Um Encontro escrita por liviahel


Capítulo 1
Capitulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/196830/chapter/1

Havia alguns meses que eu apresentava sintomas, meu estomago doía pela noite e de dia era difícil manter a comida no corpo durante o dia. Tentei de tudo um pouco antes de procurar um médico, de dietas malucas à medicina caseira. Mas logo que eu fiz o exame recebi uma sentença: câncer no estômago. Estado: terminal. Expectativa: três meses. É eu sei, pânico.

Mas meu encontro coma morte chegou muito antes do prazo, mais precisamente no dia em que recebi a noticia fatídica.

Comprei uma garrafa de uísque à caminho de casa, mas não agüentei tomar nem um gole, a primeira gota que caiu no meu estômago foi como lava. Era um aviso, a morfina que o médico tinha receitado pra eu viver bem o tempo que restava se fazia necessária. Eu não queria ter que usar e ficar grogue durante todos os meus últimos dias de vida, mas a dor era imensa e eu, um covarde, corri pra casa para poder tomar a exata dose prescrita, não queria encurtar meu tempo com uma overdose.

Sentei-me na poltrona da sala, no escuro, quase não se podia ver nada além da luz fraca de um abajur, e eu também não veria muita coisa por causa do efeito do remédio. Foi aí que ouvi sua voz.

 — Boa noite Lee Joon. — disse uma voz disforme, impossível de se identificar como sendo de um homem ou de uma mulher.

 — Boa noite por quê? — eu respondi jurando que falava com a minha imaginação, afinal eu morava sozinho, não era pra ter ninguém em casa.

 — É assim que você recebe os visitantes na sua casa?

 — E quem visita alguém a essa hora da noite?

 — Alguém da minha importância não tem hora para fazer visita.

 — Alguém da sua importância? — eu disse com desdém. — Não pretendo fazer negócios nos próximos meses, já tenho dinheiro suficiente pra não conseguir gastar tudo o resto da minha vida. Quem te mandou aqui?

 — Se você acha que foi uma pessoa, está errado. Se você acha que foi sua imaginação, também. Eu não sou controlada por nenhuma das duas coisas.

 — Então você é uma mulher? — eu disse rindo.

 — Não era óbvio? — a voz disse um tanto ofendida.

 — Com essa voz? Impossível dizer se é um homem, uma mulher um traveco.

 — E se eu tivesse um corpo?

                Eu poderia ter morrido naquele exato momento, se meu problema fosse no coração, porque no único circulo de luz que havia na sala surgiu uma mulher, jovem, e muito linda. Ela tinha pálpebras duplas, cabelos longos e ondulados, quase 170 de altura, aparentava uns 18 anos de idade. Mas eu não dei o braço a torcer tão facilmente.

 — Ainda estranharia sem uma voz apropriada.

 — Pois não. — a garota disse com voz feminina.

 — Bem melhor. E nome, você tem um? Não me apresento porque obviamente você já sabe o meu.

 — Um nome? Eu ainda não tinha decidido isso, mas pode me chamar de Park Jiyeon, eu gosto desse nome.

 — Então, Park Jiyeon, se você não é parte da minha imaginação, quem é você?

 — Eu sou a morte. — ela me disse sem a menor cerimônia, sentando-se relaxada no meu sofá, de frente pra mim, na poltrona oposta.

                Eu ri, mas senti medo e ela percebeu.

 — O medo... finalmente um traço humano com o qual eu estou familiarizada. Por que está rindo?

 — Por que se você é a morte, veio três meses antes, estou no meu direito de te dar um bolo.

 — Isso não é você quem decide, muito menos a estimativa de um médico. — ela disse, eu estava incrédulo e recuei. — Sua hora pode não ser essa também...

                Ela jogou os cabelos para os lados, como se nunca tivesse experimentado desse gesto.

 — A morte vem sempre linda assim?

  Park Jiyeon riu.

 — Elogios também não vão te salvar.

 — Tudo bem, então eu reformulo a pergunta. A morte é uma mulher então?

 — Depende. Você ainda não entendeu não é? Eu não sou uma assassina, você tem consciência pesada, pra achar que alguém poderia vir te assassinar na sua própria casa. —ela brincava com uma mecha de cabelo e apoiava os pés em cima da mesinha. Ah! E esqueci de dizer que ela usava botas de couro, calça cirré preta e uma camiseta branca larga, estampada com caveiras fofas, que ironia. — A morte sou eu, mas também muitas outras coisas, muitos outros iguais a mim, mulheres e homens. Essa é a primeira vez que eu ganho um corpo, então agora sei que sou uma mulher, uma mulher linda...

 — Disso eu não posso discordar. Mas eu tenho uma pergunta. — ela olhou diretamente para mim, a morte usava delineador, encorajando a fazer a pergunta. — Por que ganhou esse corpo?

 — Isso eu também gostaria de saber, não tenho muita idéia, mas vou descobrir logo.

 — Você era um fantasma então?

Ela riu.

 — Claro que não, eu já disse, eu sou a morte, não sou mais nada, sou a morte, simples assim.

 — Você veio me matar? — eu confesso que disse isso com o maior medo que já senti na vida.

                A expressão de JiYeon fechou, o que não me ajudou muito a controlar meu nervosismo.

 — Por que eu sou sempre a vilã da historia? Eu só cumpro com o meu propósito, as pessoas vão na hora que tem que ir, é a ordem natural das coisas.

 — Acha natural um homem de 23 anos morrer de doença? — era a primeira vez que eu enfrentava o fato.

 — Eu só cumpro com o que está escrito, a decisão não é minha.

 — A decisão é Deus? Ou de você-sabe-quem?

                Ela voltou a rir, alto e infantilmente.

 — O que você quer saber é se vai pro céu ou pro inferno, não é? Eu não sei, já disse que vim cumprir um propósito, não é minha parte condenar ou salvar ninguém, não propositalmente.

 — Então sua existência se resume a isso? — eu estava irritado, já estava convencido de quem ela era e queria provocá-la, me vingar de alguma forma, afinal eu não queria morrer, mas não podia fazer nada para evitar. — Cumprir um propósito?

 — É isso que eu sou, eu normalmente não sou uma pessoa, com exceção de agora. Eu não tenho nenhuma outra função.

 — Então pra quê se transformar numa mulher?

 — Eu já disse que não sei! Ainda vou descobrir. Será que você pode fazer perguntas que eu saiba responder?

                Ela estava irritada, isso não era nada bom.

 — Ok, você não é Deus, afinal Ele vê tudo, e sabe tudo, já entendi...

 — Eu também não sou o “outro” se era isso que você estava pensando. Por que pensou nisso?

 — Sei lá, você assume formas, muda de voz...

 — Essa é a única forma física que eu tenho.

 — E é uma forma tentadora, diga-se de passagem, com o perdão da palavra.

 — Já te passou pela cabeça que “cantar” a morte pode não dar muito certo? — JiYeon disse sorrindo.

 — Mas você gostou não é?

                Ela fez que sim com a cabeça.

 — Então eu vou ter uma morte bonita? — Me arrependi na mesma hora de ter feito o trocadilho, muito brega.

 — Aparentemente. — ela disse rindo e olhando a própria imagem no reflexo do vidro da janela. Sim, a morte tem reflexo, não são como os vampiros. Ainda bem que ela não lê mentes, péssima hora para passar besteiras pela minha cabeça. — Eu ainda vou descobrir isso. — ela completou de uma forma meio mórbida.

                Senti muito calor, eu estava suando, não sabia se era pelo nervosismo ou pelo abafamento na sala, tirei meu casaco e a camiseta, e terminei de beber a água que estava na garrafa que eu usei para engolir o comprimido de morfina. Eu estava tremendo muito, deixei metade da água escorrer pescoço abaixo. Ela me observava, curiosa, mas manteve silencio.

 — Você vai me levar hoje?

 — Isso é importante?

 — Claro, se eu morrer hoje meu corpo vai ficar aqui por muitos dias, a empregada só vem arrumar o apartamento na quinta-feira.

 — Essa é a pior esquiva que já tentaram me dar. — Ela disse sorrindo, mas com um tom bem sério de voz. — Por que nunca fez amigos?

                Ok, essa pergunta foi inesperada.

 — As opções que eu tive não eram boas...

 — Mas você nem procurou outros amigos.

 — Se você tivesse vivido tanto tempo nas condições lastimáveis em que eu vivi, iria querer fazer de tudo para mudar. Foi o que eu fiz, ganhei dinheiro e me afastei do meu passado.

 — E das pessoas... Mas o que você ganhou com isso? Você sabe que só se vive uma vez não é?

 — Está me julgando?

 — Não, só estou curiosa. Não cabe a mim julgar coisa alguma. — ela se deitou de lado no sofá e ergueu a cabeça com uma das mãos. — E namorada, você não teve nenhuma não é?

 — Defina namorada. — ela estava se esquivando da minha pergunta original, melhor pra mim.

 — Não se faça de bobo, namorada, sabe, uma garota que gosta de você, que você gosta dela, com quem você passa mais de uma noite.

 — Ah, mais de uma noite... Não, então não tive uma namorada.

 — Patético Lee Joon.

 — Obrigado. — eu disse ironicamente. — E a morte, tem namorado?

                Ela riu, depois ficou séria.

 — Eu sei aonde você quer chegar. Você quer achar algum ponto fraco em mim, eu não sou um programa de computador Lee Joon, eu nunca tive vida antes, como é que vou ter namorado?

 — Verdade. Mas não foi só por isso que eu perguntei...

 — O que? Você está interessado na morte? Que mórbido. — JiYeon disse ironicamente.

 — Se é assim que ela é, por que não?

 — Acho que esse é um dos seus maiores defeitos e também uma grande qualidade sua.

 — Como é?

 — Exatamente, você quase sempre aceita tudo que lhe aparece, e encontra coisas boas até no que é ruim. O problema é que você ultrapassa o senso comum, ao invés de recusar quando deveria.

 — Você não me conhece tão bem assim pra saber.

 — Eu sei tudo sobre você. — ela disse sem modéstia alguma.

 — Então porque me faz tantas perguntas?

 — Eu sei de tudo, mas há coisas que eu não compreendo.

 — E de que adianta compreender, você não tem interesse em mim.

 — Tem certeza? — ela olhou pra mim meio de lado, impressão minha ou a morte estava flertando comigo? — Quem não me conhece aqui é você, você não sabe nada de mim.

 — Então me conte alguma coisa.

 — O que quer saber?

 — Não sei, minhas perguntas já se esgotaram, vai ter que me dizer o que você acha relevante.

 — É a primeira vez que você conversa seriamente com uma mulher não é?

 — Por que diz isso? Agora você é uma mulher?

   Ela riu e jogou o corpo para o lado, para encarar o teto, pude ver melhor sua silhueta, era um corpo lindo mesmo, nada extraordinário, mas extremamente proporcional, e atraente.

 — É que, homens da sua idade já sabem perceber o que uma mulher quer que você pergunte. Mas eu deixo passar porque sou incomum e sou uma mulher há muito pouco tempo.

 — Você é uma garota, é isso que você é.

 — E faz diferença? Ser garota e ser mulher?

 — Acho que não sou eu quem vai te mostrar essa diferença.

                Ela olhou pra mim para avaliar minha expressão, e pareceu notar que eu estava sendo malicioso, mas não ficou irritada, pelo contrário, ela sorriu e volto a encarar o teto em silêncio.

 — Vai me falar sobre você ou não?

 — Estava pensando no que dizer, no que eu ainda não disse, porque não há muito o que falar, afinal, minha existência se resume a um propósito não é? — ela disse irônicamente. — Mas eis o que eu ainda não deixei claro. Existem mais criaturas como eu, mais mortes por assim dizer, no final das contas eu não sou Deus, como você mesmo disse. Milhares de pessoas morrem por dia, como eu sozinha daria conta disso tudo? Eu tenho uma lista de pessoas a quem levar desde que fui criada, e tudo que eu tenho que fazer é cumprir com o destino dessas pessoas no tempo certo.

 — Como sabe que é o tempo certo?

 — Eu não sei, eu só acompanho toda a existência dessas pessoas, desde que nasceram até o dia em que vão embora.

 — Quer dizer que você me conhece há muito tempo.

 — Todos os minutos da sua vida, eu vi.

 — Me sinto num reality show, você viu tudo, tudinho? — eu disse meio envergonhado, havia muitas coisas na minha vida que não eram adequadas para uma garota ver, mas a quem eu queria enganar, aquela era a morte em pessoa, dela eu não preciso esperar nada, nem um julgamento.

                JiYeon se virou pra mim novamente, sorrindo com um pouco de malícia.

 — Tudinho.

 — Você não tem vergonha? Não tem vergonha de admitir isso?

 — Eu não sinto essas coisas Lee Joon. — ela disse rindo, e olhou rapidamente pra mim.

 — Ah não? Então não vai se importar se eu ficar à vontade na minha própria casa, não é? — ela não me respondeu, só deu de ombros. E eu fiz o que pretendia, porque sentia calor, tirei a calça, os sapatos e fiquei só de cueca.

                Ela notou o que eu fiz, olhou rapidamente pra mim sentado no sofá semi-nu e se virou para o teto com a mesma rapidez. JiYeon parecia confusa... A morte estava confusa? Ela sentia afinal?

 — Me diz então, o que você sente?

 — Aparentemente eu não sinto nada, não quando estou na minha forma normal.

 — Quer dizer que agora você sente?

 — A primeira coisa que eu senti foi curiosidade, depois irritação, agora eu não sei direito...

 — Muito complexo?

                Ela fez que sim com a cabeça, olhando rapidamente pra mim de novo.

 — O que você sente é físico? Ou é alguma emoção?

 — Acho que os dois... Mas não era disso que nós falávamos antes. — ela desconversou. — Eu dizia que existem mais de mim, digo, não de mim, mas como eu.

 — E eles tem formas físicas também?

 — Já vi acontecer, mas não compreendi o motivo, não preciso de um corpo pra fazer o que tenho que fazer.

 — E o que acontece depois que alguma... — me faltavam palavras. — morte se materializa em um corpo?

                Ela riu pra mim, me olhou fixamente depois de muitos minutos.

 — Eu não sei se devo dizer isso...

 — Por que não?

 — Por que são variadas as respostas, e você pode criar expectativas erradas.

 — Expectativas? Quer dizer que há uma chance de eu não morrer?

 — Viu só? Expectativas... E não era só disso que eu falava. Continuando, eu não sou um anjo, muito menos um demônio. Quem tem poder pra decidir não sou eu, eu sou designada a algumas pessoas por algum motivo misterioso. É como se para cada “morte” houvesse as pessoas certas.

 — Complicado...

 — Eu sei! Agora que eu posso pensar direito é que eu estou vendo.

 — Já entendi, podemos falar de outra coisa que não de morte agora?

                JiYeon se levantou e deu a volta no sofá, sua figura desapareceu por um momento na escuridão, é ridículo admitir que eu achei que ela tinha ido embora. Mais ridículo ainda admitir que dois segundos depois eu queria que ela não tivesse ido. E ela não se foi mesmo, só se inclinou sob o encosto do sofá, olhei rapidamente para o seu decote, mas o interessante mesmo era sua expressão, estava um pouco ultrajada.

 — Foi você quem quis falar de mim.

 — Sim, mas eu já sei o suficiente sobre a morte, e nada sobre você, é uma garota agora.

 — Mas tudo o que eu tenho pra dizer é o meu presente, e você está aqui, vendo tudo.

 — Estou vendo o que é visível aos olhos. — JiYeon fez uma expressão de quem não entendeu bem. — Explico. — eu me levantei para ligar outro abajur, meu corpo estava encharcado de suor. — Você pode sentir algo emocionalmente falando...

                Eu me virei pra olhá-la, agora que havia mais luz na sala é que eu pude ter noção do quanto a garota era bonita.

 — Ou pode sentir algo físico que não é visível, como dor, ou sei lá, um arrepio...

 — Ou isso? — ela apontou para o meu quadril, completamente alheia ao que estava vendo, eu estava com uma ereção.

                Tudo o que eu podia fazer era rir.

 — Sim, isso. Deve ser efeito do remédio ou coisa assim.

 — Duvido muito. Nós já estamos conversando há umas quatro horas, já passou o efeito, e você também está bem lúcido Lee Joon.

 — Então é isso, é de madrugada, isso é normal para um homem nessas horas. Mas por que eu não sinto dor?

 — Porque isso sou eu quem causo, ou tiro se eu quiser.

 — Você fala como se soubesse do que está falando. — eu disse com desdém.

 — E não sei mesmo, só sei que tenho esse poder.

                Fiquei furioso com a forma com que JiYeon falava, como se não se importasse de causar dor. Eu já havia sofrido muita dor, e amaldiçoado tudo por causa dela, com dor eu não brincava. Avancei para o sofá onde ela estava peguei a parte de trás de seus cabelos e a puxei pra perto do meu rosto. A garota quase caiu de volta ao sofá, e olha que mesmo sendo razoavelmente alta, era muito difícil trazê-la por cima do encosto.

 — Ai! — ela gritou alto, e tinha uma expressão de fragilidade que me fez sentir um monstro, eu a soltei rapidamente.

 — Me desculpe. — eu disse, caindo ofegante sobre as almofadas do sofá.

                Ela me olhava meio desamparada, parecia um sentimento que não podia processar bem, nem controlar.

 — É isso que você sente quando eu faço isso?

 — Mil vezes pior que um puxão de cabelo.

 — Eu não podia compreender algo assim... — ela disse de uma forma bem triste, pensei até ver uma lágrima caindo sobre o meu peito, mas eu não tinha certeza, porque meu corpo estava molhado e quente o suficiente para disfarçar a sensação. — Sabe... Eu nunca tive um corpo. A dor faz parte da morte, mas eu não podia compreendê-la. Mas a dor devia parar não?

 — Eu puxei muito forte não é? Me desculpe.

 — Não é isso, eu sinto algo como uma dor... Mas não é aonde você me machucou, não sei onde é exatamente.

 — O que você está sentindo é tristeza.

 — Eu estou triste? Mas pelo quê?

 — Não sei, você é quem sabe o que passa pela sua cabeça, no que está pensando?

                Ela olhou para o nada antes de responder.

 — Eu penso na dor... Na quantidade de pessoas a quem eu causei dor... dor física... dor emocional... É a primeira vez que eu penso em mim como um monstro, eu sou um monstro.

                Ela desabou em lágrimas, e eu senti pena, muita pena, ajoelhei no sofá e a trouxe para perto de mim nas almofadas.

 — Você não é um monstro, isso só... faz parte do que você é.

 — Mas eu causo medo nas pessoas, eu causei o medo em você! Eu vi quando você me viu pela primeira vez.

 — O medo é uma coisa boa JiYeon. — eu disse, e ela pareceu mais calma ao ouvir o nome que ela tinha escolhido pra si mesma.

 — Não é não, não foi algo bom o que eu vi.

 — Mas medo você nunca sentiu, pelo menos não ainda. Eu disse que é bom porque o medo evita que nós façamos coisas erradas. Você já deve ter visto isso antes, sabe, quando uma pessoa evita de passar por uma rua escura quando sabe que é perigosa, ou coisa assim.

                Ela deitou-se por cima de mim no sofá, com o ouvido no meu peito, agora eu podia sentir suas lágrimas quentes na minha pele. Incrível como já era fácil pra mim, separar a garota da morte.

 — Você diz isso porque é isso que você faz, vê coisas boas em praticamente tudo. Quero ver você achar algo bom na morte.

 — Fora ela ser muito linda? — eu disse rindo.

                Ela olhou pra mim meio brava e voltou a deitar a cabeça em meu peito.

 — Ok. Falando sério, você mesma disse que todo mundo tem uma hora certa pra ir, que está escrito. Se a minha hora for agora, acho que eu também ficaria feliz, afinal, a dor e o sofrimento iriam acabar junto comigo não é?

 — Não é simples assim, nem eu sei do que estou falando de verdade. Você também não sabe. Nenhum dos dois sabe, o que acontece depois, que eu...

                JiYeon não pode continuar o raciocínio, estava se martirizando por ser quem era, eu sei porque muitas vezes me senti de forma parecida. Eu sentia pena por ela ter que sentir tudo aquilo tudo de uma vez, me dei conta de que ela havia sentido tudo de ruim que se podia sentir e nada do que há de bom. Eu era assim também.

É, eu sentia pena da morte, e era pra ser o contrário, afinal ela veio pra me levar e eu não queria ir. Isso era antes, naquele momento então eu tinha me dado conta de que eu não sabia por que queria ficar. Era exaustivo me sentir assim, e eu também estava com sono. Ela não parava de chorar, mesmo depois do que eu tinha dito.

 — Você já dormiu antes JiYeon?

 — Não, a morte não dorme... — ela disse com amargura na voz.

 — Então hoje você vai ver pra quê as pessoas dormem. Feche os olhos. — ela levantou a cabeça para me olhar, depois fechou os olhou e ficou esperando.

                Eu sorri e deitei a cabeça dela sobre o meu peito de novo, afastando seus cabelos ondulados de seu rosto, fez-se silencio absoluto e nós dois dormimos abraçados. Não tenho idéia do que JiYeon possa ter sonhado, ou se ela sonhou mesmo, porque não se movia muito só se agarrava forte ao meu corpo, como se tentasse me proteger de alguma coisa.

                Eu sim sonhei, mas nem me atrevo a dar detalhes de algo tão confuso e embaraçoso, só o que eu posso dizer é que eram flashes de uma fantasia minha com JiYeon.  Nada extraordinário, o extraordinário mesmo era poder dormir sem dor alguma em muito tempo, era ela quem estava me ajudando, eu me sentia saudável de novo. Tão saudável que eu acordei com um baita sol no rosto, e daquele jeito lá embaixo. Por sorte JiYeon ainda dormia, e também não associaria meu estado interessante ao fato de ela estar nos meus braços.

                Eu não quis me mover, não estava incomodo, ainda estava sob o efeito anestésico de JiYeon, nada me incomodava, nem o sol forte. Já devia ser quase meio dia quando ela abriu os olhos e olhou pra mim sorrindo.

 — Bom dia.

 — Está bem de humor? — eu respondi sorrindo.

 — Eu sempre quis dizer isso.

                Eu ri, e a expressão dela se fechou um pouco, como quem faz manha.

 — Que foi?

 — Um vazio no estômago, sensação esquisita. — ela levantou-se e ficou sentada em cima de mim passando a mão na barriga.

 — É fome, vem cá. — eu me levantei também, ainda com ela no colo. — Vou fazer algo pra você.

 — Você não vai comer também?

 — Tenho receio, toda vez que eu como algo passo por maus bocados para digerir.

 — Não vai acontecer nada, eu te garanto, você nem precisa tomar remédio hoje. — ela sorriu convencida, acordou com vontade de fazer boas ações.

 — Doce ou salgado?

 — O que?

 — O que você quer comer? Doce ou salgado?

 — Eu não sei o que é isso Lee Joon.

 — Então vai ser os dois.

                Eu corri com ela no colo até a cozinha para preparar umas panquecas, deixei Jiyeon me ajudar, ainda que ela só me atrapalhasse porque não entendia nada do que estava fazendo. Não era mais aquela moça graciosa que apareceu pra mim na noite anterior, era só uma garota comum. Ok não tão comum, porque eu encostei minha mão sem querer na panela quente e não senti absolutamente nada, apesar de que fez um buraco na minha pele.

 — Viu só porque a dor é importante?  Como eu ia saber que estava machucado, se sei lá, eu tivesse algum problema interno?

 — Obrigada...

 — Pelo quê?

 — Por me fazer sentir melhor. — ela disse encostando-se a mim, perto do fogão.

                Eu pus a mesa para podermos comer, nunca apreciei tanto comer algo tão simples como panquecas, depois de tanto tempo sofrendo para comer qualquer coisa. JiYeon estava encantada com a comida, devorou quase tudo que eu tinha na cozinha.

 — Tudo tem um gosto Lee Joon?

 — Acredito que sim, tudo tem um gosto diferente. Mas também não se pode comer tudo.

 — Mas provar pode não é?

 — Credo, o que você tem em mente?

                Ela se levantou e veio até mim sorrindo, segurou o meu rosto e passou a língua pelo meu maxilar. Eu senti um forte arrepio passar pelo meu corpo.

 — Você é salgado. — JiYeon disse fazendo cara feia. — Só salgado.

                Eu fiquei sem ação, e ela voltou a segurar meu rosto, pôs os lábios sobre os meus e colocou a língua dentro da minha boca, ela não sabia que aquilo era um beijo, não era essa a intenção dela, ainda estava provando o meu gosto. Mas eu sabia e pra mim aquilo era um beijo e eu correspondi fazendo com que a minha língua encontrasse a dela ansiosamente. De repente ela me soltou.

 — Ainda é salgado. — ela disse tocando os próprios lábios com os dedos, mas já não olhava pra mim. Ela sabia o que estava fazendo? Ou só se deu conta quando eu correspondi?

 — Onde aprendeu isso?

 — Isso o que? — ela desconversou.

 — Nada... É só que eu... Preciso tomar banho, escovar os dentes...

 — Isso muda seu gosto?

 — Não sei, acho que sim. — eu estava extremamente desconcertado.

 — E o meu gosto, como é?

 — Eu não sei, acho que doce... Porque você comeu doce agora a pouco.

 — Eu gosto de doce.

 — Toda mulher gosta. — eu disse e ela sorriu, estava gostando de não ser tratada como uma criatura. Até eu já evitava a palavra, nada bom, mas eu não me importava. — Bom eu vou... vou tomar banho.

 — Posso ir com você? — ela disse inocentemente. — Quero saber como é.

 — Saber como é o que? — eu devia ter corado muito, porque senti meu rosto queimar.

 — Tomar banho oras!

 — Ah, você, você quer tomar banho comigo.

                Ela fez que sim com a cabeça, inocentemente. Não era possível, alguém que passou toda a existência observando as pessoas, me observando, não saber o que aquilo não seria apropriado. Ela já devia ter visto de tudo, mas já tinha entendido algo importante com ela, ver não quer dizer compreender. Resolvi por satisfazer a curiosidade dela e a levei para o banheiro, liguei o chuveiro e experimentei a temperatura da água, ela fez o mesmo tocando o fluxo do chuveiro divertidamente. Eu entrei, sem tirar a cueca, não que ela cobrisse muita coisa depois de molhada, pois era branca, mas eu me sentia menos tarado assim. Ela ia entrar de roupa e tudo também, mas eu a impedi.

 — Se você molhar essa roupa eu não vou ter outras roupas de mulher pra te vestir.

 — O que você quer é me ver sem não é? — ela disse com malicia, como fazia isso? Uma hora ela era casta e inocente e de repente já sabia o que eu pensava. Ela aprendia as coisas rápido.

                Eu a olhei meio surpreso e ela sorriu.

 — Eu sei isso porque também fiquei curiosa.

                Eu tentei me cobrir, e fiquei um pouco bravo.

 — Como se você nunca tivesse visto nada... — eu disse.

 — Mas eu nunca tinha te visto assim como mulher, é diferente, não é... normal. — Eu a vi corar pela primeira vez.

                Eu joguei água nela e molhei boa parte de sua roupa.

 — Sua tarada, sai daqui. — disse brincando.

 — Você acha que eu não sei por que você me jogou água? Pois você vai ver só o que eu permitir.

                JiYeon tirou a bota, a blusa  e a calça. Ela usava lingerie e eu nem sei por que fiquei intrigado, uma vez que ela apareceu do nada pra mim, já vestindo roupa, por que ela não usaria nada por baixo? Nós nos lavamos e ela me deixou lavar o cabelo dela. JiYeon gostou da água quente do chuveiro, ficou lá por mais meia hora depois que eu saí. Fui buscar uma toalha e roupas pra ela, deixei em cima da pia.

 — Aqui pra você, tire tudo, e vista essas roupas, não é bom ficar com as roupas molhadas. — que ótimo, eu já tinha me esquecido de com quem eu estava falando, mas não importa, ela gostava de ser tratada como uma pessoa normal.

                Eu a esperei no meu quarto e a visão que eu tive a seguir era sexy e engraçada ao mesmo tempo. Imagina, uma garota linda como ela usando uma camiseta branca tão larga que deixava muita pele a mostra, e um short que não cabia direito em seus quadris. Parecia uma criança que vestiu as roupas do pai por brincadeira, mas também uma mulher que usava as roupas do namorado. Opa! Por que eu pensei nessa analogia?

                Passamos um dia ótimo, trancados em casa, porque ela não podia sair com aquelas roupas, mas foi um ótimo dia. Ela aprendeu e compreendeu muita coisa, foi da alegria à tristeza várias vezes nesse meio tempo. Falamos de mim o tempo todo, JiYeon me perguntou tudo que tinha curiosidade de saber, até o que eu senti quando meus pais morreram e eu fiquei sozinho. Ela deixou claro que não tinha sido ela a “morte” dos meus pais, esse foi um dos poucos momentos que me trouxe de volta à realidade dos fatos. Mas o dia foi ótimo, sim, eu me senti saudável o tempo todo.

                No fim da tarde ela quis ver o por do sol e nós subimos para a cobertura, que era de onde se podia ver tudo, ela ficou calada o tempo todo, e quando a noite caiu ela se deprimiu visivelmente.

 — Que foi?

 — Eu acho que estou preocupada, não sei descrever.

 — Preocupada com o que? — Eu a abracei por trás.

 — Não sei, a noite me lembra do que eu faço...

 — E? Você parecia muito bem agora a pouco...

 — Eu sempre fiz o que tinha que fazer sem o menor questionamento. Mas agora eu tenho essa capacidade, a de questionar... E bom, agora que eu pensei um pouco, ainda não sei o que vim fazer aqui...

 — Você veio me levar, não precisa ter remorso por isso, cada um tem sua hora não é?

                Ela se virou pra me olhar, estava séria.

 — Você diz isso pra me consolar, que bela amiga que eu sou, é você quem está passando por algo realmente difícil e eu sou quem fica fazendo drama.

 — Não é drama, é que agora você tem que fazer algo que é do seu poder, mas ainda no corpo de uma humana...

 — Não acho que seja por isso que eu esteja aqui hoje. — JiYeon me olhava profundamente nos olhos, como se tentasse ler alguma coisa, achar uma resposta, mas fosse impossível de decifrar.

                Fiz de tudo para não demonstrar meu medo, ela não gostava do medo, mesmo com o meu argumento em favor dele.

 — Você tem algum palpite?

 — Não sei exatamente, eu sinto como se... — essa era a parte mais difícil pra JiYeon, descrever sentimento quando lhe faltava experiência para colocar tudo em palavras. — Se estivesse faltando alguma coisa pra resolver as coisas.

 — Entendo...

 — Não, você não entende! Está dizendo isso da boca pra fora.

 — Só queria te confortar...

 — Por quê?! Você não tem por que fazer isso!

 — Você não tem como saber meus motivos. — eu respondi calmamente.

 — Qual é o motivo então? Você quer morrer é isso?

 — Não é isso...

 — O que é que você quer então? — ela me empurrou e se afastou de mim chorando. — Porque é só isso que eu tenho a oferecer, a morte!

 — Eu quero você! — eu gritei e depois congelei, assim como ela. Eu não sabia o que estava fazendo, e ela também não me compreendia.

 — Você é doente ou o quê?

 — Doente eu sou mesmo... — eu disse rindo, humor negro, sempre aparece nas piores horas.

 — O que está fazendo? — ela estava meio pasma, como se tivesse constatado alguma coisa que eu desconhecia.

 — Não sei, só estou sendo sincero, tentando te acalmar.

 — Por quê? — lágrimas grossas escorriam de seus olhos e ela tremia.

 — Porque... Porque... Porque eu te amo! É isso! — eu disse... Era algo que eu achava impossível de acontecer. Não o fato de eu dizer, mas o fato de eu sentir. Não o fato de eu amar, mas amar a ela, ParK JiYeon... Seja realista Lee Joon, ela não é Park JiYeon, ela é a morte!

 — Você nem sabe do que está falando! Você nunca amou nenhuma mulher!

 — Você também não sabe do que está falando. Amor ainda não é uma das coisas que você compreende! — não adiantava, eu já não a enxergava como a criatura que vinha me tirar a vida.

 — Mas pelo menos eu admito isso! Eu não sei mesmo do que eu estou falando, não sei nada sobre amor, não fui feita pra isso!

 — Vai fazer o que então? Cumprir com o seu propósito agora que você ganhou uma oportunidade? Agora que eu ganhei uma oportunidade única?

 — Você tem fé em que? Que me amando vai se salvar? Já te disse que eu não decido isso, ainda sim eu teria que fazê-lo.

 — Não é isso que eu espero de você. O pouco que eu sei de amor é que ele não é uma moeda, que a gente pode usar pra comprar as coisas. A gente só ama e pronto!

 — Eu não sei fazer isso, não sei sentir isso.

 — Você só está com medo JiYeon!

 — Sim eu estou com medo! E você sabe que eu não gosto de medo!

 — Você tem medo de quê?

                Ela suspirou, tomando coragem de dizer o que pensava, era algo forte com certeza, um balde de realidade.

 — Que futuro isso tem? Lee Joon eu não sou humana!

 — Pra mim parece bem humana. — eu protestei e ela me olhou com impaciência. — Ok, pode não haver futuro algum, você pode sumir do nada assim como apareceu ontem, ou eu mesmo posso deixar de existir, eu estou morrendo não é? Nós só temos o presente, não é? Digamos que nós só tenhamos as próximas horas, como gostaria de passar esse tempo?

                Ela abaixou a cabeça ese encostou à grade do parapeito da cobertura, e pensou por uns dez segundos.

 — Com você. — ela disse baixinho, com a voz chorosa, ainda não olhava pra mim.

 — Como é?

 — Com você! — ela gritou, levantando os olhos avermelhados pra mim.

 — Por quê?! — eu também gritei.

 — Porque eu te amo! — ela respondeu finalmente.

 — Então ótimo.

                Eu a peguei pelos quadris e a beijei, foi um beijo maravilhoso, diferente de tudo que eu já havia experimentado até então. JiYeon era mais ansiosa que eu, não tinha idéia do que estava fazendo, e isso era bom porque ela me beijava como achava bom. Carreguei-a no colo e a levei para o meu quarto, mas não a pus na cama, coloquei-a de pé, de frente pra mim. Enterrei meu rosto em seus cabelos para sentir seu cheiro, enquanto ela me abraçava forte. Deixei minha roupa cair enquanto a beijava, ela nem viu, e era essa a minha intenção, não queria deixá-la receosa de nada. Paramos de nos beijar para trocar olhares, JiYeon não tirava os olhos dos meus em momento algum, nem mesmo quando eu tirei a camiseta branca dela e deslizei o short dela para o chão, descobrindo aquela pele pálida, sedosa e imaculada. Eu a carreguei de novo no colo e deitei com ela na cama. JiYeon pareceu curiosa e eu a deixei me tocar, ela olhava para si mesma e depois passava com os dedos nos meus músculos, e eu sentia leves arrepios toda vez que ela fazia isso. Quando a curiosidade passou e ela já tinha aparentemente decorado cada centímetro do meu corpo ela voltou a se deitar no colchão olhando profundamente pra mim. JiYeon me queria e eu fui até ela. Nós fizemos amor, o tempo pareceu parar, poderiam ter se passado horas, ou dias e nós não saberíamos. Não havia pressa, angustia ou ansiedade, nada mais existia só nós dois e o silêncio. Ela não me disse mais nada, só sorriu e adormeceu nos meus braços novamente.

                Quando amanheceu eu acordei e ela não estava lá, eu estava vivo, com certeza, porque sentia fome. Mas ela não estava lá, nem sua roupa. Eu soube que ela tinha ido, ela tinha fugido pra me deixar vivo, mas eu fiquei pedindo pra morrer até chegar na cozinha e ver panquecas prontas, com uma mensagem escrita com cobertura de chocolate.

“Te vejo daqui três meses, viva bem enquanto isso, eu garanto que você não vai sentir nenhum tipo de dor nesse tempo... nenhum tipo de dor. Eu te amo.”

 — Mas você disse que esse prazo não valia, por que me dar mais tempo? — eu disse comigo mesmo.

                Era algo que eu não compreendia ainda. Eu não me dei ao trabalho de fazer novos exames, me sentia perfeitamente bem, com exceção do coração que era meu novo problema, a morte viria de qualquer forma e eu iria recebê-la de braços abertos e feliz, pois eu a queria de novo. Sim, porque eu já estava morto quando ela me encontrou, aquele tinha sido meu primeiro dia vivo desde meu nascimento, e eu realmente vivi os dias que se seguiram, como ela havia me dito pra fazer.

                Três meses depois lá estava eu, sentado no sofá, de cueca, esperando por ela. Esperando JiYeon aparecer no fraco círculo de luz do abajur da sala. Eu adormeci esperando, porque não tinha a menor idéia de a que horas ela tinha aparecido da primeira vez. Só fui acordado com uma batida na porta. Fui meio sonolento atender, meio automaticamente, nem verifiquei quem era antes de abrir a porta.

 — Boa noite. — eu disse esfregando os olhos.

 — Eu digo pra você viver bem e é assim que você atende a porta? Sem nem perguntar quem é?

                Eu abri os olhos surpreso, era ela, era JiYeon.

 — Eu não sabia que a morte realmente batia à porta.

 — Desde que ela é uma moça educada sim, a morte bate à porta. — ela disse rindo. — Não vai me deixar entrar?

 — Claro. — eu dei-lhe um beijo nos lábios e a empurrei para dentro.

                Nós nos deitamos no sofá, da maneira habitual, ela em cima de mim, com a cabeça pousada no meu peito.

 — Pronto?

 — Pro meu encontro com a morte? Nunca estive tão ansioso. Mas então, você não chegou a me dizer o que acontece quando a morte vira uma moça educada.

 — Já vi de tudo acontecer nesses casos.

 — E no nosso caso? O que acontece?

 — Você vai saber quando acontecer.

 — Você não disse que a expectativa de três meses era o que o médico me deu, que não valia de nada? O que aconteceu então?

 — Você ainda está doente meu amor...

 — Eu não me sinto doente.

 — Por intervenção minha, mas você está, e eu nada posso fazer quanto a isso, não está ao meu alcance. — ela disse com tristeza, mas não esmoreceu, estava resignada.

 — Por que me visitou antes da hora?

                JiYeon levantou o rosto e sorriu travessa pra mim.

 — Eu achei que a minha transformação fosse para te levar, mas não foi por isso...

 — Por que então?

 — Talvez eu já te amasse, mas fosse incapaz de compreender porque eu não sentia, não como uma pessoa. Eu não decidi virar mulher, eu simplesmente virei, pra você, porque você me ajudaria a compreender o amor que eu sentia.    — Acho que foi o contrario. — eu disse rindo. — Quem compreendeu fui eu, eu nunca tinha amado ninguém, e de repente, num único dia eu senti mais amor do que qualquer um pode sentir, mais do que um coração pode agüentar.

 — Acha que vai morrer de amor? — ela disse olhando ainda daquela forma travessa habitual... Habitual, era como se eu conhecesse cada traço daquela personalidade a vida toda.

 — Eu espero que sim... Mas eu tenho uma curiosidade, se você agora é uma mulher, o que ficou fazendo nos últimos três meses?

                Ela riu alto.

 — Está com ciúmes meu amor?

 — Você sabe o que é isso?

 — Claro! Eu não consigo nem me lembrar de tudo que você já aprontou antes de eu aparecer pra você!

 — Você não matou nenhuma dessas moças não é?

                JiYeon estreitou os olhos meio brava, meio achando graça.

 — Por que está preocupado com elas?

 — Por nada, só curiosidade. — eu disse rindo.

 — Eu não mato Lee Joon, eu só levo as pessoas, as pessoas a quem eu estou designada a levar. E parece que foi de propósito porque nenhuma delas foi designada a mim.

 — Gente, a morte é ciumenta! Não é à toa que causa tanto problema...

 — Sim, muito ciumenta, ou você acha que eu não te vigiei esse tempo todo? — ela disse rindo. — Que bom que você se comportou.

 — E me comportei como nunca, não só não aprontei como não consegui tirar você da cabeça momento algum.

 — Eu falei pra você viver bem e tudo o que fez foi ficar pensando na morte? — agora ela se divertia fazendo trocadilho com sua própria condição.

 — Não me enrola! Você ainda não disse o que fez nos últimos três meses!

 — Eu... cumpri, simplesmente...

 — Por que não voltou pra mim nesse tempo?

 — Eu já disse, queria que você vivesse bem... Enquanto eu terminava o meu propósito. Você ainda não entendeu não é? — JiYeon voltou a falar em tom de amargura, era inevitável.

 — Não...

 — Eu só existo por sua causa, sem você eu sou simplesmente a morte. Não podia ficar com você enquanto... cumpria. — JiYeon estremeceu em meus braços, e chorou, suas lágrimas quentes voltavam a molhar minha pele. E se tornavam mais abundantes, porque era a ultima vez que elas cairiam.

                Ela se acabava em lágrimas, mas eu me recusava a chorar, mas as lágrimas caíam. Acho que eu não entendia bem suas lágrimas e não sabia como consolá-la, eu chorava porque ela chorava.

 — Está chorando porque eu me vou? — eu perguntei.

                Ela fez que não com a cabeça.

 — Eu choro porque quando você se for, talvez eu ainda exista somente como morte, sem tristeza, sem felicidade, sem ódio, sem amor... sem você... sem nada.

 — Já está na hora? — eu disse finalmente.

                Ela fez que sim, e se afogou em lágrimas novamente. Eu me levantei com JiYeon no colo, olhei-a nos olhos, estavam vermelhos e manchados por causa do delineador. Enxuguei seus olhos e ela ficou sem entender o que eu estava fazendo.

 — Posso fazer um pedido antes?

 — Se eu puder realizar...

 — Sim você pode, não é algo difícil pra você.

 — O que você quer Lee Joon?

 — Eu quero uma morte linda. — eu fiz aquele trocadilho brega de novo, mas funcionou como eu imaginava, eu pude ver aquele sorriso lindo de novo.

                Ela sorriu e me beijou, meus lábios estavam molhados de lágrimas, e os dela também, eles tinham gosto de lágrimas. JiYeon me soltou por um momento e me olhou com uma expressão meio ruim.

 — Salgado... Para de chorar.

                Eu sorri e nós nos beijamos novamente, ela se despiu pra mim, cuidou de mim, e nós fizemos amor uma ultima vez. Éramos um só corpo e ela me tomou por inteiro, o tempo parou como da outra vez e eu me fui, literalmente de mãos dadas com a morte.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!