coro. Sorena ficou subitamente tocada pela devoção dos soldados Abandonados. Mesmo sabendo pouco sobre a trama de uma sociedade secreta entre os Abandonados, eles confiavam na única que poderia destruí-los sem piedade.

 - Carne e ossos vivos!!! – ouviram um fantasma gritar, Sorena se protegeu com um feitiço atordoante, mas sentiu a pegajosa sensação de ser tocada pelo fantasma de uma mulher nova e cheia de chagas pelo rosto. Ela continuou a gritar até ser afastada pelos soldados.

 - Desculpe-nos a falta de tato... – muitos riram com a piada, Sorena não conseguiu, mirava para o fantasma translúcido da mulher em agonia pelo seu corpo.

 - Acostume-se menina... – disse Derris bem perto. – Quel’Thalas está cheio deles...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Shindu Sindorei - as Crianças do Sangue" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.