Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 16
XV — Generosidade


Notas iniciais do capítulo

Um agradecimento especial à Lima (sim, é so isso o nome haha) que escreve a fic de Finnie mais fofa já li na vida!! Onde a annie é uma maluquinha de cabelo rosa!!
Beijos, espero que gostem!!



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Guardo dois odres de água e algumas frutas ressecadas dentro de uma mochila escura e a escondo entre os objetos da pilha. Finnick orientou que a deixasse preparada para quando eu me afastar. Ainda não identifico minha deixa para fugir, mas mantenho os suprimentos a postos. Será melhor tê-los do que sobreviver na floresta caçando, habilidade a qual não detenho.

Retorno disfarçadamente para frente da barraca com um pacote de castanhas na mão. Abro o saco e as como de forma automática, parando apenas quando o sal arde em meus lábios cortados. O hino toca ao mesmo tempo que as baixas do dia aparecem no céu, anunciando a morte de Hansel e da garota do sete. Isso apenas confirma a teoria de que o casal do seis está envolvido na armadilha: quanto menos sobreviventes, menos suspeitos.

Ao meu lado, Gretel cutuca um sapo amarelo com uma vareta, fazendo-o dar pulos desajeitados de um lado para o outro. Observo mais atentamente as pintas vermelhas em sua pele enrugada e cheia de verrugas.

— Pode ser venenoso. — Recordo-me vagamente das instruções do treinador da capital sobre tudo que é colorido. — Melhor tomar cuidado.

— Eu sempre tomo cuidado. — Ela sorri e levanta o saco vazio de castanhas. — A propósito, ainda vai comer?

— Já acabei. — Dou de ombros.

Ela entorna o pó remanescente na palma e salpica sobre o sapo.

— Hansel costumava fazer isso — diz enquanto o anfíbio se retorce e agoniza com o efeito do sal na pele fina.

— Encantador.

Gretel desfaz o sorriso e, imediatamente, se defende:

— Ah! Sei que para você somos todos monstros sem coração, mas está enganada!

— O quê? Eu jamais...

— Você não gostava de Hansel — Ela interrompe calmamente. — Eu percebi. Fiquei triste quando ele morreu, mas o que poderia fazer? Chorar? Ficar de luto? Todos sabemos o que acontece aqui, porém eu o admirava, foi o quinto garoto que eu beijei. É claro que tiveram outros depois, mas ele foi um dos primeiros, sabe? Essas coisas ficam marcadas.

— Oh! — Não faço a menor ideia do que dizer. Quinto? Com dezessete anos, a única pessoa que eu tive qualquer contato íntimo foi Finnick. E Hansel, ainda assim, foi um dos seus primeiros? Quantos mais ela... Ignoro o pensamento. Não é da minha conta, digo a mim mesma. De que importa, afinal? Temos realidades diferentes, não posso julgá-la por isso.

— É uma pena ele ter morrido tão cedo... — lamenta sem, no entanto, demonstrar muita emoção. Parece aliviada por não precisar matá-lo. — Achei que fosse ser um dos últimos.

Lembro-me do garoto que torturou aquele leão há algumas horas e se divertia com o sofrimento. Não consigo sentir compaixão.

— Ele se voluntariou para isso, não foi?

— Sim, mas as coisas são diferentes lá no um. Hans já tinha dezoito, era seu último ano. Não é tão simples quanto parece. — Percebo a sinceridade em sua voz. — Depois de uma vida inteira de treinamento, ou você se candidata ou se torna um covarde para sempre. Ter uma desistência na família é um desgosto imensurável. Você desaponta a seus pais, à Academia, a todos. Não é algo confortável de se conviver.

Mantenho-me quieta, ainda perplexa. Eu já sabia da existência de famílias em que os jovens são incentivados a fazerem parte disto. Pais que inscrevem seus filhos desde pequenos na Academia e os forçam a se voluntariar por fama, dinheiro ou boas condições de vida. No próprio quatro isso acontece bastante. Já no um e no dois, a indústria carreirista é muito mais forte e não desconfio da veracidade da história de Gretel.

— Além disso, o sorteado tinha apenas quatorze, alguém precisava se voluntariar — ela completa —, nosso distrito não envia oferendas, Cresta. Apenas vitoriosos.

— Me desculpe — retrato-me com sinceridade. — Eu não quis ofender.

— Tudo bem. Não ofendeu.

Desvio os olhos para Taurus que comprime um odre acima cabeça para extrair toda a água de dentro. Ele está sem camisa e o que me chama atenção são suas costas cobertas por extensas cicatrizes rosadas de cortes e queimaduras. Algumas são mais encorpadas, outras parecem antigas, mas todas são igualmente grotescas.

— Dizem que o próprio pai o fez isso — Gretel sussurra em meu ouvido, depois de provavelmente notar o foco de minha atenção. — Também é seu mentor. Brutus, lembra dele?

— Vagamente... Mas por que faria isso ao filho?

Gretel chacoalha os ombros.

— É bem comum em meu distrito alguns dos carreiristas se mutilarem para não temerem a dor. Não duvido que isso aconteça no Dois também... — explica minha aliada e, pela primeira vez na vida, eu sinto pena de Taurus. — Acho meio idiota, na verdade. Com medo ou não, ainda podemos sangrar até a morte e cicatrizes nunca são boas para a aparência.

O tributo do dois se vira para nós e, por um momento, me pergunto se ele é capaz de nos ouvir. Descarto a possibilidade por ele estar a uns dez metros de distância, mas o carreirista levanta uma bolsa e caminha em nossa direção. Droga. Ele nos ouviu. Engulo em seco ao imaginar aquelas mãos enormes em torno do meu pescoço.

— A água acabou! — alega, arremessando alguns cantis de alumínio próximo a onde estamos sentadas. — Preciso que busquem mais!

Suspiro aliviada por esse ser o motivo da sua vinda.

— Não entendo... Por que sempre mandam as mulheres buscarem água? — pergunta Gretel aborrecida.

Devo admitir que ela tem certa razão, mas eu sei por que me mandam buscar água, tenho certeza do motivo: porque sou inútil para quase todo o resto. Não ouso questionar. Gretel, no entanto, é mais forte e melhor lutadora. Não se submete tão facilmente.

— Porque alguém precisa ficar vigiando o acampamento — meu aliado responde rispidamente. — E esse alguém sou eu.

— Ora, onde estão seus modos, grandão? — A morena ronrona perto de seu ouvido. — Isso é jeito de se falar com uma garota?

O carreirista enrijece a postura e uma discreta tonalidade salmão preenche suas bochechas. Parece embaraçado com a situação.

— Chega de conversa e vão logo buscar essa maldita água! — Bagiot intervém impaciente, recebendo um olhar de reprovação da aliada do um. — Não quero morrer de sede porque vocês ficam enrolando...

Recolhemos as coisas e seguimos nossa pequena missão. Mesclo minha mochila de fuga em meio às que levamos para trazer a água, avaliando a possibilidade de escondê-la pelo caminho. Na subida, agarro as rochas proeminentes e impulsiono meu corpo para cima, tomando sempre cuidado para não perder o apoio dos pés. Uma vez que ambas somos ágeis e leves, não temos problemas em escalar a barragem rapidamente.

Vão buscar logo essa maldita água! — Gretel imita a voz rouca de Bagiot enquanto subimos pelas rochas ingrimes. — Olhem para mim, tenho tantos músculos que não preciso de um cérebro.

Nós duas gargalhamos em conjunto. Eu estou mesmo me divertindo com a garota sádica do distrito um? Certo, agora sim está tudo errado. Pelo menos, alguma coisa temos em comum, ainda que seja a aversão à Bagiot e, por mais que Gretel me desagrade, não vejo maldade em sua essência. Talvez possua algumas tendências psicopatas, mas quem de fato é normal? O nosso mundo a fez assim...

Quanto mais tempo passo com os carreiristas, mais vejo o quanto se assemelham a mim, o quanto são humanos. Taurus esconde um adolescente inseguro por trás da imagem inabalável, apenas um filho de vitorioso que jamais teve opção de se negar à arena. E quanto a Bagiot que deformou o próprio corpo para estar aqui? Que chances teria como uma garota comum com aqueles ombros enormes e rosto hediondo? Quem poderia gostar dela?

É claro que não posso me esquecer de Noah que, de carreirista, tem apenas o distrito e a habilidade com facas... Jamais fez parte de minha lista oficial. Todos eles são tão vítimas quanto eu nisso, não vilões como eu imaginava. De repente, me lembro o porquê de eu ter abandonado a academia. Eu tinha doze anos quando me deram um coelho para que eu cuidasse durante uma semana. “Para criar responsabilidades”, eles disseram e eu tomei conta do animalzinho como minha mãe cuidava do meu irmão mais novo. Quando eu o levei de volta, eles o torturaram e esfolaram vivo na minha frente. “Assista, Annie, piedade é para fracos”, ainda tenho pesadelos com esse dia. Fiquei traumatizada, é claro, e meus pais me tiraram da academia. Depois, eu soube que obrigavam os alunos a torturarem outros animais para se acostumarem com o sofrimento. Ensinavam que aquilo era certo, que não havia nada de errado em matar. Transformavam crianças em monstros, assassinas sem emoção, mas costumavam chamá-las de “orgulho do distrito”.

Perdida em lembranças, retorno a me concentrar na subida e respiro mais fundo para recuperar o fôlego. Alcanço o topo em poucos minutos e me empoleiro na margem da represa. Afundo um cantil na água, observando as borbulhas deixarem o interior da embalagem de alumínio e se desfazerem na superfície. Gretel se põe de pé e se equilibra na estreita extremidade da barragem. Não se incomoda com a altura — cuja queda pode ser fatal — e retira as suas vestes devagar. Primeiro a bermuda, depois a camisa, até ficar inteiramente nua.

— O que... está fazendo? — pergunto confusa.

— Vou tomar um banho — responde indiferente, como se não houvesse nada de anormal no fato de ela estar pelada — e não quero ofender, mas você também está precisando!

— E-Eu... — gaguejo desviando os olhos de sua nudez. — Você precisava mesmo retirar toda a roupa?

A carreirista abre um largo sorriso.

— É óbvio que não! — Ela pisca um dos olhos e adentra a água. — Mas isso não me impediu de retirar, não é?

Permaneço mergulhada em pensamentos, enquanto minha companheira desfruta de seu banho e nada em círculos próximo à margem. A visão das costas nuas de Gretel me prende a atenção por um momento. Reparo em como a pele acobreada parece reluzir sob o brilho tênue da lua e me dou conta de que ela não possui o cabelo loiro ou pele pálida característicos de seu distrito. Os olhos estreitos, sobrancelhas marcadas e madeixas escuras destoam como o vermelho em nossas vestes sujas. Ela é um peixe fora d'água, sem a graça e sutileza de suas antecessoras nos jogos, mas mortífera até no olhar.

Entediada, Gretel se debruça na beirada, erguendo o dorso para fora da água. Ela me deixa ligeiramente desconfortável com a porção do corpo exposta, mas logo percebe o meu incômodo e recua de volta para a água.

— Não se preocupe, isto não é para você. — Aponta para os seios descobertos. — É para a audiência. Não vou atacá-la ou algo do tipo... Bem, a menos que você tenha se cansado do bonitão e...

— Para a audiência? — interrompo-a, elevando uma sobrancelha.

— Peitos, nudez, entretenimento... Como você preferir chamar.

— Seus pais devem estar orgulhosos agora — eu ironizo. Desta vez, sem o meu usual tom de desdém.

Ela solta uma risada e encoraja:

— Vamos, entre também! Eu sei que você curte nadar, garota-peixe.

Retiro então o meu traje — ficando com as roupas de baixo, pelo menos — e mergulho na água límpida. A represa é muito profunda para tocar os pés no chão e, portanto, balanço os braços para me manter emergida. Os meus cortes e feridas pelo corpo formigam em contato com a água gelada, o que de inicio incomoda, mas dá lugar ao alívio em seguida.

Ignoro a realidade por algum tempo enquanto flutuo sem resistência. Uma sensação de paz, serenidade, que encontro em meio ao caos. Assemelha-se a aqueles segundos imediatamente anteriores a adormecer em que o corpo se desliga e a mente permanece consciente. O único momento em que não pensamos. Não sonhamos. Esquecemos de existir.

Infelizmente, como nada que é bom pode durar para sempre, me apronto para regressar. Já estamos muito tempo aqui em cima e os outros darão nossa falta. Visto as roupas com dificuldade devido ao tecido que gruda na pele úmida e nós duas descemos até o acampamento carregando as bolsas com a água. Caminho devagar — permitindo uma distância entre eu e Gretel — e escondo a mochila com os suprimentos em um arbusto. Como estou concentrada em não ser notada, o som de trombetas me pega de surpresa e me rouba um gritinho. Gretel imediatamente se vira para trás e nós duas apertamos o passo para encontrar os outros.

— Atenção, tributos! Atenção! — É a voz de Claudius Templesmith nos alto-falantes. — Convido a todos para uma agradável reunião amanhã ao meio-dia no ponto mais alto da arena. Seremos generosos este ano, portanto, sugiro que não ignorem este aviso!

O narrador dos jogos faz uma pausa, permitindo que troquemos algumas palavras.

— Ponto mais alto? — sussurra Noah. — Seria a barragem?

— Acho que sim — confirmo baixinho.

Shh... Deixem ele terminar! — Bagiot nos repreende.

— Lá, vocês encontrarão algo que vão precisar, embora não saibam ainda. Um presente imprescindível para sua sobrevivência. — continua Claudius. — São apenas cinco deles, dessa forma, nem todos poderão usufruir da nossa generosidade. E é melhor não se atrasarem, pois nós não daremos outra chance! Desejo a todos uma boa sorte!

— Nós somos cinco! — exclama Gretel, enquanto a voz do narrador ainda paira no ar. — O número está certo.

— Quantos mais restam na arena? — questiona Noah.

— Cinco também — responde ela. — Os dois do seis, o garoto do sete, o do dez e a mãos-de-manteiga.

— Estão todos juntos? — É Taurus agora.

— Só não sabemos dos tributos do sete e do dez — respondo.

— Se eles ainda não são aliados, é bem provável que se juntem agora... — Noah leva a mão ao queixo, pensativo. — Devemos tomar cuidado.

Seja qual for o desfecho desse confronto, a Aliança não resistirá por muito tempo. Tenho a mochila escondida na base da represa e, depois de recolher o presente da Capital, posso desaparecer tranquilamente. Não preciso de um sinal de Finnick para perceber que é chegada a hora de partir.

— Dois de nós podem esperar no topo da barragem enquanto os outros aguardam aqui em baixo — sugere Gretel.

— É um bom plano — Taurus admite.

Eu já tenho ideia de quem será enviada à missão menos perigosa. Posso até ouvir o “Busque as nossas recompensas, Cresta, enquanto cuidamos do perigo real”. É claro que eu não me oporia, não faço questão alguma de participar de uma batalha sangrenta. Esta é a oportunidade perfeita para fugir, pois precisarei despistar apenas um aliado para sumir sem que os outros percebam.

— E quem vai escalar a barragem comigo? — pergunto, por fim.

Os outros trocam olhares desanimados. Todos estão ansiosos para uma luta e não querem perder a chance de reafirmarem suas habilidades para o público.

— Eu posso ir com você — Noah se oferece sem aparentar descontentamento.

Um sorriso tímido se abre em meu rosto. Noah, é claro. Questionei meu aliado quando sugeriu que o chamasse de “amigo” hoje mais cedo e, agora diante dessa situação delicada, eu compreendo perfeitamente. Gostaria de ir sozinha, seria a melhor forma de escapar sem ser percebida. No entanto, amigo é aquele que você, mesmo tendo todos os motivos do mundo para querer estar só, fica feliz por ter a companhia. Parece que, contra todas as probabilidades possíveis, eu encontrei um amigo aqui.


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Notas finais do capítulo

Sapos, apesar de possuírem pulmões, têm como principal via de respiração a pele (via cutânea). Quando se joga sal no sapo, absorve-se a umidade e impede que ele faça suas trocas gasosas. Dessa forma, ele morre sufocado. Trágico!