Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 13
XII — Filho do pescador


Notas iniciais do capítulo

“Finnick recita um poema que ele escreveu para seu verdadeiro amor na Capital, e cerca de cem mulheres desmaiam porque têm certeza de que ele está se referindo a elas.” Em chamas, página 265.
Fiz o desenho da gretel que prometi, está no final do capítulo. Feito especialmente para nina stoll que me pediu.



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Taurus se candidata para o primeiro turno de vigia e me deito na barraca que compartilho com Bagiot — temos apenas três delas e as dividimos em pares. Penso que não poderia arrumar companhia pior, pois, além de ser grande e ocupar quase todo o espaço, ela ronca alto e de forma irritante. O som lembra o motor de uma balsa, mas não é como se aliviasse a saudade de casa. Encaro-a alguns segundos antes de pegar no sono. Não é tão carrancuda enquanto dorme, quase chega a ser bonita, exceto pelas gengivas de cavalo. Reparo nas pintinhas castanhas ao redor de seu nariz que até seriam charmosas se ela fosse mais parecida com uma garota, mas agora, com o rosto sereno e emoldurado pelas madeixas douradas, ela realmente parece uma.

Eu cochilo e me arrependo de minha última visão do dia ter sido a cara equina de Bagiot. Felizmente, não sonho com ela nem com nada relacionado à arena. É Finnick quem está em meus devaneios noturnos. Precisamente, a tarde em que eu o conheci.

Estava chovendo, relampejando e, apesar de eu ter apenas oito anos, os trovões não me incomodavam. Minha mãe comprimia as costas para aliviar o peso da barriga e, quando o sino da porta tocou, rapidamente me dispus a atendê-la. Eu gostava de ser útil, de ajudá-la, principalmente estando grávida do meu irmão.

Abri a porta animada e saudei o nosso visitante. Era um homem de espessos cabelos escuros, molhados pela chuva, ao lado de um enorme cesto de palha. Eu já o vira algumas vezes, não encharcado daquela maneira, mas sempre sujo e desgrenhado. Ele trabalhava com meu pai, no comércio.

— O mar foi generoso hoje! — minha mãe exclamou ao fundo da sala, apontando para a bagagem do convidado.

— Sim, ele foi — o homem respondeu da porta, ainda do lado de fora. — Revolto, mas generoso.

— Ora, onde estão os meus modos? Entre, Marcus — completou mamãe, esquecida —, sinta-se à vontade. Vou trazer algumas toalhas e chamar meu marido lá dentro.

O visitante adentrou o aposento com dificuldade, empurrando o cesto que, só naquele momento, percebi estar repleto de peixes de diversos tamanhos e cores. Ele posicionou a carga em um canto estratégico e voltou a atenção para mim.

— Oi, Annie, você está enorme! — saudou com um sorriso. De trás do sujeito, saiu o que eu pensara ser sua sombra, mas que, em seguida, identifiquei como um menino. — Diga olá para Annie, filho.

O garoto se aproximou devagar, com o rosto corado pela timidez. Parecia muito com o pai, uma vez que compartilhava dos mesmos olhos na cor do mar e da pele bronzeada de sol. No entanto, o cabelo era mais claro e reluzente, de um tom acobreado que imaginei ser herdado da mãe.

— Oi — disse envergonhado, estendendo a mão encardida de peixe. — Sou Finnick Odair.

— Prazer, Finnick — respondi à saudação —, me chamo Annie Cresta.

Apertei, então, a sua mão. Estava pegajosa e o mal cheiro perpetuou em minha palma pelos dois dias que se sucederam. Naquela época, eu receei o toque gentil do garoto, sem que soubesse o quanto o desejaria mais tarde. Como eu poderia prever isso?

— Podemos ser amigos — Finnick sugeriu, dando inicio à nossa primeira conversa.

— Mas eu nem o conheço...

— Tem razão... — ele respondeu pensativo, estendendo novamente a mão que eu acabara de soltar. — Oi. Sou Finnick Odair, tenho dez anos e quero ser um pescador quando crescer. Agora que me conhece, quer ser minha amiga?

Eu ri, cedendo à sua insistência e, em pouco tempo, nos tornamos melhores amigos, inseparáveis como um cardume de salmões. Não existia Annie sem Finnick ou Finnick sem Annie. Ainda assim, eu não imaginava, não fazia ideia e não tinha a menor pista possível do que o destino reservara a nós dois. Quem diria que o filho do pescador me conquistaria tão facilmente?

— Ei, Cresta. Já está na hora.

Retorno à realidade com o chamado. Abro os olhos e fito o rosto de Gretel, a alguns centímetros do meu. Levanto um pouco atordoada pelo sono interrompido de forma brusca e, assim que passa o torpor de recém-desperta, retomo a consciência de forma plena. Estou na arena, sou uma carreirista e é a minha vez de ficar de guarda.

— Como conseguiu dormir com essa barulheira? — Minha aliada aponta para Bagiot com o nariz. — Parece uma porca.

Levanto os ombros em indiferença e deixo o interior da barraca. O sol nasce tímido ao fundo da paisagem árida e o ar seco resseca minhas narinas. Meu turno, que acaba de começar, será o ultimo antes de partirmos à procura de outros tributos. Noah está de pé ao lado da pilha de armas, sendo o único acordado além de mim.

— Pode descansar mais um pouco se quiser, estou sem sono.

Ele desamarra uma bolsa de pano do cinto.

— Estou bem. — Dou de ombros.

Meu aliado se posiciona em frente a uma árvore e começa a arremessar facas, elevando-as acima da cabeça pela ponta e atirando com precisão. O movimento é semelhante ao de um golpe de espada, o braço nunca cruza o corpo, sempre paralelo. As lâminas giram no ar e acertam o centro do tronco, enfileiradas verticalmente. Contemplo a sincronia com que a extremidade afiada encontra o alvo, é algo tão rápido que meus olhos mal podem captar. Consigo compreender seu oito agora. Esperaria um nove ou dez.

— Excelente! — elogio com um sorriso.

Ele me fita curioso e eu percebo meu erro. Não estou procedendo corretamente. Como posso ficar feliz por ele ser capaz de lançar uma lâmina direito? Principalmente, quando ela pode estar em minha garganta amanhã. Agir desta forma só complica as coisas, faz parecer mais difícil o dever de matar um ao outro. Não pode existir cumplicidade entre nós.

— O truque está no punho — ele explica —, quanto menos dobrado, maior a distância do lançamento.

— Por causa das voltas que a lâmina dá no ar, certo? — me recordo vagamente da explicação.

— Exato.

Ele se vira, arremessa outra faca e ficamos calados pelo resto da minha guarda. Durante alguns minutos, há apenas o som do metal atravessando o ar e o estalo da lâmina de encontro à madeira rígida. Noah me dá algumas olhadelas de vez em quando, como se algo o afligisse.

— O que foi? — pergunto confusa.

— Nada. É que... Bem... É uma pena estarmos juntos nisso — ele lamenta sem desviar os olhos do alvo.

— Ah! — Sou pega de surpresa, ainda que ele tenha razão. Há somente um vencedor, o resto de nós não sairá vivo daqui e, em alguns dias, sequer poderemos retomar essa conversa. — Realmente.

Ele desfaz a postura de lançamento e se acomoda na bifurcação do tronco ao meu lado. Mesmo sentado, alcança quase minha altura.

— Eu também fiz promessas, sabe? — Ele se encolhe no vão da árvore. — Tenho pessoas me esperando lá fora... Também tenho alguém especial...

— Eu a vi na colheita, uma ruiva, não é?

— Sim, mas não é disso que estou falando. — Ele suspira antes de continuar: — O que estou tentando dizer, bem... É que se eu não conseguir ganhar essa coisa, espero que seja você.

Isso está errado. Ninguém conversa abertamente sobre a possível morte nos jogos. Não aqui na arena onde ela é quase iminente. De todos os carreiristas, Noah é sem duvida o que eu gostaria que ganhe em caso de eu não conseguir. Mas e se só sobrarmos nós dois? Provavelmente mataríamos um ao outro. Não existe a possibilidade de cruzar os braços e nos negar a isso, a Capital acabaria com ambos se fosse necessário.

— Obrigada. — Resolvo não expor meus conflitos internos e apenas concordar com ele. — Também espero que seja você, Quatro.

Noah força um sorriso abatido e não voltamos a nos falar. Acabada a minha vigia, o resto do grupo acorda e se prepara para a missão. Cada um realiza seus próprios afazeres em silêncio, tendo o mínimo de interação possível um com o outro. Noah amarra um segmento de corda no cinto, Gretel prende o machado de duas lâminas nas costas e eu retiro as bandagens do meu machucado cicatrizado. Em poucos minutos, estamos prontos para a caçada.

O garoto do um é quem fica de guarda no acampamento desta vez, ainda se recuperando da ferida. Seguimos a trilha sob a liderança de Taurus, que possui as melhores habilidades de rastreamento do time. As gramíneas do chão alcançam nossos joelhos, o que dificulta a caminhada, mas meu robusto aliado abre caminho com a espada. Procuramos atentamente os rastros de nossas presas no solo argiloso e encontramos somente pegadas de animais.

De repente, Gretel interrompe sua caminhada e coloca o resto de nós em alerta. Teria avistado algum tributo? Posso ver Bagiot e Taurus salivando por uma vítima, corrompidos pelo desejo de vencer. A garota do um, no entanto, em vez de sacar o machado, agarra um galho delgado do chão e cutuca um arbusto de gramíneas que faz um barulho esquisito de chocalho. De dentro do capim alongado, surge uma cobra comprida de escamas castanho-esverdeadas e anéis enfileirados na extremidade do rabo. A serpente ergue o corpo em ameaça e Gretel apenas a encara, acompanhando seu movimento com a cabeça como quem tenta decifrá-la.

— Uma cobra reconhece a outra — sussurra Noah em meu ouvido. Eu comprimo os lábios para conter o riso.

Taurus se aproxima sorrateiramente da serpente — a de verdade — e a golpeia com a espada, dividindo em duas metades. O sangue é vermelho como o nosso.

— Ei. Não precisava... Estava tudo sob controle.

Gretel continua fitando o corpo repartido da cobra, a parte da cauda ainda se contorcendo no chão de terra.

— Sua amiga já morreu — se intromete Bagiot, impaciente —, podemos continuar?

— Ainda não — responde pensativa. A criatura para de se mexer e minha aliada cutuca o corpo flácido novamente. — Quero saber se é venenosa...

Bagiot revira os olhos.

— Já esta morta. Para que quer saber?

— Por causa do veneno, não é óbvio? — A garota do um ergue uma das partes pelo rabo, afastando de si para que o sangue não goteje em seu próprio pé. — Não explicaram as regras desse jogo para você não, querida? Funciona assim: são 24 tributos, nós temos de nos matar e...

Aestate Bagiot resmunga alguns palavrões e tenta partir para cima de Gretel. Taurus avalia qual das duas segurar e acaba decidindo pela companheira de distrito.

— Não há veneno do mundo que possa ajudá-la, vadia — vocifera a carreirista do dois, ainda contida pelo aliado. — E vou mostrar quem é querida.

— Guardem essa energia para o final — Taurus intervém irritado e dirige olhares de reprovação para as duas. — Chega de provocações, Distrito Um. E você, Dois, trate de ser menos imprudente ou eu poderia matá-la agora por atacar um de nós. — Taurus parece o mais obstinado a vencer ao estabelecer ordem novamente. É alguém como ele que eu devo temer e não as duas descontroladas que acabarão se eliminando. — Quando eu não precisar mais de vocês, podem se matar a vontade.

— Ah! O nosso líder... Sempre zelando pelo bem estar do grupo. — Gretel sorri com escárnio e sopra um beijo no ar para o aliado aborrecido. Em seguida, balança os ombros e esfrega o ventre da cobra na lâmina do machado, sujando a superfície metálica de sangue. — Bom, não custa tentar.

Ela sacode o chocalho perto do ouvido, apreciando o som de guizo como uma melodia, e guarda o pedaço da criatura num bolso do cinto. Ótimo, eu penso ironicamente. Como se já não bastasse temer o machado de Gretel, agora preciso me preocupar com o veneno. Finnick e seus milhares de patrocinadores poderiam me enviar um antídoto para isso?

— Esqueceu a cabeça — Noah cochicha para mim enquanto caminhamos de volta ao acampamento e, percebendo que não compreendo, acrescenta: — Gretel se preocupou tanto em descobrir se a cobra era venenosa que esqueceu da parte mais importante, o veneno está nas presas e não no sangue.

— Você tem razão, mas, com veneno ou não, ela ainda tem um machado...

Nossos aliados seguem a trilha mais a frente e nenhum deles pode, portanto, nos ouvir. Noah caminha ao meu lado, enrolando uma corda em torno do próprio braço.

— Eu não me preocuparia com isso — responde sem tirar os olhos do caminho. — Se ela fosse tão boa com o machado, não precisaria envenená-lo. — Ele chuta uma pequena pedra para o lado, parecendo sempre um pouco desligado do que acontece ao redor. — Bem... Minhas facas só acertam uma vez.

De forma inconsciente e abrupta, eu interrompo meus passos. Percebo pelo canto da visão que Noah também para e se vira para mim. Permaneço olhando para frente, entretanto.

— Não se preocupe, Cresta, não vou... Quer dizer, eu não disse...

Aceno com a cabeça e penso em apressar o passo para que o resto do bando não note que ficamos para trás, no entanto, o farfalhar de algumas folhas próximas me chama atenção. Espio pelas brechas dos galhos do arbusto ao meu lado e identifico um garoto franzino — encolhido e assustado — abraçando os próprios joelhos. Penso em simplesmente ignorar o pequeno adversário, uma vez que me falta coragem para entregá-lo... E, embora eu saiba que sua morte é inevitável, não desejo ser eu a responsável.

Os outros sequer notam sua presença, entretanto, ele percebe meu olhar e se levanta abruptamente, correndo na direção oposta. Idiota! Não faça isso, eu penso. O movimento chama a atenção do resto do bando e Noah, que está mais próximo, instintivamente laça uma de suas pernas com a corda e o derruba. Eu envolvo o outro braço de Noah no momento que ele aperta o cabo da faca no bolso. Ele me fita confuso com o gesto, mas, quando o resto do bando nos alcança, volta a atenção para o garoto.

— Você não vai a lugar algum — Bagiot adverte e se dirige a Noah em seguida — Bom trabalho, Quatro. É todo seu.

Meu aliado desvencilha o braço de meu aperto e posiciona a faca entre os dedos.

— Por favor, não! — a vítima implora em prantos à medida que meu companheiro de distrito se aproxima. — Não me machuquem!

— Ei, não o mate! — interrompe Gretel, arfando após a pequena corrida até aqui. — É minha vez, esqueceu?

Noah recua uns dois passos enquanto minha aliada desprende o machado do suporte.

— Nao, não... Nada de choro! Levante a cabeça e olhe pra mim. — diz ela, acariciando a lâmina de sua arma como se fosse um animal de estimação. — Aprecie a vista, garoto. Será a última coisa que você vai ver.

O tributo aproveita a protelação da carreirista para desvencilhar o tornozelo da corda e correr novamente. Ele se agarra aos troncos retorcidos de uma árvore e escala com dificuldade, estalando os galhos quebradiços ao subir. Gretel e Bagiot riem da tentativa frustrada de fuga, sem ao menos tentarem persegui-lo.

— Poxa, eu não o alcanço daqui — a carreirista do um comenta sarcasticamente, se debruçando no tronco para encarar o alto. — Por favor, desça aqui para que eu possa matá-lo. Prometo que vai acabar logo...

Taurus revira os olhos impaciente.

— Acabe logo com isso, quatro. — Cutuca Noah com o cotovelo. — Atire uma faca nele.

As árvores são baixas e meu aliado não tem dificuldade em acertá-lo no peito. O garoto desmorona e tomba para trás, despencando do galho em que se empoleirava. Posso ouvir o estalo de suas costelas contra o solo e, posteriormente, o canhão.

— Estraga prazeres! — Gretel franze os lábios em um beicinho. — Era minha vez.

Noah recolhe, indiferente, a faca do corpo abatido.

— Da próxima vez, mate logo em vez de ficar conversando. Isso aqui não é para ser divertido.

— Ora, não seja tão rabugento! — Ela se queixa. Sua gargalhada cínica preenche meus ouvidos. — Nós já estamos ferrados mesmo, que mal há em se divertir um pouco?


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Notas finais do capítulo

Noah, além de lançar facas, comporta-se como um gladiador Laqueário. A técnica do laqueário consiste em laçar o adversário, colocando-o em desvantagem, e partir para um combate de proximidade com o punhal.

Eu não tinha ninguém em mente quando imaginei a Bagiot, mas recentemente encontrei a lutadora Rhonda rousey e, meu deus, ela é o mais próximo que eu poderia pedir! É mais velha e talvez mais bonita do que a Bagiot que imaginei, na verdade. Tem um hiperlink no capitulo com a foto dela, só clicar no nome que está em azul.

Beijos
— Azeite.



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