Change Of Heart escrita por Sak Hokuto-chan


Capítulo 23
The Way Old Friends Do


Notas iniciais do capítulo

Meus agradecimentos à mamma, digo, ao meu carneiro-beta, Orphelin, por tudo (sim, ele faz bem mais do que revisar e me ameaçar 8D) S2



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Capítulo XXIII

E depois das brigas e palavras de violência
Nós fazemos as pazes um com o outro
Do jeito que os velhos amigos fazem

The Way Old Friends Do - ABBA

Afrodite inclinou-se sobre o espelho, observando atentamente seu rosto adolescente, em busca de qualquer falha que pudesse ter aparecido em consequência do seu estado de espírito tão inquieto.

Não gostou de absolutamente nada do que viu: cabelos desalinhados e marcas levemente arroxeadas sob os olhos, que o deixavam com a aparência abatida. Claro! Ele vivia cansado desde que começara a sair com aquele italiano cheio de vigor, embora mantivesse sua aparência usual sempre radiante.

Mas, lá estava ele agora, aos cacos e mais pálido do que nunca graças àquelas olheiras, e tudo por culpa do mesmo italiano maldito.

Não podia ficar daquele jeito. Sua beleza era o que mais prezava. Rapidamente, Afrodite lavou o rosto, ajeitou os cabelos ondulados e endireitou a postura, sentindo-se bem melhor ao sair do banheiro e caminhar pelos corredores do colégio – lógico, com típica altivez. Era hora do intervalo e ele sabia que a melhor coisa para distrair a cabeça era se juntar aos amigos.

Falando neles, o pisciano poderia dizer que andava desconfiadíssimo de Milo e de Aiolia. Que o leonino vinha atazanando o pior melhor amigo há tempos, isto não era novidade. Para a grande satisfação de Shina, o grego de cabelos curtos tinha todo um repertório de brincadeirinhas yaois que costumava deixar Milo irritado. Porém, o fato de o escorpiano resolver revidar era inédito. E estranho também.

Afrodite percebeu, muito antes da ariana, que aqueles dois tinham se engajado em uma nova espécie de disputa. Só que ainda não parecia muito claro sobre o quê. Aos olhos mais desatentos, os garotos pareciam apenas competir para ver quem conseguia arrancar uma reação mais uke um do outro, causando constrangimentos e protestos entre si e arrancando suspiros de certa italiana.

No mais e longe de Shina, no entanto, eles pareciam competir para ver quem flertava com mais garotas, ambos esbanjando sorrisos e olhares charmosos para todo e qualquer rabo de saia que julgassem interessantes.

Até aí, tudo estaria bem se não houvesse mais, muito mais. Quer dizer, Afrodite os conhecia desde o jardim de infância e, por este mesmo motivo, já estava acostumado com um tentando se sobressair em relação ao outro em qualquer coisa.

Assim, enquanto Shina simplesmente considerava suspeito que Milo, de uma hora para outra, tivesse entrado no clima yaoi; Afrodite, perspicaz como era, acreditava que os dois amigos estavam perdendo a noção do que faziam, prestes a ultrapassarem alguma linha muito tênue e abstrata.

Ahá! – Aiolia exclamou, encostando-se ao ombro do escorpiano. – Estamos da mesma altura agora, que tal isso? Sem essa vantagem, com esses cachinhos dourados e seu pinto pequeno, você não pode mais negar que é o uke, Flor do Campo!

Milo trincou os dentes por um instante. Depois, sorriu e tratou de passar um braço ao redor da cintura do pior melhor amigo, puxando-o para si e dizendo num murmúrio alto o bastante para que Shina e Afrodite escutassem:

– Você ainda é o mais fofo, com essa bundinha sexy e esses lábios avermelhados, Estrela da Manhã... – estalou uma palmadinha no traseiro alheio. – E se passou tempo o suficiente pra você alcançar minha altura, precisamos fazer outras comparações de novo.

Aiolia hesitou. Repentinamente, ocorreu a ele que se Milo não tinha crescido em estatura, então, talvez tivesse crescido em outras partes – para o seu desespero, já que o um centímetro que tinha a mais era uma vantagem ínfima.

– Aí sim, hein! – Shina agitou, batendo as mãos. – Sempre me perguntei como vocês fizeram da outra vez... Cada um mediu o seu em particular e depois contou ao outro? Duvido que qualquer um de vocês fosse confiar sem ver pessoalmente. Então, qual era a situação? Como ficaram excitados um na frente do outro? Porque, claro, precisa estar assim pra medir. Não foi constrangedor? Vocês pegaram um no do outro? Posso ver da próxima vez? Vai rolar algo mais?

Shina! – ralharam ao mesmo tempo, ambos vermelhos, e lançaram olhares nada amigáveis para Afrodite, que ria ao ponto de perder o fôlego.

– Acho que vocês dois parecem muito ukes agora, hein... – acrescentou o pisciano, indiferente ao descontentamento dos outros.

Marin chegou nessa hora, olhando sem entender a altercação que acontecia entre os amigos. Foi Afrodite quem explicou o que acontecia para a garota, enquanto Shina rodeava os outros dois e pedia para assisti-los durante a comparação de suas partes íntimas.

Obviamente, eles negaram, dizendo que aquela história era um segredo eterno. Ao menos, curiosa ela não ficaria por muito tempo, pois a intenção deles era a de fazer a medição naquele dia mesmo depois das aulas – na casa de Aiolia, que não teria ninguém –, concordando em contarem o resultado no dia seguinte.

– São todos doidos, né? – Marin comentou com o sueco, por mais que seu sorriso estivesse claramente endereçado ao leonino desatento.

Afrodite deu de ombros, arqueando uma sobrancelha diante do olhar carinhoso que a ruiva mantinha sobre Aiolia, mesmo que este fosse incapaz de prestar atenção em qualquer coisa senão na dúvida quanto ao desenvolvimento do corpo do pior melhor amigo.

– Sabe, você tinha razão... – disse ela timidamente, corando e abraçando as próprias pernas. Sabia que o sueco seria atento o bastante para entender o que ela estava dizendo, mesmo que não contasse diretamente. – Ele é incrível e, bom, não me arrependo.

Quando nenhum comentário veio, Marin desviou a atenção de Aiolia para o pisciano. Teve um sobressalto diante da expressão sombria no lindo rosto dele.

– Ótimo – Afrodite disse sem qualquer emoção. – Mas não se iluda. Não se apegue. Não ache que tudo será um conto de fadas – continuou num tom levemente irritadiço, levantando-se com os punhos cerrados. – Como dizem, se conselhos fossem bons a gente vendia, e não dava. Mas, se vale de alguma coisa, vá além e aproveite o momento. Usufrua o que ele tem para te oferecer sem criar expectativas. Não se deixe ficar presa a sonhos bobos e infantis.

Marin arregalou os olhos diante daquele amargor todo e sem motivo aparente. Entretanto, antes que ela pudesse replicar, Afrodite se desfez da expressão fechada, suavizando o semblante, e falou consigo mesmo:

– Ah, minha beleza! Droga! Vou acabar com rugas se continuar assim...

E saiu caminhando como se a garota sequer existisse, massageando a cútis macia e praguejando baixinho alguma coisa que soou como aquele maldito.

Cada vez mais, Marin achava que o relacionamento do amigo com o tal Máscara da Morte não devia ser nada saudável...

***

Mu acreditava que seria muito saudável visitar seu lar no Tibete. Logo, porém, percebeu que não seria tão fácil assim relaxar e encontrar a paz de espírito que tanto precisava.

Teve que fazer seu melhor para manter a expressão calma e inabalada diante das, nada moderadas, especulações do pai. Ele era tão difícil! Queria que Shion o tivesse acompanhado naquela viagem também. Bem, o ariano mais velho, infelizmente, não tinha aquelas duas semanas livres.

Apesar das perguntas, eventuais críticas e da impossibilidade de se isolar o bastante para pensar em seus problemas, Mu poderia dizer que a primeira semana foi muito boa. Teve que omitir, por hora, sobre o término da sua relação com Shura, uma vez que temia que seu pai resolvesse ir até a Grécia só para confrontar o espanhol. Era melhor assim.

A vista das paisagens montanhosas magníficas e o fato de poder provar os pratos típicos de sua terra natal novamente, na companhia da família que tão raras vezes via, por si só já lhe fizeram um enorme bem.

Apenas na segunda semana Mu conseguiu passar mais tempo sozinho. Havia um lago que ele adorava visitar sempre que podia, especialmente quando era criança. Com certeza, serviria como lugar de meditação muito melhor do que seu próprio quarto, que ficava bem ao lado do quarto do seu genioso pai.

E foi caminhando ao longo do lago, olhando sem realmente ver os reflexos do sol na superfície da água, que Mu se permitiu refletir sobre suas angústias.

Deixou que tudo viesse à tona. A indignação, o constrangimento, a culpa, a mágoa, a confusão, as preocupações... Surpreendeu-se com tantos sentimentos e com o fato de que Aiolia não era a única fonte deles. Todavia, ele era, sem dúvidas, o mais inquietante e, portanto, foi nele que Mu preferiu concentrar suas energias.

Ah! Garoto insolente, arredio e imprevisível. Tão absurdamente complexo.

Recordou-se de quando o conheceu, uma miniatura de Aiolos – como diria Kanon – cheia de personalidade. Uma criança linda e adorável que logo se revelou uma verdadeira pestinha ciumenta. Até esse ponto, tudo bem, pois era compreensível e tudo o mais. Acabaram se entendendo entre o fim da infância e o começo da pré-adolescência do leonino. E as coisas estavam indo tão bem, apesar da ligeira desconfiança que o mais novo nunca abandonou de vez...

Quando, Mu se perguntava sem parar, tudo começou a desandar de novo? Teria sido depois daquela aposta absurda entre os garotos, que resultou no selinho que Aiolia fora obrigado a lhe dar?

Não, o leonino tinha se desligado totalmente daquele episódio.

Então, imaginava que só poderia ter sido o que aconteceu naquela primeira noite no Meikai. Quanto tempo já tinha se passado desde então? Uns quatro meses? Nossa! Era pouco tempo para tudo que teve de lidar desde então, como as mudanças bruscas de comportamento de Aiolia e suas brincadeirinhas e palavras despropositadas, que podiam ser bem ofensivas quando o garoto queria.

Tudo por causa de um beijo que não aconteceu – ao menos, não naquela noite. O próprio Aiolia tinha dito, recentemente, que ficara muito irritado por ter sido impedido de fazer o que queria daquela vez. E o que ele queria, bêbado e sem noção como estava, era beijá-lo.

Enrubescendo violentamente diante daquela recordação, Mu atirou algumas pedras no lago, observando o movimento da água e duvidando de que aquela justificativa insatisfatória fosse o motivo para tudo. Pois, se fosse o caso, Aiolia precisava de um psicólogo com urgência.

Mas não, não era só aquilo. Claro que não! As coisas entre eles não estariam tensas, como estavam, se fosse só aquilo. Principalmente porque Aiolia finalmente tinha conseguido beijá-lo.

Aliás, não estariam tensas para o grego, já que para Mu aquela história assumia outra perspectiva. Enfim, parecia óbvio que, depois de sóbrio, Aiolia tinha se arrependido de tê-lo beijado, percebendo que não tinha valido a pena ter posto em prática a ideia que, supostamente, incomodara-o por tanto tempo.

Sem dúvida alguma, havia algo de muito perturbador na história toda, especialmente quando se lembrava, por exemplo, da amizade entre Aiolia e Kanon. Até que ponto a proximidade do mais velho com o leonino influenciara este último? E de que forma? Porque, analisando meticulosamente a situação, tornava-se evidente que Aiolia tinha mesmo alguns trejeitos e ideias em comum com o geminiano.

Contudo, a maior preocupação de Mu era compreender a sua própria inquietação em relação aos comportamentos de Aiolia. Por que ficava daquela maneira quando, sinceramente, não conseguia compreender sequer a si mesmo? O que tinha na cabeça quando correspondeu ao beijo roubado? Certo! Tinha bastante álcool, mas aquilo não justificava.

Até porque já tinha aceitado o fato de que achava Aiolia atraente. E lembrou, subitamente, que tinha admitido ao próprio garoto que o achava lindo também. Céus! Que coisa embaraçosa. Nunca mais ia beber tanto! Muito menos perto daquele grego com distúrbio de personalidade.

Mu precisou voltar ao lago mais alguns dias até parar de pensar nos fatos para, enfim, se focar nas soluções. Se não resolvesse a situação, acabaria estragando sua amizade com Aiolos, era no que ele acreditava.

O sagitariano tinha toda razão quando dizia que Mu era um cabeça-dura que gostava de se enrolar, tentando resolver os problemas sozinhos quando poderia, muito bem, procurar por ajuda.

Droga! Já tinha decepcionado Aiolos uma vez, depois daquela história envolvendo Shura, e, agora, as coisas caminhavam no mesmo sentido. Não queria que acontecesse outra vez.

Então, lenta e calmamente, Mu respirou fundo e começou a pensar nas coisas de forma independente.

Primeiro: Aiolos. Dissociou o rapaz do irmão, de Shura e das garotas que o perseguiam. O que restou? Seu melhor amigo. Aquele com quem dividiu toda a adolescência, todos os problemas e alegrias da fase. Alguém por quem ele tinha um grande apreço e lamentaria demais se não tivesse ao seu lado.

Segundo e último: Aiolia. O mais complicado. Não bastava dissociá-lo do irmão, de Kanon e da adolescência febril. Porque sobraria mais do que um rapazinho cheio de hormônios e personalidade instável...

Sendo bem sincero consigo mesmo, Mu reconhecia que o achava superatraente e superinteressante. Isso mesmo! Esquecendo por um momento a idade dele, quem era seu irmão e tudo o que tinha aprontado... Ah! Definitivamente, Aiolia era alguém que o ariano não se incomodaria de beijar de novo.

Ao admitir isso, outra coisa lhe ocorreu: como fora parar naquele dilema? Achá-lo bonito, tudo bem, mesmo porque achava Aiolos lindíssimo e Aiolia era quase uma réplica do irmão. Mas por que se sentira atraído? Não foi algo que aconteceu de repente...

Pela primeira vez, começou a pensar nas atitudes de Aiolia por um ângulo totalmente novo.

Resgatou, na memória, uma passagem no Meikai em que ficou incomodado por achar que Aiolia o tratava com desprezo. Se bem que só acontecia quando o mais novo estava no modo revoltado. Observando atentamente várias ocasiões, tornava-se bem evidente que o leonino sentia ciúmes de si.

Ok! Aiolia tinha ciúme de praticamente tudo e de todos, mas só se gostasse mesmo da pessoa de alguma forma. Ou seja, se o leonino o desprezasse, não teria ciúmes nenhum... Era o óbvio. Bem, como era uma hipótese com falhas, ele não se prendeu muito a ela. Por outro lado, Aiolia era hiperimprevisível. Mu não podia descartar nada...

Infelizmente, suas pequenas férias passaram rápidas demais para que ele pudesse elaborar um bom jeito de resolver as coisas. Todavia, foram mais do que o suficiente para que ele se sentisse em paz e confiante.

Ao menos, até o momento em que se esbarrou com Máscara da Morte, logo após o seu retorno à Grécia, que fez o favor de abalar um pouco suas convicções.

Mu mal tinha voltado, após prometer efusivamente à sua família que seria mais presente – entre várias outras coisas –, sentindo-se muito bem e revigorado, quando encontrou o italiano. Ele andava a esmo pelas ruas e aos resmungos.

– Olá! – o ariano cumprimentou o outro, alcançando-o para caminharem juntos. Como o pessoal ainda não voltara do campeonato, havia decidido sair um pouco, para não ficar trancado em casa.

Máscara da Morte sorriu de lado, meio distraído, ao notar o tibetano. Tal distração levou o tibetano a perguntar sobre o que tanto o outro resmungava.

– Só pensando alto sobre como é problemático pegar fedelhos imaturos – respondeu, encarando o ariano com mais atenção, que deu lugar ao deboche em questão de milésimos de segundos. – Você sabe bem como é, não sabe?

Mu piscou lentamente, olhando para o céu. Como assim? Não tinha como saber nada do tipo, não.

O italiano começou a rir, o sarcasmo transbordando entre uma risada e outra.

– Não acredito que ficou secando o fedelho cheio de hormônios por tanto tempo e ainda não pegou ele de jeito!

– Não é nada disso! Ele só me intriga... – Mu replicou, franzindo levemente o cenho por saber de quem o ex-soldado estava falando.

Tinha concluído que sua aceitação ao beijo imprevisto havia sido apenas um lapso causado pela combinação do álcool com certa carência por não estar mais namorando. Assim, pensou, ficava difícil resistir a uma pessoa atraente e atrevida, ainda mais quando ela o atacava deliberadamente.

Intriga? Aham, sei...

Mu olhou de viés para o mais alto. Que injustiça! Estava sendo sincero. Tinha gastado longos dias se analisando, para conseguir um pouco de sossego. Aí, depois de um simples comentário, aquele italiano lhe trazia boa parte da mesma sensação incômoda de antes. Como podia?

– Enfim – Mu prosseguiu, mudando o foco do assunto –, se você não está satisfeito, por que não encontra alguém com idade mais próxima à sua? Com os mesmos interesses ou maturidade?

– Opa! Tá se oferecendo, é?

– Não! – o ariano respondeu de imediato, corando um pouquinho pela probabilidade de ter se feito entender daquela forma.

Máscara da Morte riu outra vez, dizendo que era uma pena, enquanto deslizava os olhos azuis-escuros e maliciosos pelo corpo do outro sem o menor pudor.

– Se quer mesmo saber, Mu, eu estou muito satisfeito com aquele fedelho bonito pra cacete. Pouco me importam os interesses e a maturidade quando ele geme nos meus braços...

– Sem detalhes, por favor – o ariano interrompeu o outro, desconfortável em ouvir aquilo sobre Afrodite, um garoto que praticamente viu crescer junto com Aiolia e os outros adolescentes.

– O foda é que ele tem aquelas crises narcisistas, indignado por não ser o único no universo – o italiano prosseguiu, revirando os olhos diante do constrangimento alheio. – Quer saber? Você que tá certo em não se envolver com pirralhos. Dá muito trabalho, vai por mim.

Mu assentiu sem muita convicção. Não por duvidar de Máscara da Morte, mas por achá-lo muitíssimo estranho mesmo. A relação entre ele e Afrodite parecia bem bizarra...

***

Por outro lado, bizarro era pouco para definir como tinha sido a ida de Milo até a casa de Aiolia. Os garotos não estavam se sentindo nada à vontade e, muito menos, estavam inspirados depois das coisas absurdas que Shina dissera mais cedo. Apenas se jogaram nos sofás e ficaram assistindo anime na televisão.

Ou foi assim até o leonino começar com seus rosnados impacientes; empurrar as almofadas, que havia entre eles, para o chão e agarrar o braço de Milo. Exigiu que o outro lhe contasse o que estava acontecendo para ter resolvido mudar suas atitudes do nada. Por acaso, o escorpiano tinha andado com Kanon antes de este partir para o campeonato?

– Por que isso te interessa? – Milo replicou ácido, afastando o braço e olhando feio para a tevê. – Faz eras que você não me conta nada também.

Pego de surpresa, Aiolia pestanejou diante daquela chateação evidente. De repente, sentiu-se constrangido ao se dar conta de que não vinha sendo um pior melhor amigo muito bom. Os dois sempre foram tão próximos desde que nasceram que, apesar das brigas e discussões constantes, eles se entendiam perfeitamente.

Caralho! – Milo exclamou arreliado, empurrando o leonino para longe. – Não acredito que te contei sobre meus problemas; a relação com a Shina; a coisa com o Camus; a confusão com minha orientação sexual... E você não quer me contar nem o motivo de andar tão irritadiço de uns dias pra cá. Não sei muita coisa sobre você há meses, seu otário!

– Vá se danar! – Aiolia retrucou igualmente irritado, empurrando o outro também.

Eles se entreolharam, os olhos brilhando em exaltação por um instante. Aí, do nada, começaram a gargalhar. E, consequentemente, veio o alívio por estarem se comportando como sempre haviam feito.

– Cara, foi mal... – o leonino começou, ainda sorrindo. – Não tem nada impressionante acontecendo. O que posso dizer é que perdi a virgindade com a Marin, se quer mesmo saber.

– Já era hora, viu? – afirmou, congratulando o amigo com tapinhas nas costas. – Quem mais você andou pegando? E nem adianta me olhar assim que eu sei que teve mais. Sei que a Marin e você nunca estiveram enrolados como a Shina e eu.

– Hmm... – Aiolia mordeu o lábio inferior, avaliando a pergunta. Se fosse sobre sexo, era só a Marin mesmo.

Milo revirou os olhos muito azuis.

– Olha, por causa da minha relação estranha com a Shina, até hoje eu só fiquei com ela e com o Camus. E, bom, se for considerar os selinhos da vida, também teve você e o Afrodite.

Aiolia o encarou visivelmente surpreso. Como assim o Afrodite?

O escorpiano contou rapidamente que foi no mesmo dia em que Aiolia roubou um selinho de Shina e, depois, outro de Marin, há quase três anos. Disse que Afrodite, cheio das presepadas como era, achou que o animaria com um selinho.

Como Aiolia continuou a encará-lo com indignação, Milo teve que admitir que nunca lhe contara aquilo porque seria deprimente. Poxa, Aiolia tinha beijado duas meninas e ele ia dizer que ganhara selinho de outro cara? Não dava, né?

– Haha, como você é uke, Milo!

– Aff! Não enche – protestou, acertando uma almofadada na cabeça do outro. – E vá desembuchando de uma vez.

– Okay, falando de selinhos... – Aiolia começou, remexendo-se no sofá – Teve você, claro; a Shina; a Pandora, que foi o melhor de todos; e... o Shaka.

Milo engasgou com a própria saliva e começou a tossir. O Shaka?! Aquele mesmo Shaka com quem Aiolia vivia discutindo?

O leonino fez uma careta e deu de ombros, relatando o breve incidente com o loiro azedo, que aconteceu no Meikai. Tratou de deixar bem claro o quanto estava chapado na ocasião, o que não foi suficiente para impedir as risadas de Milo. Quem diria!

– Fica na sua, vai... – Aiolia reclamou, devolvendo a almofadada que recebera. – Continuando. Aí, tem as pessoas que eu peguei mesmo, ou, no mínimo, dei uns beijos mais interessantes. Teve a Marin, a Tethys e...

– Aquela líder de torcida loira e gostosinha do último ano? Ah! Bem que a Shina falou que ela andava pulando demais em cima de você.

– É! Mas não é pra Marin saber disso. Não é como se eu tivesse saindo com a Tethys. Digo, não sempre.

Milo olhou com descrença para o pior melhor amigo, mas deixou para lá. Estava mais interessado em saber o motivo de Aiolia não ter mencionado o selinho que deu em Mu uma vez.

– Ahn... – o leonino titubeou, mordendo o lábio inferior com força, toda sua irritação voltando de uma vez. – É porque o Mu foi promovido pra outra lista.

– Isso quer dizer... – Milo instigou, boquiaberto. Não sabia ainda se era mais chocante Aiolia ter dado um selinho em Shaka ou beijado Mu.

O leonino assentiu, bagunçando os cabelos e grunhindo qualquer coisa ininteligível. Sentiu-se dominado pela irritação conforme contava de forma extremamente sucinta sobre o ocorrido na última ida ao Meikai.

– Então, é assim? Você não pode beber que já sai atacando caras?

– Olha só quem fala. Você estava sóbrio quando resolveu se pegar com o Camus?

Eles se encararam, fuzilando um ao outro com o olhar. Em seguida, apenas suspiraram e escorregaram do sofá para o chão, pensando nas confusões que tinham se metido.

– A gente só faz merda, hein?

– Nem me fale. Mas eu vou resolver essa história com o Camus esta semana, sem falta – Milo comentou com seriedade, fitando o leonino curiosamente. – E você, vai ficar todo estressado até quando?

– Sei lá, por mim o Mu pode explodir! – Aiolia respondeu sem pensar, direcionando sua raiva para uma almofada inocente ao lançá-la de encontro com a parede.

– Tsc, tsc... – fez o escorpiano, penteando os cabelos cor de mel do leonino para o lado antes de encostar suavemente as mãos no rosto deste.

Aiolia só teve tempo de sentir um déja vù quando Milo pressionou os lábios dele sobre os seus. Foi exatamente como ele fazia quando eram crianças: os lábios apertados com um pouquinho de força desnecessária; os olhos azuis bem abertos fixos nos seus; e as mãos segurando-lhe o rosto para que não se movesse. Segundos depois, Milo o soltou, o sorriso meio bobo que costumava exibir naqueles momentos já desenhado no rosto.

O leonino franziu as sobrancelhas, mas logo deixou para lá e sorriu ao notar que aquele era o jeito do seu pior melhor amigo dizer que estava contente por terem voltado à normalidade. Inclinou-se sobre ele, apertando-lhe as bochechas ao dizer:

– Você é tão uke, Milo! Admita de uma vez que fui seu primeiro amor.

– Nunca! E uke é você. Eu que ataquei... – o escorpiano levantou-se num salto, indo procurar alguma coisa na mochila, que estava jogada num canto da sala. – Por falar nisso, vamos medir logo.

– Você ainda não me contou a razão pra ficar todo ousado de repente, Tortinha de Maçã. O que houve nos dias que você faltou no colégio?

Milo exibiu um sorriso enviesado, voltou a se aproximar do leonino e finalmente começou a contar. Meia hora depois, quando já estavam prestes a medir de vez as coisas, a campainha tocou, trazendo um pouco mais de bizarrice àquele início de noite.

– Shaka? – inquiriram, ao mesmo tempo, diante da visita improvável.

O indiano os encarou com total descaso, entrando na casa assim que foi convidado.

Aiolia inclinou a cabeça para o lado em curiosidade, comentando com uma inocência para lá de fingida:

– O que faz aqui? Veio saber o tamanho do meu pau? A gente ia medir agora... – e apontou para o próprio baixo-ventre.

Milo não conseguiu segurar o riso diante da expressão abismada do recém-chegado. Shaka deu uma boa olhada nos dois gregos e se tocou de que havia chegado numa péssima hora.

– Em que mesmo uma informação como essa acrescentaria na minha vida? – o indiano indagou friamente. A seguir, olhou com todo o desprezo do mundo para aqueles dois inúteis pervertidos.

– Sei lá, calcular se caberia na sua-...

Cale-se! – Shaka interrompeu o leonino rispidamente. – Poupem-me de suas bobagens.

– Ok, ok. Vamos lá! Diga o que você quer então – Aiolia se recompôs, aproximando-se do virginiano. – Faz dias que não se dá ao trabalho de olhar na minha cara, depois da discussão em que... – parou e ficou quieto, encarando o outro com desconfiança. – O Ikki fez alguma coisa?

– Nada que você não tenha feito – Shaka respondeu lentamente, com azedume na voz seca, esperando que aquele tolo selvagem entendesse a sua mensagem sem que precisasse explicitar as coisas.

Aiolia entendeu e claramente não gostou nenhum pouco, considerando os palavrões terríveis que soltou. Por sua vez, Milo, todo lânguido, se aproveitou do momento para se aproximar do indiano:

– Também posso ganhar um beijo? – perguntou alegre, sendo automaticamente fulminado pelo olhar do outro loiro. – É brincadeira! Credo...

Shaka os encarou com desdém, apertou os lábios e virou-se para ir embora. Só tinha ido até ali para saber se Aiolia tinha alguma notícia de Mu, visto que era irmão do melhor amigo do ariano e tal.

– Eu não... – replicou desconfiado, estranhando que o indiano não tivesse simplesmente ligado para perguntar aquilo. – Shaka, não vá ainda... – pediu, vendo que o outro já se encaminhava para a porta. – Podemos medir o seu também!

Sem sequer se dar ao trabalho de olhar para trás, Shaka empertigou-se e saiu com ares de superioridade. Bateu a porta, como se não tivesse ouvido aquele absurdo, e ignorou as risadas debochadas daqueles gregos sem finesse alguma. Não desceria àquele nível. Nunca!

– Qual o problema dele? – Milo especulou em seguida.

– Hmm... – Aiolia ponderou por um longo momento, estreitando os olhos. No entanto, perdeu-se tanto em sua análise que acabou sendo puxado, de forma impaciente, pelo cós da calça. Como não chegou a nenhuma conclusão, deixou para lá.

***

No dia seguinte, Hyoga concluiu que estava com dificuldades em lidar com a própria falta de concentração. Debruçou-se sobre o livro de francês e decidiu, pela décima vez, que daquela vez prestaria mais atenção.

Não deu certo, claro! Como poderia se concentrar em qualquer coisa com Camus bem ali, sentado na cadeira de frente para sua, perdido em seus próprios pensamentos? Era exigir muito.

Não que Camus tenha reclamado para ele daquela demora toda em ler um mísero texto para continuarem com a aula. Pensando bem, o francês parecia meio distraído, vagando com os olhos pelos livros nas estantes da biblioteca sem realmente vê-los e enrolando uma mecha do longo cabelo vermelho entre os dedos.

Aos olhos de Hyoga, o francês era uma pessoa bem atraente, por mais que fosse quatro anos mais novo. De qualquer forma, procurou elaborar toda uma linha de raciocínio que permitisse a sua aproximação, já que o ruivo era bem fechado. Queria descobrir se poderia levar a relação entre eles para algo além do aprendizado de francês – uma boa amizade, ao menos. Porém, não chegou a ter a oportunidade para colocá-la em prática...

Porque quando ele abriu a boca para chamar o outro, não foi a sua voz que exclamou Camus!, ganhando a atenção deste na hora. Não! Aquela era a voz de um garoto loiro e muito bonito, por sinal.

– Milo – o ruivo cumprimentou num tom impassível.

O grego aproximou-se da mesa com um ar aborrecido, sem se dar ao trabalho de cumprimentar Hyoga. Fez um simples gesto com a mão na direção do rapaz, como se o mostrasse para o outro, estalou a língua e perguntou:

– Hoje não é meu dia de aula?

– Achei que tivesse desistido... – Hyoga arriscou comentar quando o francês ficou em silêncio.

O olhar de Milo para cima daquele intrometido foi tão, mais tão sombrio, que Camus rapidamente interviu, evitando qualquer má-criação da parte do grego:

– Vamos conversar ali um momento – indicou simplesmente, caminhando em direção às estantes mais afastadas.

Hyoga suspirou chateado, observando os outros dois sumirem em algum canto da biblioteca. Como Camus não costumava falar de si mesmo ou mencionar qualquer amigo, Hyoga não sabia nada sobre aquele garoto. Bom, agora era evidente que Milo era o outro aluno do francês. Não sabia o que pensar daquele caso. Não fazia a menor ideia de que a situação problemática entre eles ia além da aparente divergência de horários. Preferiu voltar a atenção ao que tentava fazer até minutos atrás.

Enquanto Hyoga finalmente conseguia se concentrar no livro, Camus e Milo permaneciam parados, um de frente para o outro, no mais puro silêncio. Por um lado, o aborrecimento do grego não o deixava pronunciar nada; por outro, o aquariano continuava vagamente surpreso com a aparição repentina do loiro.

Passou algum tempo até o escorpiano relaxar a postura e encostar-se à prateleira atrás de si, afastando os cabelos para trás do ombro. Para acabar com aquela situação chata, repetiu a pergunta que fez assim que adentrou a biblioteca e encontrou Camus acompanhado.

– Hmm – o aquariano murmurou –, o Hyoga apareceu pedindo um reforço e como você não veio nas últimas duas aulas...

– Calma aí! Eu te mandei mensagens. Eu avisei que não vinha daquelas vezes. Não é como se eu tivesse largado sem explicações – Milo rebateu, esforçando-se para não se exaltar. – Sei que estou atrasado hoje, mas, por incrível que pareça, eu sou uma pessoa muito responsável com meus compromissos.

Camus encolheu um pouco os ombros. Hyoga só o encontrara ali porque estava esperando pelo escorpiano. Tinha imaginado que Milo apareceria, já que não mandara nenhuma mensagem negando isso, mas o atraso foi tanto que achou que ele não iria mais, que pudesse ter se esquecido de avisar.

– O treino agora à tarde acabou durando mais do que o normal. Não avisei porque esqueci o celular em casa hoje cedo – Milo resmungou, encarando os próprios tênis, aborrecido com a situação.

O ruivo assentiu e eles caíram em um novo silêncio. A última vez que tinham se falado havia sido na semana anterior, no Meikai, enquanto Camus se dispunha a ajudar Milo antes de serem interrompidos por Kanon...

Ou melhor, antes de perceber que o escorpiano estava cheio de dúvidas, relutante em aceitar ajuda. Desde então, Milo faltara alguns dias no colégio e não dava para saber se ele continuava todo confuso.

– Como resolvemos isso? – o grego quis saber.

A pergunta soou ambígua, tanto que não parecia estar falando só das aulas de francês.

– Depende. O que você quer, Milo? – volveu com a mesma ambiguidade, sabendo que o outro daria um jeito de desconversar e fugiria de tomar alguma decisão, como vinha fazendo.

Ledo engano. Camus parecia ter esquecido a capacidade que Milo tinha de surpreendê-lo. Assim, entreabriu os lábios, impressionado, quando o grego levantou a cabeça com o sorriso mais deslumbrante que possuía estampado no rosto.

– Quero as coisas como eram – respondeu, avançando um passo na direção do ruivo –, quero nossa amizade exatamente como sempre foi.

O aquariano suavizou a postura rígida. Não admitiria tão facilmente, mas sentia falta da proximidade do amigo. Só tinha se afastado para que ele pudesse pensar com clareza e se livrar da confusão. Estava disposto a seguir com a amizade normalmente, se era o que Milo havia, por fim, decidido que queria.

– Ok – anuiu, assustando-se quando o escorpiano abriu os braços num pedido mudo por um abraço pacificador. – Ehrm...

Milo revirou os olhos frente à hesitação do outro. Precisou puxá-lo para si, abraçando-o com força e cumplicidade, o tipo de abraço que costumava dar antes daquela confusão toda entre eles.

– Quero falar com você, importunar você e me divertir com você, assim como sempre fiz – o loiro disse baixinho, a bochecha encostada na do outro rapaz enquanto falava. Deslizou uma das mãos ao longo das costas do francês, parando na nuca deste, e completou com um sussurro quente: – Eu quero tudo de volta, Camus.

Foi assim, de súbito. Milo deixou o ar repleto de possibilidades para aquele tudo e simplesmente partiu, acenando um até amanhã! por sobre o próprio ombro, com aquele sorriso fantástico no rosto.

***

No dia previsto para os amigos voltarem do campeonato nacional, Mu estava bem animado. Tudo bem, nem tanto assim. Continuava um pouquinho apreensivo, pois tinha acabado de desligar o telefone após conversar rapidamente com Aiolos – a primeira ligação em duas semanas – e o amigo parecia meio... avoado.

Felizmente, calma e paciência eram suas características mais marcantes, de modo que as próximas duas ou três horas seriam suportadas facilmente até que todos voltassem. Decidiu aproveitar o tempo que tinha dormindo, pois era o que o seu corpo sugeria, ainda meio desregulado pela diferença entre os fusos horários.

Deitado em sua cama, Mu ouviu a voz clara de Shion o chamando por algum motivo qualquer, mas não teve forças para responder. Sabia que o irmão logo apareceria em seu quarto para averiguar a falta de resposta, bem como sempre fazia.

Ficou devaneando, observando a brisa balançar as cortinas, mal registrando o momento em que o ariano mais velho abriu e fechou a porta do quarto, sentando-se em sua cama de forma silenciosa.

– Você me chamou? – Mu perguntou baixinho, virando-se na cama para olhar o irmão.

Quase deu um pulo, tamanho foi o susto que tomou, sentando-se instantaneamente ao dar de cara com um par de olhos verdes, pincelados de azul, e bem insolentes que, decididamente, não pertenciam a Shion.

– Aiolia? Mas o que-...?

– Shh... – fez o mais novo, fechando os olhos e meneando a cabeça na direção da janela, como se aproveitasse a brisa que lhe bagunçava os cabelos suavemente. Em contraste com tal tranquilidade, ele apertou os punhos sobre o lençol por um momento, antes de tornar a abrir os olhos e dizer baixinho: – Desculpa.

Simples assim.

Mu encarou o outro quase num estado de choque, boquiaberto. De todas as reações possíveis que tinha tentado imaginar que o garoto teria, desculpar-se não tinha sido excluída, considerando a imprevisibilidade toda. Porém, nunca cogitou que aconteceria assim tão fácil também, que ele falaria consigo por livre e espontânea vontade antes de ser abordado primeiro. Imprevisível demais, definitivamente.

– Ahn... – o tibetano balbuciou, perdido por ter sido pego desprevenido. Respirou fundo, sentindo que o sono o abandonara, e tratou de colocar os pensamentos em ordem e de reassumir a expressão tranquila. – Bem, é difícil aceitar seu pedido de desculpas quando você já aprontou tantas coisas comigo. Não digo por aquele, hm, beijo, pois sei que estava bêbado e sem noção sobre o que estava fazendo.

Aiolia arqueou uma sobrancelha.

– É que você já se redimiu antes e voltou a aprontar alguma um tempo depois... – Mu puxou os próprios cabelos para frente, por cima do ombro, e passou a mexer neles.

Era um alívio poder conversar com Aiolia sem dificuldades, sem precisar insistir para conseguir isso, como já tinha acontecido antes.

– Não é que eu não queira te desculpar, mas é complicado, entende? Como posso saber se isso não vai virar um círculo vicioso?

– Não pode – respondeu, mordendo o lábio inferior, enquanto olhava para o céu através da janela aberta, ignorando a atenção do mais velho sobre si. – Nem eu posso saber isso.

E antes de Mu dizer mais alguma coisa, ele teve a impressão de ser tragado para uma realidade paralela. Só algo assim explicaria o que aconteceu adiante. Aiolia começou a falar de si mesmo, ao mesmo tempo tentando se explicar e se entender em voz alta, como se estivesse sozinho.

Basicamente, parecia estar analisando seus atos, buscando alguma resposta, assim como o ariano tinha feito no Tibete. A diferença era que o leonino não conseguia fazer aquilo com a paciência e impassibilidade necessárias. Simplesmente começou a despejar tudo de uma vez, incoerente, atrapalhando-se e perdendo a linha de raciocínio várias vezes, andando pelo quarto e falando tão rápido e agitado que era dificílimo de acompanhar.

O que Mu conseguiu discernir foi que o garoto não sabia mesmo se não iria acabar aprontando alguma coisa, caso o ariano o desculpasse de novo. Nem tinha certeza sobre exatamente que coisa estava se desculpando. Afinal, Mu o irritava tanto, mais tanto que... Tinha noção de que se comportava de forma estranha, pois, às vezes, nem ele se reconhecia. Queria fazer as coisas de um jeito, mas sua impulsividade sempre acabava vencendo, atrapalhando tudo e fazendo com que agisse de outro. Caramba, ele era possessivo demais! E isso era tão confuso. Não morria de ciúmes apenas da amizade de Aiolos com Mu, não, pois também tinha ciúmes da proximidade de Mu com Shaka. Até mesmo ciúmes do loiro azedo com Ikki, veja só! Logo o indiano, uma fonte de irritação constante em sua vida. Tanta possessividade estava consumindo suas energias, parecia até piada. Praticava tantos esportes porque tinha energia de sobra, mas eles, nem de longe, o esgotavam de forma tão eficiente quanto aquela confusão toda.

Mu assistia ao monólogo do mais novo mal ousando respirar direito, preocupado em como este reagiria se caísse em si sobre tudo o que estava dizendo. Contudo, estava nítido que o leonino tinha se esquecido de sua presença, de vez em quando se calando o suficiente para mordiscar os lábios e bagunçar o cabelo incontáveis vezes.

– E a Marin então! – Aiolia exclamou, voltando para a cama e deitando-se sobre ela de bruços, abraçando um travesseiro com força enquanto balançava as pernas no ar com impaciência.

Não sabia o que fazer com a ruiva. Ela era sua amiga e ele só sabia ferrar com tudo. Não queria magoá-la, mas era o que vivia fazendo, seu ciúme impedindo que a dispensasse de vez frente à possibilidade natural de ela ser um alvo para outros. Tão egoísta. Merda! E o lance do yaoi então? Nunca tinha visto algo de interessante em outros caras nem tido curiosidade em saber como era, graças ao besta do Milo que passou a vida lhe dando selinhos. Caralho! Como tinha chegado naquele ponto com Mu? Tudo o que queria, quando Kanon se dispôs a ajudá-lo, era... era... Aff! Mu tinha entrado em seu caminho por tabela nessa história toda e olha só onde foram parar. Não estava mentindo quando disse para serem amigos. Era só que... E aí podia parecer até maldade, mas... Não, não, tudo o que queria... Nem era tanto assim... Ou talvez...

Mu observou o grego com uma pontada de aflição quando este parou de falar e ficou, com os olhos vidrados, encarando o nada. Aiolia tinha se perdido e parado justamente numa parte que poderia explicar muita coisa, como sua relação com Kanon e seu interesse estranho em relação ao ariano.

Com um suspiro pesado, Mu logo se conformou, pois, de um modo geral, a explosão do mais novo até que tinha sido bem esclarecedora sobre seu comportamento deveras estranho. O que era uma evolução e tanto.

Porra! – Aiolia bradou, voltando a si ao notar tudo o que havia dito. Foi tomado pela vergonha.

– Não! – pediu Mu quando o outro tentou se levantar, empurrando-o para que continuasse deitado.

Sabia que se deixasse o mais novo sair seria difícil conseguir falar com ele de novo. Tinham que se entender de uma vez. Deitou-se na cama também, de frente para o garoto, e disse:

– Olha, você está numa fase bem complicada, eu entendo. Inclusive, eu devo me desculpar por ter te chamado de criança.

O grego também se virou de lado e abanou a mão, tal como se dispensasse aquelas palavras. Seu orgulho doía – como só o orgulho de um leonino pode doer, já diria sua tia astróloga –, mas tinha que admitir que Mu estava certo. Não andara se comportando de forma muito madura mesmo. E olha que estava prestes a fazer dezesseis anos.

– Hm, posso só perguntar o que motivou seu pedido de desculpas? – arriscou Mu, atônito com aquela admissão do outro. Passar por cima do orgulho e reconhecer os erros eram passos fundamentais para o amadurecimento.

– Sinceramente? – Aiolia ainda perguntou, voltando a mordiscar o lábio inferior ao sentir-se tenso. – Não tenho certeza. Só sei que não dá pra continuar nessa vibe estressante.

Sem falar que Aiolos iria enlouquecê-lo, tentando descobrir qual era o problema. O leonino não queria que o irmão tivesse que interferir para que as coisas se resolvessem. Precisava saber resolver sozinho para deixar de ser criança.

– Tudo bem então – disse Mu, abrindo um sorriso pela primeira vez desde que o mais novo aparecera ali. – Eu te desculpo por tudo, seu comportamento bipolar e aquele beijo, desde que você se empenhe em melhorar.

Aiolia pestanejou confuso:

– Não quero desculpa pelo beijo, não. Eu estava chapado, mas... Ehrm... Nem me arrependi – murmurou com aquele sorriso meio libertino e meio perigoso nos lábios. Ficou sério ao concluir: – Culpa sua de ficar todo vulnerável. Se der bobeira, eu te beijo de novo, viu?

Mu arregalou os olhos, sentindo o estômago se contrair.

– Hey! É brincadeira, Mu. Você precisa perceber quando estou brincando ou não, porque isso eu não consigo evitar.

– É difícil quando você brinca, mas com uma expressão séria – replicou, fazendo um beicinho amuado sem notar.

– Ah, já me disseram isso. Mas relaxa que não vou te fazer nada.

O tibetano suspirou. Como ia saber se aquela afirmação não era brincadeira também?

– É mesmo – concordou, fazendo uma expressão falsamente pensativa. – Talvez eu tenha falado sério antes e esteja brincando agora, né?

– Você está me deixando confuso. Se ficar me zoando, vou retirar meu perdão...

O leonino soltou uma risadinha culpada e deslizou uma das mãos pelo colchão, vencendo menos de vinte centímetros para alcançar o mais velho. Ofereceu um aperto de mãos para selar o acordo.

– Amigos? – sugeriu, exibindo aquele sorriso lindo que lhe alcançava os olhos. – Ahn, pra valer dessa vez?

Devagar, Mu assentiu, apertando a mão do outro de volta. Considerando que já tinha tentado isso uma vez em vão, era inevitável se sentir apreensivo. Naquele tempo, ele não podia sequer imaginar, nem nos seus sonhos mais excêntricos, onde aquela história ia dar. Seu consolo sempre seria a constatação de que, por hora, aquela era a única opção que tinha, mesmo que parecesse boa demais para ser levada a sério.

– Legal – disse o mais novo, soltando a mão alheia, fechando os olhos e ajeitando-se melhor na cama. – Me deixa dormir então, estou quebrado...

– Como assim? Aiolia! – Mu ainda tentou protestar diante da cara-de-pau do leonino ao se apossar da sua cama, mas já era tarde demais.

A facilidade do grego em pegar no sono facilmente, não importava o lugar, era notável. Suspirou, limitando-se, por alguns instantes, a observar o garoto ressonar baixinho ao seu lado. Logo levantou-se e saiu do quarto todo pensativo, deixando o outro dormindo em paz.

Voltou quase uma hora depois, com um pouquinho de pena de acordar o grego – que continuava esparramado em sua cama –, mas não tinha jeito. Aiolos e os demais tinham acabado de chegar.

Chamou-o duas vezes sem obter o menor sinal de vida. Foi quando uma curiosidade o atingiu. Será que Aiolia ainda ronronava quando mexiam em seus cabelos? Um tanto hesitante, arriscou experimentar. Sorriu quando constatou que a resposta era positiva.

Aí, é claro que o destino resolveu que era uma boa ideia o leonino acordar naquele exato momento.

Mal deu tempo do ariano piscar. Quando viu, ele já tinha sido puxado pelos pulsos e havia caído na cama de barriga para cima. Seus longos cabelos claros espalharam-se pelos travesseiros, o coração disparou e aquela sensação no estômago retornou, depois de visualizar o olhar selvagem no rosto de Aiolia, acima do seu próprio rosto.

Um momento breve, mas tenso, se passou até que o leonino piscasse repetidas vezes, acordando de vez:

– Mu? Foi mal! – disse com uma expressão atordoada, soltando o mais velho e se levantando num pulo. – Sonhei que iam me atacar, sei lá... E eu tinha poderes elétricos, tipo um Pikachu, sabe?

– Poderes elétricos? Pikachu? Talvez seja melhor você parar de jogar tanto Pokémon... – comentou ao acaso, após soltar a respiração que prendera sem perceber. – De qualquer jeito, eu levei o maior susto...

Aiolia piscou um olho para o mais velho, esboçando um sorrisinho sem graça. Praticamente correu para fora do quarto, todo animado, assim que soube que o irmão já tinha chegado. Quase derrubou o sagitariano ao pular em cima deste, o que foi bem estranho. Os reflexos do irmão eram sempre tão rápidos!

– Olha quem está aqui... Irmãozinho... – Aiolos cumprimentou, bagunçando os cabelos do caçula com um ar distraído.

– Como assim só irmãozinho? Você tá doente? – indagou preocupado, encostando uma das mãos na testa do irmão. – Você nunca passa mais de dois dias longe de mim pra voltar e não ficar me enchendo de abraços apertados, só faltando chorar de emoção...

– Ué... – começou lentamente, batendo o dedo indicador na ponta do nariz do caçula. – Você sempre reclama e fica se debatendo quando faço isso...

– Não importa! Significa que você tá normal... – replicou, revirando os olhos ao notar que o irmão já estava absorto novamente.

Olhando ao redor, o leonino notou que Mu estava sentado no sofá conversando com os gêmeos. Foi quando deu por falta de Shura, que não estava com eles. Encontrou o espanhol perto da janela, com os braços cruzados e o olhar atento sobre Aiolos.

Ah é, recordou, o irmão teria que dar alguma resposta ao capricorniano durante o campeonato. Aiolia não pensou duas vezes antes de avançar intempestivamente sobre Shura, perguntando sem a menor cerimônia:

– O que você fez com o meu irmão?

Continua...


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Notas finais do capítulo

Bem, foi um longo capítulo, mas ao menos deu pra resolver bastante coisa. Ainda estão comigo? No próximo avançaremos mais um pouco no tempo o/

Hmm, será que dessa vez o Aiolia vai se comportar? ;D

Obrigada pelas reviews fofas: Hannah Kiss, Bruna Uzumaki, HoneyShi, Orphelin, Ana Rodrigues, Yue Hayashi, Kiba-Ino, ddkcarolina, Ethernal Saint 23, Suzuki_Yoi, Svanhild e Lord Art (lá pelo Facebook :3) S2

Que tal esse capítulo? ^^