Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 11
X — Primeiras baixas


Notas iniciais do capítulo

A Annie é uma carreirista e está na cornucópia no momento das lutas. Desculpe se o conteúdo for pesado, mas nosso peixinho precisa ver um pouco da brutalidade da arena antes de ficar louca.



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O aerodeslizador aterrissa e me dirijo para o que chamam de Sala de Abertura, no subterrâneo. Tenho um cômodo próprio onde aguardo o sinal de início. Ocella me ajuda a vestir o uniforme — um par de tênis pretos, bermudas justas, um cinto largo e camiseta bege. Calço, sozinha, as luvas de couro que deixam meus dedos expostos e passo o colar de Finnick por cima da cabeça.

— As roupas são bem leves, é melhor não vestir o casaco agora — orienta minha estilista, amarrando as mangas em minha cintura.

Ocella não diz mais nada e permanece quieta com os braços cruzados sobre o peito. Ela, provavelmente, passa por esse momento todos os anos e ainda não encontrou um jeito de torná-lo menos desconfortável. Estou tão nervosa que acabo roendo compulsivamente as unhas até sentir o gosto ácido de sangue. Olho para o teto cinza que me separa da arena, imaginando os horrores que lá me aguardam. Será que vou sobreviver à Cornucópia? Os carreiristas vão mesmo me aceitar no bando? Quanto tempo de vida ainda tenho? Não consigo me concentrar muito tempo nisso e tento ocupar a mente com outra coisa. Penso no barulho das ondas, nos biscoitos de minha mãe, na risada de Finnick e em como sentirei falta de tudo isso. Não estou pronta para dizer adeus.

A voz computadorizada pede que os tributos se posicionem na plataforma circular, onde já me encontro. Um tubo transparente desce ao redor do circulo e minhas mãos instintivamente se chocam contra o vidro. Eu estremeço, todos os músculos do meu corpo se contraem, tremem. Parece que a luz de minha garganta diminui até se fechar por completo, privando-me do oxigênio, e então a placa de metal começa a subir. Não falta oxigênio, digo para mim mesma. Está tudo na minha cabeça. Inspiro profundamente até regular minha respiração ofegante.

Percebo o ar cada vez mais abafado à medida que me elevo no tubo e atravesso o solo. Penso que estes jogos serão mais quentes do que eu imaginava. Quando alcanço a superfície, a claridade externa ofusca temporariamente minha visão, me fazendo piscar algumas vezes para proteger as retinas.

— Senhoras e senhores — anuncia a voz de Claudius Templesmith nos alto-falantes —, bem-vindos à Septuagésima Edição dos Jogos Vorazes!

Formamos um círculo ao redor do chifre, cada um sobre sua própria plataforma. Os tributos precisam aguardar o sinal do gongo antes de tentarem matar uns aos outros. Um minuto, repasso mentalmente. Em apenas um minuto posso estar morta. Olho para o chão de terra, tentando contar os centímetros de plataforma que me separam dele. Um passo para fora antes do fim da contagem e as minas serão ativadas, distribuindo pedaços de mim mesma pelos ares. A ideia é ligeiramente tentadora, acabar com tudo de uma vez, mas não gostaria que meus pais me vissem desistir sem lutar. Eles não me criaram para isso.

A arena é diferente de todas que me recordo, a paisagem é árida, o solo é quase arenoso de tão seco e eu não faço ideia de como as plantas persistem folheadas. É tudo castanho ou amarelo, não há verde: a iminência de um outono. À minha direita, eleva-se uma enorme barragem retendo boa quantidade de água que eu acredito ser a única fonte de toda arena. Os instrumentos de batalha estão empilhados no centro, rodeados por suprimentos e equipamentos de sobrevivência. Teremos de lutar por eles em alguns segundos e — se minhas contas estão certas — faltam exatos 27. Os idealizadores esperam um jogo repleto de combate direto este ano, pois há uma diversidade fora do comum de armas desse gênero.

Posiciono as pernas fletidas para correr. Não posso me permitir pensar em mais nada, uma vez que a contagem regressiva em minha a cabeça está chegando ao fim. Cinco... Quatro...Três... Dois... O gongo soa um pouco antes de eu chegar ao "um" e eu disparo. Os vultos das pessoas se misturam com a paisagem nos cantos de minha visão e mantenho o foco à minha frente.

Sou uma das primeiras a alcançar o amontoado de ferramentas e me decido o que pegar. Meus olhos oscilam de um machado duplo — com a lâmina em forma de meia-lua de um lado e um finíssimo esporão do oposto — para uma clava escura com grossos espetos na extremidade redonda... Observo as espadas, facas e lanças com prudência e não me identifico com nenhuma delas. O que eu faria com um machado? Ou com uma maça de guerra? São todos pretensiosos demais e me contento com uma adaga leve e fácil de manusear. Não me preocupo em recolher nenhum dos itens de sobrevivência, pois durando até o fim do banho de sangue, escolherei a dedo o que quiser. Logo, me concentro apenas em sobreviver. Ok, sobreviver não parece uma tarefa impossível.

Minha aliada do distrito um, esbarra em mim para ter acesso à pilha de itens e não cogita em decidir sua arma. Ela usa as duas mãos para levantar o mesmo machado robusto que eu observava há poucos segundos, fazendo uma careta por conta do peso. Julgo equivocada sua escolha por ela ser da minha estatura e não possuir a força e tamanho necessários para fazer algum estrago. Machados servem para cortar gargantas e ela não alcança a de metade dos tributos masculinos.

Estou tão distraída com a garota se afastando que por pouco não sou atingida. Aqui na Cornucópia é o centro de toda a ação e um garoto magro e alto atira uma lança na minha direção. Eu me esquivo e ela se finca no tronco de uma árvore convenientemente plantada atrás de mim. O rapaz ainda me observa frustrado, com raiva, e o fato de eu não ter morrido o aborrece. Sou consumida por um breve desejo de vingança e retiro a lança da madeira para, então, atirá-la de volta. Passa bem longe do meu alvo e acerta o ombro de outro tributo, uma garota negra de cabelos cheios.

Ela se vira, procurando o agressor com o rosto retorcido pela dor e eu a devolvo um olhar de remorso, quase pedindo um perdão silencioso. Meu arremesso não foi certeiro para matá-la, porém a distrai tempo suficiente para que Bagiot a derrube por trás. Como se ela precisasse de alguma distração!, digo para mim mesma. Um único golpe na nuca e a garota negra despenca flácida sobre a própria estrutura. Em seguida, a carreirista acerta os joelhos de outro adversário com seu martelo de guerra — provocando um forte estalo — e, quando ele cai no chão urrando de dor, esmaga-lhe a cabeça.

Tento seguir o conselho de Finnick e me afastar das lutas, mas é impossível. Para todo lugar que eu olho existem pessoas correndo ou se enfrentando. Esgueiro-me para a boca da Cornucópia, onde Taurus me dá cobertura. Ele não é nem um pouco piedoso, pois decepa os membros de seus oponentes antes de aplicar um corte fatal na garganta. Creio que faça parte de sua estratégia causar mais sofrimento e dar um melhor show aos telespectadores. É repugnante, porém eficiente para a audiência.

Não procuro Noah ou o garoto alto do um, pois assistir meus concorrentes carreiristas só me faz pensar em como, quando chegar a hora, serei facilmente eliminada. Tento me mover o mínimo possível para não chamar atenção e atrair um adversário e, embora tenham restado poucas pessoas de pé nas proximidades, existir continua a ser algo perigoso. Distraída, sobressalto-me com o vulto prateado de uma espada e me esquivo do golpe, perfurando a perna do responsável com a adaga. Sinto um líquido quente escorrer do meu ombro e percebo que não fui tão rápida: é sangue.

A garota do machado duplo rapidamente me alcança, fere meu agressor no dorso e o finaliza no chão. Ela sorri vitoriosa, piscando um dos olhos, e se vira para enfrentar mais um. Luto contra o desejo de agradecê-la, até decidir ser incoerente. Finnick me avisou da conveniência de me ter no bando, logo, é apenas um jogo de interesses. Ainda assim, não consigo deixar de espiar minha salvadora desviar graciosamente dos movimentos da lâmina do adversário como se os premeditasse. O cabelo curto chacoalha de um lado para o outro sem que atrapalhe a visão e os braços unidos na haste da arma se movem em sincronia. A dança dos dois oponentes se prolonga, até que ela encontra uma brecha na defesa e ele cai. É neste momento que me lembro de seu rosto: estático ao lado de um “nove” na divulgação das notas. Seu nome é Gretel.

Sinto-me uma idiota por subestimá-la e, mais do que isso, por me subestimar. Minha mãe estava certa: eu não preciso ser vulnerável. Eu entendo de lutas na teoria, talvez consiga na prática. Olho para adaga em minha palma e me arrependo de não ter escolhido algo mais intimidante. Eu fui a primeira a chegar ao centro da Cornucópia e peguei... uma faca? Como pude ser tão burra? Com certeza, não terá restado mais nenhuma arma sem dono na arena, a não ser... É claro! Lembro da espada que me feriu no ombro — do garoto que Gretel derrotou — e penso em resgatá-la para mim. Cruzo os mortos espalhados, evitando pisar em seus corpos — ainda que seja com os vivos que eu deva tomar cuidado —, e logo a avisto. Um pouco menor que a de Taurus, porém tão letal quanto. A empunhadora ainda envolvida com o aperto firme de seu antigo dono.

Abaixo-me para erguer a arma branca e um par de mãos a disputa comigo. Empurro a lâmina — ferindo minhas próprias mãos na lateral — e a forço na direção de meu oponente. Ela perfura obliquamente seu queixo e ele tomba para trás. Foi fácil demais, eu penso. Dou o mesmo sorriso triunfante de Gretel, pateticamente orgulhosa da minha pequena vitória, e viro a cabeça para conhecer meu adversário. O sorriso em meu rosto se desfaz.

Ainda consciente, caído no chão, não parece sequer ter idade para estar nos Jogos. Ele tenta, inutilmente, estancar o ferimento com as pequenas mãos, engasgando com o sangue abundante. A agonia da criança me perturba, mas me forço a manter os olhos abertos: não tenho o direito de ignorar o sofrimento que causei. Contemplo a arma em meu domínio, perguntando-me se compensa um preço tão alto. A mancha vermelha da lâmina acusa uma perfuração de meio palmo. Meio palmo de aço em sua garganta e a culpa é toda minha.

Eu desejo proteger esse garotinho, desfazer o que eu fiz, mas infelizmente não posso. As lágrimas escorrem pelo meu rosto, empapuçando meus olhos de pesar. Sou uma criatura desprezível, o meu feito é imperdoável. Sua família chora em algum distrito desconhecido e o meu rosto é tudo que possuem para odiar.

— Me desculpe — murmuro entre os soluços, ajoelhando-me ao lado da criança.

Não há outra saída, só existe uma forma de salvá-lo. Penso em, pelo menos, lhe dar um enterro digno quando retornar para casa. Cubro suas pálpebras e perfuro minha espada direto no coração a fim de poupar suas feições infantis: caixão aberto é um luxo de poucas vítimas da arena. Quando retiro minha mão, seus olhos continuam abertos. Vazios.

— Já acabou — digo para o corpo inerte e sem vida do menino. — Não vai doer mais.


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Notas finais do capítulo

Gretel tem origem germânica e significa "tão bela quanto uma pérola". Vem do conto dos irmãos Grim "Hansel e Gretel", conhecido no brasil como "João e Maria"

MORTE. MORTE. MORTE. O que acharam do capitulo?
— Azeite.



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