Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 2
I — Não é um pesadelo


Notas iniciais do capítulo

“Então ela é o amor de Finnick, eu penso. Ninguém daquela fileira de amantes bonitinhas que ele tem na Capital, mas uma pobre coitada louca de seu distrito.” Katniss sobre Annie Cresta, Em chamas. Página 369.



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Quatorze anos atrás

Torço o cabelo molhado para tirar o sal. Finnick emerge um pouco depois, as ondas ainda molhando os pés e a derrota estampada na face.

— Você é menor e o mar a leva — ele se queixa.

— Aaah! Admita, Finn, você perdeu. Posso não ser boa com um tridente, mas sou uma nadadora melhor.

— Eu deixei você ganhar! — Solta uma gargalhada. — Veja como sou um cavalheiro!

— Não seja mentiroso

Arremesso um bocado de areia molhada em sua direção. Finnick desvia, mas parte do bolo se desprende do restante e salpica sobre seus ombros.

— Sua mira é mesmo horrorosa, Annie!

O canto da boca se encurva em um mal-intencionado sorriso, ao mesmo tempo que ele apoia os joelhos na areia e aglomera um pequeno montinho com as mãos. Eu sei o que ele pretende fazer...

— Não, Finn! Não!

Percebo que negociar não é uma opção, logo, corro antes que me bombardeie. Sou atingida nas costas e panturrilha, no entanto, consigo acertá-lo bem no peito. A lama arenosa impregna nossas vestes e se emaranha em meu cabelo, tornando a corrida mais difícil.

Divirto-me agora com Finnick, o que é bom depois de um dia chato. A manhã foi tediosa: aprendi sobre correntes marítimas e os tipos de madeira para fabricar barcos pelo terceiro ano consecutivo. Sem falar na monótona aula sobre o período de reprodução dos peixes... Quem se importa com a vida sexual dos peixes? É um pouco patético o fato de a educação do distrito quatro girar, exclusivamente, em torno da pesca.

— Ainda terei minha revanche! — Ele me aponta o dedo, sorrindo.

— Tudo bem, só não se esqueça de vir sem almoçar! — eu brinco. — Guarde espaço para mais água!

— Como ousa? Ninguém zomba do poderoso Odair!

— Exibido!

Empurro-o para trás e ele me arrasta junto, puxando pela bainha da blusa. Ambos caímos atrapalhados. Consigo me apoiar com as mãos e joelhos, ao mesmo tempo que ele afunda as costas na areia fofa. As nossas risadas combinam harmoniosamente com o chiado das ondas, como se os dois sons coexistissem naturalmente. Poderíamos ficar assim por horas, vivendo este momento para sempre. Contudo, o sol no topo do céu — bem acima de nossas cabeças — indica que é chegada a hora de ir.

— Nos vemos na cerimônia, então? — ele se despede com um abraço.

— Eu verei você, não é? — grito por cima do ombro ao me afastar. — Mas talvez você consiga me encontrar também.

— Darei um jeito, Peixinho! Eu sempre dou!

Volto correndo para casa. Não posso me atrasar, afinal, hoje é o grande dia. A colheita anual dos tributos me preocupa, ainda assim, tento não pensar muito sobre isso. Parece um absurdo ignorar a perspectiva de que talvez eu vá, contra minha vontade, para o jogo mortal em que disputarei com outros 23 jovens de toda a Panem. No entanto, aqui no distrito quatro, tendo o azar de ser sorteado, ainda se pode contar com o voluntariado de alguém que se sinta preparado. E parece que a sorte está ao meu favor, pois candidatam-se aos montes para isso. Pergunto-me como deve ser nos outros distritos mais pobres, onde não existe esperança além da remota chance de sobreviver à arena. A colheita será uma experiência bem mais assustadora para eles.

— Está atrasada.

Chegando em casa, uma mulher de cabelos longos e negros aguarda sentada na cadeira de balanço da varanda. Ela caminha para fora da cobertura da marquise e me saúda com um beijo na bochecha.

— Desculpe, mãe. Dei um pulinho na praia depois da escola.

Ela ri com certa formosura. A mulher que me deu a vida é de uma beleza genuína e singular, ofuscada pelas rugas de preocupação que se formam na testa e canto dos olhos verdes.

— Novidade... — ironiza num tom amistoso enquanto esfrega a mancha grudenta de batom em meu rosto. — Agora, apresse-se, jovenzinha! Você tem meia hora para se arrumar! — Ela pousa os olhos em meu cabelo bagunçado. Percebo o quão caótica é a situação através de suas sobrancelhas franzidas e lábios torcidos. — Certo. Talvez uma hora...

 

Mais tarde — de banho tomado e madeixas devidamente domadas —, abro meu armário e tateio a fileira de cabides. Praticamente intocadas devido à ausência de eventos extravagantes como esse, as roupas vão sendo descartadas à medida que outras tomam seus lugares diante minha breve avaliação. Rosa, amarelo, lilás... O que vestir para a Colheita? Nada parece adequado à situação. Ou talvez a situação em si não pareça adequada... Contudo, após poucos minutos e exatas nove peças de roupa empilhadas, estou dentro de um vestido azul turquesa — que contrasta com minha pele bronzeada — e usando o par de brincos de pérola que repito todos os anos. Aventuro-me, inclusive, em um batom rosa claro perdido na gaveta de meias. É uma ocasião especial, é claro.

Desço as escadas e me reúno ao restante da família na sala de estar, onde meu pai está elegante em um terno preto usual e gravata verde-musgo. Minha mãe se encontra tão bela quanto os seus trinta e sete anos permitem, com a saia justa e maquiagem espessa ocultando as marcas da idade. Meu irmão caçula — jovem demais para entender ou participar dos jogos — fica engraçado na camisa engomada e, frequentemente, reclama das golas pinicando.

— Todos prontos? — meu pai pergunta, tentando manter a casualidade por trás da preocupação de ter sua primogênita sorteada.

— Sim, querido. — consente mamãe. — Já está na hora.

Deixamos nossa casa na orla do distrito e caminhamos juntos para a concentração que se dá todos os anos na praça principal. Meus pais e meu irmão me acompanham até onde é permitido e o resto do caminho — após o cercado dos jovens de doze a dezoito — sigo sozinha. Encontro alguns colegas de classe no caminho e reconheço outros diversos rostos apreensivos, todos enfileirados à espera de um veredicto. Meu amigo de infância não está entre eles. Depois de vitorioso, Finnick possui um lugar especial no palco.

Éolo Babity caminha em direção ao microfone no centro do palanque, os sapatos de bico fino fazendo um barulho agudo toda vez em que ele se desloca sobre o piso. O mestre de cerimônia ajeita o chapeuzinho amarelo preso em um dos cantos superiores da cabeça, pigarreia sutilmente e começa, outra vez, a mesma ladainha anual:

Panem se ergueu das cinzas de uma civilização primitiva... Os Dias Escuros abalaram o equilibro — ou falta dele — entre a Capital e os distritos... O distrito treze foi destruído... Os Jogos Vorazes são um lembrete da nossa submissão... Nós devemos ser gratos à generosidade do nosso líder. Eu já sei tudo de cor, a história inteira. Existe tanta novidade quanto veracidade nesse discurso.

— Gostaria de chamar os nossos mentores deste ano ao palco! — ele anuncia em seu sotaque rebuscado da Capital. — Por favor, subam aqui nossos queridos Finnick Odair e Mags Cohen!

Os dois o fazem calmamente. Mags é uma senhora de, pelo menos, setenta anos que vem se mostrando muito perspicaz na orientação dos tributos há vários anos, uma vez que eles ficam, quase sempre, entre os finalistas. E tem o Finnick, o mais bonito morador do distrito e talvez de toda Panem, com seus cabelos cor de bronze — arrumados para a ocasião — e físico escultural.

Eu o conheci há vários anos quando ainda era criança, um garoto comum, filho de um pescador. Não um vitorioso. O número de tributos voluntários femininos aumentou significantemente desde que ele se tornou mentor. Pergunto-me se elas têm a esperança de receber o mesmo tratamento das damas da Capital quando são orientadas. E eu sei que existe uma espécie de fila gigantesca lá para conhecer de perto — e já suponho o quão perto — o famoso Odair. O pensamento é repugnante, porém não conversamos a respeito. Finnick não é do tipo que se gaba — não sobre isso, pelo menos — e nós estamos bem assim: ele foge do assunto e eu finjo não saber.

Logo, o queridinho da Capital me encontra na multidão e abre um largo sorriso. Indiferente aos suspiros, rouba toda a atenção que deveria ser dada às tagarelices do nosso mestre de cerimônia. Ouço cochichos de meninas à minha volta se perguntando se o sorriso é para alguma delas. Entretanto, quando Éolo move teatralmente sua mão pelo globo de vidro com os nomes, todas as cabeças — inclusive a minha — se voltam para ele.

— É chegada a hora, meu caros! Conheceremos, enfim, os jovens que terão a honra de representar o distrito quatro na Septuagésima Edição dos Jogos Vorazes! — ele retira o papel, ainda dobrado. — Sem mais delongas, damas primeiro!

Uma pobre alma será sorteada, talvez alguém assuma seu lugar e eu voltarei para casa novamente. Comeremos alguma coisa gostosa no jantar, algo diferente de peixe. Então, depois deste, apenas mais um ano e tudo estará acabado: os tributos só podem ter até os dezoito. Felizmente, estarei de fora antes da Septuagésima quinta edição, o terceiro massacre quaternário. Já existem boatos sobre o quão mais horrível será que os jogos tradicionais e até que os massacres anteriores. Afasto o pensamento e, por enquanto, me contento em mais um ano sem ser convidada para a morte.

As mãos enluvadas de Éolo desembrulham o papel e a tensão na praça principal atinge seu ápice.

— Senhoras e senhores, o tributo feminino a representar o distrito quatro este ano é....

Não é um pesadelo.

Penso ter ouvido errado quando Éolo pronuncia “Annie Cresta” no microfone. As palavras ecoam em minha cabeça e ele precisa repetir mais duas vezes para eu me dar conta de que é real. As cenas mais abomináveis dos últimos jogos me vem à mente: um tributo arrancando o olho do oponente com as mãos, outro sendo desmembrado por enormes bestas selvagens e uma garotinha cortada ao meio, gritando ao ver a metade do corpo afastada e seus órgãos espalhados na grama. Eu assisti a tudo na televisão, não se passava comigo, era uma realidade distante. No entanto, agora não haverá uma tela nos separando e farei parte disto. Serei o espetáculo.

Não penso em procurar outra pessoa. Neste momento, mais do que em todos, preciso de seu sorriso tranquilizador para me mostrar que está tudo bem, que não se passa de um equívoco. Infelizmente, não há sorriso. O rosto pálido, a expressão incrédula e olhos verdes imóveis. Não restou nada do Finnick que eu conheço.

Pacificadores me conduzem. Espero um “Desculpe, foi um engano, volte para o seu lugar” enquanto subo as escadas sinuosas até o palco, mas infelizmente não recebo. Tampouco, se oferecem em meu lugar quando Babity pergunta por voluntários. Que espécie de criatura desprezível eu poderia ser para ninguém me poupar de um destino tão cruel? Não sou boa em absolutamente nada quando se trata de luta. Apostaria em minha morte no primeiro dia.

Embora tenha tido aulas com instrutores da academia, tentei de tudo e nunca encontrei algo que fosse boa. Todos os pais sensatos gostariam que seus filhos tivessem a chance de sobreviver, caso fossem escolhidos na Colheita, e os meus obviamente são. Inscreveram-me em aulas para melhorar habilidades de sobrevivência e combate. Sem sucesso. Eu tentei armas de longa distância e quase acertei uma faca em um dos alunos. As pesadas, sequer pude levantar... Não fui tão mal com armas leves de confronto direto — consegui replicar alguns movimentos básicos —, mas sou pequena e frágil demais para concorrer com qualquer um dos competidores que optam por essa categoria. Já posso me considerar morta.

Vários olhos me observam. Avisto meu pai aparentemente controlado, tentando estabilizar a mulher em seus braços. Minha mãe se debate e grita por mim ao mesmo tempo que ele a segura pelo tronco. Estou longe demais para falar qualquer palavra de conforto, o que é bom, já que não saberia o que dizer. Ela assistirá à morte da filha ao vivo pela TV e não há praticamente nada que eu possa fazer para impedir.

Posiciono-me ao lado de Finnick no palco, tentando parecer forte. Ainda assim, meus olhos molhados me embaçam a visão. Tenho a impressão de que uma lágrima escorre pela maçã do meu rosto até a minha boca e seu gosto salgado comprova que sim. Ótimo, eu estou chorando na frente de toda Panem, penso comigo. Ninguém patrocina uma medrosa chorona.

— Fique calma, não vou permitir que a machuquem — Finnick sussurra em meu ouvido, me fazendo suprimir um soluço. Ele está errado, não pode me proteger, não na arena. Estarei sozinha, a não ser pelos outros tributos que tentarão me matar.

Éolo pergunta minha idade e me parabeniza por ter sido sorteada, o que me intriga mais do que aborrece. Ainda que entrar os jogos seja um honra aos olhos da Capital, que mérito tenho eu por ser o maldito pedaço de papel entre os demais? Nunca comprei uma téssera sequer, não pus meu nome mais vezes do que o necessário e, acima de tudo, não me voluntariei para estar aqui. As mãos de Éolo são mais culpadas do que eu mesma nessa história, mas obviamente sou eu quem recebe os parabéns.

O enviado da Capital prossegue com a cerimônia, já que está animado demais com o evento para reparar minha inquietação. Ele chacoalha os dedos entre as tiras com os nomes masculinos e chama por “Noatun Gaius”. O outro tributo sobe ao palco tão assustado quanto eu e uma histérica garota de cabelos ruivos é contida por pacificadores ao tentar segui-lo. Reconheço vagamente o rosto do garoto e, pelos gritos da companheira, sei que atende por “Noah”. Já nos cruzamos algumas vezes, talvez na rua... ou quem sabe na escola? Não importa, definitivamente não importa. Ele nunca teve uma influência ínfima em minha vida e agora deve morrer para que eu viva. Desvio o pensamento, apesar de que, em breve, terei de encará-lo novamente.

 


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Notas finais do capítulo

Não fica explícito nos livros se Annie e Finnick se conheceram nos jogos da Annie ou antes disso (apenas que Finnick seria seu mentor). Eu pensei em fazê-los se conhecer agora, mas gostei da ideia de "melhores amigos de infancia" dos fan videos do youtube :)

Segundo a autora, o sobrenome de Mags é Cohen que significa "sacerdote". Também é o sobrenome da atriz que a interpreta e não sei se foi uma homenagem ou coincidência.

Éolo é o deus dos ventos na mitologia greco-romana.
Escolhi esse nome porque Jogos Vorazes tem influência romana muito forte, principalmente os nomes da Capital e do Distrito dois ( Caesar Flickerman, Claudius Templesmit, Colarianus Snow, Seneca Crane, Brutus, Enobaria, Cato entre outros).

O que acharam do capitulo, peixinhos? Digam nos comentários!
— Azeite.