Pra não Dizer que não Falei de Flores escrita por Moony


Capítulo 3
Pequenos enganos




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Capítulo 2 – Pequenos enganos

 

Por incrível que pareça, eu fui mesmo. Nunca tinha ido a uma festa de verdade, mas resolvi arriscar. Afinal, como o Walter disse, eu tinha que acordar pra vida. Tá certo que levei dezoito anos pra começar a fazer isso, mas tudo bem...

O campus da estadual, assim como o nosso, ficava numa região mais afastada da cidade. Às vezes eu tinha a impressão de estar numa fazenda, de tanta terra que se via por todos os lados, e apenas alguns prédios concentrados no meio.

Walter me esperava bem na entrada, como combinado. Não pude deixar de reparar que ele se esmerara bastante ao escolher as roupas; comecei até a me perguntar se eu não havia me desleixado demais nas minhas. Mas ele nem me deu tempo de pensar muito, pois em trinta segundos me vi arrastado pra dentro da festa e fui apresentado a tantas pessoas em tão pouco tempo que no dia seguinte eu não lembraria o nome e o rosto delas nem sob tortura.

 

- Não tem nenhum lugar menos barulhento? – gritei pra ele, querendo fugir daquela cacofonia interminável de risos, conversas e música alta.

 

- O quê?

 

Repeti três vezes e desisti, porque ele não me ouvia de jeito nenhum. Acho que estávamos bem no olho do furacão. Por fim, arrastei-o pra longe dali, perto de umas árvores onde não havia quase ninguém e a música já parecia estar mais longe.

 

- Qual o problema? – Walter perguntou quando chegamos. Desabei na grama e olhei pra ele, pasmo.

 

- Qual o problema? Eu só tô aqui há meia hora e já nem sei mais se tenho tímpanos!

 

- Deixa de ser anti-social! Anda, vamos voltar. – ele ordenou, me puxando dali. Não me mexi.

 

- Pode voltar. Eu vou ficar aqui.

 

- Quantos anos você tem? Cinco? Anda! A gente vai voltar agora mesmo.

 

De nada adiantaram meus protestos. Ele me puxou com mais força e fomos pro meio daquela multidão ensandecida e bêbada mais uma vez. Daquela noite em diante, decidi que não gostava nem um pouco de festas e fiquei sinceramente agradecido de não ter ido a nenhuma outra antes.

Achamos um balcão improvisado em frente ao prédio principal e Walter comprou uma latinha de cerveja pra ele e um copo de não-sei-o-quê pra mim. Achei impressionante o fato do “barman” ter ouvido o que ele pediu e acertado na entrega.

 

- Toma. – Walter falou, me entregando um copo com algum líquido estranhamente escuro e gelado.

 

- O que é isso?

 

- Algo alcoólico. É tudo que você precisa saber. Agora toma e vê se relaxa, senão não vai aproveitar nada.

 

- E o que tem pra se aproveitar aqui? – perguntei, rindo de puro desespero.

 

- Sabe o que é isso? - ele perguntou, apontando para a cerveja que tomava. – Bebida. E sabe o que é aquilo? – ele voltou a perguntar, apontando agora para um grupo de garotas conversando e bebendo a poucos metros de nós. – Mulher.

 

No exato momento em que ele disse “mulher” eu estava tomando o primeiro gole daquela coisa que ele me dera, e simplesmente senti minha garganta ser queimada. Eu podia jurar que sentira a coisa queimando até o meu estômago. Mas ele não interpretou muito bem minha tosse inoportuna...

 

- Que foi, não gosta? Bom, eu conheço uns caras...

 

- Não!

 

- Não o quê?

 

- Não... Sei lá! Do que você tá falando? – perguntei, confuso e rouco.

 

- Ora, achei que ‘cê não gostasse de mulher, então eu tava dizendo que você podia ir...

 

- Espera aí, eu só tossi!

 

- Ah, cara, conheço esse tipo de tosse... Vai, pode dizer, não tem problema.

 

- Dizer o quê, sua criatura maluca? Eu tossi porque essa coisa estranha que você me deu tentou me matar!

 

Ainda passamos uns dez minutos discutindo essa tosse. No fim das contas, ele fez uma cara de “tá, vou fingir que acredito” e me deixou lá, sentado num banquinho tosco de madeira perto do balcão, com o copo vazio na mão. Eu nem reparei que tinha tomado enquanto discutíamos.

Pedi outro daquele para o cara do balcão. Não era tão ruim, afinal. Alguns segundos depois consegui ver que Walter estava dançando com uma loura e eles não paravam de gritar um no ouvido do outro para se comunicar.

Olhei ao meu redor. Incrível como realmente havia pessoas se divertindo naquele lugar. Talvez eu fosse mesmo muito anti-social... Quando minha cabeça começou a latejar, comprei uma cerveja, não sei nem por que, e fui me refugiar no mesmo lugar onde tinha encontrado um pouco de silêncio antes. Chegando lá, me certifiquei de que aquelas árvores enormes não davam nenhum fruto enorme que pudesse cair e rachar minha cabeça, e me sentei debaixo de uma delas. Não era nada confortável ficar encostado lá, mas eu não tinha nada melhor pra escolher.

Abri a latinha e tomei um gole da cerveja. Horrível. Mas ao menos estavaa gelada, e não descia pulverizando nada. Foi só naquele momento que repassei mentalmente o acontecido no balcão. Walter estava achando que eu não gostava de mulher!

E você gosta?, perguntou a minha consciência. Era um péssimo momento para ela aparecer.

Refleti por algum tempo... Eu já tinha ficado com garotas antes. Não uma quantidade absurda, mas algumas. Nada demais. Namorada? Não, nenhuma. Mas isso não significa que eu não goste, não é? E eu também nunca tinha sentido nada de especial por nenhum cara.

Nessa altura dos meus pensamentos, Walter chegou. Ele estava ligeiramente trôpego e se desequilibrou quando foi sentar ao meu lado. Reparei que o zíper da sua calça estava aberto.

 

- E aí? – ele perguntou, olhando pra mim.

 

- E aí o quê?

 

- Como foi?

 

- Acho que essa pergunta é pra você. – respondi, apontando pra sua calça aberta. Ele olhou e fechou o zíper, rindo.

 

- Ah, tá. Bom, não foi nada demais. Quero saber como você se sente, tendo encontrado a verdadeira paz e tranqüilidade embaixo dessa árvore. – ele continuou, irônico. Pegou a latinha da minha mão e tomou o resto da cerveja. – Tá quente...

 

- Me sinto com vontade com vontade de ir pra casa. Vamos. – declarei, me levantando e tentando puxá-lo dali, mas não era nada fácil. Ele parecia ser feito de chumbo.

 

Depois de muito esforço consegui fazê-lo se mexer. Fomos até o ponto de ônibus, lentos e desanimados, e o pior foi ver que lá havia um monte de gente tão bêbada quanto ele. Levei um bom tempo pra conseguir fazê-lo me responder que ônibus ele pegava e onde desceria. Decidi levá-lo pra casa e só depois ir pra minha. Não era uma decisão muito sensata, já que eu mal podia confiar nas instruções dele, mas achei que seria bem pior deixá-lo sozinho.

O resultado foi que depois de uma hora rodando pela cidade achamos a bendita casa, que, por sinal, era muito bonita. Mesmo naquela hora da madrugada, com apenas a iluminação dos postes, dava pra perceber que era uma dessas casinhas bem cuidadas e aconchegantes até do lado de fora.

 

- Calma aí... – Walter falou, quando nos aproximamos do jardim. Ele procurava alguma coisa no bolso. – Vem cá.

 

Demos a volta na casa e, quando ele finalmente achou as chaves, entramos pela porta dos fundos. Aliás, eu nem sabia por que estava entrando também. Disse a ele que ia embora, e em resposta recebi apenas um aviso para não fazer barulho.

Então Walter me puxou até uma escada e, tropeçando e rindo de vez em quando, conseguimos subir. Só quando entramos no que me parecia ser o seu quarto foi que ele acendeu alguma luz. Pisquei algumas vezes pra me acostumar com a claridade repentina e o que vi foi um quarto atulhado de papel e livros por todos os lados. Na mesinha-de-cabeceira o relógio marcava as três horas da manhã. Eu não sabia que era tão tarde!

 

- Agora quero saber como eu vou voltar, seu maluco! – reclamei com ele, que tinha se jogado na cama e estava agora ocupado com mais um acesso de riso.

 

- Não volta, oras!

 

- Muito engraçado!

 

- É sério. Fica aqui, amanhã ‘cê volta pra casa.

 

Não dei mais atenção ao que ele dizia. Tirei o celular do bolso e constatei, desesperado, que tinha descarregado. Meus pais já deviam ter chamado a polícia, os bombeiros, o exército, tudo!

 

- Me empresta o telefone.

 

Walter, pra minha total incredulidade, se enfiou debaixo da cama e tirou de lá um telefone vermelho antigo, daqueles que a gente tem que girar uma roda pra “discar” os números.

 

- Toma. Vê se não faz muito barulho quando girar isso aí.

 

E então ele entrou numa porta que eu imaginava que seria o banheiro e me deixou lá, com um telefone empoeirado que eu nem sabia se funcionava. Ouvi o chuveiro ser ligado. Disquei o número da minha casa, limpei o fone na camisa e esperei. O som era horrível, mas no fim das contas consegui avisar que só voltaria pra casa no dia seguinte. Eu não estava nem aí se a proposta do Walter era séria ou não, mas no momento foi a única coisa plausível que me passou pela cabeça.

Pouco tempo depois ele saiu do banheiro, enrolado em uma toalha da cintura pra baixo. Um acesso de pudor me fez olhar pro outro lado do quarto enquanto ele se vestia.

 

- O Tomate funcionou? – ele perguntou, já vestido e aparentemente sóbrio.

 

- Tomate?

 

- É, o telefone.

 

- Seu telefone tem um nome?

 

- Ah, qual o problema? Tomate é um nome legal.

 

- Claro...

 

- Vai ficar?

 

- É o jeito, né...

 

- Então pega. – ele disse, me entregando um pijama. – Garanto que é melhor do que dormir de jeans.

 

Já que eu tinha que dormir ali, não pude resistir à tentação de tomar um banho e trocar de roupa. Já estava até pensando em como seria maravilhoso encontrar minha cama, quando me dei conta de que não estava em casa.

Quando saí do banheiro, já devidamente vestido, Walter estava terminando de arrumar um colchonete no chão. Achei incrível o fato de ele ter tanta disposição depois de um porre.

 

- Pode ficar com a cama, hóspede. – ele anunciou, se deitando no colchonete.

 

- Mas é a sua cama. – reclamei, notando que ela também tinha sido arrumada enquanto eu estava no banheiro.

 

- Lá vem você com mais frescura... Deita aí, vai, já tem uns quinze anos que não faço xixi na cama. Ela tá perfeitamente limpinha e saudável.

 

Já que não tinha jeito, deitei. Walter apagou a luz, e dentro de uns dez minutos parecia já ter adormecido. Eu não conseguia dormir, apesar do cansaço. Aquela não era minha casa, não era meu quarto. E, principalmente, aquela cama não era minha. Muito menos os lençóis, com o cheiro de amaciante que dizia que tinham sido lavados naquele mesmo dia. Fiquei pensando se Walter seria tão cuidadoso assim com todos os “hóspedes”.

Já que eu não conseguia dormir mesmo, comecei a observar melhor o quarto. Com a luz apagada era difícil divisar as coisas, mas, olhando atentamente, percebi que estava tudo no seu devido lugar. Bom, quase tudo.

Pelo que pude ver, a estante onde ele colocava os livros estava cheia, então o excedente foi arranjado em pilhas no chão. Ao lado da mesinha estava encostado um violão e, em outra mesa, perto da estante, ficava o computador. Papéis de todos os tipos cobriam o chão.

Pela janela vi que o céu estava ficando mais claro. Deve ter sido isso o que me fez dormir.


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