Obaka-san! escrita por Mayumi Sato


Capítulo 4
04. Twinkle, Twinkle, Little Star.(Mozart)


Notas iniciais do capítulo

O capítulo que seria a conclusão do capítulo anterior!/o/
Na verdade, a "Twinkle, twinkle, little star" não foi composta pelo Mozart. O que foi composto por ele foi essa série de doze variações da música. A "Twinkle, twinkle, little star" é uma popular canção de ninar com o ritmo da outra canção infantil "Ah, vous dirai-je maman", mas com letras de um poema britânico. Tecnicamente, o nome desse capítulo deveria ser "Doze variações de 'Ah, vous dirai-je maman', mas, honestamente, que título "WTF?" seria esse? Além disso, o nome "Twinkle, Twinkle, Little Star" expressa melhor o sentimento que eu queria transmitir, nesse capítulo.^_^



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http://www.youtube.com/watch?v=Ti6DtpgWJ1g- 12 variations of "Ah, vous dirai-je maman"(Mozart)

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04.

– Twinkle, Twinkle, Litlle Star -

Eu havia pensado em modos de lidar com Gilbert, no entanto, não pude executá-los de imediato. No sábado a noite, fui dormir assim que o marceneiro encerrou seus serviços e, no domingo, saí bem cedo para fazer uma visita a Elisaveta. Precisei passar algumas horas, viajando em um trem,  para, finalmente, chegar ao seu dormitório.

Diferente de mim, que havia me mudado para França, a fim de estudar no conservatório francês, minha amiga de infância permaneceu na Hungria, concluíndo seus estudos de música em seu lugar de origem.

Elisaveta era uma ótima pianista. Seu piano normalmente era dotado de delicadeza e sensibilidade, mas ela também conseguia conduzi-lo com implacável fúria, quando necessário. Suas técnicas de dedilhamento, no entanto, não eram tão boas e eu constantemente criticava o quanto sua música podia soar desordenada. Se quisesse, ela poderia ter respondido que eu não tinha o direito de criticá-la, uma vez que, embora minhas técnicas fossem excepcionais, eu não conseguia transmitir emoção a minha música, o que é fundamental a um artista. Contudo, ela nunca o fez. Gostava tanto de mim a ponto de aguentar minha personalidade severa e de recebê-la com gentileza e compreensão.

Passamos o dia juntos. Fomos ao cinema, comemos crepes e, de tarde, em um  café ao ar livre, pudemos conversar sobre vários assuntos. Falamos sobre música, sobre episódios de nosso cotidiano, sobre o futuro e sobre um amigo que tinhamos em comum, cujo destino desconhecíamos. Feliciano era nosso amigo de infância que, quando criança, tocava violino, clarinete e viola, brilhantemente, enquanto nós ainda nos sacrificávamos para apenas aprendermos o piano. Não sabíamos o que ele estava fazendo, pois não tinhamos notícias dele, desde que ele havia retornado a Itália para morar com sua mãe e com um irmão mais velho que nem sabíamos que ele possuía. Por alguma razão, lembramos desse antigo amigo, quando conversávamos naquela tarde. Concluímos, entre risos, que devíamos estar nos lembrando dele, pois, por uma notória coincidência, havíamos preparado massas no nosso jantar da noite anterior, algo que Feliciano adoraria, se ainda andasse conosco.

- Se algum dia, nos depararmos com um concerto dele, não seria maravilhoso, senhor Roderich? - ela perguntou, com um ar sonhador. Não pude deixar de concordar. Certamente seria.

- Aquele tolo provavelmente comeria massas em plena apresentação. - comentei. Embora estivesse brincando, em parte, falava sério.

Ela riu de meu comentário e, em homenagem ao mais brilhante membro de nosso trio, decidimos comer uma pizza em nosso jantar.

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Terminado o meu excelente jantar com Elisaveta, tive que ir a estação de trem. Eu queria ouvir o piano dela, antes de partir, pois não o escutava há vários meses e não sabia o quanto ela havia evoluído, mas não poderia permanecer mais tempo na Hungria. Tinha que pegar logo o trem, pois teria aula no dia seguinte e queria acordar cedo para estudar.

Ao me deixar na estação, ela se despediu de mim, com um misto de melancolia e tênue expectativa em seu olhar. Ignorei os sentimentos que ela tentava transmitir e me limitei a apertar-lhe a mão, o que, apesar de supostamente ser um gesto simples, pareceu deixá-la alegre. Quando finalmente entrei no trem, percebi que, por alguma razão, não havia comentado sobre Gilbert com Elisaveta, mesmo que tivesse passado grande parte do dia, pensando nos planos para a melhoria de nosso convívio que eu iniciaria a executar na segunda-feira. 

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Segunda-feira, noite. Uma cena clássica se repetiria para Gilbert. Ele havia saído para beber com amigos. Havia esquecido sua chave novamente, então apenas berraria por mim, até que eu me levantasse. Devia estar seguro que eu abriria a porta rapidamente para evitar que ele a quebrasse, novamente, com o extintor de incêndio. Encontraria-me, mal-humorado, recriminando seu comportamento e queixando-me de todas as noites que tive meu sono interrompido por seus gritos e pancadas na madeira. Essa devia ser a cena que ele previa. O que justificava por que ele estava pasmo com o meu sereno semblante e com a mesa arrumada e cheia de sobremesas, disposta a sua frente.

-...Rod?

- Sim?

- Você está tentando envenenar o incrível eu? - ele perguntou, parecendo verdadeiramente assustado com essa possibilidade.

- Não se trata disso, seu tolo. - respondi, suavemente, enquanto sentava-me à mesa - Elas são para você. Eu tive certo trabalho para prepará-las, então não diga algo tão ofensivo.

O espanto de Gilbert era natural. Eu havia atendido a porta, rapidamente, sem que meu rosto sugerisse qualquer aborrecimento, não havia criticado o fato dele ter esquecido suas chaves e, agora, oferecia uma vasta quantidade de doces preparados por mim, em uma mesa que eu havia arrumado com esforço. Aquele cenário era inegavelmente suspeito. Todavia, eu não havia envenenado os doces ou algo do gênero. Na verdade, havia me assegurado que todos estivessem excelentes.

Ele encarava os pratos com desconfiança, como se esperasse que um deles explodisse, quando ele fizesse um movimento súbito.

- Escolha a que quiser. - falei, e comecei a comer um úmido e gélido cheesecake.

Ele se sentou a mesa. Com hesitação, comeu a primeira garfada de um mandestrudel. Um pouco mais seguro, comeu outra garfada. Depois, pôs-se a engolir vorazmente minhas sobremesas. Não havia mais qualquer sinal de suspeita ou insegurança em seu semblante, apenas sincero deleite. Eu não me incomodava que ele comesse meus doces tão avidamente. Não apenas porque era conveniente para os meus planos, como também pelo fato do seu gosto pelos pratos que eu preparava ser um pouco lisonjeiro.

Após finalmente terminar, ele respirou profundamente, demonstrando que estava saciado com a refeição. Subitamente, seu sorriso de deleite mudou para algo diferente. Algo ligeiramente carnívoro.

- Rod, você fez um bom trabalho. - ele disse, sorrindo provocativamente para mim, enquanto se inclinava em minha direção - Seus esforços serão recompensados. Se tornar a esposa da minha incrível pessoa possui várias vantagens, como o acesso ilimitado aos meus cinco metros...

- Não se trata disso! - corrigi, exaltado, a deturpada direção dos pensamentos dele.

- Não? - ele disse, parecendo cético. Continuou sua aproximação. Na verdade, a acelerou, um pouco. - Não é isso que me parece, Rod. Preparando uma mesa cheia de doces para mim, enquanto eu estava bebendo com os meus amigos...Kesesese! Você parece uma esposa submissa buscando uma maneira de chamar a atenção de seu marido distante!

"Não nego que a situações são um tanto semelhantes, mas não é esse o ponto.".

Minha distração acabou permitindo que ele se aproximasse demais. Eu podia sentir sua respiração rápida sobre meus lábios e o peso escarlarte de seus olhos sobre os meus. Desviei o rosto.

- Você gostou dos doces, não foi? - conferi, embora estivesse certo da resposta que ele daria.

- Eles estavam incríveis, Rod. - ele disse, pondo a mão em meu queixo e tentando virar meu rosto para si, encontrando resistência minha - Kesesese. Seria ainda mais incrível se você os espalhasse pelo seu corpo, em uma próxima vez, mas acho que isso seria demais para um aristocrata como você...

- S-Se você quiser, eu posso prepará-los todas as noites para você. - interrompi, tentando ignorar seu comentário obsceno e a força que ele aplicava em meu rosto -  Eu prepararei um ótimo jantar e uma sobremesa. Todos os dias. Se você disser seus pratos preferidos, eu os farei.

- As suas técnicas de sedução são um tanto antiquadas, Rod, mas admito que funcionam. - ele riu, inclinando seu rosto  para a direita e, novamente, reduzindo nossa distância, prestes a concretizar seu propósito maligno. Eu tinha que reagir...Rápido!

- Eu irei prepará-los, quando voltar do conservatório, mas, se você sair, eu os jogarei fora! - exclamei, com certo desespero, enquanto empurrava seu peito, afastando-o de mim. Fechei meus olhos, com força, enquanto sentia uma sensação febril subir do meu pescoço até o meu rosto. Em um único fôlego, expliquei minha proposta - Nas noites em que você não sair para beber, eu prepararei um ótimo jantar para você! Estou confiante de meus dotes culinários, então...!

- Jovem mestre, - o estranhamento perceptível no modo como Gilbert falou, deu-me coragem de abrir os olhos - você realmente está agindo como uma esposa negligenciada por seu marido distante...

- N-Não se trata disso, seu tolo! - reagi àquela comparação constrangedora - E-Eu apenas estou cansado de vê-lo chegando tão tarde e me acordando no meio da madrugada!

- Entendo, entendo. Você não está se declarando. Está me subornando. - ele concluiu, encarando-me, mortalmente sério. Aquele foi um estranho modo de entender o meu gesto, mas foi mais próximo da minha real intenção do que a sua dedução que eu estava agindo como uma esposa desprezada. - Admito que é impressionante que você tenha coragem o bastante para tentar subornar o incrível eu, Rod.

- Eu preciso tentar. - falei, tão sério quanto ele.

Nossos olhares colidiram. O descaso de Gilbert era antagônico a minha determinação. Esperei pacientemente por uma resposta, não desviando meu rosto nem abaixando meu olhar, em nenhum momento.

Subitamente, ele interrompeu o silêncio com uma explosiva gargalhada:

- Eu entendi! - ele falou, ainda rindo. Depois, estendeu sua mão e disse, com um meio sorriso que misturava arrogância e certa pena de mim  - Se você pretende ir tão longe para desfrutar da minha incrível companhia, eu não posso negá-la. Desde que eu fique em casa, você irá preparar um jantar e uma sobremesa, certo?

Comida e carinho. Aquele método funcionava. Eu havia pensado que comparar meu colega de quarto a um pássaro e dar o mesmo tratamento aos dois era algo um tanto rude, mas, no fim, se algo tão simples era suficiente para controlá-lo, então eu o faria. Na verdade, uma porção minha ficou verdadeiramente feliz, ao ver que aquele egocêntrico e desordeiro pianista que morava comigo possuía um lado adoravelmente infantil.

- Sim, eu também posso preparar alguma bebida para você. - propus, gentilmente- O que você gosta de beber?

- Cerveja.

- Por favor, não peça coisas impossíveis.

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Desde que eu oferecesse um bom jantar a ele, Gilbert se sentia disposto a permanecer em casa. Uma relação de mutualismo foi estabelecida entre nós e ela funcionava bem. Ele comia, com gosto, cada refeição que eu preparava, enquanto conversávamos sobre música. Meu professor e a proprietária não estavam enganados. Ele entendia muito sobre aquele assunto. Eu não sabia quando ele havia obtido os conhecimentos que demonstrava casualmente, todas as noites, mas sempre ficava admirado ao ouvi-lo falar.

- Os períodos musicais não são diferentes, apenas por uma questão de instrumentos e técnicas, jovem mestre. - ele disse, enquanto comia o macarrão com molho de espinafre que eu havia preparado- Essa é uma forma limitada de enxergar a música. A diferença também está nas imagens. Quer que o incrível eu explique para você?

- Por favor.

- Kesesese! Vamos pegar, como exemplo, o barroco e o romantismo. O barroco, como você sabe, surgiu durante o período do renascimento, quando a burguesia tentava resgatar os valores greco-romanos.  Esses povos acreditavam na grande importância da música como instrumento de comunicação a alma e os burgueses daquela época queriam retomar essa importância da música. Para fazer isso, eles abdicaram do canto gregoriano, que era o principal estilo da época, e iniciaram uma intensa revolução musical.

- Sim, houve um desenvolvimento extenso do uso da polifonia, do baixo contínuo e da harmonia tonal.

- Sim, sim. - ele disse, abanando sua mão, em um gesto de desprezo por meus conhecimentos - Você sabe qual era o objetivo dos músicos ao utilizarem todas essas técnicas, Rod?

Com uma mão pousada sobre meu queixo, pus-me a refletir sobre o tema. Por que os barrocos haviam optado por aquelas técnicas? Elas não eram simples. Na verdade, exigiam que alguns dos que tocavam instrumentos, na época, fossem virtuosíssimos. Também não lembravam o gênero anterior, não podendo ser visto como um desenvolvimento da música que já havia.  O que deveria ter...?

- Beep! - ele fez um barulho irritante, e sorriu para mim, além do deboche, havia algo nele que lembrava uma criança ao flagrar outra fazendo algo constrangedor a pedido de sua mãe - Você perdeu! Perdeu, jovem mestre! Prepare-se para a minha incrível resposta!

Quando havíamos começado a competir e do que se tratava essa competição?, essa era a pergunta que quis fazer, mas Gilbert disparou informações, antes que eu pudesse tirar minha dúvida.

- No barroco, eles queriam que a música fosse atrativa. - ele explicou, enquanto desenhava círculos no ar, com o seu garfo - O uso de todos elementos serviu apenas para isso. Simplesmente para tornar a música bela e persuasiva. O objetivo deles, baseado em um fundamento retórico, era que sua música agradasse aos seus ouvintes e os envolvesse. Por isso, as imagens que eles usavam eram, normalmente, baseadas em paisagens. Claro, também havia diversas composições de teor religioso, mas as paisagens, definitivamente, tinham uma importância que não se pode desconsiderar.

- O romantismo também tinha peças baseadas em paisagens. - repliquei.

- Ei, ei! Não interrompa minha incrível argumentação, jovem mestre! Ah! Qual a sobremesa de hoje?

- Quando você terminar de falar, eu a darei.

- Tsk. Que injusto.

- Prossiga.

- Sim, também há paisagens no romantismo, mas, assim como na literatura, a paisagem era apenas um reflexo dos sentimentos do próprio homem. Pode-se dizer que a música barroca era mais "externa" do que o romantismo. Ainda que houvesse sentimentos na música, esses eram, muitas vezes, provocados pela contemplação a natureza, enquanto na música romântica, com toda aquela melancolia, egocentrismo e sentimentalismo que Byron disseminou, através da sua escrita, a natureza é tomada pelos sentimentos do homem, que está acima de tudo. Nosso professor de análise da estrututra musical estava falando de Vivaldi, então o usarei como exemplo. "O sol abrasador atinge os camponeses, mas uma tempestade se anuncia, eclodindo no terceiro movimento numa furiosa chuva de granizo acompanhada pelo crepitar de uma rápida passagem ornamental na orquestra e no solo". Esse é o Verão de Vivaldi, segundo as palavras do próprio.

-...É bastante visual.

- Não é? - ele sorriu, vitoriosamente - Principalmente, se compararmos a alguma composição romântica. "A bela moleira" de Schubert conta a história de um aprendiz moleiro apaixonado que, movido pelo orgulho e o ciúme, afoga-se. A descrição das emoções dele é refletida pelo rio que acaba por acalentá-lo, no fim da obra. O ritmo do piano, em alguns momentos, realmente lembra o movimento das águas de um rio, mas, como você pode ver, o que realmente importa não é a imagem, mas o drama do personagem, aflito por amar uma moleira safada.

- Você poderia ter utilizado outros termos em sua conclusão. - falei, contendo um pequeno riso, enquanto ia a geladeira buscar a torta de maçã que havia preparado.

Enquanto eu estava de costas, ele acrescentou com um tom um pouco malicioso:

- O que achou, jovem mestre? Da minha incrível explicação. O seu corpo inteiro está fervendo de  admiração por mim, estou certo? Como o esperado do incrível eu! Apenas algumas palavras e mesmo um aristocrata é capturado por mim!

- Errado. - falei, sem perder a postura, enquanto depositava nossa torta na mesa. Não menti. Meu corpo não fervia de admiração por Gilbert, embora fosse verdade que ele, mesmo que apenas um pouco, havia me capturado.

"Um pouco...Apenas um pouco." - pensei, enquanto comia minha torta, sentindo uma pequena e involuntária agitação em meu peito.

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Nossas noites progrediram calmamente até a chegada da sexta-feira, quando Gilbert trouxe uma garota de trajes curtos e cabelos cheios e ondulados, envolvendo-a pelos ombros. Seu rosto não disfarçava suas frívolas intenções. Ao atender a porta e me deparar com essa visão, fiquei sem reação por um momento. Como eu deveria agir? Se não fosse rápido, ele a lançaria no sofá e...!

"Comida e carinho".  Eu precisaria usá-los novamente.

- Olá, senhor Gilbert. - cumprimentei Gilbert com um doce sorriso, completamente inesperado por ele - Quem é essa bela senhorita que o acompanha?

Gilbert ficou boquiaberto. Sua expressão de choque era similar a de uma esposa adúltera que descobre que seu marido está voltando mais cedo de sua viagem, quando está com o amante. Não gostava de usar essas comparações conjulgais entre nós, mas elas eram tão apropriadas que eu não podia deixar de utilizá-las. Enquanto ele me fitava com assombro, ela sorria para mim, um pouco vermelha, estendendo sua mão:

- O-Olá...O meu nome é Amélie e eu...

- Estou encantado em conhecê-la. - falei, tomando sua mão delicadamente, beijando-a de leve. - A senhorita estuda com o meu colega de quarto?

- T-Temos algumas aulas em comum, embora eu toque harpa e ele...

- Senhorita Amélie, você toca harpa? - mantive meu sorriso - Não estou impressionado. Uma senhorita feminina e madura como você, deve extrair facilmente a amável e delicada essência dos sons da harpa.

Como o esperado, suas faces tornaram-se ainda mais rubras e revelaram feliz surpresa. Gilbert, finalmente saíndo de seu estado catatônico, entendeu o que eu planejava e pôs-se entre mim e a harpista.

- Sim, sim! Harpas são incríveis! Não mais incríveis do que o incrível eu, mas são incríveis! - ele disse, enquanto apressadamente segurava o pulso da garota e a conduzia para dentro do apartamento - Eu e a Amy iremos ocupar o sofá, Rod, então vá para o quarto ou se junte a...!

- P-Por favor, não seja tão direto! - a garota pediu a ele, envergonhada e ofendida, desvencilhando-se de Gilbert.

Meus planos estavam prosseguindo como eu queria.

- Não se preocupe. - falei a ela - Eu não sou um homem machista a ponto de condenar uma senhorita consciente de sua sexualidade. - detestei a breve risada de Gilbert, quando concluí essa frase, mas disfarcei meu desagrado - Fiquem à vontade. - dei um sutil toque de melancolia ao meu sorriso - É uma pena que eu não tenha recebido a oportunidade de fornecer um jantar a vocês e conhecê-la melhor...

- N-Nós p-podemos j-jantar! - ela exclamou, animada - E-Eu também adoraria conhecê-lo melhor, s-senhor...!

- Roderich. - respondi por ela.  - O jantar de hoje são algumas panquecas de frango, acompanhadas por arroz à grega. Espero que satisfaçam o seu paladar.

- SIM! - ela afirmou, enquanto seus olhos castanhos brilhavam intensamente. Ela não mais enxergava Gilbert, ao seu lado.  Ele, por saber disso, encarava-me com intenções assassinas.

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- A senhorita gostaria de um pouco mais de vinho?

- S-Sim!

- Por que vinho, quando nós poderíamos estar bebendo minhas incríveis cervejas? - perguntou Gilbert, mal-humorado, com a cabeça dele deitada em seus braços sobre a mesa. Estava tão insatisfeito com o que estava acontecendo que havia comido apenas oito panquecas.

- Perdoe-me, senhorita Amélie, eu fiz uma má escolha de bebida?

- D-De modo algum! E-Ele é apenas um idiota com um gosto completamente questionável! N-Não o leve a sério!

- Se você me considera um idiota, devo supor que apenas queria transar comigo por causa dos meus cinco metros? Kesesese! Como você é pervertida, Amy!

- C-Cale a boca, seu estúpido! - ela berrou, irritada.

Não pude deixar de levar minha mão a meu rosto e balançar minha cabeça. Aquele cara era um completo idiota. Suas atitudes grosseiras reduziam em cerca de um terço, os meus esforços para completar meu plano. Como ele conseguia convencer pessoas a dormirem com ele, quando era tão arrogante, grosseiro e implicante? Eu não sabia disso e esperava nunca descobrir.

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- Eu irei lavar os pratos. - declarei ao terminarmos nosso jantar, sorrindo para a acompanhante de Gilbert - Ao terminar, irei para o meu quarto e não mais irei incomodá-los.

- Ótimo! - exclamou meu colega de quarto, levantando-se da mesa, e puxando-a pelo braço - Vamos aproveitar que esse aristocrata estará ocupado para começar...!

-...Eu não estou interessada nisso, hoje, Gilbert. Sinto muito. - foi a seca resposta que ela deu.

- O quê?!

Tive que usar todas as minhas forças para evitar uma risada. A expressão de Gilbert era tão espantada e dramática que chegava a ser cômica.

"Como se eu pudesse rir em um momento como esse..." - pensei, tentando me concentrar na louça suja em minhas mãos.

- E-Eu não estou mais interessada nisso. I-Irei voltar ao meu apartamento, desculpe-me pelo incômodo.

- Você... - ele franziu as sobrancelhas e agarrou os ombros dela firmemente. Seus olhos vermelhos refletiam um sentimento mais próximo de preocupação do que de raiva -...não está sendo enganada por esse aristocrata cínico, está?

- O-O quê?! - a harpista berrou, envergonhada.

"Eu consigo ouvi-lo perfeitamente, seu tolo.". - pensei, sentindo uma moderada dose de irritação alojar-se em mim.

- Escute.  Eu nem sei por que ele está se comportando dessa maneira estranha, mas ele não é assim. Ele é ranzinza, antiquado, moralista e tenho quase certeza que é virgem. Desista, desista. - ele disse, balançando a cabeça, com cruel escárnio destilado em seus lábios.

- Não ofenda o senhor Roderich. - ela solicitou, grave e autoritária. - Diferente de você, ele sabe como tratar uma donzela.

- Donzela? Kesesese! - ele começou a rir de maneira um tanto escandalosa. Estava me constrangendo, na verdade. O que era tão engraçado? - Uma donzela, Amélie? Depois do que nós fizemos na escada, você se diz uma donzela? O Rod parece mais com uma donzela do que você!

Tive o impulso de perguntar como ele tivera a audácia de fazer algo indecente na escada do nosso prédio, mas o detive. Se fizesse isso, a imagem que Amélie possuía a meu respeito poderia ser desfeita. Controlei-me, com esforço, e mantive um sorriso, enquanto vários pensamentos passavam velozmente por minha mente.

"O que ele fez na escada? Por que logo na escada? Esse tolo não possui qualquer dose de pudor?! Céus. Se a proprietária descobrir, o que faremos? O que custava a ele, esperar um pouco, antes de iniciar seus atos imorais?!"

- Por favor, não se sinta ofendida por ele, senhorita Amélie. Meu colega de quarto é um pouco imaturo, mas, no fundo, é uma boa pessoa. Eu compreenderei, no entanto, que a senhorita vá embora.

"Na escada? Francamente? Na escada?! Que tipo de exibicionista ele é?!"

- O-Obrigada por ser tão compreensivo, senhor Roderich...E-Eu...Eu gostei muito de conhecê-lo...

- Eu também adorei conhecê-la. Tenha uma ótima noite.

Ela acenou para mim, parecendo feliz, e saiu, sem se despedir de Gilbert. No momento em que a porta foi fechada, meu sorriso foi dissipado e tudo que estava guardado em mim, veio como uma onda de fúria:

- O que você estava fazendo, na escada, seu depra...?!

- Olá, Rod. É bom vê-lo. Sabe, eu acabei de conhecer um host assustador com a mesma aparência que a sua. - ele fez sua indireta acusação, com um sorriso preenchido por sarcasmo.

- Não seja implicante. A maior culpa por ela ter ido embora foi sua. Você não sabe tratar bem uma dama. - recriminei-o, com contida irritação, dirigindo-me para perto dele.

- Você pretende fazer isso com todas as pessoas que eu trouxer? - ele ergueu uma sobrancelha, parecia duvidar que eu compreendesse minha própria proposta - Sério? Kesesese! Você se tornará um Don Giovanni em pouco tempo, jovem mestre!

- Sim, estou consciente disso. - falei, enquanto me sentava ao seu lado - Eu me tornarei um, se isso for suficiente para impedir que você continue com os seus atos inapropriados, dentro do nosso apartamento.

- Sabe, jovem mestre, alguns dos meus convidados são homens. - ele sorriu perversamente para mim, algo em seu olhar parecia lançar-me um desafio - Você não se incomodará em bancar o host com eles?

Hesitei um pouco, antes de dar minha resposta. Sabia que ela poderia ser um pouco perigosa. Após um momento de ponderação, finalmente, falei, com uma voz baixa, e olhos que fugiam de Gilbert:

-...Sim.

Aguardei, com o coração apertado pela apreensão, a resposta dele, que foi completamente inesperada.

- Como você é possessivo, jovem mestre. - ele disse, com os olhos fechados, enquanto balançava seu rosto- Indo tão longe, apenas para me monopolizar...

- N-Não se trata disso! Pare de implicar comigo, apenas porque eu consegui conquistar a sua acompanhante!

Ele deu uma risada estranha, trêmula e visivelmente forçada.

- Como se o incrível eu se importasse com isso... Eu não posso fazer nada se o corpo dela não estava preparado para receber os meus cinco metros...

- Não haja como se a mentalidade de uma dama se limitasse a algo tão vulgar.

"Comida e carinho". Eles não precisariam ser direcionados apenas a Gilbert, para atingi-lo.

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Após três tentativas frustradas de trazer alguém para o nosso apartamento, Gilbert, finalmente, desistiu e passou a permanecer em casa, durante a noite. O que foi um alívio, pois tentar conquistar seus pretendentes era bastante constrangedor, embora eu tentasse disfarçar o quanto me sentia envergonhado ao dizer linhas ligeiramente românticas para aquelas anônimas visitas. Gilbert ria intensamente, quando eu fazia isso.

De terça a sexta, passei a voltar cedo para casa, sempre me deparando com a visão de Gilbert, deitado no sofá, lendo seu velho caderno e rindo muito do conteúdo que havia nele. Eu ignorava o quanto aquela cena me parecia bizarra, tomava um banho e preparava nosso jantar. Depois de comermos juntos, eu ia tocar o piano. Se dependesse de minha vontade, Gilbert permaneceria no sofá para me ouvir tocando e sugerir pontos em que eu pudesse melhorar, mas a completa falta de interesse dele impedia que isso acontecesse. Sempre que terminávamos de comer, ele se dirigia ao seu quarto, não saíndo de lá, até a manhã seguinte.

Grande parte dos problemas que tinha em minha convivência com Gilbert havia sido resolvida. Entretanto, não conseguia me dar por satisfeito com minhas conquistas, quando via meu próprio apartamento coberto por lixo, todos os dias.  Eu precisaria agir, novamente, embora não soubesse o que fazer, dessa vez. Oferecer mais comida a Gilbert? Não, usar a mesma técnica não era algo seguro. Ele poderia recusar. Ademais, propondo isso, naquele momento, eu não teria um suborno fácil para uma situação de emergência futura. Eu não sabia exatamente o que seria uma situação de emergência, mas, tratando-se da estranha pessoa que vivia comigo, sempre era necessário cautela. Com exceção a comida, o que mais eu poderia oferecer a ele? Do que Gilbert gostava? Aparentemente, apenas de cerveja, sexo e música. Os dois primeiros não seriam oferecidos por mim, por razões óbvias. Restava apenas o terceiro item. Eu ofereceria com gosto qualquer presente relacionado a música, mas não estava confiante que ele gostaria de recebê-lo. Afinal, Gilbert raramente tocava piano na minha frente, e nunca havia, apropriadamente, escutado o meu. Havia a possibilidade que, como meu antigo colega de quarto, ele quisesse separar a música de nossa vida privada.

O que eu poderia oferecer a ele? Do que mais ele gostava?

Tive a minha resposta, no sábado de manhã, ao ouvir um som agudo e repetitivo vindo da janela.

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Gilbert chegou em casa, durante a tarde, precisamente, no horário do almoço. Ele havia saído, logo após o café-da-manhã, para conversar com seu professor de prática.  Durante sua ausência, havia saído para comprar o que julguei necessário para a conclusão de meus planos. Sua chegada foi como o disparo que inicia uma corrida.

- Olá. - cumprimentei-o, enquanto arrumava a mesa, tentando disfarçar meu nervosismo - Você terminou sua conversa com o seu professor?

- Sim... - ele respondeu, com uma voz hesitante, enquanto fitava-me com nítida desconfiança, depois,  deu de ombros, como se desistisse de me compreender, e disse, com certo desgosto com as próprias lembranças daquela manhã - O velho pretendia me prender lá, durante a tarde também, mas a minha incrível pessoa conseguiu escapar.

Eu estava ansioso. Havia, em mim, o mesmo tipo de ansiedade de um avô, esperando a reação de seu neto ao dar um presente artesanal a ele. Quis disfarçá-la, para não parecer agitado.

"Não fale disso, agora." - pensei, tentando manter meu olhar fixo na toalha sobre a mesa, mas, esporadicadicamente, desviando-o acidentalmente para meu colega de quarto - "Espere o almoço terminar."

- Jovem mestre, você está bem? - perguntou Gilbert, franzindo suas sobrancelhas, com suspeita, enquanto bebia uma lata de refrigerante que havia na geladeira - O que há com esse sorriso psicótico?

- Não faça comentários ofensivos. - pedi, repreensivo, enquanto usava minha mão direita para ajeitar meus óculos. Meu sorriso foi rapidamente desfeito. - Eu apenas estava tentando ser cordial, visto que...

- Cordial? Kesesese! Eu duvido bastante, jovem mestre! Aposto que essa é apenas mais uma parte dos seus planos para me controlar!

Fui surpreendido por seu comentário. Não imaginava que ele já havia realizado o que eu fazia. Meu gesto de passar as mãos pela toalha de mesa para desamassá-la foi imediatamente interrompido.

-...Você sabia? - perguntei, voltando-me a meu colega de quarto.

- É um tanto óbvio, quando você deixa um espaço de tempo tão curto entre a realização dos seus planos, jovem mestre. - ele ostentou sua constatação, orgulhosamente - Diga, qual é a próxima parte? O que você quer? - ele fez a última pergunta, com um toque de malignidade, contida, como uma faísca, dentro do escarlate de seus olhos. Apesar de percebê-la, tentei ignorá-la.

- Eu quero que você arrume o apartamento comigo. - respondi, sinceramente- Também quero que me ajude a mantê-lo em ordem.

- Sem chances. - ele respondeu, rapidamente, parecendo ofendido com a mera menção à organização. - Seria muito chato organizar esse quarto. Eu tenho planos mais incríveis para essa tarde, jovem mestre. - ele deu as costas para mim, e começou a retirar sua camisa. Por que ele estava fazendo isso tão subitamente?! Não, não deveria ser essa a minha preocupação!

- O-O Gilbird...! - eu exclamei, confusamente, em minha urgência de detê-lo.  Meus olhos estavam fechados, meu rosto queimava em uma febre incômoda e repentina, e os meus punhos estavam firmemente fechados, como se esmagassem o ar que havia em minhas mãos.

- O que você fez com ele? - perguntou, em uma voz séria e tensa, Gilbert, praticamente petrificado, largando a camisa, de repente, e a deixando cair por seu corpo. Pela primeira vez, parecia me ouvir. Não apenas isso. Ele parecia ter medo de mim.

- S-Se você não colaborar com a faxina, eu...!

- Você o sequestrou?! - ele exclamou, horrorizado. Qualquer um que tivesse entrado na sala, naquele momento, concluiria, por sua expressão, que eu havia acabado de confessar que havia matado seus pais. Ele não havia me entendido.

- É lógico que não, seu tolo! - respondi, aborrecido com o modo como sua reação dramática sugeria que ele acreditava que eu fosse capaz de fazer algo assim. - Eu apenas comprei presentes para ele! - falei, caminhando até o piano e apanhando a sacola que havia deixado sobre ele. Tirei dela, seus itens, e os mostrei a ele - Um bebedouro, ração para aves e material para fazer um ninho! Eu percebi que você está o alimentando com a minha granola e que nunca dá água ou um lugar confortável para ele, quando ele aparece, e achei que isso o faria...!

- Qual é seu acordo, então? - ele perguntou, sério novamente - Você quer que eu o ajude com a organização do apartamento e, em troca, você me ajudará a cuidar do Gilbird?

Sim, era exatamente isso.

- Você me entendeu perfeitamente. - comentei, um pouco mais calmo, enquanto subia meus óculos novamente. - Você fará isso?

Houve um momento de silêncio. Aos poucos, os seus lábios fechados formaram um sorriso repleto de ardil.

- Você pretende usar um pássaro para me subornar, Rod? - algo em seu tom, indicava que ele se divertia com a minha inocência. Não era a primeira vez que isso acontecia e não me abalei.

- Precisamente. - foi minha resposta e a dei com bastante confiança.

Ele deu uma grande gargalhada. Sua risada, alta, agressiva, rouca, tomou todo o quarto. Ele ria, ria e ria, sem parar. Ria a ponto de chorar. Quando ele pararia? Aquilo estava começando a me irritar. Eu não achava que minha resposta havia sido cômica.

- Jovem mestre, você conseguiu! - ele, finalmente, falou, enquanto enxugava algumas lágrimas que haviam escapado de seus olhos, quando estava rindo - Eu farei o que você quer, aristocrata! - ele começou a rir novamente, mas tentou se conter - Sinceramente, corrigindo todos os meus maus hábitos, com métodos tão simples e ingênuos... Agindo como uma mãe chata com alguém que é apenas dois anos mais novo do que você...!

Engoli em seco e aguardei sua ofensa final. Ela era apenas esperada, visto que eu havia o forçado a fazer algo desagradável, e eu estava preparado para recebê-la. Meu relacionamento com Gilbert, afinal, apenas havia melhorado, devido a acordos. Não era como se tivéssemos nos tornado amigos ou algo do gênero.

Estava aguardando uma injúria. Todavia, a resposta que recebi fez o meu coração transbordar em um sentimento morno, agitado e feliz.

- Você é incrível! - ele sorriu, sinceramente. Um sorriso que radiava intensamente.

-...

"Ah, não." - pus a mão em meu peito e virei meu rosto, para que ele não o visse.

...Eu estava acostumado aos sorrisos animados de Gilbert. Eles eram frequentes e irritantes. Sua animação normalmente era acompanhada de situações problemáticas para mim. Eu havia visto aquele sorriso diversas vezes, mas, por alguma razão, aquele, em especial, provocou uma reação inesperada em mim. Ele não havia feito algo constrangedor, mas, ainda assim, o meu rosto...O meu peito...

- Rod, você está be...?

Senti sua aproximação e repeli sua mão, quando ela tentou tocar em meu ombro. Eu não poderia permitir que ele me tocasse, naquele momento.

- Vamos começar a organização? - propus, ainda sem encará-lo. Percebi que minha voz soou fraca e trêmula. Ele também devia ter percebido, mas, além de um "Sim, sim" repleto de forçado conformismo, Gilbert não fez qualquer outro comentário, enquanto prosseguíamos com a limpeza.

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A faxina em nosso apartamento nos tomou o restante de nosso sábado e todo o nosso domingo. Até aquele dia, eu nunca havia percebido que uma limpeza poderia ser uma exaustiva atividade física. Varremos, passamos o pano, levamos sacos e sacos de lixo para a reciclagem, limpamos as janelas e lavamos uma quantidade de louças e roupas sujas que lembrava a quantidade de estrelas no céu. Quando terminamos, meu corpo doía tanto que parecia ter sido atingido por pedras. O peso de meus ombros e de minhas pernas parecia ter aumentado em cerca de oito vezes. Meu corpo estava febril e sensível, de modo que qualquer contato desajeitado com algum móvel, era suficiente para provocar, em mim, pontadas agudas de dor.

Deitei meu corpo, no sofá, sem conseguir evitar que um doloroso gemido escapasse, por mim, quando senti meu peso sendo depositado sobre o móvel.

- Jovem mestre,  - murmurou Gilbert, com certa raiva, com sua cabeça deitada sobre a bancada de nossa cozinha - por favor, não faça esses sons eróticos, quando eu não consigo me levantar...Mesmo alguém incrível como eu, possui limites quanto as capacidades de seu corpo...

Estava tão abatido que nem tive força para replicá-lo. Limitei-me a fazer um som aborrecido e a fechar meus olhos, cujas pálpebras pesavam terrivelmente.

- Eu...Eu irei tomar meu banho e sair... - a voz dele me soou distante. - Eu voltarei cedo, Rod...portanto, prepare o jantar.

- Hum... - deixei escapar outro gemido doloroso, enquanto tentava abrir meus olhos e me levantar do sofá - Como...você ainda tem...forças para sair? Você...gosta tanto de beber?

- Não é isso... - ele respondeu, com um suspiro - Eu preciso sair, pois...o meu professor...Eu não posso ficar...

- Eu não...entendi...

- Esqueça. - ele findou o assunto, levantando-se para ir tomar seu banho. Fiz um gesto, com a mão, pedindo que parasse. - O que foi, jovem mestre?...Eu não conseguirei ficar parado, em pé, por muito tempo...

- Eu...Eu irei tomar banho, primeiro. - informei a ele - Acho...Acho que me sentirei melhor, quando tomá-lo, e poderei fazer nosso jantar, antes que você saia.

- Kesesese...Que gentil da sua parte, jovem mestre...Entretanto, algo assim seria o mínimo que você poderia fazer por mim...depois de todo o trabalho que deu ao incrível eu...

- Foi você... - falei, irritado, enquanto usava o braço do sofá, como apoio, para me levantar - ...que fez a bagunça...em primeiro lugar...seu tolo.

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O meu banho foi satisfatório e relaxante. A água quente escorria por meu corpo, carregando meu cansaço. Foi um dos banhos mais longos que tomei, mas, sem dúvidas, um dos mais prazerosos. O doce perfume floral do sabonete e o forte perfume do xampu eram quase inebriantes e, perdido neles, permiti que meu corpo fosse aliviado das tensões que passei, durante aqueles dois dias. Ao findá-lo, eu me sentia enérgico novamente. Não tanto quanto Gilbert era, cotidianamente, mas o bastante para planejar tocar o piano, após fazer o jantar.

Quando saí do banheiro, já vestido e acompanhado por uma grande quantidade de vapor, percebi que Gilbert olhava para mim, deitado no sofá, e abracei-me ao meu próprio corpo, em um gesto involuntário de pudor.

- O que foi? - perguntei, com suspeita e antecipada reprovação.

- Eu pedi pizza, Rod.

...Hã?

- Por que você fez isso? - ainda não estava confiante o bastante, para deter meu gesto automático de proteção.

- Você parecia cansado demais...para preparar o jantar... - ele respondeu, passando a mão em sua testa. Parecia esgotado. A inesperada consideração que ele teve por mim, deixou-me um tanto feliz.

- Eu iria prepará-lo. Estou me sentindo melhor. - limitei-me a comentar isso, sem conseguir transmitir apropriadamente meus sentimentos de gratidão. - Acho...Acho que irei tocar o piano, enquanto espero. Você poderia ouvi-lo?

- Não é uma questão de "querer"... - ele deu uma breve risada, que continha escárnio - Eu serei forçado a ouvi-lo, afinal...eu não consigo me levantar, jovem mestre.

- Seu comentário foi desnecessário. - repreendi-o, sentando-me ao piano. Ele precisava deixar tão explícito o seu desinteresse pela minha música? Ela não era tão boa, quanto a sua, mas eu fazia meu melhor!

Pensava nisso, quando vi que não havia qualquer razão para que Gilbert se interessasse por meu piano, quando eu nunca havia o mostrado a ele, por vontade própria.

"Ele irá me ouvir. É isso que importa." - tentei me convencer, enquanto preparava minhas mãos.

Quando estava prestes a iniciar o meu ensaio da Op.10 Nº 3 da Etude de Chopin, tomei fôlego e algo fez com que todos os meus pensamentos desaparecessem momentaneamente.

O aroma da lavanda.

Aquele aroma tão familiar, mas que havia desaparecido da sala, por tanto tempo... Aquele aroma que me fazia lembrar do primeiro dia em que conheci Gilbert e que pude ouvir sua apresentação da "Winter Wind Etude". Aquele aroma que me fazia olhar para meu apartamento e constatar, com uma inevitável sensação de vitória, que eu havia conseguido recuperá-lo. Constatar que, mesmo que a pessoa que me observava, no sofá, tivesse uma personalidade difícil, eu poderia contar com ela.

Quando comecei a tocar o piano, não foi a emotiva Tristesse que saiu do piano, mas uma contente e delicada Twinkle, Twinkle, Little Star. Não havia nenhum motivo racional para a minha escolha em tocar aquela peça. Simplesmente tive vontade tocá-la. Naquele instante, ela parecia combinar mais com o ambiente do que Chopin.

Aquelas notas eram alegres e no quanto elas pareciam salpicar e brilhar, enquanto eu as tocava. Eram notas que brincavam, dançavam no ar.

Aquela encantadora áurea de felicidade envolvia-me como se a música e a alegria formassem uma nuvem, na qual eu flutuava, levemente.Era divertido tocá-la! Não pude evitar que a alegria e um sorriso escapassem de mim junto as notas que cintilavam.

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Ao terminar de tocar, fiquei surpreso com o que fiz. Aquela era a segunda vez que eu havia me fundido daquela forma com a música do piano. Novamente, não havia sido algo planejado. Simplesmente, fui movido pela vontade de tocar algo que não contrastasse com o meu bom humor. Aquele havia sido o resultado e eu estava impressionado com ele. Encarei o teclado, atônito, com o meu coração ainda saltando pelo que havia acabado de ocorrer. Como eu havia feito isso? Por que, de repente, as minhas notas adquiriram tanta vida?

"Eu não consigo entender o que está havendo comigo, ultimamente..." - meus pensamentos foram interrompidos pelo som da respiração de Gilbert.

Ele estava dormindo. Profundamente. Cada expiração sua era como um suspiro.

Bem, aquela era certamente uma cena rara.  Gilbert geralmente exibia arrogância, escárnio e luxúria. Seu rosto era sempre tomado por um sorriso que revelava sua irritante personalidade. Eu nunca havia o visto, com uma expressão tão inocente.

Um pouco surpreso, aproximei-me dele, sentando-me no chão, ao lado do sofá. Ele estava dormindo mesmo? Não estaria apenas fingindo para me atacar, quando eu me distraísse?

"Não, não. Não deve ser isso. Mesmo ele, não teria um plano tão estúpido." - concluí, abanando minha mão, como se tentasse dissipar, com meu gesto, as minhas suspeitas - "Ele estava cansado. É natural que ele tenha adormecido.".

Era natural. Normalmente, eu me sentiria profundamente ofendido, caso alguém adormecesse, enquanto eu tocava o piano, mas, naquela específica situação, eu não poderia ficar bravo com isso. Afinal, a Twinkle, Twinkle, Little Star eram as doze variações de Mozart para uma cantiga de ninar popular chamada Ah, vous dirai-je maman. Eu não conseguia me chatear com o fato de Gilbert ter adormecido, enquanto eu tocava uma canção de ninar. Na verdade, achava aquilo um pouco engraçado.

"Ele parece tanto com uma criança..." - pensei, vendo seu rosto tranquilo, enquanto dormia.

Sem aquele olhar de deboche, sem aquele sorriso orgulhoso e repleto de malícia...Gilbert parecia um tanto...Ele, certamente, era um tolo, mas ele parecia um tanto...Bem...

"Adorável" - tive que admitir, enquanto cutucava suavemente sua bochecha direita, torcendo que ele não acordasse com o meu gesto.

Achar seu colega de quarto adorável não era algo normal. Principalmente, se o colega fosse alguém como Gilbert, que dificilmente poderia ser associado a um adjetivo como esse. Todavia, era assim que eu pensava. Não fazia ideia do motivo pelo qual achava isso, mas achava. Conforme disse, eu não conseguia entender o que havia comigo, ultimamente...

O som de batidas na porta me assustou de tal forma que afastei-me de Gilbert, como se repelido por um choque elétrico. Com o meu coração tão acelerado quanto a minha respiração, encostei-me ao piano e tentei me acalmar um pouco.

"Por que eu estou reagindo como se fosse flagrado em uma atividade criminosa?" - recriminei-me, não vendo qualquer lógica em qualquer uma das minhas ações desde o momento em que havia me sentado ao piano.

As batidas na madeira se repetiram. Mais fortes e agressivas. Quem seria? A proprietária não seria tão mal-educada para fazer tanto barulho, quando já era noite. Que outra visita possivelmente teríamos? Algum dos parceiros de Gilbert?

Dirigi-me a porta e a abri, um pouco hesitante.

Fui atacado por alguém que jogou-se sobre mim, falando incessáveis e chorosas sentenças em espanhol.

Consegui entender apenas a palavra "Gilbert", dentre tudo que ele me dizia. Ele não parava de falar, sempre em espanhol, e de me lançar um olhar lacrimejante cuja tristeza era similar ao de uma criança que se perdeu de seus pais, em uma feira. Se ao menos entendesse, o que ele dizia, eu poderia pensar em uma forma de lidar com ele. Entretanto, sempre que tentava falar algo em francês, eu era interrompido por uma série ininterrupta de lamentosas sentenças incompreensíveis.

O silêncio e a calma apenas retornaram, quando um homem de cabelos loiros e compridos, entrou no quarto e segurou, o que me abraçava forçadamente, pela gola.

- Se você não falar em francês, ele não o compreenderá,Tonio. - recriminou, pacientemente, o novo intruso, em uma perfeita pronúncia do francês. Vendo que seu amigo havia se acalmado, ele voltou sua atenção a mim. Não de uma forma muito agradável. Ele fitou todo o meu corpo, de baixo para cima, e disse, sorrindo lascivamente - Olá. Suponho que você seja o novo colega do Gil, estou certo? Perdoe-me por nossa rude entrada em seu lar. Meu nome é Francis e esse é Antonio. Somos amigos do Gilbert e gostaríamos de falar com ele. Depois, poderíamos conversar muito com você, é claro.

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Notas finais do capítulo

Esse capítulo deveria ser uma breve conclusão do anterior, então, por favor, não estranhem se ele pareceu um pouco "apressado".^^º
Esse foi um capítulo BEM difícil de se escrever, mas o próximo será TÃO divertido! Kyan! Continuem acompanhando! As respostas serão dadas no próximo capítulo - eu estou começando a parecer uma autora de novela(T.T) - e eu revelarei algo...bem...interessante a vocês!^_^
Vocês deveriam ouvir o "Verão" de Vivaldi. Realmente dá para associar a música ao tipo de cenário que ele propunha. Além disso, ouvir Vivaldi sempre é agradável! O barroco é tão belo!^^
PS: Eu tive um sonho "WTF?" em que o América dava um tomate(LOL) para o Inglaterra e eu via isso como um momento "USUK". O que diabos há com o meu cérebro?XDDD
Os comentários de vocês sempre me animam! Eu adoro o fato que vocês comentam suas cenas preferidas! Por favor, continuem a fazer isso!:3
Obrigada pelo apoio! Continuem lendo!^_^