Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 3
II — Bem-vinda à Capital


Notas iniciais do capítulo

“Uma jovem histérica com longos cabelos castanhos também é chamada no 4, mas ela é rapidamente substituída por uma voluntária, uma mulher de oitenta anos que precisa de uma bengala para caminhar até o palco.” Katniss sobre Annie (e Mags), Em chamas. Capitulo 14.



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Quando o hino de Panem termina, somos levados ao Edifício da Justiça para nossas despedidas privadas. Um hall luxuoso é reservado a mim, meus amigos e parentes. Tenho exatos 60 minutos para dar meu adeus a todo aquele que aparecer para buscá-lo. Primeiro, meus pais, depois meus amigos da escola. Todos me encharcam de lágrimas e palavras de consolo e eu aproveito para chorar tudo o que eu não posso sob os vigilantes olhos do país. Sofrer é um luxo do qual fui privada, pelo menos publicamente.

Logo, meu tempo acaba e, finalmente, sou levada embora. Chegou a hora de embebedar o peru para o abate, eu penso. Desfrutar do conforto e grandiosidade da Capital antes da minha inevitável morte. Caminho vacilante até a plataforma, forçando um sorriso e me concentrando em meus pés em linha para não tropeçar. Tento parecer confiante diante das câmeras e aceno junto a Noah durante algum tempo até que precisamos embarcar.

O trem se desloca rapidamente, sem que eu possa sequer sentir o movimento. Despeço-me, silenciosamente, do mar e observo a paisagem mudar, gradativamente, através da janela do meu vagão, dando lugar a uma campina verde intocada. Talvez esta seja a última vez que eu verei o distrito quatro.

Alguém bate à porta da minha cabine e eu autorizo a entrada. Finnick caminha lentamente para dentro. O gel de seu cabelo já perdera o efeito e está em seu despenteado usual. Os olhos e nariz se encontram vermelhos e os cílios, unidos pela umidade de lágrimas recentes. Lembro-me de quando ele foi convocado para os jogos. Eu tinha apenas doze anos, mas entendia perfeitamente a gravidade da situação. Chorei sob a perspectiva de vê-lo pela última vez naquele dia no Edifício da justiça, de assistir sua morte e sofrimento pela televisão.

— Finn...

Corro para abracá-lo, da mesma maneira que fiz há cinco anos quando retornou vitorioso. Seus braços me envolvem antes de eu chocar o corpo contra o seu.

— Você vai sair de lá, está bem? — Ele acaricia o topo de minha cabeça. — Vou fazer de tudo para trazê-la de volta.

Devolvo um aceno de cabeça sem emoção. Eu não duvido de sua intenção, apenas de minhas chances reduzidas.

— Annie, eu sei que você não acredita em mim ou em você, mas eu preciso que acredite. — Seus olhos se enchem de lágrimas, ainda que ele não as permita escorrer. — Por favor, não desista!

— Tudo bem... — Eu suspiro. — Só fique comigo até chegar a hora, por favor.

Ele me aperta contra o peito e o abraço me traz conforto, mesmo com todas as razões para não trazer.

— Todo o tempo — ele murmura.

Ficamos abraçados sem dizer nada por minutos. Este é o primeiro momento que me sinto assim desde que meu nome emergiu do globo de vidro, um sentimento misto de serenidade e segurança. Finnick é a única pessoa que consegue me confortar, é tudo que restou da minha família aqui comigo e convenientemente apenas ele pode me acompanhar até o final.

O silêncio permite que continuemos imóveis, nos faz esquecer que o tempo progride. No entanto, não o impede disso. Acordamos da breve sensação que beira a felicidade com o chamado de Mags e precisamos nos juntar aos outros no vagão-restaurante para a refeição.

A mesa meticulosamente arrumada me convida a servir um prato. A carne está macia e coberta por uma geleia de nozes. É doce e salgado ao mesmo tempo, a mistura de sabores da Capital me intriga. Provo das batatas recheadas com um creme amarelo que identifico como algum tipo de queijo e, depois, o suflê de legumes seletos. Mastigo a comida até que a consistência esteja suficientemente pastosa e a engulo de forma mecânica e automática. Está tudo realmente saboroso, mas prazer se tornou uma palavra ausente em meu vocabulário no momento.

Todos estão bem quietos. Noah, desconectado dos demais, concentra-se apenas em sua montanha de purê no prato recheado e Mags luta contra um bife para cortá-lo. Está três a zero para o bife e eu tento imaginá-la ganhando os jogos num passado longínquo. Não consigo.

— Bom, eu vou me deitar se me permitem. — A idosa empurra a cadeira com dificuldade e se levanta para ir embora. — Estou velha demais para essas coisas. Durmam bem esta noite, crianças, teremos uma semana cheia!

Protelamos um pouco em torno da mesa e, após a refeição, nos dirigimos ao compartimento vizinho para acompanharmos as colheitas dos demais distritos.

— Espero que não tenha muitos voluntários este ano, esses são os piores — Noah diz um pouco abatido, embora pareça amigável.

Nós sentamos no mesmo sofá, forçando uma distância satisfatória e nos aconchegando aos cantos próximos aos braços. Finnick se acomoda, por último, no espaço deixado entre os nós dois.

— Tem razão, sem voluntários para os outros já que não contamos com nenhum — respondo meu companheiro de distrito.

Assistimos à retrospectiva das cerimônias na televisão e a sorte realmente não está a nosso favor, pois três pessoas se voluntariam este ano. O garoto do dois é tão musculoso que o trapézio parece saltar para fora e engolir seu pescoço, intimidando qualquer um com um pouco de bom senso. Já o voluntário do um, não é tão forte, parece mais alto e longilíneo. Os músculos estão ali, demonstrando anos de treino e preparação carreirista, porém não são tão hipertrofiados quanto os do tributo anterior. E há ainda uma garota — pelo menos, a referem como uma — também do distrito dois. É muito robusta, de ombros largos e feições quadradas que a fazem parecer um homem. De todos os concorrentes, é a que me dá mais medo.

Muitos voluntários, eu penso. Voluntários são sempre bem preparados e existem prós e contras nisso: o bom é que eles serão meus aliados se eu conseguir uma pontuação razoavelmente alta na avaliação individual; o ruim é que, quando matarmos os demais tributos, terei de enfrentar todos eles para ganhar. E isso não parece muito fácil... ou justo. E, é claro, não posso me esquecer dos sorteados dos outros distritos. Eles podem não ter entrado nos jogos por vontade própria, mas, ainda assim, representam oponentes para mim. Todos queremos voltar de lá vivos e faremos o que for preciso para isso. Se eu me considero uma competidora, grande parte deles também é.

Acabadas as cerimônias, volto para a cabine desolada. Conhecer meus adversários foi uma experiência nem um pouco agradável e minha noite de sono — como de se esperar — não é tranquila. Eu acordo diversas vezes no meio da madrugada e, cansada de fitar o teto branco do meu quarto, resolvo caminhar pelo trem para abstrair a cabeça. Ainda está escuro, mas alguns riscos dourados no céu através da janela do vagão anunciam o término da noite. Percorro o corredor que dá acesso às cabines e não há nada mais que o silêncio: o veículo não faz ruído algum ao se movimentar, sequer parece estar se movendo.

Escuto passos inquietos no aposento de Finnick e sei que ele também está acordado. Considero bater à porta e incomodá-lo, mas por fim resolvo esperar o início do dia para falar com ele novamente. Já basta de preocupações por hoje... Torno meu corpo em direção ao início do corredor e decido voltar a dormir um pouco.

— Ainda acordada?

Eu me volto imediatamente na direção da voz, não que eu precise me virar para identificar o dono. Finnick está parado, com as costas repousadas no batente da porta e os braços cruzados sobre o próprio peito.

— Você precisa descansar... — ele começa.

Eu tenho uma longa semana pela frente... — completo com as palavras de Mags. — Mas por que não fingimos que isto é apenas um divertido passeio até a Capital?

— Annie...

— Por favor, Finn, eu estou implorando. Pare de me olhar o tempo todo como se eu fosse um porco prestes a virar refeição. Isso apenas me deixa pior. Vamos pensar que está tudo bem, pode ser?

— Eu nunca fiz isso — alega sem convicção —, mas como você quiser.

— Obrigada, Finn. Vou tentar dormir um pouco agora...

— A pequena Annie precisa de uma história? Ou prefere uma canção de ninar? — ele brinca e eu tenho um rápido vislumbre do Finnick de antes disso tudo. Uma realidade que, embora seja recente, parece tão distante... Por ser dois anos mais velho, ele costumava fazer piadas sobre a minha idade. Pequena, pirralha e criança são alguns dos muitos apelidos que ele já me deu.

— Oh não! Você cantando para mim? — Encosto o dorso da mão, teatralmente, sobre a testa. — Não sei se conseguiria! Tenho resistido tão firme em não me apaixonar!

Ele solta uma gargalhada, me aninha em seu peito e bagunça os fios do topo de minha cabeça. Retira, então, uma das mãos para ajeitar a mecha de cabelo que atrapalha minha visão e acomoda o fiapo atrás da minha orelha, esquecendo a mão ali em minha bochecha. É bom fingir que está tudo bem e, neste momento, eu realmente acredito que está.

Nós ainda nos olhamos, rindo do momento que se antecedeu e as lembranças boas que ele trouxe, quando seus músculos faciais se relaxam e o sorriso se desfaz. Por alguns breves segundos, seus olhos fixos e hesitantes me intrigam. Desejo saber em que está pensando, mas poderia mergulhar no verde convidativo de sua íris e, ainda assim, não conheceria seus pensamentos mais particulares. Finnick é um poço de segredos: dos quais não se orgulha, os quais não expõe.

— O que foi? — questiono, constrangida com a atenção recebida.

Ele se inclina e nossos rostos se aproximam até estarmos tão perto que quase posso enxergar a colisão das nossas respirações quentes no ar. No entanto — e não entendo o que acontece em sua mente —, ele parece voltar a si e se afasta bruscamente. Balança a cabeça para os lados e pisca os olhos algumas vezes como quem repele um pensamento ruim. Eu sou esse pensamento?

— Você ainda precisa dormir — ele orienta.

Levanto os ombros em indiferença. Finnick empurra as costas contra a porta entreaberta até que permita sua passagem e me puxa gentilmente para dentro da cabine.

— Vamos, você pode deitar aqui... — Amacia a colcha de sua cama com a mão livre. — Estará segura, ficarei de vigia contra possíveis pesadelos e já dormi o suficiente de qualquer maneira.

Eu sei que ele está mentindo, uma vez que não existe a possibilidade de alguém — muito menos ele — ter dormido neste quarto. A cama, os travesseiros e o cobertor estão intocados, ainda gelados pelo contato do ar noturno. O único sinal de que alguém já esteve nesse cômodo é a camisa social apoiada sobre o braço de uma poltrona.

Tento argumentar de alguma forma, dizer o quanto estou sem sono, o quanto temo os sonhos ruins. Ainda assim — quando me dou conta —, estou enrolada nas cobertas de linho e enterrada no travesseiro macio. Finnick acaricia o topo da minha cabeça e enrosca os dedos em meu cabelo enquanto recita os versos de algum poema que eu até então desconhecia. Observo-o por alguns segundos sentado de lado na beirada da cama e logo meus olhos pesam mais do que posso sustentá-los.

Não tenha medo do mar, pescador, não tenha medo.

O mar o assusta porque é belo, o mar o assusta porque é incerto.

Não tenha medo de amar, pescador, não tenha medo.

Sonho com as ondas do poema de Finnick e com o pescador sem rosto. O pequeno barco de madeira não consegue suportar a fúria do oceano e é engulido pela imensidão azul. Sob a água, tudo parece acontecer mais devagar e os cadáveres de minha mãe, meu pai e meu irmão são arrastados pela correnteza. Tento agarrá-los, mas já estão longe. O pescador, no entanto, é experiente e capaz de salvar minha familia. Ele os carrega até a superfície e então sou eu quem está afundando. Onde está o pescador? Sinto-me sufocando sem oxigênio e acordo com o ímpeto de aspirar o ar. Ainda estou ofegando quando encaro as cortinas de cetim do meu aposento.

No café, apenas petisco minha salada de frutas. Mags e Finnick insistem que eu coma outra coisa da mesa extravagante, mas eu realmente não tenho fome. Alguma vantagem possuo sobre os tributos de distritos mais pobres: fui bem alimentada a vida inteira e, mesmo para um distrito rico, minha família tem uma boa condição financeira, o que significa que nunca faltou comida em casa.

O quatro não fica muito distante da Capital e, após poucas horas de viagem, finalmente chegamos à sua magnitude ostentosa. Os prédios são altos e cintilantes e cada esquina excessivamente elegante... A imponência da cidade, no entanto, não me prende a atenção, apenas me faz sentir saudade da simplicidade do meu distrito. Procuro o vislumbre azul do mar entre as frestas das elevadas estruturas de alvenaria e, infelizmente, não o encontro. Meu único consolo é Finnick: seu perfume adocicado em nada se assemelha ao cheiro áspero da maresia, porém é o único aroma que me faz lembrar de casa. Ele é como uma parte de lá que eu trouxe comigo. Meu totem, minha relíquia.

Não tenho tempo para conhecer todo o esplendor da Capital, uma vez que logo sou enviada para o Centro de transformação e abandonada nas mãos dos meus — tatuados, coloridos e cirurgicamente alterados — modeladores. Eles removem todos os meus pelos, cutilam minhas unhas e hidratam meus cabelos com algum tipo de solução nutritiva. Ao final do processo, minha pele pinica, meus olhos ardem e os poucos pelos que restaram ficam eriçados pelo contato do ar frio em meu corpo nu.

Depois do quinto ou sexto banho, aguardo alguns minutos em minha maca e sou surpreendia por uma mulher tão exageradamente branca que eu me pergunto até que ponto é natural. Sua boca saliente está delineada de preto e os miúdos olhos cor-de-rosa são contornados por cílios de mesma cor.

— Olá, sou Ocella, sua estilista — diz enquanto observa as curvas de meu corpo despido com atenção, não deixando passar nenhum detalhe.

— Prazer, sou Annie Cresta — cumprimento um pouco envergonhada com seus olhos críticos e estreitos percorrendo a extensão de minha nudez.

— Sim, sim. Obviamente, eu já sei quem você é, docinho. — E então, ela ergue o olhar. — Eu tinha outra coisa em mente para a cerimônia deste ano, mas pensei em algo mais... audacioso ao conhecê-la. Você tem um belo corpo, garota, devemos explorá-lo.

Eu não sei bem o que esperar. O meu distrito, por ter como principal atividade a pesca, vêm apresentando tributos com escamas, guelras e fantasiados de peixe. Também há pescadores, redeiros... E teve o Finnick que quase não usava roupas. Não vejo relação alguma da nudez com o distrito quatro e, dessa forma, acredito ter sido mera exibição para atrair patrocinadores. Funcionou perfeitamente.

— E o que exatamente vou vestir? — Uma mescla de curiosidade e receio me atinge ao lembrar do comentário sobre meu corpo. — Eu vou vestir algo, não vou?

— É claro que vai, bobinha! — Ela dá uma gargalhada, como se fosse alguma ideia absurda. Estende, então, um roupão grosso na minha direção que, por eu estar ansiosa para vesti-lo, praticamente arranco de suas mãos. — Sente-se, querida. — Aponta para um banco transparente em forma de meia taça.

Eu me acomodo com dificuldade no assento desconfortável e a mulher pigarreia antes de prosseguir com as explicações sobre meu traje do desfile:

— Pois bem... Gostaria de discutir minha proposta. — Ela enrola uma mecha do cabelo prateado com o dedo. — Você, por acaso, já ouviu falar sobre sereias?

Claro que sim, eu penso. Minha mãe costumava me contar algumas histórias quando eu era pequena. Uma lenda muito antiga, mais velha do que a própria história — pelo menos a que aprendíamos na escola. Não é muito conhecida: a maioria dos contos míticos morreu com a civilização que povoava o mundo antes de Panem. Ainda assim, minha mãe estranhamente os conhecia.

Ela me falou sobre essa criatura singular com cauda de peixe e corpo de mulher. Contou-me sobre como sua beleza divina atraía pescadores para a morte; como seu lábios eram desejados, porém sempre intocados e como seu beijo — dado em raríssimas ocasiões — trazia uma nova vida ao sortudo que o recebia... Ela costumava me cantar canções sobre elas antes de dormir e me chamava disso, chamava-me de sereia. Não percebo qualquer semelhança, a não ser o fato de ambas gostarmos da água. Em contrapartida, não sou sedutora, poderosa ou divinamente bela. A última referência de minha mãe sobre essas criaturas marinhas foi há um pouco mais de um dia no edifício da justiça:

“Lembre-se, querida, as sereias são tão inocentes quanto perigosas. Não se subestime!”

E, então, eu respondo à pergunta de Ocella:

— Sim, já ouvi falar sobre elas. — Rio de forma discreta. — Sereias, não é?


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Notas finais do capítulo

Ocella significa "olhos pequenos". É um dos sobrenomes do imperador romano conhecido por "Servius Galba".
Noatun é o palacio de NJORD, deus dos mares da mitologia Nórdica. O apelido Noah é de origem hebraica, equivalente à tradução "Noé" (dilúvio, lembram? Sem spoiler) . Significa "conforto", "descanso", "movimento"... Escolhi devido à personalidade tranquila de Noah.
Gaius, como muitos nomes de THG, tem origem romana. Significa "terra", "enraizar" Faz referência a "origem". Justifico a minha escolha por ele ser a unica pessoa do distrito 4 na arena além da Annie. Acaba fazendo-a lembrar de casa, sua "origem".
— Azeite.



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