Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 21
XX — Segredo


Notas iniciais do capítulo

Gostaria de dedicar esse capitulo à Magicath (Giu) que escreve Our Games , a melhor fic OC de THG que ja li



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Eu estou louca. Eu já suspeitava, mas um anúncio oficial me atormenta. Como acreditar nos meus olhos agora? Como saber o que, de fato, é real? Talvez tudo isso agora também seja uma alucinação. Não seria muito difícil… Eu posso estar na arena neste instante — aguardando pela morte em meu tronco apodrecido — e nada do que eu vejo e sinto é verdadeiro.

Entretanto, as paredes, o ar, Finnick… Tudo é tão real. Não parece uma peça de minha cabeça. Talvez eu tenha mesmo vencido os jogos, talvez meu pesadelo haja, realmente, terminado. E se é verdade e eu ganhei, como teria o feito? Quantos mais morreram em minhas mãos?

Essa pode ter sido uma forma de eu — inconscientemente — esconder minha perversidade. E se eu degolei de forma insensível os demais tributos e não me recordo de nada? Até quando a insanidade pode transformar as pessoas? As mortes, os tremores, a inundação. O que era real? O que era mentira?

Realidade... Imaginação... Errado ou certo? Se eu sequer posso confiar em minhas lembranças, como posso confiar em mim? Nos meus valores, no que eu acredito...

Aquela água toda, na realidade, não existiu, era o sangue que fluía dos corpos mutilados e manchava minha dignidade, apenas mais sangue derramado por mim e eu me fiz pensar que nada disso aconteceu… Não! Eu não posso ter chegado a isso, me recuso a acreditar. Eu não estou louca e não tirei vida alguma. É impossível, certo? Sou incapaz…

A morte do menino da cornucópia, no entanto, comprova o contrário: ele sangra em minha memória, sangra pelas minhas mãos. As lágrimas escorrem sem que eu possa impedir e engasgo com os soluços de minha histeria. Balanço a cabeça de um lado para o outro, tentando repelir as lembranças ruins, mas elas não vão embora. Elas nunca irão.

— Fique calma, meu amor. — Finnick tenta me envolver com os braços e, involuntariamente, me esquivo. — Está tudo bem agora.

Não está tudo bem... Será que ele não percebe que nada está bem? Não quero que as lembranças que eu supostamente omiti reapareçam em minha mente, nem que as memórias lúcidas voltem a me torturar... e, acima de tudo, não desejo sentar na poltrona do horror de Caezar Flickerman para assistir mais mortes, principalmente, causadas por mim.

— Annie? — Finnick interrompe meus devaneios, roubando de volta a minha atenção.

Ele se mantém paciente, aguardando alguma resposta minha. Seu semblante, aos poucos, é tomado por receio e ele repete mais algumas vezes o meu nome, dirigindo-me seus penetrantes olhos verdes. Esqueço brevemente das preocupações e me atenho a contemplar sua beleza. Lembro–me da textura de seus lábios, da sensação de tocar sua pele, do seu abraço acolhedor… Por que parece um passado distante quando ele está bem na minha frente?

— Annie? Você está ai? — ele pergunta preocupado.

Estou tão perto que quase posso tocá-lo, mas é como se eu estivesse em outro lugar. O que está acontecendo comigo? Não consigo me encontrar dentro de mim mesma.

— É o Finnick. Você lembra de mim?

Finnick... É claro que eu lembro. O nome é reconfortante, cada sílaba é melodia aos meus ouvidos, mas, quando separo os lábios para responder — selados pelo tempo que estiveram fechados —, a voz simplesmente não sai.

— Pode falar comigo, Annie?

Posso? Eu realmente não sei. Talvez eu tenha desaprendido como falar, não seria a maior das minhas perdas... Forço o ar para fora e aperto os dentes contra a pele frágil de minha boca.

— Finn? — É tudo que eu digo. Ainda assim, estranho o som da minha própria voz. Acredito ter esquecido, por um breve momento, de como ela é. Isso é possível? As vozes em minha cabeça me confundem, fazem-me renunciar quem eu sou.

— Sim, estou aqui! Sou eu, o seu Finn.

Eu estico meu braço para tocá-lo. A princípio, temo que meus dedos atravessem o nada em vez de parar em sua bochecha, mas, ao sentir sua pele quente e macia, me tranquilizo novamente.

— Você é real — eu digo.

— É claro que sou, peixinho... — Ele não se preocupa em conter as lágrimas e me envolve com os braços. — Estou tão feliz que tenha conseguido. Sabia que voltaria para mim.

Não me manifesto, mantendo-me em silêncio. Eu estou viva, eu sobrevivi, mas não fico agradecida, tampouco contente. O preço que paguei por isso foi alto demais… Quantas vidas custaram a minha? Quantas mortes mancham minhas mãos?

Eu preciso saber e pergunto em voz alta:

— O que aconteceu lá?

Ambos entendemos que me refiro à arena. Finnick suspira e deita minha cabeça no travesseiro.

— Não agora, está bem? Você precisa descansar — insiste.

Eu não respondo, apenas resisto à sua tentativa de me cobrir com o lençol fino e mantenho o olhar erguido.

— Você quer mesmo saber? — ele questiona. — Não é melhor esquecer isso?

— E você esqueceu, Finn?

— Tudo bem, Annie. Você venceu. — ele cede, relaxando os ombros e desistindo de me acomodar ao leito. — Só restavam você, o tributo do dois e a do um. Ele tinha acabado de derrotá-la quando o terremoto destruiu a represa e inundou toda a arena. Havia apenas uma região elevada sem ser alagada. Você estava bem longe, mas foi a única a conseguir chegar no local e, logo depois, o aerodeslizador a tirou de lá. Os médicos já cuidaram dos machucados e, em alguns dias, você estará perfeita novamente. Nós vamos para casa, Annie. Está tudo acabado.

Hesitante, ele aguarda minha reação, provavelmente, se perguntando o quanto deveria ter contado. Continuo imóvel, sem imaginar o que pensar. Eu já sabia, certo? Sabia que todos se encontram mortos. Afinal, como eu estaria aqui se eles não estivessem? Não pode haver mais de um vencedor.

Contudo, a sensação é estranha, como se algo comprimisse a entrada do meu estômago. Por que a morte deles me incomoda tanto? Eu deveria estar satisfeita com a descoberta, não? Pelo menos, há alguma verdade em minhas lembranças e a onda e os tremores realmente existiram. Não era mentira, não sou uma assassina. Foi tudo real...

Sem dúvida, esse foi um dos piores jogos da história: a Capital, inevitavelmente, se entendiou ao assistir jovens sufocarem na água até a morte. Os idealizadores falharam, arruinaram o próprio show. O final dos Jogos não teve nada de emocionante, a não ser, talvez, o combate de Taurus e Gretel. Ele empunhava extremamente bem uma espada e ela era tão ágil quanto letal. Com certeza, foi uma grande disputa.

Somente em nosso universo, isto poderia acontecer: os dois conversavam e riam ao redor da fogueira e agora estão mortos, depois de mutualmente dilacerarem seus corpos em uma luta sangrenta. Não só eles como os demais tributos, todas aquelas pessoas cujas mortes foram necessárias para minha sobrevivência. Decapitados, esmagados, decepados De diversas maneiras, todos mortos. Mortos

E eu, viva.

Estremeço. O pensamento é suficiente para que regressem os fantasmas de minha vitória. Flashes dos jogos e gritos dos mortos ocupam minha mente. Os corpos empilhados no banho de sangue inicial, os olhos sem vida dos tributos abatidos, um tronco incompleto caído sobre os joelhos... Estou de volta à arena e, agora, eu tenho certeza de que nunca a deixei, que a carregarei comigo para sempre.

Sentiu saudades, Cresta? pergunta a voz de Gretel em minha cabeça e, em seguida, as outras se juntam a ela.

Olho para a porta entreaberta do cômodo, temendo que entrem, a qualquer momento, para me buscar. Eles pedem por vingança, seus batimentos silenciaram para que os meus ainda existissem. Logo, os cadáveres daqueles que padeceram surgem da escuridão e estendem os braços putrefatos para me machucar. As unhas cortam minha carne. Não é real, recito mentalmente, mas dói como se fosse.

Desejo correr, fugir para longe, porém os tubos e ataduras me acorrentam à cama. Toda vez que me debato, sinto a borracha transparente se mover em meu braço e o vermelho novamente aparece, colorindo o branco do lençol.

— Você precisa se acalmar, Annie. Está se machucando.

Fecho os olhos e bloqueio os ouvidos. Eles ainda chamam meu nome, reconheço cada voz em meio ao coro angustiante.

— Annie, está me ouvindo?

— Me deixem em paz! eu suplico entre as lágrimas.

Finnick retira uma de minhas mãos da orelha e a envolve com as suas.

— Eu estou aqui, meu amor! Comprime minha veia aberta com um algodão. Ninguém pode machucá-la agora.

As lamúrias cessam, a floresta desaparece e estou de volta ao quarto marmóreo do hospital. Apenas sua voz pode silenciar as outras.

— Não me deixe sozinha eu imploro. Por favor!

— Não vou a lugar algum, eu prometo.

Suas palavras me dão segurança. Ao seu lado, tenho um vislumbre do que pode voltar a ser felicidade. Algo parecido com um sorriso tenta ocupar meu rosto, mas não permito que essa sensação me possua novamente, não quando ela sempre precede a perda. A esperança é um sentimento disforme, impostor, que nos faz acreditar que o pior já passou quando ele ainda está por vir...

— Finnick eu chamo, me desvencilhando do aconchego de seu peito para fitá-lo nos olhos e anunciar: Eu tenho um segredo.

Minhas palavras são indignas de sua real atenção. Quantas frases sem sentido alguém mentalmente perturbado poderia elaborar?

— Tenho um segredo repito vacilante. Estava devendo um segredo, não estava?

Ele me avalia, decide que há coerência em minhas palavras e prossegue calmamente:

— Sim, conte-me o seu segredo...

Engulo em seco, cogitando a possibilidade de encerrar a conversa, mas tenho certeza de que não poderei adiá-la para sempre. As vozes, as memórias e as lágrimas são, agora, minhas companheiras devotas. Por que tenho a impressão de que os gritos nunca irão embora?

— Eu... Eu estou... — arrisco hesitante, incapaz de terminar a frase. Finnick se mantém calmo, esperando que eu continue, embora eu o perceba beirar a desistência.

— Eu estou…

Louca, é o que eu sou, o que eu me tornei. A palavra anseia ser proferida, mas não posso permitir.

— Os jogos me mudaram. — É o que eu digo. — Não sou a mesma Annie que você conheceu.

— Não fale assim. Você sempre será minha Annie!

— Você estava na arena, você estava... Você...

— Sim, minha querida, eu também estive lá e venci como você. Ele acaricia minha bochecha. — Vamos superar isso juntos.

— Comigo eu o corrijo, esquivando meu rosto de seu toque —, você estava lá comigo, mas não era você!

Recordo-me da criatura maligna que possuía sua aparência. A crueldade estampada nos olhos e as mãos manchadas de sangue. Não era ele, aquilo não foi real! É o que eu tento dizer para mim... No entanto, a garota histérica de minha visão realmente existiu, seu companheiro Atlas também. E ambos foram mortos pela mesma pessoa...

— Annie? Do que está falando?

O clarão repentino de um relâmpago desvia minha atenção para a janela. As primeiras gotas de chuva deslizam pelo vidro dançando em sincronia e estalam contra o anteparo de mármore. Escuto o estrondo de um trovão e me encolho mais nos braços de Finnick. O som me lembra um canhão e, sem que eu perceba, minhas mãos vão aos ouvidos.

— Annie? ele chama preocupado. Está tudo bem?

— Eu estou louca, não estou?

— Não, é claro que não ele tenta me tranquilizar. Você só está... assustada.

— Você estava lá comigo. Como poderia estar lá? Achei que fosse me machucar.

— Eu nunca a machucaria, meu amor. Você precisa descansar, isso tudo vai passar.

— Não vai passar, não vai ficar tudo bem! Eu tive medo de você e agora tenho de mim. Nós dois somos assassinos.

— Você teve medo de mim?

A tempestade piora do lado de fora da janela. A noite escura é, frequentemente, entrecortada por raios e clarões. Primeiro o relâmpago e, segundos depois, o trovão. Sempre nessa ordem. A luz é o prelúdio de minha tormenta.

Finnick nota minha inquietação e se levanta para fechar as persianas, desprendendo, então, as nossas mãos unidas.

— Não me deixe eu protesto —, nem por um segundo! Eles voltarão se você se afastar.

Finn me observa confuso, se acomodando novamente à cadeira e entrelaçando nossos dedos como antes.

Eles? — pergunta hesitante.

Respiro fundo, tentando pensar na melhor forma de explicá-lo. Aproximo meus lábios de sua orelha e, mesmo que ninguém mais possa me ouvir, sussurro de forma quase inaudível:

— Eu avisei que tinha um segredo.


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Notas finais do capítulo

Em sua edição, Annie testemunhou seu parceiro de distrito ser decapitado, o que a levou à insanidade. Ela possui alguns problemas que incluem fechar os olhos e cobrir as orelhas, olhar para a distância assustada e, às vezes, rir quando não é necessário.” – The Hunger games wiki (tradução).

Só pra matar a saudade daquelas informações inúteis, mas interessantes: o relâmpago geralmente acontece antes do trovão porque a luz se propaga mais rápido do que o som no ar. Logo, o trovão que ouvimos a seguir é o barulho resultante da mesma descarga elétrica do relâmpago.