Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 5
IV — Está atrasado


Notas iniciais do capítulo

“E, de repente, é como se não houvesse mais ninguém no mundo além daqueles dois, cada qual avançando freneticamente para alcançar o outro. Eles se encontram, se agarram, perdem ambos o equilíbrio e choram permanecendo juntos. Como se formassem um único ser. Indivisível.” — A esperança, página 192.



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Assisto à retrospectiva do desfile e descanso algumas horas. A cama é tão macia que contorna a minha silhueta e, quando eu levanto, se expande devagar para o formato original. Distraio-me como uma criança pequena, afundando o braço na espuma densa do colchão e aguardando que ela retorne para o lugar. Logo, desperto do meu breve estado de transe com o apito do relógio da cabeceira. A palavra "jantar" pisca no letreiro luminoso.

— Está atrasado, Finn — murmuro para o nada.

Comemos somente eu, Mags e Noah. Os dois se deliciam com o banquete e eu sirvo um pouco do guisado de coelho. Ouço apenas a voz de Mags, além do tinido dos talheres na porcelana. Meu companheiro de distrito não troca palavras enquanto come — ou em qualquer outro momento —, tampouco eu. O mais sensato é manter uma distância emocional entre nós, em virtude de nossa atual condição. Ele está no terceiro prato quando nossos estilistas se unem à mesa para falar sobre as vestes da entrevista. Não conheci Céres até o momento, contudo, o estilista de Noah não é muito diferente da minha. Inclusive, acredito se tratar de uma mulher, até ouvir sua voz claramente masculina. Ambos — nome e aparência — me induzem a achar o contrário.

Como o meu mentor não está aqui para apresentar a minha estratégia de apresentação, Ocella tagarela sobre suas infinitas opções. Todas envolvem lapidar a minha — em suas palavras — beleza bruta e inocente. Aguardo até o término de seu entusiasmo e finjo me importar com cada sugestão em particular.

— E sem dúvida o verde caiu muito bem em você, docinho, combina com seus olhos! — ela termina qualquer raciocínio que não acompanhei e se serve da salada.

Eu circulo, com o garfo, algumas ervilhas deslocadas em meu prato intocado.

— Você precisa comer, querida — Mags aconselha, limpando os cantos sujos da boca com um guardanapo sob as mãos tremendo.

Forço poucas garfadas para dentro e, com a aprovação de todos, me retiro para o quarto. Deito em minha cama e encaro o teto por alguns minutos, abstraindo-me de pensamentos. As linhas curvilíneas da pinturas se assemelham às ondas do mar, me lembrando vagamente de casa. É um pouco relaxante — posso quase ouvir seu chiado pendular e repetitivo — e acabo cochilando, acordando apenas com o rangido da dobradiça de metal.

— Annie?! Está acordada? — Viro-me na direção da voz. Finnick espia pela brecha da porta entreaberta antes de adentrar o aposento.

— Você prometeu que viria para o jantar — eu o lembro, conferindo o despertador digital que anuncia as seis da manhã.

Ele desvia os olhos e observa através da janela, tentando me negar atenção. Os feixes da luz diurna atravessam o vidro, iluminando o quarto e me permitindo enxergar a indiferença em seu rosto.

— Estou falando com você, Finnick.

— Sinto muito pelo atraso — ele responde ainda sem me dirigir o olhar e se senta na beirada da cama.

— Tudo bem. — Suspiro, sem ânimo para discutir. — Mas acredito que eu mereça um pouco de atenção aqui. Daqui a algumas horas, eu terei a minha primeira sessão do treinamento e você é o meu mentor, oras. Deveria me ajudar!

Ele fita os próprios pés, se concentrando nos círculos que faz com um deles erguido no ar.

— Eu estava tratando de... hm... uns assuntos da Capital.

Levanto-me da cama num solavanco. Uma raiva inexplicável me possui: flui por toda a extensão do meu corpo, contraindo meus músculos e fazendo meu tom aumentar abruptamente.

— Conheço muito bem seus assuntos, Finnick! Não sou idiota. Será que não pode esperar mais alguns dias, até que eu esteja morta, para tratar deles em paz?

— Não diga isso...

Ele sequer teve o bom-senso de negar.

— Por favor, vá embora — peço num tom seco, destruída demais para me exaltar.

— Droga, Annie. Você, realmente, acha que eu desejo viver assim? Que eu gosto de ser vendido desta maneira? Eu não tenho voz alguma! Eu não sou ninguém...

— Oh! Pobrezinho... — eu debocho. — Deve ser horrível se deitar com todas as mulheres da Capital!

— Sim, é horrível! Principalmente quando não se pode estar com quem ama! — diz enraivecido, igualando a voz à minha. Suas palavras poderiam soar bonitas se não fossem cuspidas com tanto ódio. Em seguida, ele relaxa os ombros e acrescenta: — Eu não amo nenhuma delas...

De repente, imagino cada mulher cirurgicamente alterada da Capital — com suas roupas íntimas tão extravagantes quanto as externas — sussurrando o mesmo nome em meio aos gemidos de prazer:

Finnick.

O sentimento que eu suprimia durante todos esses anos me consome, corrói minha sanidade. O ciúme, quando não controlado, pode levar às mais insensatas atitudes e as palavras escapam antes que eu as impeça:

— E uma prostituta é capaz de amar?

Se eu parasse um mísero segundo para refletir sobre as consequências, sequer teria dito. Dói-me a ideia de vê-lo como uma mercadoria de luxo da Capital, mas, ao que parece, dói mais para ele. Qualquer vestígio do Finnick que eu conheço desaparece de suas feições. Eu nunca o vi desta forma antes: o ódio queima em seus olhos, range em seus dentes, lateja em seus dedos comprimidos.

Espero que me grite as mais horríveis — e merecidas — ofensas, mas ele apenas se mantém imóvel. Os braços rígidos contra o corpo e o punho fechado em um aperto forte. Ele recompõe, aos poucos, a respiração irregular, inspira fundo uma última vez e a fúria de seu rosto é substituída por apatia.

— Nós temos três horas até o treinamento. Tente descansar um pouco. Eu vou para o meu quarto — recita pausadamente e se vira antes de terminar a frase, em um mísero intervalo de tempo após começá-la. Sequer deseja me olhar, uma vez que desvia os olhos antes que eu possa discordar.

E é, neste momento, que eu eu o perdi... Ele jamais me perdoará.

— Não, Finn, me desculpe! Eu não quis dizer isso.

O arrependimento é sincero, porém não creio que baste.

— Você disse, não foi? — Volta-se para mim. — Há quanto tempo pensa assim?

Eu não sei responder. Não posso negar o quanto me abominam as suas atitudes, o quanto elas confundem os meus sentimentos por ele. Mas desde quando? A partir de que momento me senti desta forma? Talvez “desde sempre” seja a resposta, mas ele já não a aguarda mais e torna a se direcionar para a porta.

— Finn... — Eu o agarro pelo braço e suplico, silenciosamente, que não vá. Ele não tenta se desvencilhar do meu aperto, me permitindo arriscar a conversa: — Se você não deseja essa vida, então, por que a leva?

Não há resposta. Ele está vulnerável, desprotegido, e é quando posso enxergá-lo na sua mais pura essência. Finnick Odair... Não o vitorioso da Capital, tampouco o objeto de adoração das mulheres. Apenas um garoto de quatorze anos que foi obrigado a crescer antes do tempo, abandonado na arena para sobreviver e destruir todos os seus valores. Alguém com traumas perpétuos e cicatrizes insanáveis e que, embora precise ser salvo, eu insisto em magoar.

— Por quê, Finn? — repito calmamente. — Ajude-me a entender.

Ele dá um passo a frente, tornando a minha mão acessível, e a segura entre as suas.

— Porque... — Hesita, observando meus dedos inertes sob seu aperto.

Encorajo-o a prosseguir com um aceno gentil e, finalmente, ele completa:

— Porque, se eu não cooperar, eles matarão todos aqueles que amo.

Enrijeço-me, não esperava por isso. Enterro minha cabeça em seu peito para evitar seus olhos. Sou uma idiota. Como posso me desculpar? Não há nada que eu possa fazer para retirar o que eu disse ou diminuir a gravidade do meu feito. Todo esse tempo, Finnick protegia as pessoas que ama e eu o julgava equivocadamente. Seus motivos são mais do que suficientes para destruir qualquer pensamento ruim que eu tenha nutrido sobre ele. Contudo, algo ainda me inquieta, a ideia de Finnick com outras parece... inadequada.

Não é novidade alguma que a Capital se utilize de meios antiéticos para conseguir o que deseja — setenta edições dos Jogos Vorazes falam por si mesmos —, porém os vitoriosos são os seus queridinhos. Pensei que, uma vez terminados, os Jogos não incomodariam mais. Pelo visto, estava enganada. O mais estranho é que não somos diferentes nesse aspecto, ambos nos tornamos fantoches da capital. Nós agimos — e no meu caso, ainda agirei — de forma contrária aos nossos próprios valores para, simplesmente, agradá-la. Farei coisas horríveis e matar pessoas está acima de satisfazer mulheres no ranking delas.

— E isso inclui você — ele preenche o silêncio, interrompendo meu raciocínio. Estou tão absorta em devaneios que tudo parece fora de contexto. O que me inclui? Repasso mentalmente nossa conversa e conecto as últimas frases. As palpitações em meu peito e o suor na palma da mão revelam uma ansiedade que eu até então desconhecia.

“Todas as pessoas que amo e isso inclui você”

Mas por que isso desperta tanta agitação? Amor é um sentimento de vastos significados... Finnick e eu nos conhecemos desde crianças, afeição fraternal é o que se refere. É nisso que eu tento acreditar, mas curiosamente não o que desejo. Que tipo de amor eu espero que seja? O que está acontecendo comigo?

Ele ainda segura minha mão e a acaricia com os dedos. Observa-me receoso, aguardando uma resposta ou sinal de comunicação estabelecida. Parece lutar contra a vontade de me despertar dos pensamentos e reflexões internas, e, por fim, resolve que sim.

— Não faria o mesmo em meu lugar?

A pergunta me surpreende. Ainda assim, não preciso pensar para respondê-la. A vida de todas as pessoas que amo em jogo e o que eu preciso fazer para salvá-las é denegrir minha integridade moral? Como se fosse uma comparação justa... A resposta sai naturalmente, sem a minha ordem ou consentimento, como o ar que me atravessa as narinas apenas pela necessidade inata de respirar.

— Faria qualquer coisa por quem amo, qualquer coisa por você.

Não sei, ao certo, quem se inclina primeiro, mas elimino qualquer resquício de dúvida quando nossos lábios se entrelaçam:

Eu o amo.

O calor que emana de seu corpo me inebria, aquece cada pedaço do meu ser. Ele responde com a mesma intensidade que eu o beijo, atraindo-me para mais perto com a mão firme em minhas costas. Envolvo seu pescoço com os braços e minha ligeira silhueta encaixa perfeitamente no contorno de seu abdome, como se o espaço já estivesse delimitado a mim. E então somos dois corpos com um só espírito, partilhando das mesmas dores e necessitando mais um do outro que do oxigênio para viver.

Afasto-me para contemplá-lo e uma mistura de satisfação e receio ocupa seu rosto. Ele enxuga minha face úmida com o dorso da mão — aninhando-me em seus braços — e aproxima os lábios de minha orelha.

— E sim — sussurra calmamente —, uma prostituta é capaz de amar.

Posso sentir os músculos de seu maxilar contraírem em um sorriso, mas isso não impede o fluxo das minhas lágrimas. Murmuro incontáveis pedidos de desculpa e, em seguida, seus dedos silenciam meu lábios.

— Por que só agora? — Faço das palavras audíveis entre os soluços do meu choro. — Depois de todos esses anos... Por que agora?

Ele segura meu rosto com as duas mãos e acaricia minha bochecha com os polegares.

— Ah, peixinho... Eu não poderia me enganar mais.


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Notas finais do capítulo

Céres é a deusa da colheita, a contraparte romana da deusa Deméter da mitologia grega. Adoro esse nome e planejaei colocá-lo em algum tributo do onze ou nove, mas resolvi deixar como esse cara aleatório ai.
O que acharam do capitulo, peixinhos? Digam nos comentários!
— Azeite.



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