Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 6
V — Cubo de açucar


Notas iniciais do capítulo

“É para os cavalos, na realidade, mas quem se importa? Eles podem comer açúcar anos e anos ao passo que eu e você… bom, se a gente encontra alguma coisa doce pela frente é melhor agarrar com rapidez.” – Em Chamas, capítulo 15, página 222



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O marcador digital das horas é a única evidência de que o tempo prosseguiu. Trocamos um último beijo e caminhamos juntos até a mesa para o café. Liberto a mão de Finnick antes de atravessar a porta — superando o ligeiro receio de soltá-la — e sento na cadeira da ponta, ao lado da dele. Todos já nos aguardam acomodados à mesa.

— Bom dia, crianças — cumprimenta Mags.

Ambos respondemos à saudação e Finnick puxa uma xícara para o seu pires.

— Senhorita Cresta, sua roupa de treino já está pendurada no cabide — avisa Ocella, ainda distraída com o chá —, acredito que tenha notado .

— Desculpe, não tive tempo de ver. Sequer abri o armário ontem, mas se foi feita por você, deve estar linda! — tento bajulá-la.

— Oh! Está mesmo! — responde aborrecida. Parece incomodada por eu ter ignorado a sua assistência, mas se conforma com o elogio.

Do outro lado da mesa, Céres conversa com Noah algo que não consigo — e não me interesso em — ouvir e Mags se concentra na geleia de sua torrada. Nenhum dos diversos tipos de pães, frios e doces me convida a servir um prato. O bolo com três camadas de massa clara e recheio cor-de-rosa parece apetitoso. Contudo, é requintado demais para mim, prefiro algo mais simples...

Estendo minha mão até o recipiente de açúcar e recolho um torrão com os dedos. Ocella me dá um olhar de reprovação, mas continuo a admirar a complexidade do cubo em minha palma. Deposito-o na boca e os cristais se desprendem uns dos outros, desmanchando e espalhando toda a doçura contida. Curiosamente, é a mesma de um açúcar comum.

— As pessoas da Capital gostam mesmo de complicar as coisas — eu observo.

Todos estão tão absortos em suas próprias refeições que apenas Finnick me dá atenção.

— Como? — pergunta confuso

— Para que fazer cubos de algo que precisa ser dissolvido? Não acha um pouco idiota?

Ele ri discretamente.

— Ah! É sério, Finn! — Eu pego outro torrão e o deslizo entre os dedos. Uma das pontas se desprende e esfarela sobre a toalha de mesa.

— É para o chá, querida. — Ocella tenta manter o tom gentil e educado, porém percebo a impaciência por trás dele.

— Eu sei, obrigada — digo sem desviar os olhos do confeito destruído.

— O que foi, peixinho? — Finnick pergunta preocupado.

— Nada.

— Sei que é mais do que isso, me diga no que está pensando...

— Eu só penso no quão estranha a Capital é... — diminuo minha voz para que os outros não ouçam.

— Sim, eu concordo, ela é estranha. — Encara o açúcar desconfiado. — E o que isso tem a ver com o torrão que você tanto olha?

— Não sei... Hm... Pensei que o verdadeiro objetivo do açúcar fosse adoçar, mas tudo aqui tem mais do que um propósito funcional, entende? As coisas não podem simplesmente existir, elas precisam ser notadas.

— Ah sim! — Ele ri discretamente. — E você chegou a essa conclusão porque o açúcar é... quadrado?

— Está vendo? É por isso que prefiro não contar minhas divagações idiotas!

— Estou brincando, Annie. Eu adoro as suas divagações idiotas. — Ele comprime os lábios, imitando minha careta. — Você tem razão, tudo aqui precisa ser notado, inclusive as pessoas. É por isso que usam aquelas roupas extravagantes.

— Exatamente! — Estou satisfeita por ele completar meu raciocínio.

Movido por minha abstração, ele também leva um torrão à boca e o saboreia devagar.

— Só espero que nunca me torne um deles, sabe? Aparência não é tudo...

— Ah! Você não vai. Não importa o quanto o deformem ou modifiquem, o açúcar sempre retorna ao seu estado natural. — Entorno três pequenos cubos na xícara de chá quente, fazendo-os desaparecer instantaneamente. — Ninguém pode mudar sua essência, Finn. Não permita que aconteça.

O mentor me encara alguns segundos em silêncio. A atenção exclusiva me deixa ligeiramente desconfortável.

— Você sempre sabe o que dizer, não é?

Eu sorrio e, nesse momento, volto a ser a sua melhor amiga implicante.

— Pois é... As vezes, eu me impressiono comigo mesma.

Finnick revira os olhos e murmura um “convencida”, encerrando a conversa pelo resto do café. Como alguma coisa que alimente de verdade — pão com creme de queijo e suco de abacaxi, para ser específica — e me apronto para o treinamento. Visto o conjunto de calça e camisa com o mesmo tom de verde-musgo deixado por Ocella e me encaminho para as salas de treino.

Noah já desceu para o saguão mais cedo, logo, apenas Finnick me aguarda no começo do corredor. Ele impede a porta do elevador de fechar para que eu entre e aperta o primeiro botão do painel.

— Escute, Annie. Eu tenho algumas recomendações. Já tem algo em mente do que fazer?

Eu balanço a cabeça em negação

— Muito bem... Tente aprender habilidades novas, está bem? Não se preocupe em passar na estação de nós porque você, provavelmente, conhece mais tipos deles do que os instrutores. Evite as estações de arremesso de facas e machados: não vai aprender em três dias o que não conseguiu antes e nunca é bom mostrar suas fraquezas. Você é uma carreirista, os outros esperarão sempre o melhor! Vão achar que as estações evitadas estão reservadas para a avaliação individual.

— Certo. Aprender habilidades e não exibir fraquezas... — reforço as orientações.

— E não deixe de passar nas estações de técnicas de sobrevivência e reconhecimento de ervas. As florestas não são muito vastas em nosso distrito e isso a faz estar em desvantagem. Outra estação importante é a de primeiros socorros, saber como estancar um sangramento sempre...

Ele não continua a frase. Talvez o pensamento de eu sangrando ou ferida torne os fatos reais demais para continuar ignorando e, então, dou fim ao desconfortável silêncio:

— Obrigada, Finn... Você está sendo muito útil.

O pequeno percurso do elevador não dura nem um minuto e, quando alcançamos o subsolo, as portas automáticas se abrem devagar. Sinto um desconforto no estômago e respiro fundo para afastar o pensamento dos jogos. Meus primeiros passos para fora são trepidantes, afinal, este é o momento de conhecer meus concorrentes de verdade. Espadas, lanças... De quantas formas eles podem me matar?

— E, Annie? — Finnick chama. Eu me viro e ele encosta suavemente os lábios nos meus. — Boa sorte!

— Obrigada.

Eu vou precisar.

Adentro o enorme ginásio e uma parede de metal se fecha atrás de mim. Há uma quantidade e variedade gigantescas de armas penduradas e expostas. O lugar é dividido em pavimentos e estações que vão desde técnicas de sobrevivência a métodos de combate. Junto-me ao círculo dos tributos e um dos instrutores alfineta um “quatro” em minhas costas. Atala, a treinadora-chefe, adverte que não briguemos uns com os outros antes do início dos jogos, explicando sobre o esquema de treinamento. Quando ela autoriza a largada, todos se separam imediatamente.

Dirijo-me à estação de reconhecimento de plantas comestíveis e venenosas. Está bem vazia, visto que a maioria costuma ignorar essas lições, e tenho o instrutor exclusivamente para mim. Ele me apresenta diversos espécimes, alguns muito parecidos e outros perceptivelmente diferentes. Há um par de ervas rosadas que são paticamente idênticas, tirando o fato de uma causar vômitos e sangramento nasal descontrolado enquanto a outra tem apenas gosto ruim de beterraba. Aprendo a fazer um chá para diminuir febre a base de algumas folhas verde-escuro e a diferenciar cogumelos venenosos de medicinais. Mais algumas lições e o simpático instrutor diz:

— Espero ter ajudado!

— Ajudou sim, obrigada. Nada colorido é confiável e devo tampar imediatamente o nariz quando sentir o cheiro de amêndoas amargas, certo? — recapitulo os últimos ensinamentos.

Ele acena positivamente, orgulhoso de sua aprendiz. Nunca senti o cheiro de amêndoas, principalmente as amargas, mas fico satisfeita com os conhecimentos adquiridos. Provavelmente, terei à minha disposição todos os suprimentos iniciais da arena. No entanto, conhecer alguns venenos naturais pode ser uma ajuda crucial.

No resto do dia, aprendo a montar armadilhas básicas, criar uma fogueira com galhos secos e subir rapidamente uma parede de escalada. Depois de evitar de todas as formas possíveis as técnicas de combate, resolvo por fim enfrentá-las. Eu não posso ser tão ruim, certo? Os tributos voluntários deste ano monopolizam a área desde o início do treino. O grandalhão do distrito dois parece se divertir arrancando pedaços dos bonecos com a espada e sinto pena do homem sendo esmagado pela garota robusta — também do dois — em uma briga corpo-a-corpo.

Entro na pequena fila para lutar com o instrutor utilizando bastões almofadados, aproveitando para observar a habilidade de meus adversários. Basta apenas mais dois participantes terminarem e eu serei a próxima. Os tributos têm a sua vez e, até o momento, nenhum deles é bom ou ruim o suficiente para me prender a atenção: a mediocridade é entediante. Mas quem sou eu para falar alguma coisa? Sou praticamente invisível aqui. Aguardo a garota anterior a mim se posicionar no centro do ringue e chego à conclusão de que de nada adianta dar uma espada a alguém que não possui coordenação suficiente para mover os próprios pés. Estou certa, uma vez que o bastão do treinador toca a coxa, o braço e a cabeça da oponente com pouquíssimos movimentos. Em seguida, ela levanta a própria arma com as duas mãos, abrindo a guarda sem intenção, e é atingida diretamente na barriga. O golpe é fraco, porém a faz se desequilibrar e cambalear para trás, despencando do palanque de uns dois metros de altura.

Todos ao redor abafam risadas, no entanto, eu sinto apenas dó da pobre garota. A morte prematura é o futuro mais garantido que ela pode possuir: não há espaço para erros assim na arena. Quando chamam pelo próximo da fila, eu ignoro minha vez e atravesso o palaque para auxiliar minha concorrente caída. Os óculos que usava se encontram no chão, as lentes grossas esmigalhadas e o contorno do nariz com leves cortes dos cacos.

Movida unicamente pelo instinto de ajudá-la, recolho a haste de metal quadrada e entrego para a menina. É algo completamente errado — ser gentil com alguém que você deve matar — e muitas cabeças se viram para nós duas. A visão da garota deve ser realmente péssima, do contrário, ela não usaria os óculos no treinamento. Tudo pode significar fraquezas nos Jogos e olhos defeituosos não são diferente. Pergunto-me se faz parte de sua estratégia parecer fraca publicamente...

— O-obrigada, mas não se preocupe — ela agradece de cabeça baixa —, meu mentor vai providenciar lentes de contato.

A expressão de vergonha e submissão me fazem eliminar a segunda hipótese. Ela, com certeza, não resistirá até o final do primeiro dia e o canhão que anunciará sua morte será perdido nos demais do banho de sangue inicial. Talvez seja melhor assim. Para que prolongar seu sofrimento? Quanto mais cedo acabar, menos tempo na arena... E, nesse caso, morrer é quase um privilégio.


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Notas finais do capítulo

" Atala, a mulher que comanda o treinamento, começa seu longo discurso na hora certa (...)" Em chamas, capítulo 16.

Momento curiosidade: O cianeto de hidrogênio (aquele composto letal utilizado nas câmeras de gás nazistas) possui o odor característico de amêndoas amargas. Não entendo quem sentiu o cheiro do gás letal e sobreviveu para caracterizá-lo e, mais do que isso: quem se lembra do odor de amêndoas amargas ao respirar um gás letal? QUEM DIABOS JA CHEIROU AMENDOAS AMARGAS? Não é como se fosse um cheiro comum, gente. Haha. Mas achei interessante colocar a informação aqui nas notas, já que várias pessoas sacaram a referências nos comentários. rs
— Azeite.



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