Amor De Gato escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 6
Conversa de gato




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O som do despertador fez com que ela acordasse num pulo só. Levou algum tempo até ela perceber que estava dentro do seu quarto, em sua cama e usando sua camisola.


– Ufa... que sonho maluco, credo!


Ela examinou seus braços e costas e viu, para seu alívio, que não tinha nem um ferimento de queimadura ali. Aquele tinha sido o sonho mais esquisito e também realista que ela tivera em sua vida. Que horror! Ela ainda se lembrava do óleo quente sendo jogado sobre seu corpo, as queimaduras, as bolhas que foram se formando...


Seu corpo tremeu um pouco, como que querendo se livrar daquelas sensações ruins. Tudo tinha passado e aquele era um novo dia. Nada com que se preocupar.


– Bom dia, meus lindos! – ela cumprimentou alegremente seus gatos que estavam deitados no seu cesto. – espero que tenham dormido bem.

– Pelo visto você teve um pesadelo dos bravos.

– Nem me fale! Tomara que eu nunca mais tenha um desses de novo.

– Tomara. Você chuta muito quando tem pesadelos e não tem gato que consiga dormir na mesma cama que você.


Levou alguns segundos até a ficha cair e ela perceber que estava conversando com seu gato. Pior, ela estava conversando e entendendo o que o gato estava falando.


– Magali? Você está bem? – Mingau perguntou olhando para a cara de pânico da sua dona. Será que ela ia ficar daquele jeito a manhã inteira?

– Calma, Magali, muita calma. Vamos, respira fundo, bem fundo... um, dois, um, dois... – a moça levantou-se da cama e começou a andar pelo quarto, levantando e abaixando os braços enquanto inspirava expirava longamente. Ela com certeza estava tendo alucinações. Aquele sonho a impressionou muito, mexeu com sua cabeça e agora ela estava pensando que podia entender o seu gato.

– Aveia, você poderia falar alguma coisa para ela perceber que não está alucinando?

– E o que você quer que eu fale? Deixe a menina, que coisa! Ela está muito assustada! Hã... Magali?


Todos os gatos saíram do cesto e correram em direção ao local onde ela tinha desmaiado. Que coisa! Quem podia imaginar que ela ia ter um treco?


– E agora? O que a gente faz? Mia até ela acordar?

– Claro que não, onde já se viu? – ela começou a dar lambidas no rosto da moça, esperando reanimá-la com aquilo e logo Mingau e os filhotes a imitaram.

– Hummm... o que houve? Heim? Por que eu to caída no chão?

– Você desmaiou, foi isso.

– Mingau! – a gata o repreendeu. A moça estava assustada e conversar com ela só ia piorar as coisas.

– Um dia ela vai ter que se acostumar, ora essa!

– Gente, eu não acredito... estou mesmo falando com gatos! Nossa!

– Pois é, querida. Mas não precisa ter medo, nós continuamos os mesmos. A única diferença é que podemos nos comunicar agora.

– Escuta, como sabiam que eu posso falar com vocês?

– Você tem os olhos de gato. Qualquer felino nesse universo reconhece essa marca. – Mingau respondeu apontando para a testa dela com a pata.

– Olhos de gato? Onde?


Em suas lembranças, surgiu a imagem daquela mulher gato, a Wyn, colocando dois dedos em sua testa. Havia alguma coisa ali? Ela levantou-se rapidamente e foi olhar sua imagem no espelho. Em sua testa, bem no meio, havia dois olhos de gato. Não eram muito grandes, talvez uns dois, dois centímetros e meio entre uma extremidade e outra. Eram dois olhos verdes, um verde brilhante e contornados com um verde bem escuro, quase preto.


– Ai meu Jesus-Cristinho!

– O que foi agora?

– Se a mãe vê isso, ela me mata! Você sabe que ela odeia tatuagem!

– Isso não é tatuagem, é um símbolo místico cheio de magia e...

– E como eu vou explicar isso para ela? Ai minha nossa, tenho que esconder isso. Deixa eu ver...


Ela tentou pentear a franja para cobrir os dois olhos, sem sucesso. Sua franja não era muito espessa. Talvez base corretiva? Isso ia resolver... ou não. Aquilo parecia se destacar sobre a base.


– Ai, Mingau, o que eu faço agora?

– Nada. Somente os felinos podem ver essa marca.

– E por que não me falou antes?

– Você estava ocupada demais tendo um piripaque.


Uma batida na porta chamou sua atenção.


– Magali, anda logo que você está atrasada para a escola.

– Já vou, mãe! Olha, depois a gente conversa, tá? Agora eu tenho que ir.

– Tá tranqüilo, a gente te espera bem aqui. – o gato falou se esticando em cima da cama. Até que ia ser bem divertido poder falar com ela e ser entendido.


***


– Filha, você está bem? Por que me olha tanto?

– Hã, nada não... (ah, então as pessoas não podem mesmo ver essas marcas. Ufa!)

– Termina seu café antes que os portões da escola se fechem. Escuta, tem certeza de que está bem? Você não parava de tagarelar com os gatos.

– Er... eu gosto de conversar com eles. Sabe, mãe, é que eu tive um sonho muito ruim, mas já passou.

– Ah, sim. Se é só isso... agora melhor você se apressar.


***


“Nossa, quanta coisa acontecendo de uma vez... espera só até eu falar com a Mônica!” ela foi pensando no caminho para a escola. Ao passar perto de uma casa, ela viu um gato siamês na janela, olhando a rua.


– E aí, beleza? – o felino falou de lá de dentro.


Ela apenas deu um sorriso amarelo e continuou caminhando. Aquilo era estranho demais! Uma senhora passou levando um cachorro pela coleira. Eles passaram direto e o cão não se alterou. Claro, somente os felinos podiam ver a marca. Menos mal. Ela ainda ia levar algum tempo até se acostumar a falar com gatos. Se começasse a falar com cães, a coisa ia ficar feia. Seus nervos não iam agüentar.


E por falar em magia felina... será que ela conseguiria ver o Reino dos Gatos? Era algo para se tentar. Uma pena o terreno baldio não ficar no caminho para a escola. Se tentasse ir até lá, ia acabar perdendo a hora. Mais tarde, talvez.


– Oi Magá. Vixe, que cara é essa?

– Ai, Mô... é que eu tive um pesadelo...

– Deixa eu adivinhar: outro pesadelo com gatos tamanho família tentando te devorar?

– Não. Dessa vez foi um brucutu enorme que jogou óleo quente nas minhas costas e depois queria me dar pauladas.

– Ai, credo! Que horror! Por que ele queria fazer isso?

– Por causa de um gato.


Ela não falou mais nada. Até quando Magali ia ficar tendo aquelas alucinações com gatos? E pelo visto, elas estavam ficando piores.


Magali também estava sem saber o que dizer. Até então ela pensava em contar tudo para Mônica, mas pensando bem... como fazer a amiga acreditar que ela tinha ganho o poder de conversar com gatos e enxergar coisas ocultas pela magia felina? Ela não ia poder ver nem entender nada e com certeza ia pensar que seu juízo tinha ido para o ralo.


Por outro lado, se ela não pudesse contar para a Mônica, ia contar para quem? O que ela ia fazer sem o apoio da sua melhor amiga?


– Mô, você vai fazer alguma coisa depois da aula?

– Hoje não, por que?

– É que eu queria te falar uma coisa, mas por enquanto longe dos meninos. É meio complicado, sabe?

– Tá tranqüilo. Depois da aula a gente faz um passeio no shopping. Vai ajudar a relaxar. Aí você me conta o que está acontecendo.


***


– Por que você está rindo desse jeito? – Melyn falou ao ver a amiga rolando de tanto rir.

– Ai, foi engraçado demais! Viu só quando ela caiu dura no chão?

– Estranho esse seu senso de humor...

– Deixa de ser chato! Ela não machucou nem nada. E foi engraçado! Caiu que nem um saco de batatas: caploft!

– Céus... Dai-me paciência!


***


O tempo custou a passar para ela. Se ao menos tivesse a aula do professor Rubens naquele dia, até que ajudaria um pouco. As outras estavam um grande tédio e ela mal conseguia prestar atenção ao que os professores falavam.


– Menina, qual é o babado? Fala aí, vai! Não regula não! – Denise falou colocando um braço ao redor dos seus ombros, na hora do intervalo.

– Tem babado não, só não dormi direito essa noite.

– Aham. Pra cima da Denise-toda-poderosa-que-tudo-sabe-e-tudo-vê não, fofa!


Apesar de surpresa por ela falar tudo aquilo em um fôlego só, Magali realmente não sabia do que ela estava falando.


– E o que a “Denise toda poderosa” tá sabendo?

– O seu “fofucho”, ora!

– O Quim? O que tem ele?

– É o que eu pergunto! Nossa, reparou que ele anda fazendo um curso atrás do outro? Se não é curso de culinária, é conferência, visitas organizadas a restaurantes famosos... e quando não rola esse babado todo, ele fica enfurnado na cozinha da padaria do pai enrolando pães e enchendo pastéis.

– E...

– Que negocio é esse de “E”? Será que o rapaz lá andou esquecendo de te colocar na agenda dele? Eu heim! Logo ele que parecia tão perfeito, tão atencioso, tão cheio de dedos com você!


Ela não teve como responder. Denise era irritante, mas estava falando a verdade. Fazia vários dias desde que eles se falaram da última vez. Ele tinha prometido que ia ligar e até então nem um sinal de vida. Na escola, ele preferia ficar com os amigos na hora do recreio ou então estudando algum livro de culinária. O tempo que eles passavam juntos tinha reduzido drasticamente. Se quisesse ficar com ele, teria que ficar sentada do seu lado vendo-o ler um livro e sem poder falar nada para não tirar sua concentração. O que estava acontecendo com o namoro deles?


– Ô Denise, a Luana e o Jojoca estão discutindo lá no fim do corredor. Você tá perdendo!

– O que?


Sem dizer mais nada, ela saiu dali correndo. Era inadmissível um barraco rolar naquele colégio sem que ela assistisse tudo em primeira mão.


– Valeu, Ce... eu estava sem saber como me livrar dela.

– De nada. Mas fala aí, tá tudo bem mesmo? Você tem andado meio bolada ultimamente.

– Alguns problemas, nada sério.

– Tem certeza? Você sabe que pode contar com os amigos.

– Sei sim, valeu. Preocupa não, tá tudo bem.

– Beleza. Se precisar...

– Pode deixar.


O professor entrou na sala e ela ficou em silêncio. Era tão bom poder contar com os amigos. O que seria dela sem eles? Seria melhor ainda se ela pudesse lhes contar o que estava acontecendo. O problema seria fazê-los acreditar nela sem pensar que ela estava ficando maluca. Não, primeiro ela falaria com a Mônica, depois com os meninos. Com a Mônica do seu lado, seria mais fácil convencê-los. Ela sempre tinha argumentos bem fortes para convencer qualquer um.


***


– Tá, tá... volta a fita e pára porque eu me perdi na parte da fada mulher gato.

– Ai, Mô! Você não ouviu nada do que eu falei?

– Ouvir eu ouvi bem, agora entender é outra história. Que negócio é esse de magia felina, falar com gatos e enxergar coisas que ninguém mais enxerga?

– São os poderes que a mulher gato dos meus sonhos me deu. Viu como é complicado? Eu sabia que você não ia acreditar!


Elas estavam na praça de alimentação do shopping. O movimento não estava muito grande por aí e elas podiam conversar mais a vontade.


– Olha, Magá, eu não acho que você esteja mentindo.

– Ufa...

– Só acho que você anda vendo coisas.

– Ah, não! Eu falo com gatos de verdade!

– Aí é que está. Só você fala com eles. Como saber se tudo isso é mesmo verdade e não fruto da sua imaginação?

– Eu não sei...

– Vamos lá. Que poderes a tal mulher gato te deu?

– Hum... deixa eu ver... posso falar com gatos, enxergar coisas invisíveis...

– Tem outro não? Alguma coisa que seja visível para as outras pessoas?

– Ah, tem sim! Nossa, eu tinha esquecido esse. Ela falou que eu também tenho o poder de curar qualquer gato que esteja ferido ou doente.

– Hum... isso é bem interessante... – aquilo podia ser facilmente provado, caso elas pudessem encontrar algum gato que precisasse de ajuda.

– É mesmo... se a gente conseguir achar algum gatinho ferido, eu posso tentar curar ele.

– Deixa eu ver... Pelo que sei, tem uma petshop aqui que coloca uns animais do abrigo para a adoção. Eles deixam os bichinhos expostos para que as pessoas possam ver.

– Ah, é! Eu sei qual loja você está falando. Só que eles não vão exibir os animais doentes, só os saudáveis.

– De repente... vamos lá dar uma conferida.


A loja era uma grande pet shop que tinha uma parceria com duas instituições que acolhiam animais de rua. Uma era o Ame um Gatinho e a outra era o Amigo Cão. De vez em quando a dona da loja ajudava colocando ali alguns animais disponíveis para a adoção. Isso ajudava muitos cães e gatos a conseguirem novos lares.


E naquele dia tinha uma quantidade boa de gatos por lá. Havia uns filhotes, outros adultos, mas todos pareciam saudáveis.


– Oi, você está vendo a gente? – os filhotes perguntaram ao mesmo tempo, fazendo Magali tremer um pouco.

– O que foi, o gato comeu sua língua? – outro gato perguntou, bem humorado.

– Parem com isso! Vocês sabem que ela não pode conversar com a gente na frente dos outros humanos.

– Magali, o que foi? – ela perguntou ao ver a moça parada na frente da gaiola dos gatos, com a expressão abobada. – não vai me dizer que os gatos estão falando com você?

– Estão...


Mônica olhou para os gatos e percebeu que todos olhavam diretamente para Magali e miavam. Uns pareciam acenar a pata e outros abanavam o rabo para ela. Pensando bem, aquilo estava mesmo ficando estranho...


– Oi, vocês estão olhando os gatos? – uma atendente da loja veio falar com elas.

– Ah, sim... são tão fofos! Se eu pudesse, levaria um. Só que eu já tenho cinco lá em casa e se eu levar mais um gato...

– Deixa eu adivinhar: papai te esgana?


Elas deram uma risada.


– Isso mesmo.

– Ah, que pena. Eles são umas fofuras, não são? Olha aquele rajadinho ali, que lindo!

– Nhé, sua fingida! Agora a pouco eu era um saco de pulgas fedorento!


Magali teve que colocar uma mão na boca para não rir. Pelo visto, aquela mulher não estava sendo sincera. Ela tolerava os gatos porque precisava do emprego, mas parecia não gostar muito deles.


– Essa aí só acha lindo esses gatos de raça cheios de frufru. Para nós ela nem liga! – um gato preto reclamou.

– Vocês podem ficar à vontade, se precisar de algo é só falar, ok? – ela resolveu ir cuidar de outras coisas. Para que perder tempo com quem não ia comprar nada?

– Escuta, aproveitando que ela saiu de perto, por acaso vocês sabem dizer se no abrigo de onde vieram tem gatos feridos ou doentes?

– Magali, o que está fazendo?

– Pegando informação com os gatos, ué! Agora disfarça e finge que eu estou falando com você.

– O que mais tem no abrigo é gato doente ou machucado. Você vai achar um monte lá.

– Será que eles estão abertos para o público?

– Sempre estão. Os donos de lá são muito bonzinhos e recebem todo mundo que quer conhecer o local. Você vai gostar deles.

– Ei, ei! Eu tenho uma boa para contar! – uma gata acenou para Magali com a pata.

– O que foi?

– Você sabia que a filha dos donos foi levada pelo povo gato?

– Sério?

– O que ela disse? – Mônica quis saber. Pelo visto, a conversa estava boa.

– Psiu! Deixa eu ouvir. Escuta, ela foi levada mesmo?

– Foi sim, eu vi tudo. Aqueles gatões enormes vestidos com aquelas capas pretas entraram na casa deles e a levaram, coitada! Eu fiquei com o coração partido!

– O pior era que os pais dela estavam fora naquela noite e ela precisava cuidar de alguns gatinhos órfãos. – outro gato completou. – com ela fora, não tinha ninguém para dar leite para os gatinhos. Uma gata até ajudou a dar banho neles, mas ninguém tinha leite para amamentá-los. Se ela não tivesse voltado logo, eles teriam morrido de fome. Graças a você, tudo terminou bem.

– Hã? Vocês sabem disso?

– Todo gato sabe. O nome da moça é Ângela, vocês vão gostar dela.


Mesmo querendo conversar mais um pouco com os gatos, elas tiveram que sair dali ao notarem que a atendente as estava olhando com uma cara estranha. Por isso ela se despediu deles e resolveu passar no abrigo ainda naquela tarde.


***


– Ah, então era disso que eles estavam falando? Eles viram mesmo os gatões seqüestrando a moça?

– Viram sim, já pensou?

– E você vai passar lá hoje? E como vai conversar com ela? Vai dizer que os gatos lhe contaram tudo o que lhe aconteceu?

– Não, né? Se der, vou falar com jeitinho. Com a gente ela deve se abrir. Afinal, também estávamos lá.

– E a que horas a gente vai?

– Lá pelas quatro da tarde, é um bom horário. Eu passo lá na sua casa.

– Tá bom. A gente se vê.



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