Turn The Page escrita por Blue Dammerung


Capítulo 1
Sometimes life is like a movie.




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Por algum acaso, em todos os filmes que tinham cenas tristes, estavam chovendo. Quem sabe fosse para dar um peso a mais à cena ou então causar um certo sentimento de desconforto (porque a maioria das pessoas não gostam de chuva) em quem estivesse vendo o filme, fosse o que fosse, sempre havia chuva.

E apesar de aquele não ser um filme, estava chovendo.

A típica cena de um enterro de um filme triste acontecendo, porém, numa vida real. As pessoas de preto, alguém chorando aqui e ali, os guarda-chuvas de cores escuras, um silêncio fúnebre senão pelas reconfortantes e já programadas palavras de um padre que nem sequer prestava atenção ao que dizia, apenas as falava, já tão treinado para tal.

E claro, a chuva.

Um close, então, no rosto do personagem principal. Sua mulher acaba de morrer, tanto num filme triste clichê qualquer quanto na vida real deste rapaz que agora observamos como espectadores apenas.

Poderia ser esperado lágrimas, muitas lágrimas, gritos ou uma expressão retorcida de dor, algo digno de um oscar por melhor atuação, mas não há nada. As sobrancelhas, grossas quem sabe por genética, não estão franzidas. A linha dos lábios está perfeitamente comum, e apesar do fato de que é sua jovem esposa sendo abaixada no caixão pelo buraco de sete palmos há alguns metros de si, sua feição é de um aluno terrivelmente desinteressado enquanto observa o professor explicar uma matéria qualquer.

Arthur Kirkland deveria estar chorando, gritando, fazendo alguma coisa, mas não. Os olhos verdes observavam friamente o caixão afundar, e logo a terra ser jogada por cima. Seu terno negro, a gravata muitíssimo bem colocada e os polidos sapatos se encharcam na chuva, pois ele foi o único que não trouxe guarda-chuva.

Oras, ele, um típico inglês por acaso morando na Inglaterra, não deveria saber do clima daquele lugar e portanto andar sempre com um guarda-chuva? Mas se esquecera dessa vez, ou talvez deixara em casa por querer.

Independente das alternativas, por mais uma hora, até o final de toda aquela cerimônia, ele permaneceria ali, com as mãos se tocando atrás das costas, vez por outra o dedo indicador de uma mão passando pelo dedo anelar da outra, sentindo a única coisa que restara da sua esposa: O anel de casamento.

Tudo se perdera no incêndio. A casa, os retratos, as roupas, todos os indícios de que um dia eles estiveram casados, inclusive os documentos. E o pior, se tivesse um humor para aquela situação, teria rido até: Nada naquela casa tinha mais do que meses antes de queimar, exceto o próprio imóvel.

Ele e Elizabeth tinham se casado há três meses, e antes disso, namorado três anos. Casaram-se, compraram uma casa no centro de Londres, adquiriram móveis novos, louças novas, roupas novas, tudo novo para começar uma nova vida. Os pais de Arthur estavam satisfeitíssimos, e os dela também.

Mas, como em todos os filmes tristes, quando tudo parece bom demais geralmente algo trágico acontece com o personagem principal, e se toda essa bonança acontece com ele no começo do filme, então é porque ele ainda vai sofrer muito.

E como se carregasse toneladas de pesos nas costas, Arthur deixou o cemitério sozinho, recusando-se a pegar carona com qualquer parente e recusando-se mais ainda a conversar sobre o que sentia. Quando lhe davam as condolências, apenas assentia e se afastava. Não precisava daquilo, não. Ele ainda seguiria em frente, a morte do amor da sua vida não tinha sido tão grande coisa assim.

Ele iria se reerguer.

Com a casa destruída, do cemitério tomou um táxi (o dono deste reclamou por causa do estado de suas roupas, encharcadas) para um hotel não tão distante. No dia do incêndio tinha viajado para uma cidade vizinha à negócios, e levara apenas algumas mudas de roupa consigo. Saíra de manhã e quando voltara a noite, tudo que restara da casa foram cinzas e algumas vigas que resistiram ao fogo pelo menos até os bombeiros chegarem.

E claro, um corpo carbonizado com uma brilhante aliança de ouro numa das mãos, simples, mas brilhante, com o nome dele e dela cravados na parte interna.

Entrou no prédio do hotel em silêncio, atraindo alguns olhares, mas nenhum deles chegaria a comentar alguma coisa. Apenas pelo rosto de Arthur era-se possível sentir o clima pesado, e se você não sentisse isso, uma fria indiferença que por sua vez causava um clima mais pesado ainda.

Porque ele deveria estar surtando, em pânico, em depressão, gritando, pulando, fazendo sei lá o que fosse, mas não. Sua boca estava trancada e seus braços estavam caídos ao seu lado a medida que ele adentrava o elevador, os olhos verdes frios e sem brilho e os cabelos, molhados. Digno de pena até.

Em poucos segundos, estava deixando o elevador, andando pelo corredor em silêncio até o último quarto do mesmo. A porta estava entreaberta, e inicialmente estranhou, mas entrou no mesmo, encontrando alguns produtos de limpeza. Deveria ser apenas a camareira.

E certamente, lá estava uma mulher, limpando em silêncio o banheiro, sem sequer se preocupar em se virar para encarar Arthur, este indo direto para uma espécie de sala com uma televisão enorme e um sofá, onde se sentou e tirou os sapatos, ligando o aparelho num canal qualquer.

Estavam vendendo um grill naquele canal com o nome de um lutador de luta-livre ou boxe famoso, sei lá, nunca fui de ver essas lutas, mas, afinal, por que quem iria querer um grill daquele? Xingou baixo, mudando de canal.

A mulher fazia barulhos limpando aquele banheiro, derrubando coisas vez por outra, e isso irritava Arthur. Silêncio se tornara algo muito querido para ele, mas educado, não falou nada, apenas mudou de canal outra vez.

Elizabeth teria gostado de ver o filme que passava agora. Mudou de canal novamente.

Por que diabos aquela camareira fazia tanto barulho?

-Compre agora este magnífico aspirador de pó por uma oferta imperdível, eu digo, imperdível!-Falou um apresentador de outro canal de vendas. Como era imperdível se naquele momento Arthur estava a perdendo? Mudou de canal novamente.

Por que ele não ficara em casa na manhã do dia fatídico? Por que viajara? Se ele estivesse em casa, Elizabeth nunca teria se levantado para fazer um inofensivo chá e se esquecido do fogo aceso ao atender ao telefone de onde, do outro lado, sua mãe falava, e este fogo jamais se misturaria e queimaria o jornal convenientemente localizado ao lado do fogão, entregue ainda naquela manhã. E se o jornal não tivesse pegado fogo e produzido fumaça, Elizabeth não teria desmaiado ao tentar apagar esse mesmo fogo. Ela sempre tivera uma espécie de alergia com isso, sua garganta se fechava rapidamente e ela desmaiava, algo assim, o médico disse isso uma vez, mas não, Arthur não estava lá, estava dirigindo tranquilamente numa estrada igualmente tranquila enquanto ela, sem consciência, sufocava até a morte com a fumaça que aumentava cada vez mais, o fogo que se alastrava cada vez mais pela casa cheia de materiais incendiários.

Dor.

Muita dor.

Muito barulho vindo do banheiro.

Muita culpa, muitas coisas.

Se ele estivesse em casa, se ele não tivesse viajado, se ele tivesse adiado aquela viagem, se ele não tivesse a avisado para não esquecer o jornal no jardim aquela manhã, se ele tivesse esquecido de comprar chá, se ele tivesse comprado um extintor de incêndio, se ele... Se ele...

-Com sua licença, será que o senhor poderia se levantar seus pés?-Soou uma voz com um leve sotaque, que fez Arthur levantar os olhos. Tanta culpa, tanta dor, mas não a demonstrava, não, não, não, era preciso deixar aquilo tudo morrer dentro de si, se exteriorizasse tudo aquilo jamais conseguiria esquecer aquela morte, aquela parte da sua vida, jamais se reergueria, afinal, ele era forte e só quem se lamentava, só quem sentia dor, eram os fracos.

-O quê?-Perguntou, sem entender a frase da pessoa a sua frente, que, surpreendentemente, não era uma mulher. Ledo engano, talvez tivesse se confundido principalmente pelo porte pequeno e pelos cabelos de cor negra, mas o que estava diante de si era um rapaz. As roupas que pensava ser um vestido era uma calça negra, uma camisa branca e um avental apenas, e o camareiro agora o fitava sem entender, repetindo a frase.

-Seus pés, senhor, para que eu possa aspirar a sala.-Disse, e realmente, havia um aspirador de pó na sua mão. Seus olhos eram escuros, mas brilhavam, como alguém que apesar da vida difícil era satisfeito com o que tinha. Como ele podia estar satisfeito? Como? Como podia sequer aparentar estar feliz quando Elizabeth tinha morrido?

-O quê?-Arthur perguntou. Como? Por quê? Doía, doía tanto, mas tanto. Perder alguém que amara, alguém que consolara, alguém que contara fatos da infância, alguém com quem planejava passar o resto da vida, tudo doía, mas a culpa era a coisa mais pesada de todas, porque se Arthur estivesse lá, se Arthur tivesse feito alguma coisa, ele...

-O senhor está bem?-O camareiro perguntou então, o olhar definitivamente preocupado. Como assim, preocupado? Ele nem sequer conhecia Arthur! Camareiro, não tinha um emprego muito bom, e pela aparência, deveria ser asiático, imigrante, quem sabe, saiu do seu país para buscar algo melhor no exterior, mas como assim, se Arthur estava bem? Estava ótimo, claro que sim, viúvo, sofrendo, sem casa nem muitos pertences, a vida destruída e prestes a ter um colapso interno, “oi, eu estou prestes a morrer por dentro mas não posso contar a ninguém, será que hoje vai chover?”.

-E-Estou, desculpe.-Arthur disse, se pondo de pé então, se afastando para que o camareiro pudesse limpar o lugar, se aproximando da parede onde apoiou as costas. Elizabeth teria gostado de estar num hotel luxuoso com aquele, Elizabeth... Elizabeth... Não, não, apenas Beth ou Liza, sim, ela nunca gostou daqueles nomes grandes demais, não gostava do seu próprio nome, mas Arthur adorava aquele nome, adorava demais embora nunca a tenha dito.

Sim, ele nunca dissera o quanto amava aquele nome, e a dona do mesmo, e agora, o que sobrara fora uma enorme cratera de arrependimento. E culpa. E dor.

Quando os bombeiros chegaram, o fogo estava tão alto que já se alastrava pelo teto da casa, saindo também pelas janelas como se fosse línguas mortíferas e a casa, um monstro vivo que cuspia labaredas vermelhas e alaranjadas. Quando os bombeiros chegaram, a casa estava prestes a desabar, pois foi só aí que os vizinhos notaram que a casa estava pegando fogo e chamaram os mesmos. Quando os bombeiros chegaram já era tarde demais, e tudo o que sobrara de Elizabeth fora seu corpo irreconhecível pelas chamas e o anel em seu dedo, intacto como se fosse uma maldição, por acaso enterrado com o corpo de sua dona.

Se Arthur estivesse em casa, aquilo jamais teria acontecido. Ele deveria ter feito algo, mas só viu o tanto de chamadas perdidas no celular quando estava voltando para casa, saindo do escritório de reuniões e entrando no carro. Oras, deixara o celular dentro do veículo porque não queria pagar um mico diante dos chefes, não é? Viera de outra cidade, de outra sede da empresa, para explicar um novo sistema de vendas, e deixara o celular dentro do carro.

E estava sorrindo tanto quando entrara no veículo, pois a reunião dera certo e o novo sistema de vendas fora aprovado com uma salva de palmas! Iria ganhar mais, seria promovido e tudo estava indo bem. Ligara o carro, deixara o estacionamento do prédio e tomara a direção à estrada que o levaria de volta para casa, e casualmente, apenas para ver se havia novidades, pegou seu celular antes tranquilamente pousado no banco ao seu lado.

E na tela, mais de vinte chamadas perdidas. O que teria acontecido de errado? Grande parte era justamente da família da noiva, seus amigos, então retornou. Um dos irmãos de Elizabeth, Francis, atendeu o telefone. Arthur nunca se dera muito bem com ele, mas ali estava presente uma parceria implícita, de qualquer forma.

-Arthur, onde diabos você está?!-Ele gritou, o sotaque francês bem presente, mas a voz repleta de horror e coisas assim.

-Estou voltando para casa... Estava viajando e só saí do trabalho agora, aconteceu alguma coisa?

-Venha para casa! Rápido!-E Francis desligou. Arthur tentou retornar, mas Francis não atendeu. O francês não queria ser portador de uma notícia tão ruim, afinal, quem queria?

Então, o resto do filme, perdão, da história, vocês sabem. Arthur chega na rua de casa, estaciona num canto qualquer, sai do carro sem acreditar no estado da casa, as vigas caindo, cinzas e mais cinzas e bombeiros apagando algumas labaredas menores que restaram, e aglomerando-se na calçada, uma multidão, a maioria dos rostos conhecidos como vizinhos e amigos, e claro, família. Arthur se aproximou, empurrando todos, e antes de chegar a ver o que mais temia, ele já sabia. Sim, sim, desde o começo, já sabia.

No primeiro momento, o baque. No segundo, silêncio, assim como todos que se seguiram. Nada de chorar, nada de nenhuma reação exagerada, diferente da mãe de Elizabeth, caindo em prantos, e a família desta até se irritou pelo fato do marido não ter exposto sentimento algum.

E voltamos ao presente então, com um Arthur olhando para o vazio enquanto o camareiro, de vez em quando olhando para o inglês, limpa a sala com cuidado. Qualquer um dizia que aquele inglês não estava a fim de conversar, mas Kiku (o nome do camareiro, japonês, saudável, não tão alto, boa pessoa) sentia mais como se ele fosse se quebrar a qualquer instante.

-O senhor está bem mesmo?-Perguntou, deixando o aspirador de pó de lado por uns instantes, tendo que perguntar novamente visto que o outro parecia não lhe ter ouvido.

-Estou, já lhe disse.-Respondeu Arthur, desviando o olhar. Por que ele não poderia ir logo e em silêncio?

-Tem certeza? O senhor está pálido... Não quer que...

-Não quero. Apenas termine seu serviço e vá embora daqui.-Disse, quem sabe um tanto rude demais. Não queria descontar aquilo tudo em alguém, mas... Por que tudo insistia em lembrá-la? Era por que a ferida ainda estava fresca e aberta? Era por causa do tempo que não fora o bastante? Um nó na garganta, os olhos umedecendo, não, não, não poderia chorar, não deveria chorar, mas estava ficando muito difícil manter a compostura.

-S-Sim, senhor... Queira me desculpar pelo meu intrometimento. -Disse o japonês, voltando a fazer sua faxina e logo se deslocando para o quarto, o último cômodo que faltava para termin ar por hoje.

Não, não, não! Não era para você pedir desculpas, era para levantar a voz e perguntar mais uma vez se ele estava bem, se ele queria ajuda, se ele queria um ombro, se queria quem sabe só um maldito ombro. Não era para você ir embora, era para ficar não importando quantas vezes ele o mandasse embora.

-Eu...-Arthur começou. Por quê? Por que, Deus? Se você existe, por que permitiu que isso acontecesse com ela? E com Arthur? Fizeram eles alguma coisa de errado para isso acontecer? Por quê? Por que com eles, que nada fizeram de errado e por que não com todos aqueles criminosos e assassinos soltos por aí? Com os estupradores e pedófilos? Por quê?

-Eu... Eu não...-Arthur continuou, mas a única pessoa que havia ali para escutar aquelas palavras que saíam cuspidas, difíceis de falar, era o camareiro em outro cômodo, provavelmente irritado ou ofendido ou magoado, o que fosse, e ele não gostaria de ser uma testemunha da dor do inglês, afinal, para quê? Não era problema dele mesmo, o japonês tinha sua própria vida e preocupações.

-Eu não aguento mais... Por quê? Por que com ela?-Não, vamos, você precisa se manter de pé, não, não chore, isso é coisa de fraco e você...-Mas eu sou um fraco, eu fui fraco.

E independentemente de tudo, Arthur caiu de joelhos no chão, uma mão cobrindo o rosto, e a outra, sobre o peito, onde seu coração batia com toda a dor que era possível bater, mas não se permitiria sofrer daquela maneira, não, se pôs de pé então, e como se estivesse sob o efeito de alguma droga, cambaleou até a pequena cozinha daquele mini apartamento, hotel bem estruturado, e saiu abrindo as gavetas com força, os talheres voando dos armários, até encontrar um belo conjunto de facas, pegando a maior delas.

“Eu não queria, me desculpe, eu não queria, eu não queria, eu deveria ter estado lá, eu deveria ter estado lá com você, é minha culpa, é minha culpa, me perdoe, me perdoe”, Arthur murmurava apenas em pensamentos, pegando o enorme facão e pousando sua mão sobre a chique bancada de mármore branco enquanto a outra mão erguia a arma acima de sua cabeça.

-Senhor, eu já vou indo e...-Soou a voz do camareiro atrás de si.

Mas o facão desceu antes disso, atingindo em cheio um dos dedos do inglês. Não, ele não queria se matar, como tantas pessoas disseram quando o caso saiu nos jornais no dia seguinte.

O sangue jorrou, manchou os belos móveis do quarto de hotel, e Arthur sentiu tanta dor quanto queria sentir. Não soube bem o que aconteceu depois, foi como se ele estivesse vendo tudo não através dos seus olhos, mas de longe, de bem longe. Uma ambulância, uma maca, aquele rosto japonês sempre lhe seguindo, muito preocupado por alguma razão, o hospital então.

Arthur não tinha perdido a consciência ainda, e chorava, chorava tanto quanto gritava de dor, os gritos parecendo mais os de um subversivo sendo torturado durante a idade média, gritos sufocados, gritos de dor, estrangulados, e lágrimas que jorravam tanto quanto verdadeiros rios.

E nenhuma daquelas lágrimas foram derramadas por causa da ferida em sua mão, não, elas vinham de uma ferida muito maior.

E chorou e gritou o quanto lhe fora permitido até os médicos lhe sedarem, mergulhando numa espécie de sono sem sonhos, acordando várias horas depois. A mão enfaixada de forma cuidadosa, doendo, mas não de uma forma que Arthur fosse reclamar.

Na verdade, gostava daquela dor física porque pelo menos era uma dor que ele sabia poder controlar se quisesse.

Engoliu em seco, a garganta ardendo, seca, machucada de tanto gritar. Os olhos verdes, avermelhados então, e as roupas de hospital pregadas ao seu corpo por causa do suor. Febre. Uma enfermeira estava checando alguma coisa, então saiu e falou com alguém do lado de fora, um médico entrando em seguida.

Momentos mais cedo poderia até se perguntado quem seriam aquelas pessoas e se elas eram capacitadas para cuidar de si, mas não importava naquele momento. O médico, um homem talvez nos seus trinta anos, quem sabe mais jovem, tinha porte alto, cabelos loiros puxados para trás, olhos azuis.

-Sr... Kirkland.-Ele falou, lendo o prontuário. O sotaque alemão muito bem presente ali.-O senhor está se recuperando de uma incisão... Ah, bem, o senhor arrancou o próprio dedo fora com um facão de cozinha, porém, felizmente, alguém estava próximo e o ajudou. O senhor não perdeu muito sangue e esse mesmo alguém conservou seu dedo em gelo e conseguimos reimplantá-lo com sucesso. Também foi ele que ficou aqui com o senhor enquanto estava desacordado, mas já partiu. Algum parente seu?

-Quem?

-Kiku Honda, sr. Kirkland.

-Não o conheço.

O alemão sorriu bem de leve. Não deveria fazer aquilo com frequência.

-O senhor estava acompanhado de um anjo, então. Agradeça-o depois. Se o senhor não apresentar mais nada até o final deste dia, poderá ser liberado ainda hoje... Ah, o senhor tinha alguma aliança no dedo que... Atingiu? Havia a marca de uma aliança, mas não vimos nenhum anel.

-Tudo bem.

-Muito bem então, sr. Kirkland.-Então o homem deixou o recinto, Arthur ficando sozinho novamente.

Tudo aquilo que sentira no peito, toda a dor, havia diminuído, como se jogada fora do seu corpo, embora ainda estivesse ali juntamente com uma fria indiferença. Uma casca dura que subitamente envolveu seu coração, como se o prevenisse de novas feridas.

No dia seguinte, Arthur deixou o hospital. Pensou em viajar, deixar aquele país por alguns meses, deixar tudo para trás, mas ainda tinha seu emprego. E se agarrou a isso da forma mais forte que pode. Não foi buscar suas coisas no hotel, e durante os cinco meses que se seguiram, trabalhou incessantemente, vivendo num pequeno quarto de um hotel afastado.

Não entrara em contato com a família de sua esposa, e também não procurara pela aliança perdida. Na verdade, o nome “Elizabeth” fora enterrado na parte mais profunda de sua mente, atrás da porta no canto mais escuro possível.

E mesmo se passando cinco meses, Arthur continuava agindo como se fosse o dia que deixara o hospital. Não procurara ninguém, e ninguém o procurara também, afinal, amigos não gostam de ser ignorados por meses, mas quem sabe eles não fossem amigos de verdade. Francis até tentara ir atrás do inglês, mas não conseguiu encontrá-lo. Esperou que ele estivesse bem.

Numa noite desses cinco malditos meses, Arthur estava andando numa calçada em direção a sua casa. Seu porte estava curvado, magro, e suas roupas, apesar de muito bem cuidadas e de boa marca, tinham cores tão mortas quanto seu coração no momento.

Por um acaso, naquela noite, ao invés de passar direto pela mesma cafeteria que via todos os dias naquele horário, ele ergueu o olhar e examinou seu interior através da vitrine, e por um acaso maior, estava nevando, fazia frio, e por um acaso maior ainda, o maior de todos, ele encontrou um rosto que conhecia ali.

Os olhos puxados, a estatura baixa, os cabelos negros cortados de uma maneira diferente, os passos cuidadosos e silenciosos enquanto ele servia cafés nas mesas com pessoas rindo e falando alto.

-Kiku... Honda...-Arthur murmurou, e foi como se o outro tivesse ouvido do lado de dentro do café porque nesse mesmo momento se virou e encontrou o olhar do outro, o escuro se misturando com o verde dos olhos de cada um.

Arthur estagnou por um momento. Deveria ir embora, seguir direto para casa, afinal, amanhã trabalharia bem cedo, mas por outro lado, não seria deselegante seguir adiante? Não deveria entrar e agradecer, uma vez que fora o japonês que praticamente o salvara? Salvara seu dedo e ficara com ele no hospital e tudo aquilo?

O inglês fitou o chão, limpou a garganta e viu que havia mais razões para entrar naquela cafeteria do que para seguir direto para casa, e assim, adentrou o recinto. O ar quente cheirando à cafeína logo lhe tocou o rosto, e uma vez dentro, tirou o cachecol do pescoço e viu o japonês se aproximar, parando a sua frente.

-Seja bem vindo, senhor, onde gostaria de sentar?

-Eu não planejo ficar, eu quero só... Agradecer pelo o que você fez e...

-Senhor, eu...-O japonês fez uma cara mais confusa, e Arthur estranhou.

-Você não se lembra de mim?

-Eu... Lembro, mas... Por favor, senhor, se sente. Meu chefe está observando e... Meu turno termina em 25 minutos, será que o senhor poderia esperar?

-Mas, eu...-Porém, o japonês já lhe guiava até uma mesa mais afastada, vazia, onde Arthur se sentou, sendo pouco depois servido de um café.

Suspirou, sabendo que aquilo não era o que planejava, tinha ido ali apenas para agradecer e agora estava tomando café durante a noite! E se acabasse sem dormir? 25 minutos de debate mental se iria dormir ou não, Kiku surgiu, já não vestindo mais o uniforme ridículo do lugar.

-Posso me sentar?-Ele perguntou. Apesar de não parecer tão velho, era extremamente educado. Será que tinha alguma coisa para falar também? Quem sabe reclamar por Arthur tê-lo feito passar por tanta coisa?

-Claro, sente-se.-Disse o inglês.-Olha, eu... Gostaria de pedir desculpas por tudo... Você não está mais trabalhando no hotel?

-Eles me demitiram depois do escândalo que o senhor causou... Oh, desculpe, eu não quis soar tão rude e...!-Disse o outro, a feição indicando que realmente pedia desculpas.

-Tudo bem, sem problemas, foi um escândalo mesmo. Eu só queria agradecer por ter me ajudado e pedir desculpas. Você não precisava ter ficado comigo no hospital, nem ter me ajudado...-Disse o inglês, mexendo num sachê de açúcar com descaso.-Espero que a perda do seu emprego no hotel não tenha lhe atrapalhado tanto.

-N-Não, eu consegui contorná-la bem!-O outro apressou-se em explicar.-O salário daqui é praticamente igual e a carga horária é menor... Foi até algo bom eu ter sido demitido.

-Entendo.

Um silêncio pesado no ar, o final de um assunto. Arthur estava quase dizendo adeus e se pondo de pé, mas o outro foi mais rápido e agiu antes.

-Será que... Eu poderia lhe fazer uma pergunta, senhor?

-Me chame de Arthur.-O inglês disse, assentindo então.-Pergunte.

-Me perdoe se eu estiver sendo intrometido demais, realmente não é um assunto que eu deva estar opinando sobre, mas eu não entendo porque o senhor fez aquilo consigo mesmo. Eu não consegui dormir direito, me perdoe, mas eu não entendo.

-Não entende o quê?

-Por que o senhor... Ahm... Fez aquilo com seu dedo.

-Ah, aquilo...-Arthur automaticamente olhou para a mão com uma cicatriz que ainda demarcava o dedo anelar.

-Está tudo bem se o senhor, perdão, Arthur não quiser responder.

-Não, está tudo bem.-O inglês respondeu. Não se importaria em falar sobre aquilo, na verdade, uma vez que a aliança se perdera, aquela cicatriz meio que servira de substituta. Se alguém visse Arthur agora, imaginaria que ele estava bem, que a perda da esposa nem fora tão grande assim, que cinco meses seriam o bastante para aquela dor ser apaziguada. Mas, como em todo filme e às vezes na vida real, sempre há alguém que vê por detrás das cortinas.

E por acaso, Kiku era essa pessoa.

Por que ajudara tanto aquele inglês? Ele simplesmente ajudara, sem esperar nada em troca, sem fazer nada de mais, indo até procurar a aliança no hotel depois, mas aquele ícone jamais fora encontrado, perdido quem sabe debaixo de um móvel ou engolido pelo ralo da pia no calor do momento.

-Eu fiz aquilo comigo porque eu queria sentir uma dor física tão grande quanto a dor que eu sentia no meu coração.-Arthur respondeu apenas, ainda fitando sua mão

Na cafeteria, risos iam e vinham causados por outras pessoas, alheias a tudo que Arthur passou e a tudo que Kiku estava pensando naquele momento. Não seria curioso perceber de repente que a pessoa na mesa do seu lado tinha uma vida digna de filme?

Lá fora, ainda nevava. Quem sabe nevasse amanhã também. Elizabeth adorava neve, e se nevasse, também era provável que Arthur passasse as primeiras horas da madrugada, antes de sair para trabalhar, no lado de fora do hotel, sentado em algum banco, apenas para lembrar das vezes em que eles visitavam os parques quando nevava, e se lembrasse de coisas realmente especiais, se ousasse desbravar aquele terreno abandonado da sua cabeça que tinha as mais belas e também as mais dolorosas memórias com ela, era provável que chorasse pouco antes de dormir, sozinho e no escuro.

Kiku não sabia disso, mas Arthur lhe lembrava alguém, aliás, lembrava ele mesmo vários anos atrás, quando perdera ambos os pais num terremoto no Japão e fugira para a Inglaterra, encontrando lar na casa de dois irmãos, um nascido nos EUA e o outro, nascido no Canadá.

Talvez fosse por isso que, de longe, o japonês reconheceu o olhar de quem tenta a todo custo enterrar os sentimentos numa tentativa falha de enterrar, também, a dor que tais sentimentos causam.

E a medida que os anos passassem, Kiku sabia que Arthur viria a expor nos olhos, quando a nostalgia batesse, uma saudade e uma dor quase que infinitas, chegando a desejar a morte apenas para que todo aquele sofrimento acabasse.

E talvez fosse por isso que Kiku estivesse, desde o início, tão preocupado com o inglês, porque ele sabia o quão fora difícil conviver com aquela dor desde que era praticamente uma criança, e não queria que o inglês passasse por tudo aquilo sozinho.

Por isso, lhe sorriu.

Sorriu de uma forma tão terna que mesmo não dizendo nada, estava implícito no olhar que não era pena nem nenhum sentimento negativo, era algo bom, algo que mudamente dizia “você vai ficar bem, e eu vou ficar com você mesmo nos momentos que essa frase parecer absurdamente falsa”.

Nos filmes, geralmente então viria um final feliz, e eu só não digo que houve um final feliz porque a vida não é um filme. A vida é imprevisível, é incontrolável, mas deve-se vivê-la de qualquer forma.

Felizmente, a vida às vezes se parece com um filme, e felizmente, posso dizer a você que nos anos que se seguiram, a dor, como uma ferida que aos poucos se cura, diminuiu, embora nas horas das saudades tenha quase matado nosso inglês, e felizmente, nas horas que o inglês estava prestes a cortar os pulsos, felizmente um outro japonês sempre estava por perto.

E mesmo com o coração de Arthur destruído e definitivamente difícil de se alcançar, não nego que nos anos que se seguiram, algum sentimento quente o alcançou, e apesar de certas manias (como olhar o celular de cinco em cinco minutos e sempre ler o jornal do lado de fora da casa e nunca o levar para dentro, assim como fazer chá sem sair de perto e sempre checar se o extintor de incêndio debaixo da pia continua funcionando), o inglês, mesmo muito tempo depois, voltou a sorrir.

E sorriu justamente quando, por acaso, ao limpar a casa depois de Kiku ter passado a noite lá, encontrou um pequeno bilhete debaixo das almofadas do sofá, onde o japonês dormira. Numa caligrafia um tanto desajeitada ainda, afinal, sua língua nativa não era o inglês, se era possível ler uma frase, meio borrada meio apagada, mas ainda podia ser lida.

E Arthur só sorriu porque Kiku já tinha ido para sua casa, afirmando que trabalharia até tarde ainda naquele dia, visto que ainda era manhã. Não negaria, sentiu medo, sentiu insegurança, sentiu dor, mas todas aquelas sensações o inglês já conhecia de cor, e ele sabia que para elas, sempre haveria alguém ao seu lado.

Sorriu só mais uma vez e então deixou o bilhete sobre a mesa, voltando a arrumar a casa, as mangas dobradas até os cotovelos e as calças velhas às vezes lhe caindo, frouxas.

E pela primeira vez em muito tempo, quem sabe por volta de quase dez anos, Arthur sentiu a famosa “felicidade”.


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Notas finais do capítulo

Essa fanfic eu escrevi ouvindo The Assassins Creed Theme (do Revelations) que eu infelizmente elegi como música mais triste de todas que conheço, ou seja, foi angst do começo até quase o final. Cara, eu chorei escrevendo isso, mas o final foi até feliz, né não?
Espero que a Yuu tenha gostado, e só sinto por não ter colocado um YAOOOOOI de verdade. O que vocês acham que tinha no bilhete, hã?
Té mais e danke por terem lido!
Reviews?
(P.S-> O engraçado é que aqui onde moro ainda são 23:45, então, bem, POSTAY ANTES DE TODO MUNDO FUCK YEAH)