Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo acontece entre 9 e 10 anos após os eventos de "A esperança", ainda que a fic seja sobre os jogos da Annie.



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A brisa áspera de maresia me acaricia a face e afasta o cabelo do dorso em que antes repousava. Admiro a beleza a minha volta, porém a paisagem familiar não mais alivia. O sol se põe, o laranja encontra o azul no horizonte e os últimos resquícios da luz se despendem de minha melancólica companhia. Não me abandone, eu penso. Não de novo. Mas ele se vai todos os dias e retorna apenas nas manhãs seguintes para me reconfortar. Tudo que deixa são trevas. Tudo o que possuo se resume a elas.

Forço um passo à frente, meu dedão desliza sobre a areia úmida e, vacilante, o calcanhar assenta o solo. Uma onda se atreve a banhar meus pés provocando um agradável formigamento ao toque frio e, ainda alheia em devaneios, adentro na água até que me atinja os joelhos. O sol já não está mais aqui, os serpeantes feixes de luz regressam e a escuridão faz da lua algo relevante, a única fonte medíocre de claridade. Está tudo mudado: não há mais aquela mão firme a segurar a minha, somente dedinhos frouxos sob meu aperto.

— Por quê? — eu pergunto, jamais conformada com o que o destino me reservou. — Por que todos se vão?

Venho nesta enseada pacífica aguardar, inutilmente, que as ondas o tragam de volta, embora não tenham sido elas a levarem-no de mim. Ele jamais vai retornar. Eu sei. Ainda assim, me pego tateando o colchão vazio pela manhã em busca de seu abdome quente... Sinto sua falta o tempo todo, em cada minuto da minha existência. Os cubos de açúcar, as três pontas de um garfo, o colar em meu peito. Tudo me remete à época em que seus lábios tocavam os meus.

O garoto ao meu lado, coberto até a cintura pela água cristalina, me fita apreensivo. O cabelo cor de bronze reflete o brilho do luar prateado e o peito despido — sem qualquer sinal de puberdade iminente — passa a mesma inocência do garotinho com quem brincava nesta praia em uma vida antiga. Tão idêntico em exatamente tudo que não parece ter saído de mim. É somente dele.

— Queria que o conhecesse... — sussurro para o oceano, sem, no entanto, aguardar resposta. — Você se foi antes de conhecê-lo. Você se foi...

Desperto da efêmera angústia que é lembrar e, por ser incapaz de distinguir meus pés no fundo da água negra, me certifico do término do dia. Está escuro: não gosto do escuro e desejo ir embora. Torno meu corpo para a direção contrária. A ausência de luz permite que a imaginação engane com mais facilidade, fazendo o horror de minhas memórias retornar, a dor de minhas perdas pungir... A morte é o que me assombra, o que me persegue. A figura perversa, imersa na escuridão, que estende os braços para buscar todos aqueles que amo. Um após o outro, sem que eu possa impedir.

A criança ao lado puxa o tecido do meu vestido a fim de reconquistar a minha atenção — me resgatar dos pesadelos acordada — e, ao conseguir, aponta com a mão livre para o oceano. Ansioso, aguarda por alguma autorização, uma advertência, mas recebe apenas o silêncio como resposta. Seus dedos — antes entrelaçados aos meus — deslizam e se desvencilham completamente. Ele se afasta para longe, onde a maré dança com fúria, e mergulha o resto do corpo na água, desaparecendo na completa vastidão escura. O pânico me consome: não suporto a ideia de perdê-lo, nem mesmo de meus olhos. A sua mera existência é tudo o que me acorrenta à sanidade.

Quando nada mais fazia sentido, quando nem mesmo a vida possuía motivo, carregar aquela criança foi um enorme sofrimento. Nove meses, mais nove atordoantes meses neste mundo horrível. Era um fardo, porém eu deveria trazê-lo à vida antes de partir. Ansiava desesperadamente pela morte, contava os pungentes dias que me restavam, até que seus grandes olhos verdes se abriram pela primeira vez. O pequeno rosto, ainda manchado de sangue e sem emitir qualquer som ou choro, apenas me observava de volta. A visão do vermelho, surpreendentemente, não me incomodou, não trouxe de volta as lembranças dolorosas da arena ou da guerra. Fez-me experimentar de um sentimento bom cuja existência havia esquecido, me deu uma razão para continuar vivendo. Para sorrir.

Ele é o mais próximo que eu já tive de um final feliz, a única prova de que o meu amor realmente existiu e, ainda assim, persisti para tê-lo ao meu lado. Quem confiaria uma criança a alguém como eu? Sou digna de pena, compaixão, jamais confiança. A ferida aberta em meu peito não cicatriza e, todos os dias, temo que o levem de mim... como fizeram com seu pai.

— Finn?! — eu chamo desesperada, sem que nada surja da correnteza inquieta. Onde está o meu Finn? Por que não está comigo?

Corro para o fundo a fim de procurá-lo, levantando os joelhos com dificuldade ao mesmo tempo que as ondas se quebram e repartem em minhas pernas. O pequeno Finnick emerge assustado a poucos passos de distância, procurando o som da minha voz no escuro. Aproximo-me e o envolvo com os braços, pressionando forte contra o meu peito e receando, incondicionalmente, o momento de soltá-lo.

— Não me deixe de novo! — eu suplico. As palavras saem quase inaudíveis e, logo, as gotas de minhas lágrimas se perdem na imensidão salgada, insignificantes comparadas à magnitude das ondas.

— Desculpe — responde hesitante sem saber, ao certo, o que fez de errado. — Não se preocupe, mamãe, estou aqui. Não vou deixá-la.

Como o golpe gelado do aço, a promessa me fere. Por que as pessoas insistem em dizer? E por que eu continuo a acreditar? Não há conforto algum em suas palavras, apenas me fazem lembrar daquele que partiu, trazem memórias que eu tento esquecer. Um corpo sem cabeça, um filho sem pai, uma esposa sem marido. Todos, legados de uma guerra em que eu não quis lutar. Contenho o fluxo de minhas lágrimas: não pode se repetir. O mundo já não é o mesmo e os jogos não existem mais. A arena é uma lembrança ruim; a guerra, uma cicatriz. Meu filho nunca passará pelo que eu passei, nunca sofrerá o que eu sofri. Suas noites de sono serão tranquilas e isso basta para me acalmar. Finnick jamais conhecerá o medo.


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Notas finais do capítulo

"É como se eu fosse Finnick, assistindo imagens de minha vida passando em minha frente. O mastro de um barco, um paraquedas prateado, Maggs rindo, um céu cor-de-rosa, o tridente de Beetee, Annie em seu vestido de casamento, ondas quebrando sobre as rochas. Então acaba." A esperança, página 336. Capítulo 22.
— Azeite.