O Amor É Clichê escrita por Juliiet


Capítulo 14
A Felicidade É Frágil


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente, aqui estou eu, postando de madrugada. Desculpem a demora e o capítulo, que tá meio (meio? que tal muito?) chato. Nos vemos lá embaixo.



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Saí da casa do Vicente um pouco mais tarde do que seria sensato, o filme era longo e bom demais para que eu pudesse desviar os olhos da tela para o relógio. Vincent Price sempre seria o Mestre do Macabro, o cara era genial, assim como um garoto de nome parecido...

As chances de papai já ter chegado em casa eram grandes, mas quer saber de uma coisa? Eu não me importava! Nem um pouco! Eu estava oficialmente dando descarga no bom senso! Trataria de inventar uma desculpa para minha ausência, se e quando isso se tornasse necessário, porém, no momento, eu só queria curtir as primeiras lembranças da minha recém-formada — e mais do que improvável — amizade.

Um sorriso sutil insistia em esticar meus lábios para cima enquanto eu fazia meu caminho para casa. Eu nunca me considerei uma pessoa ilógica, mas acho que agora as provas disso estavam estampadas em garranchos luminosos. Afinal, qual era a lógica em me sentir tão leve e feliz só por ter me tornado amiga de um garoto que passei a vida toda odiando? Meu ódio por ele sempre foi real, nunca houve dúvida quanto a isso. Então por que uma tarde de filme de terror com ele me fez tão feliz que eu tinha vontade de rir à toa?

Bom, pensaria nisso depois, minha mente estava muito agitada e eufórica para encontrar respostas plausíveis. E eu já estava quase em casa, precisaria ocupar minha mente com coisas mais importantes. Não foi surpresa ver o carro do papai estacionado na entrada de veículos enquanto eu atravessava o pequeno jardim. Franzi a testa, pensando em uma desculpa não tão descarada para estar fora até aquela hora, mas os gritos vindos de dentro da casa meio que me distraíram, principalmente quando reconheci a voz da minha irmã. Não hesitei – sempre fui e sempre seria superprotetora com Geny – e corri para a porta sem um segundo pensamento.

Papai estava muito vermelho, como se tivesse acabado de sair de uma sauna, seus olhos azuis normalmente claros e límpidos estavam escuros de raiva. Geny não estava muito diferente. As bochechas quentes de cólera e os cabelos longos, soltos, flutuavam em volta do seu rosto enquanto ela o enfrentava. Eu nunca tinha visto tal cena. Tudo bem que papai brigava com Geny um pouco mais que frequentemente, mas nunca a vi reagir daquela maneira tão intensa. A menina estava louca, só podia. Como ela tinha a coragem...?

Nenhum dos dois notou minha presença.

– Eu já estou cansada! – Geny gritava, agitando os braços para dar ênfase. – Não sou a filha perfeita nem quero ser! Contente-se com a Tina, porque eu me recuso a ser um robô!

– Cale-se, Maria Eugênia – papai não gritava, mas de algum modo sua voz soava mais ameaçadora do que se ele estivesse aos berros. – Mais uma palavra e eu a mando para um colégio interno!

– Ótimo! – retrucou Geny completamente fora de si, fuzilando papai com os olhos. – Pelo menos assim eu ficaria livre de você!

O silêncio que se seguiu rivalizava com o de um cemitério. Não sei quem ficou mais chocado depois dessa declaração. Meu queixo caiu, literalmente, e papai parecia que tinha acabado de ser atingido por algo muito pesado. Até Geny parecia surpresa com suas próprias palavras, mas manteve sua postura beligerante e o nariz empinado, embora eu pudesse ver suas mãos tremendo e seu peito afundando nas costelas com mais força que o normal.

Geny não percebeu o que estava por vir, estava tão alterada que não perceberia se um trem desgovernado estivesse vindo em sua direção, porém eu percebi a mão de papai e me entrepus entre os dois, impedindo-o. Geny fitou-me em choque, depois alternou o olhar entre papai e eu. Ninguém parecia saber o que dizer, eu também estava em choque e papai parecia mais do que um pouco furioso.

No entanto, eu nunca o tinha visto dessa maneira. Ele nunca, em nenhum momento, mesmo com raiva, nunca havia levantado a mão para uma de nós. Podia ser ameaçador e rígido, mas nunca tinha agido com violência com a gente nem com qualquer outra pessoa. E, tudo bem, eu podia ser a suposta filha perfeita que Geny me acusara de ser, nunca contrariando ou desobedecendo ao papai – não na frente dele, é claro – e tentando ao máximo agradá-lo. Mas eu não podia permitir que ele batesse na minha irmã.

– Você é horrível – ela disse, parecendo recuperar a coragem depois de mais alguns segundos de silêncio esmagador. Sua voz tremia. – Eu quero ir embora daqui para sempre. Eu o odeio!

Uma veia começou a latejar na têmpora do papai e eu tinha um péssimo pressentimento sobre aquilo.

– Para o quarto, Maria Eugênia. Agora – declarou papai, com a voz furiosa contida, afastando-se de nós. – E é melhor que goste dele, não vai sair de lá tão cedo.

Geny parecia querer retrucar, mas o olhar azul de papai era gelado e, pra ser sincera, assustador. Ela olhou para mim antes de ir, como se pedisse uma autorização muda. Era bom saber que minha irmã tinha tanta confiança em mim. Assenti e ela subiu as escadas correndo, sem outro olhar para papai.

Ficamos apenas os dois ali, encarando-nos. A tensão podia ser cortada como se fosse manteiga. Papai finalmente desviou o olhar e se jogou na poltrona de couro marrom, passando uma mão firmemente pelo cabelo curto.

– Onde você estava? – perguntou, áspero.

– Petra – respondi imediatamente.

– Com a permissão de quem?

Não respondi. Era uma pergunta retórica.

– Também está de castigo, Maria Valentina – continuou, sem me olhar.

– Tudo bem – respondi. Eu ainda permanecia de pé, a uns três metros dele.

Papai voltou a me fitar com aqueles olhos azuis que ainda guardavam vestígios de fúria, a tensão visível em sua boca apertada e seu cenho franzido.

– Nunca mais se meta em uma discussão minha com a sua irmã – ele disse de repente.

– Não posso dizer que farei isso – respondi, surpreendendo-o. – Vou me meter entre vocês toda vez que você ameaçar machucá-la.

Nunca em toda a minha vida eu havia sequer imaginado falar com meu temido pai assim. Mas eu não podia deixar que o que quase aconteceu com Geny acontecesse de novo. E se ela estivesse sozinha e eu não pudesse protegê-la? Minha irmã vinha em primeiro lugar em qualquer situação. E nem o respeito nem o medo que eu sentia pelo meu pai me impediriam de tentar fazê-lo entender isso.

Papai arregalou os olhos e voltou a passar os dedos pelo cabelo, levantou-se e foi até o armário de bebidas. A coisa era séria mesmo, se papai estava apelando para o uísque num dia de trabalho. Serviu-se e tomou um gole antes de tirar a cartela de cigarros do bolso. Não a abriu.

– É um motim? – perguntou, de costas para mim. Mas não parecia esperar que eu respondesse, porque continuou – Nunca quis machucar sua irmã, mas ela me tirou do sério. Está cada dia mais parecida com a sua mãe. Tão rebelde, indisciplinada, incontrolável...

Papai nunca falava da mamãe, então suas palavras me pegaram completamente fora de guarda. Ele devia estar mais do que apenas alterado para trazê-la à tona numa conversa.

– Fala como se fosse algo ruim – eu retruquei, indignada com o tom das palavras dele.

Ele se voltou para mim, parecendo frio e ainda mais distante.

– E não é? Uma mãe irresponsável, uma mulher volúvel, isso o que ela era...

Senti uma fúria insana percorrer-me com suas palavras. As lágrimas não derramadas ardiam atrás dos meus olhos e eu fechei as mãos em punhos, porém, minha voz estava controlada ao dizer:

– Não fale dela assim.

Mas foi como se ele nem tivesse ouvido. Parecia tão furioso e as palavras cruéis se derramavam de sua boca, como nunca antes eu tinha visto.

– O maldito sangue dela corre em vocês, é claro que seriam perdidas como ela. Talvez você se salve, mas Maria Eugênia tem a mesma rebeldia, a mesma futilidade...

– Pare! – pedi, dessa vez as lágrimas começaram a rolar soltas por meu rosto. – Não fale dela assim!

Mas ele parecia determinado a despejar todas as palavras que ficaram tantos anos presas dentro do seu coração.

– Uma qualquer, uma perdida, isso o que ela era! Sempre inquieta, insatisfeita, uma vida decente não era e nunca seria o suficiente para ela, eu nunca seria suficiente para ela! Mas eu pensava que vocês seriam, mas não, nem amava o suficiente as próprias filhas para...

– Cala a boca! – gritei, descontrolada. – Cala a boca! Cala a boca!

Quase não senti a dor do tapa, mas o ato em si me assustou e repugnou. Sentia meu rosto esquentar e latejar, as lágrimas ainda fazendo seu caminho em minhas bochechas.

– Maria Valentina, eu – começou, parecendo surpreso e assustado consigo mesmo, mas eu não queria escutar sua voz.

– É da minha mãe que você está falando – eu disse, a voz frágil. – Não importa o que ela foi, ela ainda é minha mãe. E pelo menos ela nunca me bateu.

– Nunca esteve perto tempo o bastante para ter a oportunidade.

– As mãos dela eram lindas demais para cometer esse tipo de violência.

Os olhos de papai pareciam que iam saltar das órbitas, sua pele pálida estava corada e febril, seu maxilar preso como se ele estivesse fazendo muito esforço para se controlar. O copo com uísque em sua mão se espatifou na parede no segundo seguinte, quando ele o atirou. Falar em mamãe era sempre algo que o fazia perder as estribeiras, mas tanta fúria não era normal, mesmo para ele.

– Para o quarto, agora!

Não foi preciso pedir duas vezes, em meio segundo eu já estava no topo da escada, tendo subido dois degraus de cada vez. Passei reto pelo quarto da Geny e subi para o meu sótão, meu amado refúgio. Ela estava lá, sentada na minha cama com a cabeça apoiada nos joelhos, os cabelos bagunçados ao redor do rosto. Levantou os olhos ao me ver entrar, e seu rosto também brilhava com as lágrimas. Apesar de toda a capa de garota forte e bem resolvida, Geny era uma criança, uma criança tão sozinha e confusa, sem mãe e com um pai distante e incapaz de compreendê-la.

– Ele achou meu caderno, Tina – ela chorou, a voz quebrando-se no meio da frase. – Meu caderno de desenhos...

Como mamãe, Geny era talentosa e criativa. Queria ser estilista e qualquer pessoa que tenha visto o que ela fez comigo para a festa do primo da Petra, perceberia que ela tinha jeito para a coisa. Infelizmente, moda não era algo que papai considerasse uma carreira.

Ele odeia artistas.

– Ele d-disse que era uma bobagem inútil – soluçou quando eu sentei ao seu lado na cama e a abracei. – Disse que era uma b-besteira de criança e que eu tinha que crescer. Que ele nunca permitiria que eu...que eu...que eu estragasse minha vida com uma f-futilidade dessas. Mas é meu sonho, Tina! Meu sonho!

Eu não falei nada, apenas abracei-a e a deixei chorar no meu ombro, acariciando seus cabelos com uma das mãos. Em qualquer outro dia, eu confesso que teria concordado com papai. Sinceramente, nem eu entendia a fascinação de Geny por esse tipo de coisa, era algo estranho para mim. Mas eu amava minha pequena irmã, ela era tudo para mim. E qualquer coisa que fosse capaz de colocar um sorriso em seus lábios, nunca seria ruim. Papai estava tão cheio de rancor pela nossa mãe que era incapaz de ser feliz com uma filha tão parecida com ela. Doía-me saber que ele estava tão certo. Irresponsável, rebelde, inconsequente...Geny tinha herdado essas características da mamãe. Mas, assim como ela, Geny também era espontânea, autêntica e doce. E eu não podia deixar de admirá-la por ser assim. Não podia deixar de amá-la mais por isso.

– Esqueça – eu disse, finalmente. – Ninguém tem o direito de tirar seu sonho de você, nem de fazer pouco dele. Guarde-o, proteja-o e um dia ele se tornará realidade. Mas não volte a enfrentar o papai assim. Não é inteligente nem certo.

Ela continuou chorando e se apertou mais em meu abraço. Minhas próprias lágrimas secaram geladas em meu rosto. Nenhuma de nós parecia querer ir para baixo, nem para comer. Então ficamos ali e dormimos juntas, abraçadas, como costumávamos fazer quando menores, sem pais que nos colocassem para dormir. Ainda lembro como Geny chorava e dizia que odiava mamãe e que queria ter uma família normal.

Irônico como minha irmã nunca pôde perdoar nossa mãe. E mesmo assim, era tão parecida com ela que meu coração apertava.

Fechei os olhos e adormeci com os olhos ainda cheios de lágrimas. O pequeno furor de alegria por minha amizade com Vince totalmente eclipsado pela realidade que me cercava.


No dia seguinte, quando descemos do sótão, papai já tinha ido para o trabalho. Nenhuma de nós falou muito enquanto íamos para a escola e Geny me abraçou apertado antes de ir para sua sala da oitava série. Às vezes eu me esquecia o quanto ela já estava crescida, apesar de saber que, no fundo, era uma criança. Fui arrastando os pés para a minha sala, pela primeira vez em muito tempo, a perspectiva de estudar e aprender não me estimulava. Petra ainda não falava comigo e devo dizer que não esperava que fosse receber algum reconhecimento de Vicente em público. Não falamos disso, mas eu realmente não esperava que ele fosse agir como meu amigo na escola, na frente de outras pessoas.

Eu queria muito chorar.

Fiquei sentada em meu lugar até a aula começar, sem falar com ninguém. Petra sentara algumas cadeiras longe de mim hoje e nem Silas nem Vicente tinham chegado ainda, porém o último apareceu pouco depois de o sinal tocar e entrou na sala segundos antes do professor, parecendo bonito e despreocupado, os cabelos molhados pingando na gola da camisa. Para minha surpresa, ele ocupou o lugar ao meu lado e me cumprimentou com um sorriso largo cheio de covinhas e uma piscadela.

Ignorei-o porque me sentia incapaz de retribuir seu sorriso e afundei na minha cadeira. O professor chegou e eu tentei manter minha atenção na aula, mas minha mente voltava à discussão de ontem e eu só me sentia pior. Vicente tentou chamar minha atenção e até empurrou um bilhete em minha mesa, que eu não li. Apenas amassei e joguei de volta para ele, que me fitava aturdido.

Quando a primeira aula acabou e o professor se retirou, ele se inclinou para perto de mim e perguntou baixinho:

– O que há, Maria Valentina?

Isso me pegou de surpresa, porque todos podiam nos ver perfeitamente. E é claro que era isso que todos na sala estavam fazendo, ninguém tirava os olhos de nós. Roberta parecia ter engolido um limão e Petra não pareceria mais chocada se eu tivesse sido eleita miss universo. Não podiam nos ouvir se cochichássemos, mas podiam ver que estávamos conversando. A nerd e o garoto mais popular da escola. Assunto para o ano todo.

– Não me chame assim – murmurei de volta. Só quem me chamava de Maria Valentina era o papai e eu não queria pensar nele.

Vicente sorriu e tocou a ponta do meu nariz.

– Gosto do seu nome – ele disse, sorrindo.

Eu estava tão mal que isso quase me fez chorar. E o fato de que ele estava agindo como se estivéssemos sozinhos, mesmo no meio da sala, deixou-me mais do que um pouco emocionada.

– Você está triste – não foi uma pergunta. – O que aconteceu?

Neguei com a cabeça. Não estava negando que estava triste, apenas disse sem palavras que não queria falar sobre isso. Não confiava em minha voz para sair firme.

– Somos amigos agora, lembra? Mas tudo bem, podemos conversar sobre isso em minha casa mais tarde.

Balancei a cabeça mais uma vez.

– Não vou para a sua casa hoje, Vicente – respondi.

– Por quê?!

– Não posso, estou de castigo.

Assim que eu disse isso, outro professor entrou e não podemos mais conversar, apesar de eu ainda sentir o olhar dele – e de toda a sala, aliás – em mim.

Aquilo estava insuportável. Cinco minutos depois eu decidi que não ficaria mais ali, levantei-me, para o espanto de todos, peguei minhas coisas e disse ao professor que não estava me sentindo bem e que iria para casa. Ele assentiu na hora, todos os professores me conheciam e sabiam que era mais fácil a lua cair do céu do que eu inventar desculpas para perder aulas.

Saí da sala o mais rápido que pude e fui para a coordenação, onde repeti o que havia dito ao professor.

– Vou ter que ligar para o seu pai para ele vir buscar você – a sra. Meilin, assistente da coordenadora, disse, já pegando o telefone.

– Não, por favor – eu pedi, horrorizada com o pensamento de papai falar com papai. – Meu pai é um médico muito ocupado, a senhora sabe, e odeia ser perturbado por esse tipo de coisa. Eu não posso pedir para ele assinar uma autorização e trazer amanhã?

Como eu sempre fui a aluna perfeita e responsável, a sra. Meilin concordou, apesar de, como ela fez questão de repetir mil vezes enquanto assinava meu passe de saída, aquilo fosse terminantemente contra as regras da escola. Ela abriria uma exceção só porque eu realmente parecia pálida e abatida e ela sabia como meu pai era um homem ocupado.

Depois de agradecer e pegar o passe, eu saí depressa de lá. Ao chegar ao portão da escola, entreguei meu passe e saí. Resolvi pegar um táxi, estava me sentindo cansada demais para andar mesmo só até o ponto de ônibus. Dentro do táxi, eu mandei uma mensagem para Geny, avisando que tinha voltado para casa e desliguei o celular.

Cheguei depois de alguns minutos e subi para o meu quarto, largando a mochila no chão e trocando o uniforme por uma calça de moletom velha e muito folgada e a blusa do South Park do Vicente.

Idiota, eu sei, mas me sentia tão bem com ela. Confortada e segura.

Fui até o aparelho de som e coloquei minha lista de músicas preferidas para tocar, depois deitei na cama, fechei os olhos e relaxei ao som dos primeiros acordes. Tentei visualizar o rosto da minha mãe, mas era como se eu tentasse enxergá-la através de óculos embaçados. Ou como se eu estivesse tentando fazer um retrato falado com detalhes importantes falando. Sabia que ela tinha cabelo escuro e pele apenas ligeiramente morena. E seus olhos eram da mesma cor que os meus. Mas acabava aí. Eu não lembrava da curva dos seus lábios nem da ponte do seu nariz. Não sabia como era o formato do seu rosto ou se ela tinha um queixo pronunciado. Seus cílios eram longos? Ela sorria com frequência? Suas orelhas eram furadas? Ela tinha covinhas?

Antes que eu percebesse, as lágrimas pela perda venceram a barreira das minhas pálpebras e escorregaram pelo meu rosto, molhando minhas orelhas. Sentia-me tão só, tão...abandonada.

O som da campainha arrancou-me dos meus devaneios e fiquei tentada a ignorar. Mas a pessoa era insistente e foi com esforço que me levantei da cama para ir atender. Era improvável que fosse Geny, a não ser que ela tivesse fugido da escola e papai tinha a chave para entrar em casa. Devia ser uma das vizinhas querendo a batedeira emprestada ou coisa assim...

Desci do sótão e fui até a porta, abrindo-a sem ânimo e quase deixei escapar um gritinho ao ver Vicente parado na soleira, olhando-me com curiosidade e preocupação.

– Não vai me convidar para entrar?

Pasma, fiquei apenas parada fitando-o demoradamente. Só quando ele sorriu, mostrando as covinhas, percebi o que estava fazendo e, afastei-me para deixa-lo passar.

– Como descobriu onde eu moro? – perguntei, fechando a porta.

Ele sacudiu os ombros e disse enquanto passava os olhos pela sala de estar:

– Você não atendia o celular, então eu precisei tomar medidas drásticas. Mas para quem roubou um simulado, descobrir o endereço de uma das alunas da escola foi moleza.

Isso conseguiu me fazer sorrir fracamente. Era engraçado como o fato de ele ter roubado o simulado e ficado em primeiro lugar na lista de classificação, ainda que por um dia, não me aborrecia mais. Aliás, eu começava a ver minha reação como infantil e tola. Para não mencionar fútil.

– Quem imaginaria que eu estava fazendo amizade com um marginal? - brinquei para atrair a atenção dele. O modo como ele parecia observar minuciosamente a sala de estar estava me dando nos nervos. Parecia que ele estava procurando algo ali.

– Pois é, você se meteu com o garoto mau – ele respondeu, virando-se para mim com um sorriso malicioso. – E isso tem seus riscos e suas vantagens. Mas você não pode dar para trás agora.

– O que quer dizer?

– Não pode decidir deixar de ser minha amiga só porque eu não presto.

– E quem disse que eu quero deixar de ser sua amiga?

Ele fitou-me confuso.

– E o que foi tudo aquilo na escola?

– Você é muito metido, não é? Para se achar a razão de todos os meus problemas – eu disse, mas num tom leve e brincalhão para ele não tomar como uma ofensa. – Porém confesso que fiquei meio surpreendida ao ver você me tratando daquele jeito na frente de todo mundo.

Ele se aproximou de mim, muito sério. Eu, inconscientemente, dei dois passos para trás, até bater a parte de trás dos joelhos na mesinha de centro.

– Eu sei que você tem uma imagem muito ruim de mim, Tina – ele falou, lembrando-se de me chamar pelo apelido. – E não posso realmente culpá-la por isso. Eu posso não ser o cara mais legal do mundo, mas quando eu disse que queria ser seu amigo, eu falei sério. E não importa se estamos sozinhos ou no meio de uma multidão, eu vou tratar você do mesmo jeito, já que você é minha amiga agora.

Baixei os olhos, piscando várias vezes para impedir as lágrimas. Deus, eu estava uma massa disforme de sentimentalismo barato! TPM, é você?

Senti uma mão no meu queixo me obrigar a levantar o rosto e me peguei encarando os olhos escuros e quentes do meu amigo Vicente. Ele me olhava com carinho, com preocupação. Como as coisas puderam mudar tanto em um dia? O dia de ontem começou com ele sendo meu inimigo. Eu o odiava, queria fazê-lo sofrer, vingar-me dele. E agora só o que eu queria era que ele não parasse de me olhar nunca, que ficasse para sempre fitando-me com aquele calor nos olhos, como se eu importasse. Como se eu fosse especial.

– Você andou chorando? – ele perguntou.

Pensei em não responder. Pensei em baixar o rosto e mudar de assunto. Pensei em mentir. Mas aqueles olhos pareciam tão verdadeiros, tão honestos, que eu só pude dizer a verdade.

– Sim.

E antes que ele dissesse alguma coisa, eu o peguei pela mão e o fiz subir as escadas atrás de mim. Passamos pelo corredor até chegar à escada que dava para o meu quarto, subi, esperando que ele viesse atrás de mim. Nunca havia levado um garoto no meu quarto, mas parecia normal tê-lo ali. Querê-lo ali.

– Uau – ele disse, passando os olhos pelo meu quarto com paredes inclinadas e grandes janelões. – Seu quarto é o máximo.

A luz da manhã era clara e fria através das cortinas brancas, e banhava meu quarto completamente. A grande cama com lençóis azuis um pouco amassados, a penteadeira, a cômoda ao lado da cama, o armário de madeira branca com puxadores amarelos e a escrivaninha brilhavam na claridade e senti o olhar de Vicente passar demoradamente por eles e por cada objeto no meu quarto.

– Era o ateliê da minha mãe – contei, surpreendendo a mim mesma.

Ele franziu o cenho e voltou-se para mim.

– É a primeira vez que a ouço falar da sua mãe.

– Não é um assunto que me deixe muito confortável.

A música suave ainda tocava no meu aparelho de som, deixando o momento menos tenso, e foi a vez de Vicente tomar minha mão e me puxar para o meio do quarto. Ele se sentou no chão e eu o imitei, fazendo o mesmo quando ele se deitou. E ficamos lado a lado, deitados no chão, encarando as luzinhas de natal que enfeitavam minhas janelas, apagadas àquela hora do dia.

– Ela morreu? Sua mãe? – ele perguntou suavemente depois de alguns minutos.

Fechei os olhos e tentei mais uma vez visualizá-la na mente, mas só conseguia lembrar-me de suas mãos. Suas mãos talentosas e firmes, mas delicadas quando faziam carinho em meu cabelo ou cócegas em minha barriga. Eram exatamente como as mãos de uma mãe deviam ser.

– Não – respondi finalmente. – Ela não morreu. Ela foi embora.

Vince não disse nada, mas eu podia sentir seu olhar em mim, queimando-me com perguntas mudas, mas respeitando meu silêncio e privacidade. Poderia beijá-lo por ser tão sensível comigo nesse momento. E quase sorri com esse pensamento, na única vez em que nós estivemos próximos o bastante para o beijo ser uma possibilidade, eu quase quebrei o nariz do garoto.

Mais minutos se passaram até que eu disse:

– Meu pai a conheceu quando foi passar um natal com meu avô na Romênia. Acredite ou não, minha mãe é meio cigana e trabalhava num circo nômade que estava fazendo várias apresentações em todo o leste europeu.

Podia ver a expressão assombrada de Vicente pelo canto do olho. A história era mesmo meio maluca. Eu continuei:

– Meu avô me disse que quando meu pai viu minha mãe, se apaixonou perdidamente, à primeira vista. E fez tudo para conquistá-la. Um ano depois, os dois casaram e vieram pra esta casa. Foi quando os problemas começaram, acho que mesmo antes de eu nascer. Meu pai sempre foi um homem difícil, sabe, muito sério e correto. Organizado e focado, sabia exatamente o que esperar da vida e o que ela esperava dele. Além disso, ele sempre foi muito rígido e austero. Ao contrário da minha mãe, que era como um passarinho. Ela vivia um dia de cada vez e encontrava felicidade em pequenas coisas. Não pensava muito no futuro e a vida para ela era uma aventura, da qual ela só esperava surpresas – meus olhos voltaram a se encher de lágrimas enquanto eu falava, as minhas próprias lembranças misturando-se aos relatos escondidos do meu avô. – Ela era uma artista. Mas não só isso, ela era livre. E o amor do meu pai a sufocou. Eu sei que ela me amava, sei que amava Geny também. Acho até que amava o papai, do contrário não teria se casado com ele. Mas ela não pôde viver aqui. Não pôde aguentar as limitações, as restrições e o comedimento do meu pai. Então ela fugiu.

Senti a mão de Vicente cobrir a minha, massageando minha pele delicadamente com seu polegar. As lágrimas pareciam impossíveis de contar e eu nem me envergonhava mais por estar chorando na frente daquele que eu achava que odiava mais do que qualquer outra pessoa.

– Geny não lembra dela – eu continuei, confortada por aquele toque em minha mão, que me fazia sentir como se eu não estivesse tão só. – Eu mesma lembro muito pouco, talvez se visse seu rosto na rua, eu não a reconhecesse. Papai queimou todas as fotos. Geny a odeia, sabe que ela nos abandonou, nos deixou sozinha com um pai que nunca seria carinhoso, e não entende como foi capaz de fazer isso. Por isso, e porque meu pai não aprova, meu avô não fala sobre ela com minha irmã. Mas, quando ninguém está vendo, eu peço para ele me falar dela. Eu gosto de saber que ela me quis um dia. Que eu fui amada por ela. Lembro-me de ser feliz, de me sentir feliz com ela aqui. Mas a felicidade é tão frágil...

Meus óculos estavam completamente embaçados, eu quase não podia ver Vicente, que se ergueu, apoiando-se no cotovelo, para me olhar melhor. As lágrimas há tanto tempo guardadas fluíam de mim como uma cascata. A dor, encerrada há tantos anos, despejava-se em minhas palavras, palavras que eu nunca revelara a ninguém, nem mesmo à minha irmã.

– Quer dizer, eu sei que ela me abandonou. Nos abandonou. Sei que ela resolveu sair pela porta da frente e nunca mais voltar. Sei que ela nos deu às costas e foi em busca da vida que queria viver. Sei disso. Mas mesmo sabendo dessas coisas, não consigo deixar de amá-la. Minha mãe era uma mulher com um espírito livre tentando viver numa gaiola dourada. Sei como ela se sentia, entendo-a. Amo-a. E se fosse só por mim, eu a perdoaria. Mas, mesmo amando-a tanto, não posso deixar de odiá-la ao ver o sofrimento que causou a Geny. Geny que é tão igual a ela, que me assusta. Isso faz algum sentido?

Eu comecei a soluçar, sem entender o que diabo havia de errado comigo. Eu não podia ser uma pessoa menos complicada? Eu estava só esperando a hora em que Vince ia achar que aquilo era demais para ele e iria cair fora, mas ele continuou lá. E quando eu levei as mãos ao rosto para esconder minhas lágrimas, ele me impediu. Eu não podia vê-lo muito bem, mas senti suas mãos, se fecharem nas minhas com cuidado e as abaixarem de cada lado do meu corpo. Depois ele fez algo que me deixou estática e gelada.

Tirou meus óculos.

Meus olhos arregalados e molhados finalmente podiam enxergar seu rosto, ainda que sem muita nitidez. Ele não me olhava diretamente e tinha uma expressão triste no rosto, mas ao mesmo tempo tão...linda. Maluco, eu sei, mas era como se ele sofresse por mim, comigo. Como se minha dor, de algum modo, também fosse a dor dele.

– Faz sim, Maria Valentina – ele disse, secando minhas lágrimas com os dedos. – Faz muito sentido.

Ele levantou os olhos e me fitou, com todo o poder e emoção daquele olhar escuro, hipnotizante e intenso. E, pela primeira vez, eu senti que ele olhava realmente dentro dos meus olhos.



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Notas finais do capítulo

Gente, to com sono, então perdoem qualquer erro aí.
Ok, agora, quem não quiser, nem precisa ler isso aqui, já vou avisando que vou falar pra caramba hahaha. Gente, eu to com uns problemas, briguei com meus pais, minha coluna tá ferrada (por isso eu não posso ficar muito tempo sentada na frente do pc) e etc. Por isso o cap só saiu agora e foi essa merda. Eu não acho que o próximo vá demorar tanto, mas sejam legais comigo e mandem reviews, minha vida tá uma bagunça e eu to meio desanimada. E os que escrevem aqui sabem como é bom receber comentários, críticas, sugestões e elogios. Eu me sinto muito feliz com cada resposta de vocês, por menor que ela seja. E isso me deixa animada pra escrever.
Outra coisa. Eu tento, eu juro que eu tento responder aos reviews, mas eu quase não tenho tempo pra lembrar de respirar, pelo menos pelos próximo mês. Eu leio e amo todos, mas ou eu respondo ou eu escrevo o cap. É, a coisa tá difícil assim.
Bom, para aquelas que perguntaram, o livro que eu tava lendo The Killing Dance, da série de livros da Anita Blake. Eu AMO MUITO ESSA SÉRIE, GENTE, COMO ASSIIIIIIIIIIIIIIIM. Ok, menos haha. Talvez algumas de vocês já tenham lido, os 3 primeiros livros da série já saíram no Brasil e o quarto vai sair esse ano.
Ah, sim, Lole, não seja má comigo...o cap demorou, mas se você fizer uma recomendação eu juro que não reclamo hahaha
Seja bem vinda Pum Hutch, leitora semi-nova :) se eu estiver esquecendo de mais alguém novo aqui, relevem, é madrugada e meus olhos já estão grudando de sono.
Pra terminar (todo mundo dizendo amém já), gente, uma amiga minha (já me considero íntima, tá?) a Burn, tá escrevendo uma história muito fofa, e eu estou meio que trabalhando de consultora pra ela haha (se bem que nesses dias eu sumi e ela já deve ter me demitido). Enfim, a história chama Do Seu Lado e é muito lindinha e engraçada, quem quiser, vai dar uma olhada (preguiça-mor de ir pegar o link, madrugaada gente).
Ah, eu tinha que agradecer às meninas maravilhosas que fizeram recomendações lindas pra O Amor É Clichê, mas eu to com muito sono mesmo, fica pro próximo cap. Mas eu amei, sério, muito obrigada *emocionada*
Ok, era SÓ isso haha. Não me odeiem. Beijos e boa noite (ou seria bom dia?)
obs: essas notas ficaram maiores que o cap haha