"- Parece que faz tanto tempo. Mas... lembro como se fosse ontem".

Em uma quadra deserta, um menino jogava bola sozinho, visto que as auals já tinahm terminado. A escola estava prestes a ser fechada, e o sol se punha no horizonte, projetando estranhas sombras no chão, e seus longos cabelos soltos esvoaçando ao vento, mas ele não parecia ligar para nada disso. Só queria saber de jogar basquete. Mesmo que fosse um pouco, apenas por alguns segundos, e completamente sozinho... ele precisava ser livre para poder jogar, como se sua vida dependesse disso. Um professor veio pedir para ele se retirar pela terceira vez em menos de dez minutos, visto que a escola já ia fechar. O menino se preparou para fazer uma última cesta, para depois voltar à prisão diária que era sua vida cotidiana. Estava tão concentrado em acertar a cesta que não reparou que, ao arremessar a bola, um garoto descuidado passava bem naquela direção. Ele teria levado uma bolada feia na cara, e provavelmente quebraria o nariz, se o primeiro garoto não tivesse desviado a bola dele no último instante.

– Você está bem?? Desculpa, não te vi aí. Você se machucou? - perguntou o menino de cabelos longos.

O segundo garoto não respondeu. Apenas ficou encarando-o com a boca entreaberta de modo meio abobalhado, e olhos arregalados. Tão arregalados que pareciam estar brilhando, impressionados com a incrível habilidade de basquete do outro garoto. Ele lembrava estranhamente aqueles meninos desavisados do colégio que se encantavam e caíam de amores pelo menino de cabelos longos... ou melhor, pela identidade falsa dele.

Depois de vários segundos, o menino que quase levou uma bolada pareceu voltar à si. Ele piscou várias vezes e gaguejou:

– Err... e-eu estou bem... n-não se preocupe
– Mesmo? Você não parece muito bem não... demorou tanto pra responder - observou o menino de cabelos longos
– Ah, é que... e-eu me assustei por causa da bola, só isso. M-Mas eu estou bem, é sério - insistiu o segundo menino, o sol batendo em seus cabelos dourados, dando a impressão de que estavam brilhando - Nee... eu não te conheço de algum lugar?
– Não, acho que não
– Tem certeza?? Acho que já vi seu rosto antes - insistiu o menino de cabelos dourados - Você se parece... não, não pode ser...
– Pareço com o que? - perguntou curioso o garoto de cabelos compridos
– Bom... você parece muito com uma aluna nova da minha escola... ela foi transferida essa semana pra minha classe, se chama Fujisaki Nadeshiko-san - explicou o loiro meio envergonahdo - M-Mas claro que deve ser impressão minha né...? D-Desculpa falar que você parece com uma menina hahahaha...

O loiro se moveu um pouco e, agora que a luz do sol já não batia em seu rosto, o outro menino pôde ver melhor sua face e reconheceu o garoto.

– Você é... Hotori Tadase-kun, não é?
– Eh? Sim, eu mesmo... mas como você sabe meu nome?
– Porque a menina da qual você falou... era eu.

Claro que ele sabia que não devia ter revelado seu segredo tão repentinamente, ainda mais para um garoto que acabara de conhecer. Mas naquele momento um sentimento inexplicável invadiu todo seu ser, dando-lhe a sensação de que poderia confiar sua vida à esse menino de aparência tão frágil e delicada. Ele respirou fundo e contou-lhe toda a verdade. Sobre a história de sua família, as tradições, e a farsa que era obrigado a levar adiante.

– Uau... que história - comentou Tadase meio sem saber o que dizer - Err... então, na verdade você se chama Fujisaki Nagihiko-kun, e é um garoto que se passa por uma menina pra cumprir as tradições de dança da sua família?
– Basicamente isso - confirmou Nagihiko - Surpreso?
– Bom, bastante
– Já era de se esperar - respondeu Nagi com um sorriso sem graça - Olha, eu nem devia ter te contado isso, é um segredo muito importante... na verdade nem sei porque te contei... talvez por você ser parente do Diretor da escola, mas... eu... sinto que posso confiar em você - ele encarou o loiro com o canto dos olhos, e viu o quanto o menino estava surpreso com aquela última frase. Quando seus olhos se cruzaram, por algum motivo Nagihiko sentiu um tremendo embaraço e tornou a virar o rosto pro lado - E-Então... não ouse contar isso pra ninguém, ouviu?!
– Pode deixar, não contarei... ninguém iria acreditar em mim mesmo – respondeu Tadase com uma risada sem graça - Mas... obrigado por me contar um segredo tão importante e por confiar em mim, Fujisaki-kun.

O rosto de Nagihiko esquentou numa velocidade alarmante, mas logo voltou ao normal diante dos pensamentos que o garoto teve. Pensamentos tristes e melancólicos, que o perseguiam desde que se entendia por gente.

– Não é um segredo tão incrível na verdade... é apenas algo que eu tenho que fazer, querendo ou não. Verdade que eu gosto de dançar, mas... ter que fingir ser uma garota... isso é muito mais problemático do que parece - desabafou o garoto - Por causa dessa farsa, não posso fazer nada do que eu quero. Não posso correr, pular, rir em voz alta, nada... não posso nem mesmo dar o melhor de mim no basquete, como estava fazendo agora a pouco. Sempre fujo das aulas de educação física, mesmo adorando esportes... tudo porque preciso jogar e arremessar como uma garota, sem poder dar o meu máximo, isso me deixa angustiado! Até meus amigos... tenho que mentir pra cada um deles, sem poder ser sincero... eles não sabem nem o meu nome real. Isso não é amizade... até mesmo meus relacionamentos são uma farsa. No fim eu estou fadado a ficar sozinho por causa da dança.

Para sua imensa surpresa, o loiro segurou sua mão entre as dele e, encarando-o com seriedade, disse:

– Isso não é verdade Fujisaki-kun, você não está sozinho! É verdade que você tem que mentir para todos os outros da classe por causa do seu segredo, mas... é muito injusto que você não possa ter amigos só por causa disso! Mesmo que você tenha que enganar os outros e sinta que o seu relacionamento com eles é falso por causa disso... você ainda tem a mim. Eu sempre estarei ao seu lado, não importa o que aconteça. Não deixarei que você fique sozinho, vou guardar seu segredo, e nós ficaremos juntos... pra sempre!

Tadase sorriu docemente e em seguida estendeu uma das mãos, esticando o dedo mindinho. Ele provavelmente não tinha se dado conta da gravidade do que acabara de falar, mas foi o bastante para deixar Nagihiko encarando-o com cara de besta por vários segundos. Quando se recuperou do choque, ele entrelaçou o próprio dedo mindinho no do loiro, e os dois cantarolaram juntos:

– Yubikiri genman tsuitara hari senbon nomasu. Yubi kitta!¹ - cantaram eles, soltando os dedos logo em seguida, ambos sorrindo.

"- Sim, nós prometemos ficar juntos... no dia em que ele conheceu meu verdadeiro eu. Talvez ele nem se lembre mais daquilo, mas... o Hotori-kun realmente cumpriu a promessa".

Seis anos se passaram depois daquilo. Agora Nagihiko era um garoto como outro qualquer, livre de sua farsa feminina e de seu famoso teatro. Mas ainda havia um sentimento muito mais importante do que tudo isso que ainda parecia acorrentar o garoto. Agora ele estava sentado na sala de aula, numa carteira ao lado da janela. Desistiu de tentar prestar atenção no professor depois dos dez primeiros minutos de aula, e deixara sua mente divagar pelo passado enquanto observava o pátio da escola pela janela, sem realmente vê-lo.

"- Ele não pode ter prometido isso à sério, não é?" – perguntava-se Nagihiko pensativo - "Quero dizer, somos dois garotos... mesmo quando eu era Nadeshiko, ele sabia da verdade. Ele deve ter dito aquilo no sentido de que seríamos amigos pra sempre ou algo assim... é, deve ser isso. Droga, o Hotori-kun é tão descuidado, fica fazendo esse tipo de promessas comprometedoras que só confundem a gente! É bem a cara dele... se preocupa demais com outros, e nem se dá conta do que fala. Estou pensando besteiras, claro que ele deve ter prometido aquilo no sentido de sermos amigos pra sempre... é claro".

Nagihiko trocou o braço no qual apoiava a cabeça, e acabou derrubando a borracha que estava sobre a mesa. Quando se virou para pegar, viu que Tadase lhe estendia a mesma com um sorriso no rosto.

– Aqui está Fujisaki-kun. Tome mais cuidado - murmurou o Rei, lhe estendendo a borracha
– Ah, sim... obrigado.

Enquanto Tadase voltara milagrosamente a prestar atenção na aula (ele devia ser o único que estava fazendo isso) Nagihiko ainda sentia sua pele se arrepiar com o simples toque de quando o garoto lhe devolveu a borracha. Um formigamento estranho surgiu na mão em que o Rei lhe tocara , espalhando-se por todo seu corpo.

"- Sim... o Hotori-kun prometeu ser meu amigo pra sempre, e apenas isso, não é? Mas mesmo assim... de certa forma, o termo 'amigos para sempre' me incomoda um pouco".

Depois daquela aula monótona que, se durasse mais um pouco, seria capaz de matar alguém com um ataque fulminante de tédio, a turma teria educação física, então os meninos se separaram das meninas, cada um seguindo para seu respectivo vestíario.

Nagihiko já passara por muitos problemas em vestiários quando era Nadeshiko, mas agora que era livre para ser um garoto, sentia-se completamente libertado desse tipo de situações constrangedoras.
Ou pelo menos era isso que ele pensava.
O garoto ainda estava tão absorto em seus devaneios com o passado que levou um tremendo susto quando alguém sussurrou seu nome em seu ouvido.

– Nee Fujisaki-kun!

Nagi deu dois passos pra trás por causa do susto. Depois de se recuperar, viu que era Tadase quem o chamava. E assustou-se mais ainda, tanto por ter sentido a respiração do Rei tão próxima ao seu pescoço, quanto ao constatar que, se não fosse pela cueca azul que usava, o garoto estaria completamente despido.

Claro, não é como se fosse a primeira vez em que Nagi estivesse nesse tipo de situação. Mas acontece que ele vivera a maior parte de sua vida como Nadeshiko, e não como Nagihiko. E quando era Nadeshiko, nas vezes em que não conseguia fugir da educação física, ele semplesmente se trocava absurdamente rapído e saía do vestiário o mais depressa possível, tanto para não ver ninguém sem roupa quanto para não ser visto. Isso consequentemente o fez acostumar-se a vestir-se rápido demais enquanto que os outros alunos ainda nem tinham terminado de despir-se. Viver fingindo ser uma menina por tanto tempo parecia ter-lhe feito desenvolver um estranho desconforto ao se trocar junto com outros garotos, principalmente quando Hotori Tadase estava entre eles.

– Waahh!! H-H-Hotori-kun!! O que... err... ah... o-o que foi?? - ele gaguejou nervosamente desviando os olhos do loiro, e tornando a sentir sua temperatura subir
– Estou pedindo pra você me passar o uniforme que está atrás de você. Não estava ouvindo?? - indagou Tadase
– Ahh claro... o uniforme - Nagihiko pegou apressadamente o uniforme do Rei e o passou de qualquer jeito para ele, ainda sem encará-lo - D-Desculpe, eu só... estava pensando em outra coisa
– Ah, é? E no que estava pensando? - perguntou Tadase, inocentemente curioso, enquanto vestia a calça do uniforme.

"- Droga, o que estou fazendo?! Corando desse jeito ao ver outro garoto se trocando... preciso parar de pensar essas besteiras, e rápido!" – pensava Nagihiko nervosamente - "Mas ó problema é que não é qualquer garoto... é ele. D-De qualquer forma, preciso parar com isso e dar uma resposta depressa!"

– Eu... bem... e-estava pensando em como é bom finalmente poder fazer parte das aulas de educação física sem precisar me segurar, nem reter minhas habilidades. Finalmente sou livre para dar o máximo de mim nos esportes - Nagi respondeu ainda sem encará-lo. Ok, não era bem nisso que ele estava pensando, mas o garoto realmente se sentia assim
– É verdade... faz tempo que não te vejo jogando pra valer - concordou o Rei pensativo, agora vestindo a camiseta do uniforme - Na verdade, acho que a única vez que vi isso foi no dia em que nos conhecemos, se lembra?
– Claro que lembro... como poderia esquecer uma coisa importante dessas? - Nagi murmurou inconscientemente
– O que??
– Ahh... eu quero dizer... q-que me lembro sim. Vai ser bom poder voltar a jogar sem ter que me segurar - Nagihiko apressou-se a dizer
– Pois é. Finalmente você pode dar tudo de si... "Okama-san"² - riu-se Tadase
– Hotori-kun!!! Não fale isso alto, eu não faço mais esse tipo de coisa!! Sem falar que alguém pode ouvir! - exclamou o Valete entre irritado, preocupado e envergonhado, tudo ao mesmo tempo, enquanto olhava pros lados. Para sua surpresa, porém, não havia mais ninguém ali
– Está tudo bem, você ficou tanto tempo com o pensamento longe que os outros já saíram e você nem viu - tranquilizou-o Tadase, ainda rindo - Mas sério que você não faz mais isso?
– Não, não faço!! Não sei por quanto tempo isso vai durar, mas... minha mãe finalmente permitiu que eu vivesse como um garoto normal, então não quero ficar me lembrando disso! - exclamou Nagihiko um tanto corado
– Humm... que pena - murmurou o Rei pensativo - Eu... gostava de quando você era a Fujisaki-san
– O... que...??!

Nagihiko sentiu seu coração dar uma cambalhota, e voltou a sentir uma horrível mistura de ansiedade, alegria e pâncio. Ele tornou a encará-lo, mas Tadase já estava saindo do vestiário.

– Vem logo Fujisaki-kun, a aula já vai começar! - chamou Tadase, como se aquela última frase jamais tivesse sido dita
– Ei, Hotori-kun! Espera aí, o que você quis dizer com "gostava quando eu era Nadeshiko"??? Explica isso direito!! Gostava em que sentido?! - perguntou o Valete desesperado
– Anda, anda, vem logo ou vai se atrasar pra aula! - tornou a chamar o Rei, ignorando a pergutna do garoto
– Esquece a porcaria da aula, eu te fiz uma pergunta!! Anda, me responde!! Nee Hotori-kun!!!

Os dois saíram do vestiário em direção à quadra, com ainda mais dúvidas pairando sobre o ar.

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¹ Antiga cantiga japonesa usada ao se fazer promessas. Na tradução seria algo como "Eu prometo, eu prometo. Se quebrar meu juramento, terei que engolir mil agulhas*.

² Okama significa travesti em japonês.