Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 7
VI — Por que não?


Notas iniciais do capítulo

“— E... Haymitch? — diz Peeta. — Decidimos que não queremos outros aliados na arena.
— Bom. Então não vou me responsabilizar por vocês serem mortos por qualquer um dos meus amigos com a sua estupidez.” Em chamas, capitulo 17.
Amigos... No plural. Chaff, Seeder.. E quem mais? Para mim, o Finnick é um coleguinha sim.
Além do mais, Haymitch deu a pulseira para Finnick o que prova que eles já tiveram contato pelo menos.



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— Legal da sua parte ajudar aquela garota — Noah reconhece, enquanto subimos o elevador.

— Ah, você viu? — Mordo o canto inferior da boca, envergonhada.

— Todos viram...

Ele segura as portas automáticas para mim e sai logo após, caminhando ao meu lado pelo corredor do nosso andar.

— Sei que faz parte da sua natureza, mas a compaixão pode torná-la fraca — orienta meu companheiro de distrito. — Você não poderá ajudar ninguém na arena, não se quiser ganhar.

— Então por que está me ajudando? — questiono de forma pacífica.

— Porque também é da minha natureza — ele admite e desvia os olhos para a frente, prestando atenção no caminho. — E não estamos na arena, certo?

Não o respondo mais, me isolando em uma máscara de indiferença. Não sei se encaro o seu comentário como uma provocação ou apenas uma observação sincera. Quando chegamos aos nossos aposentos, Noah vai para o quarto sem despedidas e Mags — como de costume — já está dormindo. Junto-me a Finnick na sala de estar que divide o sofá e algumas boas conversas com um homem de vestes sujas e desarranjadas.

— Annie! — Levanta e se vira rapidamente ao perceber a minha presença. — Conhece o Haymitch Abernathy, mentor do distrito Doze?

Eu me recordo de suas breves aparições nas colheitas e entrevistas, todas excêntricas e vergonhosas.

— Ah, sim! Olá, Haymitch. É um prazer conhecê-lo oficialmente. — Estendo a mão educadamente.

— O prazer é todo meu, coração. — Ele chacoalha minha mão em seu aperto e sorri com ardileza para Finnick. — Agora entendo por que deseja tanto ajudá-la...

O desleixado mentor larga o próprio corpo para trás e se acomoda novamente no sofá, entornando boa parte do liquido em seu copo durante o impacto. Imediatamente, ele o repõe com a garrafa pela metade e toma um grande gole.

— Desculpe a pergunta, mas você não deveria... hm... estar com os tributos do doze? — pergunto calmamente, tentando não parecer grosseira.

— Ah! Não se preocupe com eles, garota! São dois esfomeados sem sorte, não há nada que eu possa fazer para ajudá-los. — Sopra o hálito etílico em meu rosto, sem demonstrar qualquer emoção. — Já pode riscar dois nomes da sua lista, querida. Garlic e... como se chama mesmo a garota? Cally? Calla? Tinha algo a ver com planta...

Sua indiferença me assusta. Não me admira esse tipo de atitude vinda de um cidadão da Capital, mas Haymitch é um morador dos distritos, o mais pobre de todos, aliás. Em que momento a indignação pelas mortes de seus jovens inocentes foi substituída por apatia? Acredito que a minha expressão facial tenha entregado meu incômodo, uma vez que Finnick pigarreia e dirige um olhar de reprovação a Haymitch.

— Não se preocupe, eu estava brincando. — Ele tenta aliviar a breve tensão criada. — Só quis deixar meu andar para espairecer a cabeça um pouco... Não aguentava mais aquela tagarela da Effie Trinket em meu ouvido!

— Ela escondeu suas bebidas de novo? — pergunta Finnick durante uma gargalhada.

— Sim. Aquela mulher me deixa louco!

A menção de Effie me lembra de Éolo Babity, nosso mestre de cerimônias que não demonstrou sinal de vida nos aposentos comuns do nosso andar desde que topei com ele no corredor. Talvez nem esteja mais no centro de treinamento dos tributos. Pergunto-me o que ele possui contra mim.

Finnick e Haymitch continuam a conversar sobre alguma coisa que já não me prende a atenção. De vez em quando, dão leves tapinhas nas costas um do outro ou forçam gargalhadas. Mantenho-me um pouco afastada do diálogo por opção própria. Algo me diz que os únicos interesses de Haymitch, com sua visita, sejam as garrafas intocadas de whisky no bar. No entanto, sou o mais agradável possível, visto que Finnick parece gostar dele.

Cansada das noites anteriores mal dormidas, luto para me manter acordada no sofá de couro claro enquanto Finnick acaricia minha cabeça. Não me dou mais o trabalho de continuar com os dois mentores e acabo fechando os olhos em renúncia. Segundos depois, quando os abro, o ombro de Finnick foi substituído por um travesseiro macio e estou sozinha em meu quarto na Capital. A luminosidade que atravessa o vidro evidencia o começo do dia. Um dia a mais de treino e, talvez, um a menos de vida.

Arrasto-me, ainda sonolenta, para o banheiro sofisticado de meu aposento. Aciono a torneira de mármore, escovo os dentes e jogo uma água no rosto para acordar. Ensaio um sorriso para o espelho, mas a felicidade não atinge meus olhos. Fito a garota refletida, analisando suas feições cansadas e recentes olheiras arroxeadas de preocupação. Pareço ter envelhecido alguns anos desde que cheguei aqui, embora não tenha passado nem uma semana.

O dois dias seguintes de treinamento são bem semelhantes ao primeiro. Experimento algumas estações novas como camuflagem, primeiros socorros e técnicas de sobrevivência. Aventuro-me, inclusive, em exercícios de agilidade e não me saio tão mal quanto esperava: pensei que seria mais lenta e desengonçada, porém realizo os percursos de forma satisfatória. É possível vencer os jogos correndo e se escondendo? Não está tudo perdido para mim.

No centro do salão, há uma piscina, de água mais transparente do que jamais vi e que, sabiamente, decido não usar. O que eu poderia fazer? Nadar de um lado para o outro? Idiotice. É uma coisa tão intuitiva... nadar, eu quero dizer. A piscina só está lá para ensinar tributos de distritos sem praias, rios e lagos — os quais nunca tiveram contato mínimo com a natação — a pelo menos se manterem emergidos. Além do mais, ninguém além de mim está interessado nela. Com razão. Evito observar por muito tempo as ondulações da superfície para não me sentir tentada a mergulhar.

— Gosta da água, Distrito quatro? — A carreirista do um me surpreende pelas costas. Há quanto tempo esteve me observando? — O que foi? Não quer conversar?

O deboche é evidente em sua entonação, mas mantenho a cordialidade.

— É tudo o que tem no meu distrito. Água.

— Ah sim, entendo... Boa sorte na avaliações — deseja ela, enquanto rodopia o pequeno estilete com maestria entre os dedos. — Só espero que o seu talento não seja nadar, garota-peixe, pois não seria uma aliada relevante para nós.

— Não se preocupe comigo. — Tento reproduzir o tom ameaçador de minha concorrente, embora acredite ter soado insegura. — Eu também tenho os meus segredos...

A carreirista ergue uma sobrancelha e acrescenta:

— Estou ansiosa para descobrir...

Já estamos no terceiro dia de treinamento e, ao final deste, os tributos realizam uma avaliação individual. Os idealizadores — que estavam sempre presentes em um palanque elevado no saguão de treinamento apenas ignorando nossa existência —, agora nos agraciarão com 15 minutos do seu precioso tempo. Sendo isenta de qualquer habilidade especial, não faço ideia do que mostrarei a eles. Finnick, no entanto, me instruiu a realizar armadilhas e nós. Será uma apresentação emocionante!

— Somos os próximos — anuncia Noah quando o tributo feminino do distrito três deixa o refeitório em que todos jantávamos anteriormente. É a mesma garota que despencou do palanque no primeiro dia, agora sem os óculos e provavelmente usando as lentes de contato prometidas pelo mentor.

— Já decidiu o que vai mostrar a eles? — ele pergunta curioso.

As avaliações são individuais e secretas, nós não deveríamos expor nossas vantagens tão facilmente. Ainda assim, seremos aliados na arena e não vejo prejuízo em contar a ele.

— Não tenho nada para mostrar — digo com sinceridade. — Talvez eu faça só alguns nós.

Nós parecem divertidos — ele zomba e, ao notar meu incômodo com a brincadeira, corrige seu discurso: — Ah, não se preocupe com a avaliação. Com todo o respeito, mas você é bonita, poderia tirar as roupas na apresentação que eles dariam uma nota alta.

Eu deixo escapar um risada, porém não chego a avaliar a possibilidade.

— Já eu, vou precisar me esforçar um pouco...

Noah não é o exemplo de rapaz mais bonito do mundo: os olhos são encovados e as arcadas da testa proeminentes, ocultando o encanto de suas iris azuladas. Os cabelos rebeldes apontam para todos os lados e alguns caracóis caem sobre seu rosto. Ele não é exatamente feio, porém acabo usando Finnick como parâmetro e isso não é muito justo.

— Mas e você? Já sabe o que vai fazer? — eu pergunto, tentando manter o clima amistoso.

— Facas. — Levanta os ombros em indiferença. — Lançamento.

Engulo em seco ao imaginar uma de suas facas atravessando minha cabeça.

— Parece promissor.

A voz digital chama por “Noatun Gaius” e, após alguns minutos, eu sou chamada também. Uma vantagem — no meu caso, desvantagem — de ser dos primeiros distritos é que os idealizadores ainda não se encontram dispersos ou entediados. Todos me cedem sua atenção, ainda que eu não tenha nada notável para apresentar. O fato de eu ser uma carreirista faz eles esperarem mais de mim do que eu posso oferecer.

Sigo o conselho de Finnick e realizo alguns nós de complexidade elevada, além de tecer a malha de uma rede em tarrafa. Meus dedos deslizam pela corda sem que a minha mente precise ordenar qualquer movimento e, em seguida, executo umas poucas armadilhas básicas. Tudo não dura mais do que dez minutos, porém percebo as expressões de tédio nos rostos dos idealizadores e decido adicionar em cima da hora alguns percursos de agilidade em meu repertório. Não sou excelente, mas fico satisfeita com a minha performance rápida, haja vista as minhas limitações.

Anuncio o final da apresentação e um dos idealizadores — que penso ser o chefe — agradece minha participação. Eu me sinto um pouco medíocre, mas acredito que as suas expectativas me fizeram parecer pior do que realmente fui. Eu sei tecer redes e sou rápida, mereço pelo menos um cinco. Viro-me para ir embora e observo, uma última vez, o alvo de minha atenção nestes últimos três dias. A água límpida e cristalina me convidaria a dar um mergulho se eu não possuísse outras preocupações.

A extensa piscina se encontra um pouco à direita do caminho que eu faria normalmente para chegar à saída. No entanto, não seria um desvio muito grande se eu a atravessasse em vez de caminhar paralelamente à sua margem... O pensamento me ocorre. Por que não? Talvez seja um atalho, visto que sou mais rápida na água do que no solo. Por que não? Pode ser o mais próximo de casa a que tenho direito, minha última chance de sentir a corrente de água gelada contra o meu corpo em movimento.

"Por que não?" As pessoas deveriam se perguntar mais isso ao invés de, simplesmente, se limitarem.

Estendo os braços lateralmente à cabeça e pulo, sem pensar duas vezes, não retirando uma peça, sequer, das vestes de treinamento. Atravesso todo o comprimento em alguns segundos, ao mesmo tempo que meu tronco e pernas se movem em sincronia. Não emerjo uma única vez — até alcançar o lado oposto — e apoio os cotovelos na borda, a fim de impulsionar meu corpo para cima.

Ergo-me para continuar em direção à saída — com certa dificuldade pelo peso da água em minhas roupas — e retiro a blusa molhada, ficando apenas com o top por baixo dela. Não consigo evitar lembrar do comentário de Noah sobre nudez e acabo soltando uma risadinha abafada, quase me esquecendo da minha pequena plateia da Capital: o único e real motivo de eu estar aqui. Dou uma olhadela por cima do ombro e os idealizadores me observam curiosos... Alguns cochicham com os mais próximos, outros me encaram surpresos e ainda há os que apenas riem. Não é exatamente o tipo de reação que se comemora, mas acabo me dando por satisfeita. Pelo menos, serei lembrada e, aqui na Capital, a atenção é primordial.


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Notas finais do capítulo

"Calla lily" é o nome em inglês para "copo-de-leite", uma flor branca em forma de cone. Garlic é alho, tambem em ingles. haha No distrito 12, alguns nomes de pessoas são baseados em plantas, como Katniss e Primrose. Outros distritos também possuem nomes de vegetais/plantas como Rue, Clove (cravo) etc...
Tarrafa é uma espécie de rede de pesca em que o diâmetro entre as malhas é alternável. O pescador joga a tarrafa aberta na água e os peixes são capazes de atravessá-la facilmente. Em seguida, puxa as cordas, consequentemente diminuindo seu diâmetro e enroscando assim os peixes na malha. O fato de Annie saber fazer uma rede dessas é uma enorme vantagem sobre os outros tributos. Esse tipo de rede também era utilizado por gladiadores reciários (os que lutavam com tridente como o Finnick) para prender os oponentes durante os duelos na arena.
— Azeite.



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