Obaka-san! escrita por Mayumi Sato


Capítulo 5
05. Tristesse.(Chopin)


Notas iniciais do capítulo

Minhas sinceras desculpas por minha longa demora em atualizar essa fic! Como ocorreu, anteriormente, um capítulo acabou se estendendo mais do que eu previa e tive que dividi-lo em duas partes! Diferente de antes, eu já concluí esse capítulo e a segunda parte dele será postada, amanhã! A música original desse capítulo é a "Watermark",mas escolhi a "Tristesse" para essa primeira parte, pois ela é importante para o capítulo e não destoa inteiramente de minha intenção original!^_^
Eu demorei a responder seus comentários, pois eu somente os respondo, quando estou prestes a postar a fic. Como um modo de lembrar que ela existe!XD
Perdoem-me se meu método parece rude. Ele simplesmente me pareceu prático para mim e para meus leitores.^^°
Feliz véspera de natal!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/173785/chapter/5

http://www.youtube.com/watch?v=ikBD3DcSGFMTristesse(Chopin)

_______________________________________________________

05.

–Tristesse -


Antonio e Francis. Esses eram os amigos de Gilbert. O primeiro parecia demasiadamente inocente para andar com duas pessoas tão suspeitas. O segundo, apesar de parecer tão perigoso quanto Gilbert, parecia oferecer um tipo diferente de ameaça. Gilbert parecia fazer parte da família dos grandes felinos, enquanto Francis lembrava uma hiena... Apesar de minhas explicações parecerem vagas, essa era a exata forma como percebia as pessoas que haviam acabado de entrar em minha casa.

Eu me perguntava por que elas estavam nos fazendo uma visita, quando meus devaneios foram subitamente interrompidos por mãos que agarravam firmemente os meus ombros.

– O que aconteceu com o Gil?! - perguntou, em francês, o amigo espanhol de Gilbert, com um rosto que misturava desespero e medo. Havia lágrimas acumuladas em seus olhos e essas pareciam prestes desabar - Diga a verdade! Ele está doente?! Ele vai morrer?!

"De onde vieram essas conclusões absurdas?"

– Na verdade, eu não entendo do... - um pouco confuso com aquela reação dramática, tentei falar que não compreendia do que ele estava falando, mas o início de minha frase foi suficiente para que ele tornasse a perder o controle e a despejar sentenças em espanhol, que se tornavam ainda mais incompreensíveis por serem interrompidas por soluços. Os meus ombros estavam doendo! Aquela pessoa era pesada!

Eu não conseguia me desvencilhar daquele que jogava seu peso e suas lamentações sobre mim, por isso, com certa urgência, busquei com o olhar o outro amigo de Gilbert. Ele parecia apto a controlá-lo e eu gostaria que ele fizesse isso. Fui tomado por espanto e indignação, quando vi que esse estava sobre o adormecido Gilbert, cuja camisa havia sido erguida até os ombros, enquanto eu não o observava, percorrendo, com suas mãos, a parte despida de seu corpo.

– O que você está fazendo?!

– Ah!

Ao ser flagrado, ele deu um sorriso que tentava, inutilmente, transmitir certo embaraço, colocou uma de suas mãos, atrás de sua cabeça, e a outra em sua cintura, agindo como se elas sempre estivessem nesses lugares. Aparentemente, ele tinha consciência que o que havia feito era inapropriado, mas era completamente desprovido de qualquer sentimento de culpa quanto a isso. Eu já abria a boca para solicitar que ele se afastasse do meu colega de quarto, quando ele disse, entre risos um tanto forçados:

– Não fique bravo! Eu estava com saudades de meu amigo Gil e quando o vi tão vulnerável não pude resistir a fazer uma brincadeira inocente!

– Não há qualquer inocência nessa brincadeira. Por favor, pare com isso. - minha voz soou mais irritada do que eu previa, mas a única reação de Francis ao meu tom foi um bico de desgosto.

– Por que eu não posso brincar com o Gil? Que injusto! Eu não recebo uma oportunidade como essa, com tanta frequência, sabia? Não seja chato!

– O Gil está dormindo?! - exclamou, em um rompante, Antonio, finalmente largando meus ombros e avançando sobre o sofá. Embora sua primeira reação tenha sido de choque, assim que percebeu que Gilbert realmente dormia, seus olhos, novamente, encheram-se de lágrimas e ele berrou, lançando-se sobre ele, com os braços abertos - Ele realmente está doente! Talvez seja algo terminal! Uwaaa! Gil!!!

– Não chegue a conclusões tão absurdas. - para a minha surpresa, havia sido Francis que havia dito essas palavras sensatas. Ele havia se afastado, quando Antonio se lançou sobre Gilbert, em um gesto que provavelmente era de autodefesa, e, agora, estava com o corpo apoiado no braço esquerdo do sofá. Seu semblante sugeria algum desprezo pela imaturidade de seu amigo.

– Absurdas?! Como podem ser absurdas?! - ele replicou, imediatamente, com olhos ainda marejados, mas tomados de convicção - Ele está dormindo às oito da noite! O Gilbert que conhecemos está dormindo às oito da noite! Ele deixou de nos visitar e nós dois sabemos que ele nunca descumpriria uma promessa por se achar incrível demais para cometer uma falha assim! Além disso... - o amigo de Gilbert parecia reunir força e fôlego para a sua declaração final -...Além disso...O apartamento dele está completamente organizado! Ele deve ter passado essas duas semanas sem sequer conseguir se levantar! Apenas isso, explicaria toda essa ordem!

Eu estava assustado com a direção dos pensamentos de Antonio, mas ainda mais assustado com o modo como as pessoas que andavam com Gilbert consideravam seu lado desorganizado como uma porção normal de sua personalidade. Tamanha bagunça jamais deveria ser considerada aceitável.

– Pare com isso. - suspirou Francis, enquanto passava uma de suas mãos em seu cabelo, fechando seus olhos, como se estivesse esgotado com as palavras estranhas de seu amigo - A sua conclusão não tem qualquer lógica.

– O que mais poderia ser?!

Antes que eu pudesse explicar o que ocorria, Francis deu sua resposta como se ela fosse a mais óbvia possível.

– Não é evidente? Gil e Rod fizeram um acordo, em que Gil ajudaria a limpar o apartamento... - acenei positivamente com a cabeça, confirmando sua conclusão, correta até esse ponto -...e Rod passaria a fazer sexo com ele, todas as noites.

...

"Como?!"

– Isso explicaria a organização do apartamento deles e o motivo pelo qual, ele não tem nos visitado ultimamente! - ele acrescentou, enquanto dava de ombros e balançava a cabeça, com um sorriso de amargo conformismo - Por maior que seja a nossa amizade, nós não podemos vencer contra um acordo assim! Mesmo eu trairia vocês, nessas condições!

– E por que ele estaria dormindo tão cedo, quando o Gilbert que conhecemos é um ser de hábitos noturnos?! - questionou Antonio. Ele não aparentava resistência aos argumentos incoerentes de seu colega, apenas vontade de entendê-los com maior clareza.

– Eles devem ter acabado de terminar e o Gil está exausto, após a sua sessão de sexo selvagem...

– Ah, compreendo! - sorriu Antonio, unindo as palmas das mãos, parecendo satisfeito com aquela ultrajante explicação.

– Sua teoria obscena e o modo como vocês parecem acreditar nela me ofendem severamente! - declarei, sincero, com o meu rosto ardendo de vergonha e cólera. Eu não gostaria que pensassem que eu tivesse esse tipo de relacionamento vulgar com Gilbert. Sendo franco, detestava essa ideia. Eu e Gilbert éramos colegas de quarto com uma convivência mediada por acordos. Apenas isso!

– Pesado...

Em uma voz baixa e grave, Gilbert murmurou isso, enquanto cobria seus olhos com o braço, como se tentasse protegê-los da claridade.

– Ei, jovem mestre... - sua voz fraca, confusa, parecia espreguiçar-se no ar, o que sugeria que ele ainda não havia concluído o seu despertar - O que está acontecen...Hã?!

Ele finalmente realizou a presença de seus dois amigos em nosso sofá, assim como a sua nudez parcial.

– Francis?! Tonio?! - ele exclamou, atônito, levantando seu corpo, enquanto abaixava apressadamente sua camisa. Seu movimento, inicialmente, fez Antonio recuar um pouco, mas esse, rapidamente, voltou a abraçar Gilbert.

– Gil! - ele falou, carinhosamente, o apelido de Gilbert, enquanto o envolvia alegremente em seus braços. O modo como meu colega de quarto não rejeitou essa demonstração de afeto, mas a retribuiu com um breve sorriso, deixou evidente o quanto os dois eram próximos.

– O que vocês estão fazendo aqui? - ele perguntou, como se achasse engraçada a presença dos dois. Depois, acrescentou, ligeiramente perverso - Quando o Francis tirou a minha camisa e qual foi a reação do jovem mestre?

– Por que você está tão certo que fui eu que retirei sua camisa?! - indagou Francis, parecendo indignado com aquela precisa acusação. Era impressionante que ele falasse algo assim, quando eu e Antonio havíamos visto claramente o seu assédio. Ele não tinha qualquer vergonha.

– Quem mais seria? - riu Gilbert - O Tonio gosta apenas de garotos italianos e o aristocrata é orgulhoso demais para tentar um ataque direto.

"Você não deveria rir de algo assim, seu tolo."

– É verdade... - Francis teve que concordar com o argumento de Gilbert, embora não parecesse satisfeito em fazer isso. Ainda com uma expressão insatisfeita, ele falou, pousando sua mão sobre seu queixo e agitando suavemente sua cabeça - Eu mal pude me aproveitar da sua vulnerabilidade...O Rod teve um ataque de ciúmes e eu não pude fazer nada...Argh! O amor deveria ser algo livre! Vocês são tão conservadores!

– Eu não acho que seja algo conservador querer impedir a ocorrência de um crime. - repliquei duramente.

Gilbert deveria se sentir furioso com a ação inapropriada de seu amigo e repreendê-lo devidamente. Isso seria apenas natural, considerando-se que esse havia o tocado inapropriadamente e que, nitidamente, não era a primeira vez que fazia isso. Em fatos, uma parte minha esperava que ele se irritasse. Todavia, ele não ficou bravo com Francis. Limitou-se a rir, como se já estivesse acostumado com esse tipo de situação. Aquele tolo!

– O que vocês estão fazendo aqui? - perguntou Gilbert, ainda rindo - Como vocês conseguiram permissão do Rod para entrar?

Antonio finalmente desvencilhou-se do abraço, para falar, com as mãos na cintura e o mesmo olhar firme e ligeiramente aborrecido de uma mãe que vê seu filho pequeno fazer algo errado:

– Você descumpriu nosso acordo e não veio nos ver, nessas duas semanas. É claro que o chefe teria que averiguar se estava tudo bem.

"O chefe?"

– Eu estou bem, Tonio. Como se alguém incrível como eu pudesse ser atingido por algo... Kesesese! Por que você não aproveitou esse período para aprofundar as suas relações com o seu colega de quarto que visivelmente o detesta?

– Ah! O Romano não me detesta! - exclamou Antonio, irascível, levantando-se do sofá, em um movimento rápido e impetuoso - Esse comentário foi bastante cruel! Ele apenas é tímido demais para expressar seus sentimentos!

Kesesese! Ele não parece ter qualquer timidez, quando sai com as garotas da orquestra dele!

– Isso é culpa da má influência de vocês! - revidou Antonio, fazendo um rápido movimento com o braço, para indicar seus dois amigos.

– Má influência? - riu, debochadamente, Francis - Oras, meu caro, não somos nós que estamos interessados em um jovem que mal concluiu o ensino médio.

– Ele é apenas quatro anos mais novo que eu!

Minha presença foi reduzida a uma mera platéia para aquela bizarra discussão. Uma posição que não me satisfazia. Eu queria ir ao meu quarto e dormir. No dia seguinte, teria que treinar bastante o piano para compensar o tempo que perdi, durante o final de semana. Todavia...

– Como os senhores puderam verificar, Gilbert está bem. Se não for incômodo, poderiam se retirar do nosso quarto?

...eu nunca poderia permitir que eles permanecessem em meu apartamento, enquanto eu dormia. Seria algo perigoso e insensato. Principalmente, considerando o que fizeram, enquanto Gilbert dormia.

Ao ouvirem minhas palavras, os três me encararam como se eu tivesse acabado de confessar que havia envenenado Mozart. Pelo visto, nenhum deles esperava que a presença de duas pessoas tão barulhentas me incomodasse.

– Ele é tão possessivo, Gil... - murmurou Francis, parecendo assustado. Ele havia chegado a conclusões completamente erradas.

– Não é? Esse ciúme doentio dele me perturba um pouco, mas consigo entender que ele não queira compartilhar o incrível eu...

– Ah, o amor é tão encantador! - suspirou Antonio - Eu queria que o Romano também fosse possessivo assim em relação a mim!

– E ele até disse "nosso quarto"... - disse Francis, cobrindo sua boca com a mão, como se falasse algo excessivamente impróprio - Que escolha peculiar de palavras...

– Por favor, não façam brincadeiras tão incômodas!

Os três riram fartamente do meu desgosto com seus comentários, ignoraram aos meus apelos de findarem aquela reunião e prosseguiram seu encontro. Minha opinião era insignificante aos três.

___________________________________________________________________________


O meu humor estava péssimo. Era estranho como ele havia mudado tanto tão repentinamente. Quando estava tocando as doze variações de Ah, vous dirai-je maman, eu me sentia tão feliz e tranquilo que meu coração havia saltado com aquele confortável sentimento. Entretanto, sentado à mesa da sala, observando Gilbert conversar com seus amigos no sofá, meu peito pesava severamente, gerando em mim uma sensação desagradável.

Por que eu me sentia daquela forma?

Não sabia ao certo. Por alguma razão, eu não me sentia bem em ver meu colega de quarto dialogar alegremente com seus amigos. O modo como eles riam juntos, falavam sobre assuntos próprios de seu grupo e, principalmente, a forma como me tornei invisível aos olhos de Gilbert, enquanto esse conversava com Francis e Antonio, incomodavam-me profundamente.

Meus olhos baixos, meu profundo silêncio, minha melancolia. Ele não os noticiava. As pessoas ao seu redor tomavam inteiramente a sua atenção.

Eu não gostava disso.

Mesmo que não houvesse nenhum motivo racional para não gostar de algo assim.

Conforme havia dito, eu e Gilbert tínhamos um relacionamento puramente forçado. Éramos colegas de quarto e convivíamos relativamente bem, mas não havia qualquer profundidade na relação que possuíamos. Eu nunca havia me incomodado com isso. Na verdade, achava conveniente que houvesse uma distância segura entre nós. Uma pessoa tão rude e egocêntrica nunca corresponderia ao perfil que eu esperava de um amigo.

No entanto, vendo o quanto ele era próximo de seus amigos, o quanto esses se conheciam e se entendiam, vendo Gilbert sorrir sinceramente a eles, quando eu raramente conseguia extrair esse sorriso dele, eu sentia meu corpo afundar em um mar de águas mansas e gélidas.

No fim, o que eu sabia de Gilbert? Absolutamente nada. Eu apenas conhecia seus defeitos, sendo que esses eram uma porção sua tão superficial que qualquer um poderia conhecê-los, após passar alguns minutos com ele. Desconhecia seu passado, seus pensamentos e a forma como ele enxergava a nossa relação. Era natural que ele me considerasse invisível, na presença de seus dois amigos, pois a minha significância em sua vida era absolutamente mínima, comparada a deles. Embora tivesse consciência disso, o desprezo involuntário de Gilbert me machucava intimamente.

Eu queria me levantar e ir ao meu quarto. Tinha que dormir. Entretanto, não conseguia me levantar. Tinha o injustificado medo de ir ao meu quarto e perceber que nada havia mudado. Perceber que a minha ausência não fazia qualquer diferença a ele.

Esses sentimentos... Eu não queria tê-los. Não havia qualquer razão para tê-los. No fundo, eu os temia.

___________________________________________________________________________


A pizza chegou e sua chegada foi como um sinal, indicando que eles haviam ficado conosco por tempo suficiente e que deveriam sair. Era um pouco deprimente ver que meus apelos eram menos efetivos que a entrega de uma pizza. Na porta, insistiram que Gilbert os acompanhasse em uma saída para beber e disseram que não queriam vê-lo como ele estava antes. Gilbert disse apenas que iria dormir, nada além disso, e eles se deram por satisfeitos com essa resposta.

Ao se despedir de mim, Antonio pediu afetuosamente que eu cuidasse bem de Gilbert. Novamente, eu era tratado como a mãe de um adolescente. Francis... Eu preferia que ele tivesse me tratado como uma mãe do que me lançado o seu olhar sugestivo e ter me dito que eu deveria procurá-lo, assim que enjoasse de Gilbert. Não apenas a sua proposta me ofendia, como o seu mal-entendido a respeito do que havia entre mim e o meu colega de quarto.

Respondi aos dois de maneira breve e seca. O silêncio me parecia mais adequado. Eu não tinha qualquer interesse em falar.

Quando a porta finalmente foi fechada, senti o som da tranca provocar em mim tamanho alívio que me senti um pouco constrangido com isso.

Apanhei os pratos e talheres e os dispus na mesa, ainda em silêncio, sentindo os olhos vermelhos de Gilbert seguirem cada gesto meu. Que desconfortável.

– Rod, o que há com você? - ele questionou diretamente, sentando-se ao meu lado. Havia mais impaciência do que preocupação, em seu semblante, provocando uma considerável redução em meu ânimo para lhe dar uma resposta.

– Nada.

– Você ficou calado, durante todo esse tempo, e parece um tanto deprimido. É assustador vê-lo assim, aristocrata.

– Mesmo? - perguntei, com um tanto de cinismo, enquanto abria a pizza e observava o vapor quente subir.

"Se você noticiou que eu não me sentia bem, por que não me perguntou sobre o meu humor, antes?"

– Você sequer respondeu aos comentários maliciosos que o Francis fez ao seu respeito...

Não ergui meus olhos. Mantive-os fixos na pizza, repleta de legumes, a minha frente, e, compenetradamente, comecei a retirar uma fatia.

– Bem, se eu tivesse que dar uma resposta para cada comentário grosseiro que ouvisse, eu não faria outra coisa. - lancei a ele um olhar sutilmente irônico - Recorda-se que moro com você?

Ele franziu as sobrancelhas. Encarava-me com tamanha intensidade e de modo tão áspero, que senti-me empurrado por uma força invisível e encolhi meus ombros instintivamente.

– Você não comerá seu pedaço? - perguntei, tentando disfarçar o quanto estava nervoso com a pressão escarlate exercida sobre mim.

Sua resposta foi um som indefinido e seco. Com uma dose indisfarçável de rancor, ele deixou de me fazer perguntas e se concentrou em comer seu jantar.

___________________________________________________________________________


– Roderich, você cometeu um erro.

A declaração grave de meu professor de prática não me surpreendeu. De manhã, eu havia cometido vários erros, enquanto praticava Chopin, meu compositor preferido. Não era impressionante que eu cometesse erros em uma peça de Dvorak. Não estava conseguindo me concentrar. As teclas, a minha frente, momentaneamente, tornavam-se invisíveis.

– Peço desculpas. - respondi polidamente - Tentarei novamente. Devo iniciar novamente o movimento?

– Algo aconteceu?

Sua pergunta era indesejável. Deixei evidente meu completo repúdio em respondê-la.

– Eu começarei o movimento, novamente. - falei, iniciando a tocar, sem dar tempo que ele fizesse outra questão. Eu precisava me concentrar. Precisava me focar no piano. Ele sempre havia sido tudo para mim. Eu não tinha que pensar em Gilbert, em seu passado, em seus amigos ou no relacionamento que possuíamos...

Outro erro. Esse se deu, logo no início.

"Isso é frustrante..." - pensei, abaixando meu rosto e fitando o piano com sincera tristeza. Por que eu não estava conseguindo tocá-lo como queria? Eu precisava de música. Sem ela, eu não teria nada.

– O que seu colega de quarto fez, dessa vez?

A pergunta repentina de meu professor me deixou perplexo.

– Por que você acha que ele possui qualquer relação com o meu humor?

– Foi apenas um palpite, mas julgando pela sua expressão de assombro, devo inferir que acertei. - ele comentou, após sentar-se no banco ao meu lado, envolvendo meus ombros, em seu braço, amigavelmente - O que houve? Vocês tiveram uma briga?

– Não, não é isso...

– O que é, então? Conte-me, Roderich.

Meu professor de piano era um grande homem, digno de minha confiança e admiração. Tínhamos imensa afinidade e eu podia considerá-lo um valioso amigo, contudo, todas as virtudes dele não eram suficientes para me fazer confessar a causa de minha perturbação.

Eu não estou bem, pois percebi que existem pessoas que são muito mais importantes para Gilbert do que eu, o que me deprime, pois, embora seja constrangedor admitir isso, eu me sinto feliz, quando estou perto daquele idiota, embora ele me cause tantas preocupações. Não é justo exigir isso dele, quando faço questão de impor uma distância entre nós, mas eu não consigo deixar de me sentir assim!

Eu nunca poderia dizer isso ao meu professor. Sinceramente, não poderia dizer isso a ninguém.

– Ele apenas está dando trabalho. Como sempre. - foi minha resposta e esperava que ela fosse definitiva o bastante para findar aquele assunto.

Tornei a tocar. Mais erros vieram e eu sempre tinha que recomeçar o movimento. Continuei tentando. Acreditava que, em algum ponto, meus erros se cessariam, mas a frustração por cometê-los atrapalhava a minha concentração e, antes que eu pudesse realizar isso, os sons estavam desagradáveis, sufocantes e desconexos.

Meu professor fez um gesto, solicitando que eu parasse. Provavelmente, não aguentava mais tamanha tortura.

– Roderich, eu não sei o que houve entre você e seu colega de quarto, no entanto, sou forçado a pedir que vocês façam a pazes imediatamente.

– Nós não estamos brigados.

– Não? - ele ergueu uma sobrancelha.

– Não, na verdade, eu aprendi a lidar com ele. - confessei em voz baixa, sem erguer os olhos do piano, embora não ousasse tocá-lo - Não temos tantos problemas quanto antes e nosso apartamento tornou a ser organizado...

– Nesse caso, qual é o problema?

Eu não sabia. De fato, não deveria haver um problema.

Ao invés de dar uma resposta, tentei tocar piano novamente.

__________________________________________________________________________


Naquela noite, Gilbert, com uma expressão de completo espanto, encostado a porta, como se visse uma forma de vida desconhecida avançando em sua direção, foi a testemunha de meu primeiro desastre culinário, desde que eu havia aprendido a cozinhar aos meus onze anos. Seu susto era justificável, considerando que a fumaça tomava completamente a nossa sala e cozinha formando uma camada espessa e cinza.

– O que foi isso, Rod?! - ele berrou, enquanto tossia, cobrindo sua boca com seu braço - Quem tentou incendiar a nossa casa?!

– Não seja tão direto! - reclamei. Iria complementar minha resposta, mas comecei a tossir incessantemente. Asfixiado pela fumaça, tive que abrir as janelas, com urgência.

Aquilo era completamente humilhante.

Eu havia cometido uma falha terrível. Diante de Gilbert. Dentre todas as pessoas que podiam ter visto aquilo, havia sido logo ele a minha testemunha.

Gilbert também se dirigiu a janela e tomou fôlego, assim que a alcançou. Seu êxtase era visível.

– Ah! Parece que iremos sobreviver dessa vez, jovem mestre! Kesesese!

Desviei o rosto, um pouco ressentido com aquele comentário. Ele não via que eu não queria falar sobre isso?

Desprezando meu péssimo humor, Gilbert ria intensamente da fumaça que nos cercava.

– Você é um daqueles piromaníacos, não é, Rod? - ele implicou - Há hobbies mais saudáveis, jovem mestre!

– Você sabe que não é isso, seu tolo. Eu estava assando um frango, mas... - tentei me defender, embora faltasse confiança em minha resposta - cometi um pequeno lapso quanto ao tempo...

Kesesese! Pequeno lapso?! Sério?!

Ele não precisava brincar tanto sobre isso. Eu não estava gostando do seu deboche. Eu não havia errado por desleixo. Desde a noite anterior, eu simplesmente não conseguia me concentrar em nada que fazia. Quando coloquei o frango no forno, estava estressado e fui para o meu quarto, deitar-me brevemente, antes que o jantar estivesse pronto, mas acabei me esquecendo dele e apenas me levantei, quando senti o forte cheiro de fumaça. Nesse momento, Gilbert entrou, com um timing perfeito para uma cena de comédia, e mal tive tempo de disfarçar o que havia ocorrido.

"Que vergonhoso..." - pensei, cobrindo meu rosto com minhas duas mãos, lamentando profundamente a minha falha e a entrada inapropriada de Gilbert. Sim, sim. Eu havia me esquecido de desligar o forno, mas a culpa por aquele acidente também era dele! Por que ele estava fora de casa, durante a tarde? Se ele estivesse em casa, teria percebido que o frango estava queimando e teria desligado o forno, antes que tal grau de carbonização fosse atingido. Não apenas isso! Ele também era culpado, pois, graças à visita desnecessária e incômoda de seus estranhos amigos, eu estava sendo atormentado por pensamentos tão desnecessários e incômodos quanto à visita deles!

– Jovem mestre? - ele pôs a mão em meu ombro.

– O que é?! - encarei-o, raivosamente, ao que ele, prudentemente, afastou-se de mim.

– Parte da fumaça foi dispersa... - ele falou, hesitantemente -...então acho que deveríamos pegar o que um dia foi um frango e jogá-lo fora.

–...Verdade.

Por maior que fosse minha impaciência, devia concordar com a colocação de Gilbert. Seria melhor dispensarmos imediatamente aquele indigesto prato. Eu teria que arrumar a cozinha e o fogão para preparar nosso jantar. Não havia carne, mas eu poderia preparar uma sopa de legumes. Não sabia se Gilbert se contentaria com isso, embora acreditasse que a sobremesa, uma torta de maçã, seria suficiente para satisfazê-lo.

Ao abrirmos o fogão, nos deparamos com uma grande massa amorfa, tão escura quanto o vácuo. Conforme havia dito Gilbert, aquilo, um dia, fora um frango. Meu rosto enrubesceu, quando percebi que ele estava prestes a rir novamente.

– Esqueça isso! - pedi, gravemente, enquanto pegava a ave, disposto a me livrar dela, com a maior urgência possível. - Esqueça esse incidente! Imediatamente!

– Como eu poderia fazer algo assim, jovem mestre?! - ele riu, enquanto eu apanhava a sacola de lixo e me dirigia à porta - Não exija tanto de mim, aristocrata!

Fui para o corredor, com tamanha pressa, que a minha saída mais pareceu uma fuga do que o cumprimento de um dever doméstico.

___________________________________________________________________________


Ao retornar, eu estava mais calmo e Gilbert, finalmente, parara de rir, o que possibilitou que discutíssemos sobre o novo jantar. Enquanto estávamos sentados no sofá, fiz solenemente minha proposta a ele:

– Não temos carnes, mas temos legumes. Disponho-me a preparar uma sopa, desde que você tenha paciência.

– Não estou interessado. - ele respondeu, imediato, mas decidido, confirmando minhas suspeitas quanto ao seu desinteresse por pratos vegetarianos. Eu não sabia como convencê-lo a aceitar minha proposta, então, simplesmente, tentei fazer uso de minha insistência.

– Não temos carnes e não vale a pena sairmos para comprá-las. Não sei quanto a você, mas eu pretendo praticar o piano, após o jantar, então não gostaria de perder muito tempo.

Ele me encarou por breves momentos, parecendo refletir sobre a possibilidade de atender a minha proposta. Finalmente, deu de ombros e, levantando-se, do sofá, declarou com casualidade:

– Não. Não me parece uma opção interessante. Vamos esquecer o pacto, essa noite, jovem mestre.

"Esquecer o pacto... Significa que ele irá sair com Francis e Antonio?"

Com esse pensamento, a contração de meu coração pareceu mais lenta e dolorosa.

– Gilbert...!

– O que foi?

Seu olhar era de completo estranhamento. Ao ser confrontado por ele, realizei o quanto estava sendo insensato. Percebi também que minha mão estendida quase tocava seu pulso, em uma tentativa quase infantil de detê-lo.

“Ah.”

– Jovem mestre... - ele se sentou no chão, diante do sofá, para encarar-me diretamente. - ...você está subestimando as habilidades culinárias do incrível eu?

...Hã?

A estranheza dele havia sido completamente transmitida para mim.

"Do que ele está...?"

– É um erro subestimar o incrível eu, Rod! - ele declarou, balançando seu rosto, com um meio sorriso, como se tivesse pena da minha ignorância. Depois, adicionou, com extrema confiança e uma considerável dose de ânimo - Eu irei preparar um incrível jantar que fará todo o seu corpo tremer!

Era disso que ele falava, quando se referia a quebrar nosso pacto. Ele estava dizendo que iria preparar o jantar, ao invés de recebê-lo. Meu peito se acalmou com aquela realização. Por sorte, ele não havia percebido a real razão de minha tentativa de impedi-lo. _________________________________________________________________________

Diferente do que Gilbert pensava, eu era incapaz de subestimar qualquer habilidade sua. O contraste entre sua personalidade e seu piano deixou evidente que tudo nele era inesperado. Se ele me dizia que prepararia um incrível jantar, eu não podia fazer nada, exceto acreditar nele e esperar uma excelente refeição. Entretanto, naquela noite, percebi que nem sempre a arrogância dele era justificável.

Perante minha expressão atônita e enojada, Gilbert exibia um macarrão instantâneo de estranha aparência. Ele parecia queimado nas bordas, mas pouco cozido no centro. Como ele havia conseguido estragar um macarrão instantâneo? Como ele conseguira declarar com tamanha convicção que um macarrão instantâneo era um incrível jantar?

Era realmente difícil compreendê-lo.

Pus minha mão em minha testa, antes de fazer minha franca declaração.

– Recuso-me a consumir um prato tão lastimável.

Kesesese! É um erro julgar um prato por sua aparência, jovem mestre! – exclamou Gilbert, que parecia não sentir a menor mágoa com as minhas palavras - Bem, pouco importa! Se você não comer, haverá mais para mim!

Dito isso, ele pôs uma imensa garfada de macarrão em sua boca. A princípio, ele conseguiu manter seu sorriso, mas, após pouco tempo, esse começou a falhar. Depois de alguns segundos, Gilbert abaixou seu rosto, parecendo prestes a desmaiar. Ao erguê-lo, seu sorriso retornara, mas lágrimas escorriam por seu rosto.

– Há, há! - ele riu forçadamente, desviando seu olhar para o lado - O sabor está tão incrível que as lágrimas não param de cair!

– Se está tão desagradável, não coma! Isso afetará sua saúde!

No fim, decidimos que nosso jantar daquela noite seria a nossa sobremesa. Apanhei a torta que havia preparado e a coloquei na mesa para iniciarmos a nossa tardia refeição. ___________________________________________________________________________


Enquanto comíamos a torta, eu iria perguntar para Gilbert o que ele achava da Tristesse de Chopin, quando ele disparou sua dúvida, não me dando espaço para deixar de respondê-lo.

– O que você sabe sobre Ravel, Rod?

Aquele era um momento raro. Normalmente, eu fazia as perguntas e Gilbert me dava respostas, divertindo-se com o quanto eu ficava impressionado com elas. Era lamentável que eu soubesse tão pouco sobre Ravel. Eu gostaria de dar uma grandiosa explicação, todavia, não era apto para isso.

– Apenas um pouco. - respondi, sincero, enquanto usava o garfo para separar pedaços menores de minha porção da sobremesa - Sei que ele era um neoclássico e que a mistura da influência do classicismo com as ideias ecléticas e originais do compositor gerou obras de grande qualidade. Também sei que suas composições são dotadas de grande rigor formal e sofisticação. Somente posso dizer isso a seu respeito. - afirmei, sabendo que Gilbert provavelmente já tinha conhecimento de todas essas informações.

Ele escutou atentamente cada palavra minha. Era raro vê-lo tão compenetrado e eu me sentia um pouco nervoso com o modo como ele me encarava. A falta de qualquer mudança em sua expressão sugeria que, de fato, ele já sabia aqueles vagos dados sobre Ravel.

Ao perceber que eu havia concluído, ele rapidamente lançou outra pergunta:

– O que você sabe sobre a Le Tombeau de Coperin?

– É uma suíte para piano, na qual cada um dos seis movimentos é dedicado aos amigos de Ravel que foram mortos na primeira guerra.

Gilbert pareceu insatisfeito com a minha resposta. Algo próximo à irritação surgiu em seu semblante.

– Você sabe algo sobre a Forlane, jovem mestre? - havia algo de ameaçador na forma como ele havia feito essa pergunta. Parecia que ele seria capaz de me bater se eu não desse uma resposta decente.

Não o considerava uma real ameaça, então, simplesmente, respondi, pouco antes de levar um pedaço da torta a minha boca:

– Apenas sei que ela é tocada em mi menor e em alegretto.

Tsk. Isso é insuficiente...

– Bem, eu não tenho qualquer obrigação de responder suas dúvidas repentinas. – repliquei, um pouco ressentido com o modo como ele deixava explícito seu desagrado com as minhas respostas. Percebendo as delicadas mudanças em meu semblante, ele arregalou ligeiramente os olhos e riu, com certa surpresa.

– O quê? Você ficou magoado, jovem mestre?

– Não, não fiquei! – foi minha rápida e enfática resposta. Um pouco mais enérgica do que eu previa.

– Você me parecia magoado, jovem mestre... – ele persistiu. Sua voz grave, baixa, e implicante parecia tentar atacar-me sorrateiramente. – O quê? Você esperava alguns elogios do incrível eu?

– Não seria desagradável perceber alguma gratidão por... – murmurei, enquanto desviava meu rosto. Minha frase foi interrompida pelo riso, praticamente vitorioso, de Gilbert.

Kesesese! Você estava magoado!

Aquele tolo!

– E-Eu não estava...!

Percebendo que eu não cederia facilmente, Gilbert apenas deu de ombros e voltou a comer sua torta, que havia permanecido intocada, desde que ele me perguntara sobre Ravel. Embora tenha sido ele a desistir, não pude evitar uma sensação de derrota.

___________________________________________________________________________


Cumprindo sua parte no acordo, Gilbert, com visível desgosto, lavou a louça, após terminar de consumir sua parte da sobremesa. Enquanto ele lavava os pratos, sentei-me ao sofá e examinei atenciosamente a partitura da Tristesse. Meu professor havia salientado que essa seria a peça que eu tocaria no dia seguinte, durante minha aula prática, e decidi que não permitiria que ela soasse tão mal quanto o meu Dvorak. Afinal, Chopin era meu compositor preferido. Seria uma vergonha não conseguir tocá-lo.

"Além de não conseguir colocar sentimentos na música, eu não consigo mais realizar as técnicas...Eu ainda posso ser considerado um pianista?"

Havia melancolia e medo, nessa pergunta que fiz apenas para mim.

Enquanto lia e analisava as notas dispostas na partitura, acabei sendo dragado por pessimismo. Ultimamente, havia recebido muitas críticas, cometido muitas falhas. Naturalmente, a minha confiança quanto ao piano havia sido reduzida. Por que eu não conseguia tocar como queria? Eu sempre vivi em função da música. Treinava incessantemente. Abdicava a muitas coisas.

Entretanto, perdia para alguém como Gilbert que raramente praticava.

Qual era o meu erro? Eu precisaria treinar mais?

Essa ideia provocou uma dor aguda em meu peito.

" Eu não quero isso..."

Eu amava a música, mas não sabia se aguentaria me esforçar mais. O meu corpo não suportaria. Além disso, eu tinha o profundo temor que todos esses esforços se mostrassem inúteis. Temia descobrir que, na verdade, eu simplesmente não tinha aptidão para tocar o piano.

Meus pensamentos me fizeram afundar em uma silenciosa e profunda escuridão...

– Rod?

...o que fez com que eu me assustasse, quando percebi o quanto Gilbert estava próximo de mim.

– Ah! - meu corpo recuou, em um rápido reflexo.

Quando ele havia se aproximado daquela forma?! O que ele queria comigo?! Ele não deveria ter aparecido tão repentinamente! O meu coração ainda estava acelerado com o choque!

– O que há com você, Rod? - ele perguntou, encarando-me, com desconfiança e certa preocupação. Como estava sentado no chão, diante do sofá, era inevitável que seus olhos, tão diretamente, confrontassem os meus - A Tristesse é uma peça emotiva, jovem mestre, mas essa é a primeira vez que vejo alguém quase chorar com ela, apenas lendo a partitura!

– Não é nada... - respondi, cobrindo minha boca com a mão e desviando meu olhar, para disfarçar minha intensa ânsia de choro - Eu apenas possuo uma natureza sensível. Um bruto, como você, nunca a compreenderia...

– Sensível, não é?

Ele, de repente, se lançou sobre mim, imprensando-me contra o sofá. Seu sorriso sugeria antecipado deleite por uma futura ação perversa. Eu estava suficientemente familiarizado com aquele sorriso para saber que deveria temê-lo.

– Eu adoraria testar o quão sensível você é, jovem mestre... - seu sussurro foi tão baixo que eu não teria o escutado, se ele não tivesse o dito com seu rosto tão próximo, que roçava em meu pescoço.

Gilbert não estava concedendo qualquer tempo para que meu coração se acalmasse! O ritmo acelerado de suas ações impedia que eu conseguisse pensar em uma forma de reagir propriamente a elas, embora eu precisasse detê-las com urgência. Sim, urgência. Eu estava muito confuso, desconfortável e não conseguia pensar, mas sabia que devia afastá-lo imediatamente!

– P-Pare com isso, seu tolo! - solicitei, pondo as mãos em seu peito e o empurrando, em uma vã tentativa de afastá-lo - Como você pode pensar em fazer algo assim em um momento como esse?!

– Em outro momento, você permitiria, jovem mestre? - ele perguntou, em um sussurro mais suave, divertindo-se com a minha má escolha de argumentos. Era terrível perceber o quanto eu ouvia e sentia suas palavras, mesmo que ele falasse tão baixo.

– N-Não é esse o ponto! - afirmei, em um único fôlego. Usava tanta força para empurrá-lo que meus braços doíam, mas não consegui aumentar a curta distância que separava nossos corpos - P-Por favor, pare de agir com tanta vulgaridade! Eu não quero...!

– Se não quer, conte o que está acontecendo.

Gilbert mal podia disfarçar sua satisfação com a própria chantagem. Ele sorria como uma criança satisfeita com uma travessura efetuada com sucesso. Recusei-me a seguir os planos de alguém que usava métodos tão infantis para obter informações. A pausa das ações de meu colega de quarto permitiu que eu me acalmasse e reagisse propriamente ao seu comportamento inadequado.

– Não pretendo prosseguir com essa discussão desnecessária. Por favor, permita-me sair. Irei tocar o piano. - respondi, irredutível, enquanto ajeitava meus óculos.

Gilbert franziu as sobrancelhas e encarou-me, em silêncio, piscando várias vezes. Parecia confuso. Pelo visto, não esperava qualquer resistência de minha parte.

Aproveitando-me de sua perplexidade, finalmente, consegui empurrar ligeiramente seu corpo e sair do sofá. Dirigi-me imediatamente ao piano. Embora, um pouco feliz com a consideração de Gilbert por mim, eu não poderia aprovar a forma como ele havia a demonstrado. Aparentar indiferença parecia o método mais eficaz de lidar com seu comportamento. Nesse ponto, Gilbert era similar a um filhote que desiste de perturbar o dono, quando percebe que esse não reage ao seu choro.

Eu detestava a forma como o meu colega de quarto, com naturalidade, provocava situações que me embaraçavam tanto, entretanto, apreciava sua companhia, desde que houvesse certa distância entre nós. Apesar de ter me desvencilhado do seu assédio, eu esperava que ele continuasse comigo, enquanto eu tocava o piano. Gilbert não podia guardar rancor por mim, pois ele também não compartilhava sua vida pessoal comigo. Apenas Francis e Antonio a conheciam verdadeiramente.

Pensar nisso não melhorou meu humor.

– Você realmente precisa tocar o piano? - ele perguntou, subitamente, enquanto eu preparava minhas mãos. Por algum motivo, parecia um pouco desconfortável em fazer aquela questão.

– Preciso. - disse, solenemente, tocando as primeiras notas da Tristesse.

Apesar de tentar me concentrar na música, não pude evitar um relance para Gilbert, pois sentia que ele me observava. Meu colega de quarto apoiava seu rosto em sua mão, apesar dos seus olhos vermelhos se fixarem em mim e no piano, ele não aparentava nos enxergar. Eles estavam envoltos em névoa. Gilbert parecia ponderar severamente quanto a algo. Certamente não era sobre a minha lamentável execução da Tristesse. Aquela situação era estranhamente familiar.

Sem dizer uma palavra, ele se levantou do sofá e se dirigiu para seu quarto, como se seu corpo não se movimentasse por vontade própria, sendo conduzido por cordas invisíveis. Depois, retornou brevemente, para fazer um irritante comentário final.

Kesesese! Embora ainda não entenda a razão do seu mau-humor, não posso negar a sua afirmação, jovem mestre. Você, de fato, é bastante sensível, Rod... - ele disse, implicantemente, em um tom que sugeria que ele conferia um sentido inadequado ao termo "sensibilidade".

Por um agressivo impulso, bati todos os meus dedos firmemente nas teclas do piano, provocando um único e desagradável som. Gilbert, novamente, atrapalhava minha música. Dessa vez, de um modo mais direto. Lamentei que o peso da geladeira impedisse que eu a atirasse nele.

______________________________________________________________________________


Na manhã seguinte, surpreendi-me ao ver que Gilbert, ao invés de estar lendo seu estranho caderno, lia um livro com uma capa dura e esverdeada, onde se via o nome "Ravel" em letras douradas.

O que justificava aquele súbito interesse por esse compositor?

– Bom dia. - cumprimentei-o, polidamente, enquanto saía da escuridão de meu quarto para deparar-me com a branda e alva iluminação matinal.

– Olá, Rod. - ele respondeu, desinteressado, meu cumprimento, sem cessar sua leitura.

Era o final de setembro e o tempo já havia começado a esfriar. O início do outono trazia uma brisa fria que anunciava o inverno. Sentindo a baixa temperatura provocar-me arrepios, decidi que faria chocolate quente para o café-da-manhã. O vento do outono passava pelas folhas das árvores ao redor de nosso apartamento, provocando um farfalhar, cujo volume não podia ser ignorado.

– Sinto-me bem-humorado, então prepararei um chocolate quente para você também, embora não seja minha obrigação. - comentei, formalmente, enquanto apanhava uma panela sobre o armário da cozinha.

Ele fez um som que julguei afirmativo com a garganta e prosseguiu sua leitura.

Apenas isso. Ele não elogiou meus dotes como esposa, não disse que eu estava apenas tentando disfarçar meus sentimentos pela incrível pessoa que ele era, não sugeriu que eu espalhasse o chocolate por meu corpo, nem que eu acrescentasse cerveja à bebida. Eu começava a me preocupar com seu comportamento anormal, quando cheguei à conclusão que era ainda mais anormal considerar os modos cotidianos de Gilbert como algo natural.

Enquanto mexia a mistura de leite, chocolate e um pouco de leite condensado, aquecida gradativamente pelo fogo, perguntei a Gilbert, tentando transmitir casualidade, por que motivo ele estava interessado em Ravel. Surpreendentemente, ele me deu uma resposta rápida e direta, embora um pouco vaga.

– Uma apresentação. - ele falou, ainda lendo.

– Você fará uma apresentação? As bancas dos alunos do terceiro semestre mudaram de data?

As bancas eram provas que realizávamos semestralmente para provarmos a nossos professores que suas aulas tinham alguma influência em nosso desenvolvimento artístico. Quando tínhamos desempenhos lamentáveis, éramos obrigados a repetir todas as cadeiras do semestre. Felizmente, nunca passei por uma situação tão incômoda. Minhas notas não eram esplêndidas, mas eram suficientes para a minha aprovação. Conforme disse, esses exames eram realizados semestralmente, então o esperado seria que Gilbert apenas os fizesse em dezembro. Estávamos no final de setembro.

– Não é isso. O incrível eu fará uma apresentação pública, então preciso fazer uma performance que evidencie toda a minha glória.

– Uma apresentação pública?

– Sim! - ele finalmente ergueu seus olhos e pude ver que eles brilhavam com a intensidade de uma chama - A minha incrível pessoa foi convocada para fazer a abertura de um evento de música que acontecerá daqui a duas semanas! Kesesese! Eu farei uma execução de Ravel tão incrível que os participantes do evento irão chorar por passarem pela humilhação de precisarem tocar, depois da minha grandiosa performance!

Ele havia voltado a agir como o Gilbert com o qual eu estava habituado. Acidentalmente, deixei um pequeno sorriso surgir em meu rosto, enquanto eu misturava o chocolate quente com uma colher de madeira.

– Que evento será esse?

– "A reunião dos pequenos Mozarts". É um grande recital no qual se apresentam, apenas crianças de idade entre três e quatorze anos. Há um júri que cede bolsas de estudo e prêmios em dinheiro àqueles que realizam as melhores apresentações.

– Em resumo, você pretende fazer crianças chorarem de humilhação? - perguntei, com uma expressão reprovativa.

Kesesese! É óbvio que sim!

Bem, eu me espantaria se sua resposta fosse mais madura que essa. Gilbert não era menos infantil do que as crianças com quem "competiria". Essa foi a conclusão que tive, enquanto depositava a bebida quente em duas xícaras de porcelana.

– Devo inferir que você tocará a Forlane, estou certo?

– Exatamente! - ele exclamou, entusiasticamente, enquanto voltava seus olhos para o livro - Esse movimento da Le Tombeau de Coperin será tocado pela minha incrível pessoa! A alma do velho Maurice deve estar dançando de felicidade!

Não fale de Ravel como se vocês fossem amigos íntimos!

– Eu não imagino que Maurice Ravel dançaria de felicidade por um motivo como esse. - respondi, rispidamente, enquanto entregava sua xícara - Ah. Por favor, levante-se do sofá. Não quero que você derrube chocolate sobre ele.

Gilbert me ignorou e continuou sua silenciosa leitura, deitado sobre o sofá. Esporadicamente, soprava o vapor quente de sua xícara e tomava pequenos goles do líquido marrom. Meus ensaios da Tristesse, no dia anterior, não haviam apresentado a qualidade que eu desejava, então quis tomar logo o meu café-da-manhã para retornar a tocar o piano, por isso, desisti de brigar com meu colega de quarto e sentei-me à mesa da sala, para tomar meu chocolate quente. Ao primeiro gole, a bebida aqueceu-me o peito, e a sensação morna que permaneceu nele era confortável e prazerosa.

Apesar de meu desempenho terrível da Tristesse, no dia anterior, eu estava consideravelmente calmo. Não gostava de admitir isso, mas a razão para a minha tranquilidade era Gilbert. Eu me senti mais calmo ao recordar o que ele havia dito sobre o bloqueio musical de Rachmaninov. Embora minha insegurança tivesse permanecido, ela se tornara branda o suficiente para que eu a enfrentasse. Não tinha confiança, todavia, possuía grande disposição para continuar a treinar.

Aquele chocolate quente era meu discreto agradecimento a Gilbert.

– Eu gostaria que você me ajudasse com a minha Tristesse. - pedi abertamente a ele, enquanto tomava os restos do chocolate acumulados em minha xícara. Tentei transparecer certo desinteresse, embora sentisse a necessidade que ele me aconselhasse. Eu não era arrogante como Gilbert, mas certamente possuía meu orgulho.

– Você está precisando dos meus incríveis conselhos? - ele perguntou, depositando o livro no colo, enquanto sorria animadamente para mim - Entendo! Entendo! Conte comigo, jovem mestre! A minha orientação será tão incrível que você sentirá pena da ignorância dos seus professores!

Imaginei que a indolência de Gilbert o levaria a recusar minha proposta, entretanto, ele aceitou facilmente meu pedido de ajuda. Euforicamente, inclusive. Ele lembrava o principal convidado de um evento, que, finalmente, teve sua deixa para aparecer.

– Entendo. - foi minha paciente resposta - Nesse caso, devo me dirigir ao piano?

– Conforme queira, jovem mestre. - ele sorriu.

___________________________________________________________________________


Ao sentar-me, diante do piano, senti-me um pouco nervoso. Eu estava prestes a ter minha execução avaliada por Gilbert, cuja franqueza e egocentrismo superavam qualquer piedade de sua parte. Sabia que receberia críticas severas e me preparei para aceitá-las, sem me sentir ofendido. Afinal, eu admirava o piano de meu colega de quarto e achava extremamente importante receber suas opiniões sobre o meu.

Tomei fôlego e iniciei minha Tristesse, enquanto Gilbert observava-me, deitado no sofá, como se estivesse afundando em monotonia.

Dessa vez, minha concentração estava em seu auge. Eu não queria cometer pequenos erros, diante de Gilbert. Não perdi notas ou as confundi. Entretanto, pouco tempo, após o início da música, ele franziu as sobrancelhas e, interrompendo-me, fez seu primeiro comentário:

– O seu tempo está muito rápido, jovem mestre.

– Rápido? Estou tocando Chopin. Tocar rapidamente é apenas natural.

– Incorreto, Rod. Se tocar tão rapidamente, não irá conseguir aproveitar a profundidade das notas, nem transmitir o sentimento da composição.

– A Winter Wind Etude é tocada rapidamente, mas é profunda.

– Errado novamente, Rod. Ela não é profunda, e, sim, intensa. Compreende a diferença entre esses adjetivos?

A despeito do prazer sádico que ele parecia possuir, quando fazia essas correções, eu estava entendendo claramente seus conselhos. Fiz um discreto meneio com a cabeça para afirmar minha compreensão. Seu sorriso tornou-se um pouco mais largo e cruel, quando ele tornou a falar.

– A Tristesse se diferencia da maioria das etudes de Chopin, devido ao seu tempo, jovem mestre. Ele deve ser mais lento e as notas devem ser calmas.

– Eu tentarei novamente.

Conforme Gilbert sugeriu, mudei meu tempo.

Eu o tornei mais lento e grave, em uma tentativa de transmitir profundidade ao que tocava. Todavia, a música continuava a soar estranhamente. O que eu havia feito de errado?

– Por que você está tentando transformar a Tristesse em uma marcha fúnebre, Rod?! O velho Chopin já fez uma célebre marcha fúnebre! Ele não precisa de outra!

Ele não precisava ser tão direto em suas colocações!

– Você me disse que eu deveria tocá-la de uma maneira mais lenta! - repliquei, energicamente - Eu apenas o obedeci! Essa peça é chamada de Tristesse! Evidentemente, tentei transmitir tristeza ao tocá-la!

– A tristeza não é sempre algo fúnebre, jovem mestre! - Gilbert exclamou, com certa impaciência - Diga, Rod! O que o velho Chopin queria expressar com a Tristesse?

– Não seja tão rude e pare de falar de compositores clássicos como se eles fossem seus amigos de infância! - eu também fui afetado pela impaciência da pessoa que, supostamente, auxiliava-me. Após transmitir minha irritação, pude me recompor e respondi, pesadamente - O seu amor pela sua terra-natal, a Polônia.

– Muito bem, Rod. Veja se isso transmite qualquer sentimento de amor por uma terra-natal.

Gilbert, para o meu susto, saiu abruptamente do móvel, onde estava deitado, e sentou-se ao meu lado. Sem fazer qualquer comentário adicional, ele começou a tocar Tristesse, no piano, imitando meu estilo de interpretação.

A Tristesse parecia macabra. Eu havia conseguido conferir um caráter macabro a uma composição cantabile. Como eu havia cometido um erro tão grotesco?

– Você entendeu, certo, Rod? Mude o seu tempo. É necessário. A Tristesse é uma composição que, a despeito do seu nome, não expressa apenas tristeza. Essa é uma interpretação superficial da obra. A Tristesse é uma composição repleta de emoção, melancolia e nostalgia que retrata o sincero carinho do velho Chopin pela Polônia, que ele precisou abandonar, após a tomada russa de Varsóvia. Um dos aprendizes de Chopin, chorou, lembrando-se de sua terra-natal ao ouvir essa composição. Compreende esse tipo de tristeza, Rod?

– Então, eu devo pensar no meu carinho pela Áustria, enquanto a toco? – perguntei. A praticidade de minha questão fez Gilbert rir debochadamente.

– Eu posso ver o quanto você parece emocionado com as próprias recordações, jovem mestre! – implicou Gilbert – Bem, você não precisa obrigatoriamente usar esse tipo de imagem!

– Qual a imagem que você usa?

– Durante uma tarde, um senhor vai ao quarto vazio do seu filho, que acabou de sair de casa, recordando, com saudade e alguma tristeza, os momentos felizes que teve com ele. Depois, a velocidade aumenta e a música se torna mais feroz, pois o velho acha injusto ser abandonado por alguém que recebeu todos os seus cuidados. No entanto, lembrando-se do quanto o filho havia amadurecido e parecia satisfeito em construir sua própria vida, ele se conforma e se senta em uma cadeira, voltando a se consolar com as recordações.

Gilbert disse isso em um único fôlego, sem qualquer hesitação.

– Incrível, não acha? Eu permito que você use a minha impressionante imagem, desde que você nutra eterna gratidão pelo incrível eu!

– É mais impressionante que alguém, como você, possua uma porção tão sentimental. – comentei, com uma evidente expressão de estranheza, ainda atônito com aquele inesperado lado de Gilbert.

Kesesese! Não se preocupe, Rod! – ele riu, estendendo sua mão, com seu habitual sorriso de escárnio - Por mais que tente, nunca serei tão sensível – ele acrescentou um toque de perversidade na forma como disse essa palavra- quanto você!

– Pare de conferir um sentido impróprio as minhas palavras!

Embora conseguisse controlar parcialmente o comportamento de Gilbert, eu raramente conseguia vencê-lo em discussões.

________________________________________________________________________________


Antes de voltar a tocar, perguntei a Gilbert por que ele ainda não havia ido ao conservatório.

Apesar de não possuir um comportamento exemplar, meu colega de quarto era suficientemente responsável para evitar perder suas aulas e temi que fosse o meu pedido que o prendesse no apartamento. Eu não gostaria de contribuir com o aumento de sua irresponsabilidade.

Para a minha tranquilidade, ele me disse que haviam ligado, um pouco antes do meu despertar, avisando que as aulas da manhã haviam sido canceladas, devido a algum problema com o sistema de energia. Houve a promessa que o conserto se realizaria até o horário do almoço, portanto, as aulas da tarde, provavelmente, seriam mantidas.

Após ser informado sobre isso, pude continuar a me aproveitar de Gilbert para a melhoria de minha execução.

Nunca fui bom em associar imagens com músicas, embora soubesse que os grandes pianistas constantemente usavam essa técnica. Eu lia a partitura e a obedecia. Essa era a forma como tocava o piano. Por isso, minha música soava tão apática quando comparada a de pianistas como Gilbert. A diferença entre nossos níveis era ainda mais perceptível em uma etude como a Tristesse que não exigia grandes técnicas, e sim, um piano cantabile.

Eu deveria lamentar esse problema e possivelmente teria o feito, se Gilbert tivesse conferido qualquer tempo para isso. Como se tivesse sido treinado pessoalmente pelo rei Leônidas, a pessoa que me acompanhava, criticou incessantemente o meu tempo até que eu encontrasse aquele que lhe pareceu adequado.

Estranhamente, apesar de muito considerar os conselhos de Gilbert, sua insatisfação constante não me magoava, pois ele não parecia, de modo algum, duvidar de minha capacidade. Estava impaciente com a minha demora, contudo, não parecia acreditar minimamente que eu não pudesse alcançar o que ele esperava.

Após várias repreensões e tentativas, finalmente, alcancei um tempo que julguei ideal.

“Ah.”

A etude soou de forma completamente diferente.

Naquela época, eu ainda não conseguia associar uma imagem e uma composição. Sendo franco, nunca tive interesse nisso, embora soubesse que a maioria dos pianistas usava essa técnica. Sempre acreditei que uma leitura minuciosa da partitura fosse suficiente para a execução adequada de uma música. Quando comecei a tocar, não usei a imagem de Gilbert, mesmo que ela me parecesse coerente.

Todavia, ao encontrar aquele tempo, as notas da Tristesse me trouxeram aquela imagem, com a sinceridade e força de uma recordação.

Enquanto tocava, não via mais a sala, o piano ou Gilbert. Via apenas um idoso solitário, sentado em um quarto vazio, invadido pelos raios dourados da tarde.

Eu realizei por que o estudante que ouviu essa etude lembrou-se de sua terra-natal, por que Chopin disse que nunca conseguiria ouvir uma melodia tão bela quanto essa... Essa composição... ela era bonita. Triste. Comovente.

A música feita por alguém que teve que abandonar seu local de origem. O país que era seu lar.

Prossegui a tocá-la, sinceramente tocado com a beleza da música, enquanto Gilbert me observava em silêncio.

_______________________________________________________________________________


Quando terminei, fui invadido por uma forte sensação de alegria e vitória, o que era contraditório, visto que eu havia acabado de tocar uma melancólica etude. Não acho que poderia ter quaisquer outras emoções, além dessas. Eu havia, com sucesso, tocado a op.10, nº3 de Chopin. A despeito de minhas inseguranças, atingi um excelente resultado final. Claro, cometi alguns pequenos erros, enquanto tocava, entretanto, estava seguro que poderia corrigi-los. Os sentimentos perturbadores que tive, no dia anterior, haviam cessado completamente e não mais atrapalhariam minha concentração. Na verdade, nem sabia por que havia tido sentimentos assim. Por que fiquei tão chateado ao ver que Gilbert era mais próximo de seus amigos do que era em relação a mim? A minha solidão deve ter acarretado esse drama desnecessário. Minha única amiga era Elizaveta e raramente podia vê-la. Naturalmente, senti-me um pouco triste vendo que meu colega de quarto possuía dois amigos com os quais convivia diariamente, enquanto eu, atualmente, encontrava-me em profundo isolamento. Essa havia sido a origem da minha perturbação. Eu queria, sinceramente, convencer-me disso.

– Acredito que meu desempenho tenha sido satisfatório. – falei a Gilbert, mal contendo minha animação.

Em resposta, ele sorriu da mesma forma como uma criança que já sabe que Papai Noel não existe sorriria ao contar essa informação para outras crianças. Era um sorriso um tanto irritante.

– Sim, sim. Foi uma incrível Tristesse. Evidentemente, eu a tocaria de forma mais incrível, mas seria muita arrogância da sua parte, querer me alcançar, jovem mestre.

– Você é a última pessoa que poderia acusar alguém de arrogância. – repliquei, acusatório, enquanto ajeitava meus óculos – Eu tocarei novamente, então, por favor, diga-me se...

– Gilbird!

“Hã?”

Ele se levantou da cadeira, rápido e atrapalhado, dirigindo-se com alegria e urgência à janela. Ao abri-la, pude ver aquele familiar pássaro amarelo entrar em nosso apartamento e pousar sobre a mão de Gilbert.

– Eu fico feliz que ele tenha aparecido! – Gilbert exclamou, alegremente, enquanto fitava o pássaro com ternura e acariciava gentilmente o topo de sua cabeça - Eu pensei que ele tivesse fugido definitivamente, devido a fumaça de ontem!

– Esqueça esse incidente! – solicitei firmemente, com meus punhos cerrados e meu rosto tomado pelo calor de minha raiva e constrangimento.

– Ei, jovem mestre. Onde está a ração do Gilbird? – meu colega de quarto fez essa pergunta, enquanto se dirigia a cozinha, ignorando completamente meu aborrecido pedido.

Eu poderia dizer que estava ocupado demais para ajudá-lo, mas seria injusto se agisse dessa forma. Eu e Gilbert tínhamos um acordo. Além disso, ele havia dedicado parte de sua manhã a me auxiliar, ainda que estivesse ocupado com seus estudos sobre Ravel...

– Eu irei apanhá-la. Apenas pegue o copo de chocolate que você depositou no chão e o lave.

Comida e carinho”. Como esse método havia se mostrado eficiente, eu o usaria até o momento em que eu e Gilbert nos separássemos. O que não demoraria, na verdade. Eu estava em meu último semestre.

________________________________________________________________________________


Servi o alpiste e a água ao Gilbird, que estava acomodado sobre a bancada da cozinha, parecendo me tratar como seu garçom. Mesmo o pássaro de Gilbert parecia arrogante.

Enquanto cuidava dele, pude ouvir, além do barulho do vento, cada vez mais forte e gélido, o som da água corrente. Gilbert estava lavando sua xícara, conforme eu havia pedido. Observando-o, percebi com certa surpresa que ele também lavava a minha.

– Ei, Rod.

Ele parecia ter percebido o meu olhar, então o desviei novamente para o pássaro, a minha frente.

– Sim?

– Eu terei que ir ao apartamento do Francis, todas as noites, nessas duas semanas. – ele avisou, com algum desconforto, mas desprovido de qualquer dúvida. A água ainda corria, mesmo que ele estivesse secando as xícaras. Poupe os recursos naturais do planeta, seu tolo.

– Não posso aceitar essa atitude. – declarei, confiantemente, dirigindo-me a pia, para fechá-la - Caso vá ao apartamento dele, romperei nosso acordo e deixarei de preparar seu jantar.

Eu previa que Gilbert, cedo ou tarde, tentaria violar nosso acordo e estava preparado para isso. Acreditava que, desde que fosse firme com ele, conseguiria controlá-lo.

– Nesse caso, teremos que romper o acordo.

Eu não esperava isso. Não consigo imaginar como meu rosto delatou meu choque. Ele o expressou de modo tão súbito e dramático que Gilbert ficou um pouco assustado.

– Er... Jovem mestre? Eu sei que é terrível perder a minha incrível companhia, no entanto, você deve ter calma, pois...

– Eu não me importo com a sua presença, seu tolo! – em uma onda de cólera, eu o interrompi. Aquele estúpido! Cervejas eram tão importantes para ele?! Uma pessoa que prioriza uma vida boêmia a uma rotina agradável não merece qualquer consideração! Eu não me importava com ele! Gilbert poderia ficar com seus deturpados amigos por todo o tempo que desejasse! Não era essa a razão de minha raiva! – Eu apenas estou irritado, pois tornarei a acordar, no meio da noite, para abrir a porta, para alguém tão irresponsável, devido a...!

– Se esse é o problema, por que você não vai ao apartamento do Francis, para me chamar, quando quiser dormir?

– Do que você está falando?

– Quando quiser dormir, vá até lá e me chame. Ele mora no terceiro bloco. A distância é curta. Normalmente, eu apenas recomendaria que você me ligasse, mas estou certo que você não confia suficientemente em mim para acreditar que eu retornarei com uma simples ligação.

–...

– Você está impressionado, não é? Com a minha incrível ideia. Elogie-me o quanto seu fôlego aguentar, jovem mestre!

–... Eu não poderia ser rude a ponto de entrar na residência de alguém que mal conheço, apenas para lhe buscar. – meu argumento soou como uma desculpa improvisada.

– Não há problema, jovem mestre! Você virá, essa noite, fará amizade com todos e poderá visitar o Francis sempre que quiser! – Gilbert afirmou, confiantemente, como se tivesse sido eu a tomar aquela decisão e apenas estivesse consultando sua opinião. Após essa colocação, ele voltou a exibir seu habitual sorriso implicante. – Kesesese! Ainda que suas visitas se tornem frequentes, não abaixe sua guarda, Rod! O Francis está interessado em você!

– Acredito que alguém como ele, interessa-se por todos os organismos multicelulares da Terra.

– Não nego, jovem mestre! – riu Gilbert – A sua facilidade em perceber a personalidade dele, apenas indica o quanto você é sensível...

– Pare com isso!

Kesesese! Não se preocupe, Rod! – disse meu colega de quarto, dirigindo-se novamente ao sofá - A vítima preferida dele é o Tonio! O Francis apenas o atacaria, se você mostrasse sua vulnerabilidade! Como você não a mostra para o incrível eu, duvido que a exiba para ele! – terminada essa conclusão, ele reiterou seu convite – Portanto, não deixe de vir, Rod!

– Eu me recuso.

________________________________________________________________________________


Eu possuía diversos motivos para desconfiar do local em que Gilbert e seus amigos se encontravam e essa a razão da minha resistência em visitá-los. Apesar de meu colega de quarto ter declarado que iria para o apartamento de Francis, de qualquer jeito, e que essa era a melhor opção para mim, eu estava relutante. Como não estaria? Eu recordava muito bem como havia me sentido desprezado, quando Gilbert encontrou seus amigos, em nosso apartamento. Além disso, tinha severas suspeitas sobre o ambiente no qual morava o amigo de Gilbert que tentara assediá-lo, enquanto esse dormia.

Pensei muito, enquanto comia meu almoço e acabei deixando de sentir o gosto da comida, diferente de Gilbert, que a devorou ferozmente, ainda que, simultaneamente, prosseguisse sua leitura sobre Ravel.

“Eu não devo ir ao apartamento de Francis.” – pensei, quando estava prestes a sair, para assistir minhas aulas. Francamente, tive esse pensamento não apenas naquele momento, mas durante toda a manhã, desde que Gilbert lançou-me aquela proposta – “Não me parece um ambiente seguro ou apropriado.”.

– Rod!

– Sim?

– Esforce-se, durante a sua aula prática. Não deixe que meus incríveis conselhos sejam desperdiçados!

A aula prática. Eu havia esquecido completamente dela, embora tivesse me preocupado com ela, durante todo o dia anterior.

– Obrigado. – agradeci-o, timidamente, desviando meu olhar para a maçaneta, mesmo sem ter uma razão para isso.

– Ah, não se esqueça, Rod! Você pode tocar a Tristesse, com mais força! Argh! Se você continuar com essa baixa quantidade de estamina, como aguentará a nossa intensa vida sexual?!

“Eu, definitivamente, não visitarei o Francis!” – decidi, saindo do quarto e fechando a porta com violência.


___________________________________________________________________________



Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

http://www.youtube.com/watch?v=-yitYD79Xsk&list=LLTW3qK_2TvGTyYkDiR9GYXQ&index=11&feature=plpp_video - Esse vídeo contem uma música do Tchaikovsky que, em minha modesta opinião, muito combina com o clima natalino e é meu presente para meus ávidos leitores que fazem comentários tão incríveis e sempre acompanham essa fic! Sou sinceramente grata a todos e desejo felicidades a todos vocês!
Amanhã, postarei a "Watermark" e deixarei outra mensagem natalina! Boa noite e, repetindo meu pedido, feliz véspera de natal a todos!^_^
PS: Meus comentários relevantes serão guardados para o próximo capítulo.