Obaka-san! escrita por Mayumi Sato


Capítulo 11
09. Le Cygne(Saint-Saens) - P.02


Notas iniciais do capítulo

Muito, muito obrigada pelos comentários! Por favor, lembrem-se de ler as notas finais! Elas, como sempre, possuem informações importantes!:3
Perdoem-me pela minha demora! Eu fiz o meu melhor! Considerem que essa fic é tão longa, tão revisada e que esse é um dos capítulos nos quais a linha entre os sentimentos do Rod esteve mais tênue e, consequentemente, mais complexa! Tenham piedade da minha alma!>.



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Eu observava a água quente, com ervas, tornar-se castanha com olhos pesados e opacos, que afundavam-se dentro das xícaras, durante minha espera para que o chá – que preparava para nossas visitas – estivesse pronto. Não conseguia conter meus suspiros. Cansados, doridos e melancólicos.

O meu humor havia se modificado inteiramente, em comparação ao que era há alguns minutos.

A causa disso estava, principalmente, nas lentas notas que ressoavam com suavidade e sentimento, em nossa sala. Elas eram profundas e singelas e preenchiam o espaço com nostalgia e bucolismo, como folhas secas delicadamente invadindo uma paisagem verde. Um belo e deleitável Junho de Tchaikovsky era executado. Eu não podia negar que aquela era uma execução aprazível e que ela continha uma fascinante força que não se expressava de um modo intenso, mas gentil. Entretanto, cada parte dela, enchia-me de frustração e angústia.

Afinal, quem executava aquela peça era o senhor Arthur, a pedido de meu colega de quarto.

Sim. Ele pedira isso. E pedira muito efusivamente, devo dizer.

Há alguns minutos atrás, quando eu me dirigia à cozinha para preparar nosso jantar, tentei carregar comigo, o irmão e os amigos de Gilbert, para possibilitar que esse dormisse. Eu acreditava que o repouso lhe faria bem e julgava que era impossível que esse pudesse realmente descansar com companhias tão agitadas ao seu lado. Entretanto, Gilbert, insensível a diversos sentimentos que eu havia tido naquela manhã e tarde, não apenas recusou minha ponderada proposta, como disse que não poderia dormir, pois estava cansado, mas não tinha sono.

Entretanto, poderia fazê-lo, caso Arthur tocasse algo para ele, no piano.

Dito isso, ele dirigiu ao amigo, em questão, um sorriso tão repleto de expectativas e ternura que uma recusa a esse apelo tornou-se impossível. Com o rosto tingido de uma suave nuance de escarlate, por saber que esse pedido era uma forma discreta de elogio, Arthur concordou, tentando disfarçar sua alegria com uma expressão aborrecida, murmurando sentenças como “Não é como se eu estivesse fazendo isso por você... Eu apenas estou entediado!” e “Francamente. Você pode ser tão mimado...”.

Como consequência desse acordo entre os dois, todos - incluindo Gilbert – dirigiram-se a sala, esperando que Arthur começasse a tocar. Meu colega de quarto deitou-se no sofá. Arthur Kirkland, evidentemente, sentou-se ao piano. Os nossos demais colegas sentaram-se em cadeiras próximas ao instrumento.

Em meu caso, decidi permanecer o mais longe possível daquele espaço, ocupando-me compenetradamente em outra atividade, por isso, encaminhei-me a cozinha, onde comecei a preparar chás e biscoitos. Não queria deixar que minha concentração se desviasse para as notas que seriam tocadas para evitar que o desapontamento fizesse meu coração tornar a doer. Seria, para mim, impossível estar indiferente àquela cena.

Eu não podia evitar a minha mágoa com a escolha de Gilbert.

Não havia sido apenas por que ele havia escolhido que Arthur, especificamente Arthur, tocasse para ele, mesmo que eu também pudesse fazer o mesmo e sentisse-me inteiramente disposto a ajudá-lo. Esse fato, isoladamente, provocaria-me apenas um vago desprazer, mas certamente não iria atingir-me como no presente.

Ele apenas era significante, pois era parte de uma nuvem cinza, fria e espessa que já acumulava-se em meu ânimo, desde aquela manhã.

Apesar de esforçar-me para contê-los, eu não ignorava meus sentimentos. Eu sabia que, naquela data, não estava conseguindo receber com naturalidade as interações entre meu colega de quarto e Arthur. Elas me incomodavam de tal modo que não podia definir se elas irritavam-me, magoavam-me ou exauriam-me. Era uma sensação terrível e eu não gostaria de tê-la. Ainda que eu conhecesse meus motivos para senti-la, não havia qualquer lógica em tê-la.

Por que eu deveria ficar magoado, porque Gilbert confiava tanto em Arthur e dependia tanto dele, diferente do que ocorria em meu caso? Por que eu deveria afetar-me com a intimidade entre ambos que fazia meu relacionamento com meu colega de quarto parecer tão insignificante? Por que deveria ressentir-me porque Arthur, casualmente, conseguia ocupar lugares que eu tinha tanta dificuldade em reivindicar?

Era estúpido que eu comparasse nossos relacionamentos. Evidentemente, Gilbert tinha mais razões para confiar, depender e de gostar de Arthur do que tinha em relação a mim. Eu e Gilbert brigávamos tanto! Éramos tão diferentes! E, por medo ou por hesitação, eu sempre era tão defensivo! Como uma amizade verdadeira poderia construir-se desse modo?

Era recriminável que eu exigisse dele que conferisse a mim e a Arthur, o mesmo significado em sua estima, quando sequer tive coragem de subir ao palco para ajudá-lo, em um momento em que ele dependia verdadeiramente de mim. Por que ele dependeria de mim em outras ocasiões, quando, em uma tão importante, eu me mostrei completamente inútil?

Eu tinha todos esses pontos racionais, em mente, enquanto fitava as xícaras e, com uma respiração lenta e profunda, lutava para ignorar o eco que as notas de Junho tinham em mim. Todavia, ultimamente, minha razão era insuficiente para apaziguar meu coração e, naquela tarde, esse também foi o caso.

Eu podia ocupar-me, manter um semblante indiferente e agir com perfeita formalidade, como se fosse impassível a qualquer ação de meu colega de quarto. Entretanto, o meu coração doía. Ele doía muito.

Os meus olhos não apenas fitavam o líquido intensamente escuro, dentro das xícaras de porcelana. Mergulhavam nele, como se não ansiassem retornar.

– Você não deve ficar tão enciumado quanto ao relacionamento daqueles dois, meu caro, Roderich.

Esse sussurro, muito repentino e próximo, para o meu conforto, assustou-me a princípio e encolhi meus ombros repentinamente. Voltei-me para trás e, com grande espanto e certa irritação, deparei-me com Francis que tinha um sorriso tênue e ligeiramente enigmático.

– O que você quer dizer com isso? – indaguei, e, apesar de ter retomado minha compostura, não pude evitar alguma rispidez em minha questão.

– Oh, Roderich. – ele sorriu - Você pode tentar disfarçar o que sente para os outros. Eles são tão ingênuos que mesmo uma interpretação fraca como a sua pode convencê-los, mas a mim, você não engana. Eu nasci no país do amor! Os seus sentimentos parecem-me muito óbvios!

– Não sei ao que você se refere. – respondi, com aparente indiferença, em um tom e semblante despidos de sentimentos - Por favor, volte a sua cadeira. Eu preciso concentrar-me no preparo do...

– Chá? Você se refere a essa substância tão escura quanto os seus pensamentos?

Arregalei meu olhar, percebendo o que Francis queria dizer com aquela provocativa. Em minha distração, o chá, que eu supunha observar, havia passado do ponto há um longo tempo.

Senti um tênue aumento na temperatura de meu rosto, decorrente de meu conhecimento sobre o modo como Francis interpretaria o meu descuido.

– Ah. Isso...

– Você acha que o Arthie é mais importante para o Gil do que você é. E está ressentido, pois o Gil não para de conferir ao Arthie uma atenção que você gostaria de receber. Estou enganado?

Aquele era um resumo conciso e exato de minha presente situação.

–... Não é exatamente assim... – menti, tentando aparentar um vago aborrecimento. Incomodava-me um tanto, saber que meus sentimentos eram expostos e assimilados, com tamanha facilidade.

– Senhor Roderich, como você deixou o chá passar do ponto, permita-me ajudá-lo, preparando os biscoitos. Oh, não se preocupe em preparar chá, novamente. Vinhos e cervejas agradam mais ao nosso grupo. Eu apenas o advirto a deixá-los longe do nosso cavalheiro britânico. – Francis recomendou-me, em uma atitude solicita e amistosa. Ele não esperou por uma resposta minha, visto que meu atordoamento com aquela gentileza abrupta e com a sua ausência de comentários implicantes a meu respeito tornou-me incapaz de replicá-lo de imediato. Quando, posteriormente, fez-me uma pergunta, já vestia um de meus aventais - Onde vocês colocam a farinha?

– Aqui. – respondi, automaticamente, indicando uma estante ao lado do fogão.

– Muito obrigado.

Estabelecido que Francis prepararia a sobremesa, não mais havia um motivo para que eu estivesse naquela cozinha. Contudo, havia um mútuo interesse de que nossa conversação prosseguisse. Francis considerava importante dizer-me algo e, como minha atenção havia sido capturada pela precisa percepção dele a cerca do teor de rancor, frustração e mágoa, presente em minha distração, avaliei que seria positivo escutá-lo.

Percebendo minha disposição a ouvi-lo, Francis, educadamente, puxou uma cadeira, próxima a bancada, para que eu pudesse sentar-me nela, durante o período em que ele prepararia a adocicada massa de seus biscoitos e faria um longo monólogo, repleto de teatralidade.

Observando e escutando-o, atentamente, guardei meus sentimentos para centrar-me em suas palavras. Normalmente, eu apenas podia compreender a percepção de Gilbert e a minha, através de experiências turbulentas e agonizantes, portanto, mesmo um pouco afetado pelas doridas emoções que vivenciara há pouco tempo, não deixei de considerar bastante aprazível receber, espontaneamente, alguma orientação.

– Bem, como eu dizia, você não deveria sentir tanto ciúme da relação entre os dois. Não há como comparar o relacionamento que eles possuem e o que vocês possuem...

Abaixei meu rosto, cerrei meus punhos e contive um suspiro. Um frio e fundo suspiro. Ao respondê-lo, voltei-me a ele com grave seriedade:

– Sim. Estou ciente que eles se conhecem há um tempo superior ao que...

– Você está interpretando mal o que eu digo! Argh! O Gil tinha razão ao dizer que você se sente muito perseguido... O que estou querendo dizer é: comparar relacionamentos é algo infrutífero e sem sentido. A única coisa que você conseguirá com isso, será um aborrecimento desnecessário. Relacionamentos, de qualquer tipo, não devem ser comparados. Principalmente, aqueles entre amigos. O seu relacionamento com o Gil não deve ser comparado ao que ele possui com o Arthie, comigo, com o Tonio, com o Romano ou com qualquer um de seus conhecidos. Você entende isso, Roderich?

– Não.

– Deixe-me explicar melhor! Nenhuma amizade, senhor Roderich, é absolutamente igual à outra. Ainda que elas possuam a mesma intensidade, elas podem ser expressas de modos diferentes. O que é natural! Há tantos tipos de relacionamentos entre as pessoas, senhor Roderich, por trás da especificação geral que chamamos de amizade. Sendo mais específico e menos prolixo, devo dizer que você e o Arthie possuem a mesma importância para o Gil. Ele possui razões para conferir seu atual tratamento ao nosso amigo das gigantes sobrancelhas que vão além do seu pressuposto que isso se deve a um amor secreto entre eles...

– Isso nunca passou por minha mente. – afirmei, seguramente.

– Oh, claro que não. – disse ele, agitando seu rosto, com um sorriso sutil que destilava ironia e malícia – Senhor Roderich, antes de começar a fazer minhas explicações, devo perguntar-lhe... Você está ciente da maneira irresponsável como o Gilbert treina seu piano?

– Irresponsável? – estranhei - Pelo que vejo, ele treina intensamente, inclusive...

– Sim, ele treina intensamente. Muito intensamente. Por isso, eu o chamei de “irresponsável”.

Ele tentou soar como se dissesse algo profundo, mas não vi sentido algum, naquela afirmativa.

– Eu não entendo.

– Você sabe por que motivo ele adoeceu? E por que parecemos familiarizados com isso?

Ainda sem enxergar o direcionamento de suas ideias, apenas acenei negativamente com o rosto.

– Desde que o conheço, o Gil nunca teve limites para o seu treino. Ele, simplesmente, nunca está inteiramente satisfeito com o seu desempenho. Por estar insatisfeito, ele treina, treina e treina. Treina exaustivamente. O corpo dele, evidentemente, não aguenta essa carga, ele tem um colapso e lá vamos nós, levá-lo ao hospital, novamente. Quando ele possui apresentações é o seu pior período. Não há quem consiga fazê-lo parar de treinar.

Em outro período de nossa convivência, existiria a forte possibilidade de que essas novas informações sobre Gilbert provocassem, em mim, uma onda de assombro, de comparações entre nós e de terríveis sentimentos de culpa por meu julgamento injusto quanto a meu colega de quarto. Entretanto, naquela data, eu já passara por uma experiência similar e tinha conhecimento do quanto Gilbert podia esforçar-se demasiadamente, quando guiado por seu orgulho, de modo que, no lugar de uma tempestade de emoções sombrias e deprimentes, tive apenas uma ligeira surpresa, mais provocada pelo fato de que meu arrogante colega de quarto dificilmente satisfazia-se com o resultado de seus esforços do que com a intensidade desses.

Concomitantemente, às respostas que aquelas sentenças traziam, elas também me suscitaram uma dúvida inevitável. Havia uma associação implícita, no discurso de Francis, entre a debilitação de Gilbert e sua dedicação excessiva ao piano e ela me provocava algum estranhamento, visto que, dessa vez, ele parecia acometido pelas mesmas circunstâncias, ainda que eu, supostamente, houvesse encontrado um método para moderar os esforços de meu colega de quarto.

Quis perguntar-lhe sobre isso, mas presumi que uma explicação surgiria espontaneamente no fluxo de seu discurso e optei por não questioná-lo para não desordenar sua narrativa.

–... Mesmo?

– Após algum tempo, ficamos fartos de passarmos pela mesma situação irritante, várias vezes, e conseguimos utilizar os pontos fracos de Gilbert para fazê-lo diminuir seu período de treino. Nós estabelecemos os nossos encontros noturnos, utilizando cervejas, comida e música, como um modo de atraí-lo. Caso não os tivéssemos, ele treinaria durante a manhã, tarde, noite e madrugada. No entanto, com esses encontros, ele deixou de treinar a noite e, devido ao sono que o álcool propiciava nele, também encerrou seus treinos, durante a madrugada. Ele, assim, treinava apenas pela manhã e tarde, o que era suficiente para um aluno em seus primeiros semestres. Nossos planos decorriam muito bem, no entanto, você apareceu e proibiu esses encontros. O que, devo dizer, foi um problema inesperado. Nós imaginávamos que o novo colega de quarto do Gil, provavelmente, não gostaria de vê-lo, voltando durante a madrugada, diariamente, mas não supomos que você conseguiria convencê-lo a ficar em casa. O problema é que o Gil gosta mais dos pratos que você prepara, em comparação aos meus, então... – Francis suspirou - Você sabe o quanto ele é influenciável, tratando-se de comida. Com o Gil, em casa, especulamos que ele apenas voltaria à conduta que tinha, antes desses encontros. Ele treinaria, durante a noite, e em uma pequena parte da madrugada. Nós não gostávamos disso, mas o que poderíamos fazer? No entanto, não foi isso que ocorreu. Por alguma razão, ele possui vergonha de ensaiar, em sua frente, então, ao invés de treinar, durante a noite, e em uma pequena parcela da madrugada, ele abdicou a noite e passou a ensaiar, durante a maior parte da madrugada...

– Eu já tinha conhecimento dessa informação. – comuniquei a ele - Eu flagrei o senhor Gilbert treinando a Forlane, durante a madrugada, e, para diminuir os esforços dele, combinei que ele treinaria no conservatório, durante a noite, e eu levaria o seu jantar a ele, para que ele parasse com seus treinos pela madrugada. Entretanto, não consigo entender o que aconteceu...

– Você o estimulou a tocar durante a noite?

– Sim, eu...

– Nesse caso, ele passou a treinar, durante a madrugada E a noite.

– Isso não é...!

– Possível? Sim. É. Ele não é nada razoável, tratando-se do seu orgulho. Argh! Como ele nos dá trabalho! Ele sequer percebe o quanto nos preocupa com o modo irresponsável como treina! Você imagina por que ele teve um princípio de desnutrição, apesar de alimentar-se normalmente, senhor Roderich? Pelo mesmo motivo pelo qual alguém desmaiará, caso tome apenas um copo de leite, antes de ir a uma academia. Os alimentos que ele consome não são suficientes para compensarem sua quantidade de esforço físico.

–...

– Agora, vamos voltar ao tópico inicial. “Por que o Gil depende tanto do Arthie”? Eu estipulo que a proximidade do relacionamento deles possa ser explicada por dois motivos básicos. Em primeiro lugar, o Gil é alguém que, constantemente, precisa de cuidados e o Arthie é alguém naturalmente disposto a cuidar dos outros. Eles se complementam, nesse sentido. Quando o Gil exagera e acaba tendo que ir ao hospital, sempre é o Arthie que se dispõe a fazê-lo melhorar, quem briga com ele, devido aos seus excessos e etc. E isso não ocorre devido a um amor platônico da parte do Arthie. Ele não pensa algo como “Se eu estiver, ao seu lado, ele um dia notará o quanto sou importante em sua vida!”, quando se dispõe a tomar conta do Gil. Como eu disse, ele simplesmente possui uma predisposição a cuidar dos outros. Ele faz pelo Gil, o mesmo que faria pelo Tonio, por mim e por qualquer pessoa que viesse a precisar dele. Além disso, o Gil, com seus modos infantis, lembra ligeiramente uma certa pessoa...Bem, não vamos tocar em temas delicados.

O riso perverso que ele deu, ao dizer a última sentença, convenceu-me a, definitivamente, não indagá-lo sobre esse assunto.

– Em segundo lugar, o motivo pelo qual o Gil e o Arthie são tão próximos seria por que ambos são pianistas e possuem um respeito e admiração mútua, um pelo outro. Esse instrumento acaba por uni-los, pois eles compartilham experiências parecidas e podem discutir sobre assuntos que interessam a ambos. Esses são os principais fatores que os fazem parecer mais íntimos e podem deixá-lo com um sentimento de “Por que eles são tão próximos? Por quê? Por quê?!”. Não se preocupe. – ele abanou sua mão, com um sorriso suave, como se os meus dilemas tivessem o mesmo peso de uma gota no oceano - Posso garantir que, apesar de tudo que mencionei, somos tão importantes para o Gil, quanto o Arthie, mas de maneiras diferentes. Eu, por exemplo, posso não cuidar tanto dele ou poder opinar sobre seu piano, mas sou o seu principal conselheiro quanto a questões pessoais. O Tonio, por sua vez, é a pessoa que mais consegue animar ao nosso Gil e aquela que ele mais se esforça para, ao seu modo, proteger. Mesmo o Romano deve possuir alguma importância para ele, de uma forma que não conheço! Vê? São todas formas diferentes de se possuir um mesmo sentimento de amizade! Se procurarmos, sempre teremos algo para nos ressentirmos quanto às outras amizades dele e, por isso mesmo, não devemos procurar. Não é necessário. Não há limites para o amor!

Ele deteve-se em uma pausa proposital, pregando-me um olhar que continha uma sinuosa expectativa e um cúmplice divertimento perverso, como se compartilhássemos um segredo impróprio. Em resposta, franzi minhas sobrancelhas, em uma expressão aversiva, que Francis desconsiderou inteiramente, preservando seu sorriso, ao tornar a falar.

– Você também é importante para o Gil, meu caro, Roderich... Muito importante. E não apenas sob a óptica maliciosa com a qual enxergo o relacionamento de vocês. Não, não! Você, indubitavelmente, é um valioso amigo para o nosso Gil. A prova disso seria esse apartamento. A razão pela qual ele encontra-se limpo e organizado seria por que o Gil preza pela sua opinião e conforto. Quando eu e Tonio moramos com ele, não conseguimos convencê-lo, de forma alguma, a nos ajudar a manter nosso espaço ordenado. A organização desse recinto, senhor Roderich, é uma prova de que meu amigo importa-se muito com você.

Pela primeira vez, as palavras de Francis trouxeram-me uma reação diferente da quieta satisfação de um esclarecimento. Uma alegria imediata invadiu-me com tamanha força que constrangi-me com sua existência e tentei transmitir casualidade e indiferença em minha réplica.

– Considero mais realista percebê-la como uma prova de que ele é um glutão incorrigível

– Não nego que ele é um glutão. – Francis riu brevemente de meu esforço óbvio para disfarçar o quão lisonjeado a discreta atenção de Gilbert deixara-me. - Entretanto, ele não é convencido apenas por receber comida. Ela é apenas a desculpa que ele utiliza para convencer-se a fazer algo que, no fundo, já queria. Eu não sei o que você fez para cativá-lo, meu caro Roderich, mas a amizade entre vocês é o motivo pelo qual vocês conseguem conviver tão bem. Você devia ter mais confiança nos sentimentos dele. Nós temos uma amizade mais longa com o Gil, mas você é aquele que passa um maior período de tempo com ele, o que mais consegue influenciá-lo e o único amigo dele a receber um ingresso para o seu recital. Não seja tão inseguro!

Eram muitos dados em um espaço curto de tempo e não tive tempo de absorvê-los completamente. Ainda estava refletindo sobre o fato de que Gilbert havia dado um ingresso apenas para mim, perguntando-me por que ele não havia se gabado sobre sua generosidade infinita e como eu deveria me sentir quanto a isso, quando percebi que a massa de Francis, finalmente, estava pronta.

Ele a depositou em uma forma e a colocou dentro do forno, marcando o fim de nosso diálogo. Arthur terminara de tocar, sem que eu percebesse, e os amigos de Gilbert divertiam-se, conversando e bebendo um vinho que Antonio trouxera, ao que meu colega de quarto descansava no sofá. Ele não adormecera sob o efeito do piano de Arthur, mas seus olhos refletiam sonolência e pareciam estar sempre na iminência de se fecharem.

Francis tinha o intento de unir-se a eles, ao qual eu não me opunha, visto que eu estava suficientemente satisfeito com o que ouvira e tencionava preparar um chá para mim e para Arthur – por quem eu nutria uma profunda simpatia e reconhecimento, apesar das desconfortáveis comparações que insistia em fazer entre nós.

Francis já saía, quando, como se acometido por uma lembrança, ele parou e, voltando-se para mim, disse com um amplo sorriso:

– A propósito, antes que essa preocupação lhe ocorra, devo avisá-lo: o Gil jamais teria um interesse romântico pelo Arthie. O motivo pelo qual ele o escolheu para ir ao piano, ao invés de selecionar a você, meu caro Roderich, seria porque, caso você fosse ao piano, adivinhe quem insistiria para preparar as sobremesas?

Dito isso, ele piscou para mim e encaminhou-se ao sofá, em pequenos saltos, como se uma alegre música o movimentasse.

Dei um pequeno suspiro e, ignorando as provocativas de Francis, deixei que um tênue sorriso surgisse em meus lábios. Obviamente, minha insegurança e confusão não haviam sido simplesmente dissipadas. Elas somente deslocaram-se para uma parte mais profunda e menos acessível de meu coração, permitindo-me retornar ao humor que possuía, antes do pedido que Gilbert fizera a Arthur.

Tendo minha amizade com meu colega de quarto reafirmada por atitudes gentis que eu sequer havia noticiado e adquirindo um aconselhamento detalhado de um de seus melhores amigos, como se eu fosse reconhecido e estimado como parte de seu grupo, eu não podia evitar o meu profundo contentamento ou o meu perdão parcial a Gilbert, por ele comportar-se irritantemente, quando não entendia os meus sentimentos.

Afinal, também me era extremamente difícil descobrir o que passava-se na mente daquele tolo.

_________________________________________________________

Quando todos foram embora, eu adquiri a minha esperada oportunidade de tomar um banho. Aquele havia sido um dia tão atribulado que, até então, sequer obtive uma chance para isso. Havia uma pilha de louças sujas, acumuladas na pia, e de latas de cerveja espalhadas pela sala, mas decidi não ater-me, imediatamente, a elas.

Eu necessitava de um banho.

Minha urgência era tão sincera que apenas em ouvir o chiado da água corrente, o meu espírito sentiu-se, em parte, revigorado. Ah. Como era agradável, sentir a água quente escorrer por meu corpo, após um dia exaustivo como aquele. O perfume do sabonete e do xampu anestesiava meus sentidos e as gotas que caíam sobre mim, pareciam carregar consigo as dores de meu cansaço. Pouco a pouco, reestabeleci-me e senti meu relaxamento físico envolver-me como uma onda suave.

Aquele foi um momento bastante deleitável.

Meus problemas apenas ressurgiram, quando o findei e percebi que havia me esquecido de trazer a parte de baixo de minhas vestes.

Oh, céus.

Um calafrio de pavor correu por meu corpo.

Aquela situação que, por meses, tentei evitar, afinal, havia ocorrido.

Um desespero ansioso crescia, em mim, quando eu me perguntava o que poderia fazer. Ele era acompanhado por um forte sentimento de autocrítica cujas nuances variavam entre a dor e a indignação. Às vezes, eu tomava o meu relapso ao esquecer minhas roupas, como uma fatalidade e, enxergando-me como uma vítima, nutria-me de pena por mim, como se nenhuma protagonista de romance tivesse mais motivos para chorar do que eu. Em outros instantes, eu me acusava com maior violência e ira, perguntando-me como havia sido tão estúpido a ponto de esquecer-me de minhas roupas, quando objetivava tomar um banho, e considerava-me indigno de qualquer piedade.

Todas essas oscilações em meu humor, não provocavam uma mudança na primeira e sobressalente sensação que adquiri ao perceber meu erro. Eu estava apavorado com a ideia de que, cedo ou tarde, teria que passar pela sala, parcialmente despido.

Observei minhas roupas com o mesmo terror com o qual as fitaria, caso estivessem cobertas de sangue. O que eu faria?

A minha camisa era longa o bastante para cobrir, em parte, minha nudez, contudo, não o suficiente para deixar-me confortável. Eu não poderia suportar um encontro com Gilbert, nessas condições! Não aguentaria permiti-lo ver-me assim! O meu rosto ardia insuportavelmente com essa ideia!

Eu poderia ter permanecido petrificado pelo medo e pela angústia, por um tempo bem maior, se não houvesse me ocorrido que Gilbert estava em seu quarto.

Essa realização atingiu-me como uma flecha.

Sim! Como pude esquecer-me disso? Após nossos visitantes partirem, ele encaminhou-se ao seu quarto para dormir! Como ele estava doente, não seria improvável que, nesse exato instante, enquanto eu me lamuriava por meu descuido e meus infortúnios, ele estivesse dormindo pesadamente!

Uma faísca de expectativa acendeu em mim. Percebi que, caso apressasse-me em direção ao meu quarto, e vestisse-me logo, dificilmente a humilhante situação que julguei inevitável ocorreria.

Resoluto, vesti apenas minha camisa e, sem preocupar-me em colocar meus óculos ou pentear-me, caminhei apressadamente para o meu quarto, não conseguindo evitar o gesto de abaixar a parte superior de minhas vestes, em um esforço adicional de camuflar o que eu não gostaria que aparecesse, embora Gilbert não estivesse na sala.

Após alguns passos apressados e carregados de apreensão pude, para o meu alívio, chegar ao meu quarto e trancar-me nele.

A minha sensação segurança foi, de tal modo, reconfortante que encostei-me a porta e soltei um profundo suspiro, extasiado.

Minha honesta satisfação por ter evitado, eficientemente, um incidente que muito me incomodaria, teve efeitos positivos sobre o meu humor e foi com leve tranquilidade e com certo orgulho de minhas próprias ações que vesti a calça de meu pijama, acreditando que não teria outros problemas, naquela noite.

Mal terminei de vestir-me, quando o violento som de uma pancada, seguida de um silêncio profundo, congelou-me por dentro.

Gilbert. Apenas poderia ser ele. Algo havia acontecido com ele.

Essa ideia, que renovou o pavor que eu havia sentido há pouco, foi acompanhada por uma tempestade de pensamentos confusos e sombrios que, impiedosamente, assaltaram-me. Diversas hipóteses do que poderia ter ocorrido com o meu colega de quarto passaram por minha mente. Gilbert havia se levantado, por um motivo qualquer, e havia desmaiado. Gilbert havia tentado apanhar um livro na estante e essa desabara sobre ele... Céus. Havia tantas possibilidades nefastas! Qual delas havia ocorrido??

Originalmente, eu pretendia adentrar o aposento de meu colega de quarto e conferir se algum incidente havia acontecido, com compostura e serenidade, entretanto, a minha pressa, exaltação e o meu profundo medo de que algo houvesse ocorrido a ele, impediram-me de aparentar uma indiferença que estava longe de possuir:

– O que houve?! – realizei essa pergunta, trêmula e nervosa, assim que entrei no quarto de Gilbert, antes mesmo de tomar consciência do que via. No entanto, satisfeitos os impulsos que guiaram-me até ali e motivaram-me a, praticamente, gritar minha questão, adquiri essa consciência e, o cenário que vi, com certeza, foi o mais chocante possível.

Eu havia imaginado Gilbert inconsciente e febril, jogado ao solo. Gilbert coberto por livros, pela mesa, ou pelos destroços de sua cama quebrada. Havia pensado em diversas hipóteses. Menos na cena atual. Gilbert estava estirado para um lado da cama, quase tocando o chão e uma cadeira estava caída. Ele segurava o recipiente com morangos que seu irmão dera a ele e mais parecia espantado com a minha entrada do que vitimado por um acidente.

– Rod? – ele ergueu uma sobrancelha, olhando em minha direção. Não teve dificuldades para erguer-se e recolocar-se confortavelmente na cama.

– O que aconteceu? – perguntei em um tom mais controlado e impaciente, com minha respiração ainda alterada pela adrenalina.

– Eu estava tentando me estirar para apanhar os meus incríveis morangos que estavam sobre a cadeira, sem me levantar da cama, mas acabei a derrubando! - ele declarou, mostrando-se muito insatisfeito com aquele incidente - Tsk! Não nego que foi uma falha irritante, mas, veja! – sua expressão foi modificada para um sorriso genuinamente alegre - Os morangos foram salvos! – ele mostrou, triunfantemente, o intacto recipiente com os morangos, como se exibisse um troféu.

Não pude decidir-me entre zangar-me por ele ter me assustado daquela forma ou alegrar-me por nada demais ter acontecido, então meu espírito ficou em algum estado intermediário, entre essas duas emoções.

Eu ainda tentava me recompor e acalmar o meu coração, acelerado, quando percebi que Gilbert ainda observava-me, evidentemente confuso.

– O que foi? – perguntei, defensivamente e, por instinto, inclinei-me ligeiramente para trás, e levei minhas mãos fechadas ao meu peito, como se tentasse proteger meu corpo.

– Rod... – ele pregou-me um olhar atônito, deixando um espaço entre seus lábios, em uma expressão verdadeiramente surpresa - É você mesmo?

– Suponho que sim. – não convinha ao meu humor responder-lhe de forma mais dócil e menos direta. Não vi sentido, naquela pergunta, e não senti-me disposto a desvendá-la. Como ela vinha de meu colega de quarto, talvez fosse mais conveniente que eu não a entendesse.

Ele, como sempre, não se magoou com a minha rispidez e recebeu-a com divertimento. O que eu não sabia, naquele instante, era que não havia sido apenas a minha mal-humorada réplica que havia o entretido.

Kesesese! – ele riu, com traços de um gosto que apenas demonstrava, quando alimentado por alguma forma de deboche - É assustador que você possa mudar a sua aparência com tamanha facilidade, jovem mestre!

– Mudar minha aparência? – indaguei, sem conseguir entendê-lo - O que você quer di...?

Subitamente, realizei o que havia ocorrido e pus a mão em meu rosto, apenas para confirmar, estupefato, o que estava acontecendo.

Eu havia esquecido meus óculos. Havia me esquecido de ajeitar o meu cabelo. Estava exibindo uma aparência vergonhosa, diante de Gilbert!

– Ah! – exclamei, envergonhado, desviando meu rosto na expectativa de disfarçá-lo. Eu não queria que logo ele, visse-me assim! No entanto, era tarde. A porção mordaz de meu colega de quarto já havia sido atiçada.

Kesesese! Impressionante, jovem mestre! - ele comentou, em um tom evidentemente irônico, cujo efeito gerava a impressão de que ele tanto poderia começar a aplaudir-me como poderia começar a rir de mim – Eu quase não o reconheci, quando você entrou no quarto! Provavelmente, são pessoas assim que conseguem manter identidades secretas!

– E-Eu apenas...! - estava prestes a explicar-me, quando me detive. De forma alguma, eu poderia contar a Gilbert o que, de fato, havia ocorrido.

Após terminar meu banho, percebi que havia esquecido a parte debaixo das minhas roupas e como morreria de vergonha, aparecendo assim, em sua frente, eu deixei de arrumar os outros detalhes de minha aparência para dirigir-me logo ao meu quarto e vestir-me. Ao encerrar, eu ouvi aquele barulho, vindo do seu quarto, e fiquei tão assustado com a hipótese de que algo houvesse lhe ocorrido, que vim o mais rápido que pude, sem pensar em nada mais.

...Como se eu pudesse fazer um relato como esse!

Sem conseguir pensar, em uma resposta convincente, apenas inclinei meu rosto para baixo, envergonhado e frustrado, mordendo fortemente o meu lábio inferior.

– O que há com essa reação, jovem mestre? – riu-se Gilbert, um tanto curioso com a minha ausência de réplicas friamente sarcásticas- A sua segunda identidade parece um tanto mais meiga e menos mordaz do que a primeira!

– Minha intenção não é a de ser meigo e, se pudesse, seria mordaz. – repliquei, duramente, ainda sem conseguir encará-lo. – Não era o meu intento aparecer em uma aparência vulgar, como essa, mas o barulho, vindo do seu quarto, assustou-me e vim, rapidamente, para evitar que você continuasse a destruir nosso apartamento. – eu quase podia sentir a mentira em meus lábios e, incomodamente consciente dela, disse-a, rapidamente, de forma praticamente mecânica.

– Oh, Rod! – ele pôs a mão sobre a sua boca, demonstrando divertida surpresa com algum ponto de minha afirmação- Você chama a sua atual aparência de vulgar? Kesesese! Você está, indiretamente, ofendendo a maior parte da humanidade com o seu comentário, sabia?

Gilbert era excessivamente sarcástico para que eu, instantaneamente, sentisse-me lisonjeado com o que havia dito sobre a minha aparência. Por outro lado, ele não me parecia ter utilizado o seu humor para, ao seu modo, criticar o que via e, sim, para criticar o fato de que eu não tinha consciência de que o adjetivo que me qualificaria, definitivamente, não seria “vulgar”, portanto, também não pude ofender-me. Ele havia me deixado bastante confuso ao modo como deveria interpretar o que poderia ter sido tanto um insulto quanto um elogio.

– Não posso avaliar, se você está me elogiando ou não. – respondi, sinceramente.

– É um elogio, claro, jovem mestre! – ele acenou positivamente com o rosto, em um único e decidido meneio, e estendeu seu implicante sorriso - Como se o incrível eu pudesse ofender sua encantadora segunda identidade!

– A sua disposição para implicar comigo deve indicar uma melhora sua. A sua febre diminuiu?

– Sim, eu estou bem! Como eu havia dito, você não pode subestimar os meus incríveis anticorpos, Rod! Eles fazem parte do meu corpo e que porção dele não seria incrível?

– Ignorarei o seu egocentrismo absurdo. O senhor não deveria estar dormindo?

– Sim! Eu tentei, mas não estou conseguindo! – ele fez um bico de desgosto.

– A atividade dos seus anticorpos é tão intensa que seu corpo não consegue relaxar? – indaguei em um brando sarcasmo.

– Exatamente! – ele exclamou, empolgado, apontando para mim, enfaticamente, como se eu houvesse acabado de conferir a ele o último elemento necessário para desvendar um enigma que tentava resolver há anos.

– Você quer um copo de leite ou algo assim? – questionei, sentando-me na extremidade de sua cama.

– Não. – ele sorriu, suavemente - Apenas toque uma composição em legato e estarei bem.

Meus ombros contraíram-se instintivamente com a áspera comparação, em minha mente, que não pude evitar.

Eu não deveria ter pensado nisso. Era ridículo e desnecessário que eu pensasse dessa forma, mas a menção ao uso do piano, como uma forma de promover sua melhora, provocou-me uma lembrança que ardeu incomodamente em meu coração e, antes que eu pudesse refletir sobre o que dizia e o quão estava sendo absurdo ao sentir-me assim, acabei perguntando a Gilbert em um tom cínico e, definitivamente, agressivo:

– Por que você não pede isso ao Arthie?

A minha voz soou mais irônica e ressentida do que eu pretendia e assustei-me ao realizar o que havia acabado de escapar por minha boca. Eu a cobri imediatamente. O que eu estava dizendo?!

Arrependido por ter dito algo incoerente, sem pensar no efeito que aquilo poderia causar, ansiei imensamente que Gilbert não percebesse a involuntária sugestão em minha réplica. No entanto, tive esse anseio frustrado ao perceber o divertimento perverso que tomara o seu rosto.

– Então, essa é a causa do seu mau-humor! – sorriu Gilbert – Você está com ciúmes!

“Não!”

– Absolutamente não! – refutei, instantaneamente.

– Ou melhor, você está com ciúmes, de novo! – ele ignorou-me e continuou sorrindo.

– Conforme disse, não havia nenhum sentimento como esse, em minha resposta! Você está descrevendo o que nunca aconteceu!

– Então, o que foi? – ele começou a inclinar-se em minha direção, enquanto seu sorriso expandia-se e adquiria maiores nuances de malignidade – Você ficou com raiva, pois a visita do Arthie interrompeu nosso tempo a sós?

– Eu não sei se devo mortificar-me mais com os seus pensamentos absurdos ou com o fato de que você possa acreditar neles. – apressei-me em corrigir a deturpada direção de seu raciocínio. Infelizmente, minha resposta, pouco firme, não se mostrou muito significativa para Gilbert, considerando-se que ele continuou a diminuir a distância entre nós, com um gosto cada vez maior. O seu rosto roçava a lateral do meu, quando ele fez uma questão que eu gostaria de ter evitado, em uma voz grave, baixa e sugestiva:

– Nesse caso, qual a sua explicação para a sua pergunta visivelmente enciumada, jovem mestre?

Essa pergunta deixou-me sem reação. O susto por tê-la recebido, impediu-me, inclusive, de afastar Gilbert. Eu não tinha uma explicação. Nem para meu colega de quarto, nem para mim. Eu havia sido derrubado pela inconstância de meus impulsos, no entanto, não sabia como explicá-los. Pus minha mão sobre minha boca, refletindo severamente sobre uma desculpa que pudesse dar para Gilbert e, especialmente, para mim. Ele não se incomodou com a minha demora e deleitou-se com a minha temporária inércia, soprando em meu pescoço, perigosamente próximo de sua boca, em uma incômoda brincadeira que, certamente, teve parte da culpa pela desordem dos meus pensamentos, que não conseguiam adquirir uma coerência juntos.

Impulsionado pela minha crescente urgência de afastá-lo, empurrei seu peito, distanciando-o de mim, e decidi, por fim, o que deveria dizer. Disparei minha pergunta, em um único fôlego, sem encará-lo.

– O que você estava falando com o seu irmão, quando ele e Feliciano estavam prestes a ir embora?

Minha decisão final foi a de esquivar-me daquele assunto. Uma derrota que não passou despercebida por Gilbert que sorriu ostensivamente.

– Que esforço óbvio para mudar de assunto, jovem mestre! – ele riu, debochadamente, como se sentisse pena de minha patética tentativa de fuga – Bem, eu tenho algo interessante a dizer sobre o Lud, então, dessa vez, eu o ajudarei a continuar negando a sua possessividade quanto ao incrível eu!

– Como disse, você está engana...

– Sabe, Rod, - Gilbert interpelou-me, com uma ansiedade para falar sobre seu irmão mais novo que, para meu alívio, superava seu interesse em explorar meu constrangimento - quando o Lud estava saindo e você estava conversando sobre o Feli, sobre algum assunto culinário entediante, eu decidi elogiar o bom gosto para amigos do meu irmão. Digo, o Feli é extremamente adorável! Eu disse isso para o Lud e, como um irmão mais velho exemplar faria, desejei que ele cuidasse bem dele! Você pode imaginar o que aconteceu, em seguida, jovem mestre?

– Ele deu uma réplica comum a qual você interpretou erroneamente?

– Ele ficou vermelho!

–...Hã?

– Sério! Ele ficou vermelho! Mais vermelho do que esses morangos! – ele disse, apontando enfaticamente para os morangos – E como se não bastasse isso, ele ainda acrescentou, com um olhar distante, “Eu sempre cuidarei...”!

–... O que você fez?

– A reação mais óbvia, jovem mestre. – ele revirou os olhos – Eu gritei “O quê?! Esse é o seu interesse quanto ao Feli?! Eu pensei que vocês tinham uma amizade inocente!”.

Eu quase podia sentir a vergonha e a irritação de Ludwig, apenas ouvindo aquele relato.

– Como você pôde agir de modo tão rude com o seu irmão?!

– A minha reação foi normal, jovem mestre! – ele defendeu-se, com a firme convicção de que agira corretamente - Ele foi o único rude! O meu pescoço deve estar com as marcas que ganhei, quando ele puxou a minha camisa, como se fosse me arremessar na parede! Argh. – meu colega de quarto fechou seus olhos, como se aquela memória o exaurisse tanto quanto o conflito entre os dois - O Lud pode ser assustador, quando importunado!

– Ele estava correto em puni-lo. – achei necessário dizer - Você não deveria implicar com seu irmão, quando sabe o quão incômodas são essas brincadeiras.

– Que brincadeiras? – ele franziu suas sobrancelhas, um tanto confuso.

Uma gota de irritação começou a borbulhar, em meu interior. Gilbert pretendia ser tão sonso?

– Não se faça de ingênuo, quando sabe ao que me refiro. – recomendei, com gélida autoridade - Você, que constantemente é tratado como se estivesse em uma relação conjugal comigo, deveria saber o quanto esse tipo de implicância pode ser inconveniente.

– “Inconveniente”? – Gilbert estranhou e, ao dar sua resposta, falou muita franqueza - Esse é um engano seu, Rod. Eu nunca vi essas brincadeiras como inconvenientes. Para ser franco, eu sequer as vejo como brincadeiras! O meu professor e meus amigos não nos tratam assim para nos incomodar. Eles acreditam que nós somos um casal!

– Como eles podem acreditar nisso?! E por que você não corrige essa ideia absurda?!

Nah. – ele deu de ombros, desinteressadamente, completamente indiferente ao fato, para mim, bastante perturbador, de que nos viam como um casal - Por que eu faria isso? Eu não me incomodo com essas brincadeiras e dizer a verdade não seria divertido.

– Que horrível incoerência você está dizendo?! – mortifiquei-me com a naturalidade com a qual ele aceitava a visão deturpada que os outros possuíam de nosso relacionamento - Você precisa corrigi-los!

– Por quê?

Por quê? Se eu fosse citar minhas verdadeiras razões, provavelmente, resultaria em uma série de três livros, cada um contendo dez capítulos de quarenta páginas e, ainda assim, elas dificilmente o convenceriam, portanto, utilizei-me de uma desculpa. Tomei fôlego e disse, sem hesitar em nenhum momento:

– É incômodo que eles pensem assim, pois possuo uma namorada.

O que ocorreu, em seguida, foi completamente inesperado por mim. Por um instante, uma sombra tomou o rosto de Gilbert. Ele tornou-se grave e sombrio. Espantou-me perceber essa mudança repentina, em seu semblante, mas, antes que eu pudesse analisá-la, ele suspirou e riu.

– É claro que possui. – ele cantarolou, sorrindo matreiramente e revirando os seus olhos, com ceticismo. – E qual o nome dessa misteriosa dama?

– Elisaveta. – disse o primeiro nome feminino que me veio à mente.

– Elisaveta! – ele exclamou, rindo – Rod, você, ao menos, poderia ter inventado um nome francês! Seria mais convincente!

...Ele estava duvidando da existência de Elisaveta? Eu não poderia defender-me convincentemente, caso ele duvidasse de meu namoro com ela, mas, pelo menos a existência dela, eu podia afirmar!

– Eu não estou inventando nomes! Possuo um profundo relacionamento com a senhorita Elisaveta que não deve ser questionado, simplesmente, por que não o citei, anteriormente! – foi fácil fazer essa exclamação, pois ela não era, exatamente, uma mentira.

– Sim, sim. Conforme o que me pede, não mais questionarei a profundidade do seu relacionamento com a sua personagem imaginária...

– Ela não é imaginária! – era ridículo que eu precisasse dizer uma frase assim, quando tinha vinte e três anos!

– Claro que não é. – ele revirou os olhos, novamente, antes de apoiar seu rosto em sua mão direita e perguntar com um largo sorriso provocativo que destilava arrogância - Posso saber se essa “Elisaveta” permitiria que nós fôssemos a um passeio, jovem mestre?

Apaguei todos os meus pensamentos sobre o quanto Gilbert era estúpido, como eu o convenceria a acreditar, pelo menos, na existência de minha amiga de infância e diversos dos meus devaneios relacionados ao tema, menos significativos, mas presentes, para centrar-me em um único e instigante fato: Gilbert Beilschmidt estava fazendo-me um convite.

–... Para onde? – perguntei, com certa cautela, receando que meu colega de quarto tomasse minha pergunta como uma indireta aceitação, quando eu desconhecia seus planos.

– Um teatro. – ele respondeu, folheando apressadamente um livro jogado sobre a sua cama, até encontrar, entre as páginas desse, dois papéis amarelados que inferi serem ingressos, estendendo um deles em minha direção, empolgadamente – Vamos assistir à peça “Sonhos de uma noite de verão” do velho Shakespeare! Foi difícil convencer o Arthie a dar-me os ingressos, então seja grato a mim, por toda a eternidade, jovem mestre!

– Quando esse ato generoso aconteceu? E quando será a peça? – perguntei, rendendo-me e recebendo a minha entrada.

– Quando tive dor-de-cabeça e ele estava me levando para o quarto, decidi utilizá-la para convencê-lo a cedê-los. – ele deu essa resposta que indicava um desconhecido lado manipulativo de seu caráter, como se comentasse sobre o tempo - Eu estava pedindo esses ingressos há dias! Como o Arthie, apesar de tentar aparentar ser taciturno e severo, possui um coração repleto de baunilha, ele não conseguiu resistir ao meu apelo choroso! Kesesese!

– Você é um ser humano terrível.

– Por “terrível”, você quer dizer “brilhante”. Esses ingressos custam dezenas de euros e esgotaram-se há meses. Como o Arthie desistiu de usá-los, eles seriam desperdiçados! – ele sorriu e agitou seu rosto, estendendo sua mão, como se não soubesse como lidar com tamanha genialidade em uma única mente - Apenas um gênio, como o incrível eu, os obteria com tamanha facilidade! Ah! – acometido por uma lembrança, meu colega de quarto deteve sua corrente de elogios a si mesmo - Respondendo a sua segunda pergunta, a peça será amanhã! Deixe a sua noite livre, jovem mestre! – rindo, ele acrescentou - Não se comprometa com a senhorita Elisaveta!

– Amanhã! – exclamei – Você está doente! Como pode planejar assistir a uma peça, nesse estado?!

– Não apenas assistir a uma peça. Nós iremos assistir à peça e, posteriormente, jantaremos em um restaurante escolhido por mim. – ele adicionou, calmamente, não percebendo a causa de minha perturbação.

Não havia no rosto de Gilbert nenhuma indicação de que ele estivesse brincando. Também não me parecia que aquele convite, provinha de um impulso do momento. Ele esperava levar-me ao teatro e a um jantar e sua proposta era tão séria quanto firme.

O que me levou a dizer o que eu disse a Gilbert é, para mim, um completo mistério. Não sei o que levou minha mente a juntarem tais palavras e meu aparelho fonador a reproduzi-las. Se soubesse qual região de meu cérebro foi a responsável por esse acidente desconexo, eu a selaria em uma parte profunda de meu subconsciente. Talvez tenha sido a surpresa por ter sido convidado a sair com Gilbert tão repentinamente, quando não havíamos feito um programa assim, anteriormente. Talvez tenha sido a seriedade abrupta de seus olhos. Talvez tenha sido um ato instintivamente defensivo que executei sem pensar, devido à nossa proximidade física que, inconscientemente, ainda me incomodava. O fato é que não consegui me conter.

–... Isso não seria um encontro?

Essas palavras escaparam de minha boca, logo que surgiram em minha mente, sem que houvesse tempo para minha razão censurá-las.

Arregalei meus olhos, horrorizado com o que havia acabado de dizer. Gilbert riu fartamente, deleitado com o que havia acabado de ouvir.

– De modo algum, jovem mestre! – ele respondeu, ainda se reestabelecendo de seu acesso de riso e enxugando as lágrimas que escorriam de seus olhos. – Se nós fôssemos a um encontro, nós não iríamos a um teatro e a um restaurante! Nós iríamos a um teatro, a um restaurante e a um motel!

– Não há a necessidade de irmos a um motel, quando moramos no mesmo apartamento.

...

Eu não podia me calar por um instante?!

– Essa foi uma sugestão? – dessa vez, ele não explodiu em uma gargalhada, como antes, mas sorriu de um modo sardônico e inclinou-se em minha direção.

– Não. – repliquei, em um tom que não autorizava contestações, levantando-me de sua cama e ajeitando minhas vestes – Senhor Gilbert, o que você sugere é impossível.

– Irmos a um motel? – ele sorriu, implicantemente – Nesse caso, como você propôs, podemos simplesmente voltar ao apartamento e...!

– Essa parte também é impossível, mas não era a isso que me referia. – apressei-me em dizer, com uma expressão estoica que refletia a seriedade de meu discurso - Nós não podemos sair, amanhã. O senhor está doente e não penso que seja apropriado que façamos um programa como esse, caso você não esteja bem intencionado.

– Rod, francamente! – ele impacientou-se com as minhas justificadas preocupações e, agressivamente, bateu as palmas de suas mãos em seus joelhos- Por que você sempre age como se o incrível eu estivesse mal-intencionado?! Eu apenas o convidei a um passeio e você já foi o chamando de encontro! Há mais chances de que você esteja mal-intencionado do que eu!

– N-Não seja ridículo... – desviei meu olhar para o lado, com algum embaraço. O argumento de Gilbert havia sido surpreendentemente coerente.

– Pare de agir como uma donzela esquivando-se dos avanços de um pretendente, jovem mestre. – Gilbert solicitou, determinadamente, provocando-me alguma culpa por meus deturpados pensamentos anteriores de que ele...bem... de que ele talvez não estivesse fazendo um pedido tão casual quanto aparentava. Essas suspeitas que, antes, pareciam-me tão racionais, agora, deixavam-me profundamente envergonhado. - A sua honra não será violada em nosso passeio. – ele riu, de repente - Pelo menos, não nesse!

Meus olhos passearam pela amassada colcha de cama de Gilbert, durante minhas reflexões. Eu estava indeciso. Gilbert, como o habitual, era tão contraditório! Ele afirmava que aquele não seria um encontro, entretanto, desde que havia o feito, ele despejara, sobre mim, uma numerosa quantia de insinuações maliciosas. No que deveria acreditar? Como deveria agir?

Percebendo minha hesitação, ele apanhou minhas mãos, delicadamente, e perguntou com cuidado:

– Se eu estiver saudável, amanhã, você aceitará o meu convite?

Eu me arrependeria de qualquer resposta que desse, então, apenas segui meu primeiro impulso.

–... Desde que você concorde que isso não será um encontro.

Ele apenas riu e revirou os olhos.

– Sim, sim. Conforme queira, jovem mestre. Você tocará o piano para mim? Eu preciso dormir.

Aquele, evidentemente, era um convite doloroso para mim, apesar de Gilbert não estar ciente disso. Eu não havia superado inteiramente os meus sentimentos anteriores quanto a Arthur e cogitei severamente em recusar o que meu colega de quarto me pedia. Entretanto, não pude fazê-lo.

Quando Gilbert fazia-me pedidos inocentes e espontâneos, como aquele... Quando ele precisava de mim, mesmo que por motivos insignificantes, o meu coração agitava-se em jubilo. Chegava a ser constrangedor, adquirir uma felicidade latente e evidente, como a minha, por algo tão pequeno. O órgão entre meus pulmões saltava continuamente a cada momento assim.

Por isso, mesmo que eu me frustrasse e aborrecesse-me com o quanto era fraco em relação aos apelos do idiota que morava comigo, na maioria das vezes, não conseguia deixar de atendê-los.

Eu queria retribuir a consideração que ele tinha por mim.

Fomos à sala. Sentei-me ao piano e Gilbert deitou-se no sofá em uma cena angustiantemente familiar.

Admito que, por um momento, passou por minha mente a ideia de tocar alguma composição de Tchaikovsky. Entretanto, lembrei-me do que Francis havia me dito. Relações entre amigos não podiam ser comparadas. Comparações, em si, deveriam ser evitadas. Por algum motivo, com essa recordação, perdi o interesse em tocar algo daquele compositor e realizei uma escolha diferente.

Comecei a tocar “O cisne” de Saint-Saens.

Suavemente. Delicadamente. Sensivelmente.

As minhas notas também moviam-se com a lenta graciosidade daquela ave, como se deslizassem por um lago de águas profundamente azuis e quietas.

“Le Cygne” de Saint-Saens. Ela era a única parte do “Carnaval dos animais” que ele permitiu que continuasse a ser apresentada em público, durante sua vida. Uma comovente e cativante composição que expressava a melancólica beleza associada a uma antiga lenda sobre cisnes. Durante a era clássica, acreditava-se que esses eram aves mudas até suas mortes aproximarem-se, quando entoavam o mais belo dos cantos.

Aquela lenda, assim como a composição, era tão tocante quanto triste.

Infelizmente, não pude presenciar o comovente canto final de um cisne, quando tocava, pois todas as notas refletiam um teor adocicado e úmido que era unicamente meu.

Eu não poderia centrar-me inteiramente no piano, pois não conseguia parar de pensar em Gilbert.

Apesar de ter afirmado que seu convite não tinha a intencionalidade de um encontro, havia um significado em seu pedido. Essa seria a primeira vez que estaríamos juntos, não pelo fato de sermos colegas de quarto ou por sermos pianistas, mas por sermos...

“Amigos.” – assegurei-me.

Sim. Amigos. Minha amizade era diferente da que ele possuía com Arthur. Era diferente da que ele possuía com seus outros amigos. Contudo, não era menos importante. Éramos amigos.

Apenas amigos.

Suspirei.

Por que eu deveria ficar nervoso com o convite dele? Era anormal que eu me sentisse daquela forma. Nós, provavelmente, nem sairíamos. Não havia chances de que uma recuperação abrupta ocorresse. No domingo, a sua febre permaneceria e ele, rindo nervosamente, daria uma desculpa qualquer para explicar por que seus “incríveis anticorpos” não atuaram, conforme sua vontade. Nós, então, desmarcaríamos nossos planos e o dia prosseguiria sem mudanças ou afetações. Apenas isso.

Eu não deveria pensar muito no convite de Gilbert. Ele não resultaria em nada.

Convencendo-me disso, readquiri minha coragem e prossegui a tocar o piano, apreciando a calma e conforto que aquela composição em legato me trazia. Eu o toquei com sinceridade e permiti que esse me absorvesse, como se águas límpidas, fluidas e frias envolvessem-me completamente. Imergi profundamente naquela peça, permitindo que ela diluísse questões que eu ansiava esquecer.

Ao fim de minha apresentação, pude ver que Gilbert havia adormecido no sofá. Ele dormia com a expressão inocente de uma criança e o seu corpo movia-se lentamente, com a sua respiração. O que me fez sorrir discretamente e balançar meu rosto. Como ele pretendia se recuperar, dormindo sem uma coberta? Suas propostas e ações eram contraditórias.

Enquanto dirigia-me a seu quarto para trazer-lhe um cobertor, fui consolado pela convicção de que não era possível que pudéssemos sair no dia seguinte e, serenamente, pus de lado meus pensamentos anteriores e comecei a preocupar-me com a louça que teria de lavar.

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A manhã seguinte foi a mais dourada daquele outono. As árvores haviam se trajado por completo em tons alaranjados. Uma parte das nuvens cinzentas se dissipou, permitindo, parcialmente, a chegada de raios de sol que coloriam as horas da manhã, como se o pôr-do-sol se aproximasse.

Eu observei o cenário, por trás de minha janela, com perplexidade e admiração. Após tantos dias cinzentos, era inesperado que uma cintilante manhã como aquela surgisse. Perdi-me naquela paisagem, momentaneamente, até perceber com maior perplexidade e sem qualquer sentimento de admiração, uma estranha figura imersa nela. Entre as folhas vermelhas, espalhadas pelo chão, encontrava-se meu, supostamente acamado, colega de quarto.

“O que ele está fazendo?!”

Não posso definir o meu susto.

Aquela manhã, embora mais colorida do que as demais, era igualmente fria. Havia uma temperatura de quatorze graus, registrada no termômetro da sala. Era, portanto, surpreendente que meu colega de quarto estivesse nesse frio, sem um casaco, brincando por entre as folhas secas, como um filhote solto em um jardim, quando, dentro de meu conhecimento, ele estava doente.

Não pude decidir se Gilbert era extremamente irresponsável ou simplesmente estúpido e acabei por concluir que era ambos. Era um insulto que ele brincasse, daquela forma, após todos os meus esforços, no dia anterior, para que ele se recuperasse. A minha irritação crescia a cada relance que lançava a ele. Resoluto a interrompê-lo, vesti meu casaco, meu cachecol e minhas luvas e desci as escadas, em uma marcha firme e apressada.

Quando, finalmente, pude alcançá-lo, não pude mais me conter e, exacerbado, exclamei, com os punhos cerrados:

– Qual é seu propósito com esse comportamento, seu tolo?!

Ao ouvir-me, ele voltou-se para mim. Parecia positivamente surpreso.

– Rod! Você viu?! Você viu?!

– Como eu poderia deixar de ver a sua conduta repreensível? O senhor percebe que está diante da janela do nosso apartamento?

– Eu estou bem! – ele exclamou e, aproximando-se de mim, forçou-me a recuar.

– Hã?

– Eu estou bem! Não estou com febre! Os meus incríveis anticorpos concluíram seu honroso dever! – disse, ainda avançando em minha direção, com os braços um tanto abertos, como se objetivasse pôr as mãos em meus ombros.

Com sua aproximação, eu vi em seus olhos que ele dizia a verdade. Gilbert estava bem. Ele havia se recuperado. E eu estava ciente do significado que havia nisso.

Eu não sabia o que dizer. A melhora dele rompia as expectativas que dedicadamente construí e, naturalmente, ela deixou-me muito desnorteado. Não sabia se deveria ficar feliz ou triste com a ocorrência daquele acontecimento e, naquele instante, nem era capaz de ter uma dessas emoções. Estava completamente absorto por minha confusão e choque.

–... Isso não é possível. – disse, em uma voz baixa e atordoada, com minha boca entreaberta. - Uma recuperação momentânea não significa que...

Kesesese! Suas desculpas não adiantarão nada, jovem mestre! – ele interpôs-se, alegremente, dando de ombros, com um sorriso que quase destilava um sentimento de vitória - Você terá que ir a um encontro com o incrível eu!

– Eu nunca concordei em ir a um encontro. – foi tudo que pude dizer.

– Foi você que sugeriu que fosse um encontro, contraditório aristocrata, mas tudo bem! - pondo as mãos em seus bolsos, ele agitou seu rosto, com seus olhos fechados, conservando um tênue sorriso que exprimia uma mescla entre ironia e complacência - Sinto-me muito bem-humorado e não implicarei com você, em relação a isso. Encare como um encontro, como um passeio entre amigos, como quiser... O que importa é que você será meu acompanhante, essa noite, jovem mestre!

– Oh, céus... – murmurei desorientado e aflito.

– O que há com você? – ele riu brevemente de minha mortificada reação - Não seja tímido! Sinta-se livre para expressar sua felicidade e eterna gratidão, Rod!

Ele encarava-me diretamente, com seus lábios curvados em um sutil sorriso irônico, e um semblante determinado expressando confiança e entusiasmo. O meu ânimo e o de Gilbert não poderiam ser mais contrastantes. Presenciar a casualidade com a qual meu colega de quarto percebia o passeio que faríamos, enquanto esse mesmo evento suscitava-me nervosismo, apreensão e dúvidas, levou-me a recriminar-me por conferir dimensões excessivas ao que aconteceria naquela noite.

Gilbert não estava conferindo um significado àquele momento, portanto, eu também não deveria fazê-lo.

– Não são esses os meus sentimentos. – respondi, por fim, inexpressível, voltando-me à construção onde morávamos - De qualquer modo, venha comigo. Você não deveria estar nesses trajes, quando a temperatura está...

Não pude prosseguir minha colocação, pois folhas amarelas atingiram a lateral do meu rosto.

– O que foi isso? – perguntei, com contida raiva, franzindo minhas sobrancelhas e pondo minha mão na parte atingida de meu corpo.

Kesesese! Essa aparência combina com você, jovem mestre! – Gilbert sorriu debochadamente, com a mão repleta de folhas e os olhos preenchidos com a intenção de jogá-las em mim.

Respirei profundamente, antes de responder um tom calmo e severo:

– Senhor Gilbert, eu apreciaria imensamente, se você pudesse conter seu acesso de imaturidade e agir como alguém da sua idade.

– Eu entendo.

– Mesmo? – voltei-me para ele, surpreso.

Dessa vez, uma chuva de folhas amarelas, marrons e vermelhas pareceu cair sobre mim. Muitas, muitas folhas.

– PFFF! Você realmente fica bem assim, jovem mestre!

Tencionei dirigir-lhe uma ofensa, mas detive-me ao ver o modo como ele sorria. Não havia ironia, deboche ou escárnio em seu sorriso. Ele era morno, adocicado e sincero. A hipótese de que ele estivesse tão feliz, simplesmente porque sua melhora significava que iríamos ao teatro, provocou-me a sensação de que algo borbulhava dentro de mim.

Uma sensação que era tão deleitável quanto importuna e que eu não gostaria de exibir ou sentir.

– Vamos. – solicitei, com minha voz abafada e contida, desviando meu olhar. Voltei-me, novamente, ao nosso apartamento e fiz um gesto para indicar que ele deveria seguir-me - Eu tenho que preparar o nosso café-da-manhã.

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Aquele não seria um encontro, repeti mentalmente, enquanto colocava meu terno. Um encontro envolve duas pessoas que sentem um mútuo interesse romântico. O que não era o nosso caso.

Nós iríamos ao teatro por uma convergência de interesses. A única atração que nos unia era a que possuíamos por Shakespeare. Gilbert não havia feito esse convite com intenções questionáveis e eu não o aceitaria, caso ele as tivesse. Aquele não seria um encontro. Um teatro, repleto de atores que observam as interações de sua plateia, não seria um ambiente próprio para investidas românticas. O restaurante poderia ser um local um pouco mais propício para esses avanços, mas não era com esse intento que iriamos para lá. Nós jantaríamos fora, após a peça, porque estaríamos fome e seria, então, muito tarde para que eu me dispusesse a preparar o jantar. Apenas isso.

Aquele, portanto, não seria um encontro.

Gilbert sequer escolheria um restaurante suficientemente formal para que confundissem aquilo com um encontro. Havia a possibilidade bastante tangível de que “restaurante” fosse o termo utilizado por ele, para designar um bar minimamente organizado.

Apesar de acreditar nisso, eu ainda vestira o meu terno, cuidadosamente, embora, logo em seguida, tenha lançado um relance, com algum sentimento de culpa, ao espelho e questionado minha decisão.

Estaria trajando-me de uma maneira muito formal? Eu deveria me trocar? Não. Por que me trocaria? Era um costume meu, vestir-me com distinção e não deveria mudar, apenas porque meu acompanhante, possivelmente, não escolhera um elegante cenário para o nosso passeio entre amigos. Se tentasse conferir certa casualidade à minha aparência, pareceria que eu estava tentando adaptar-me aos gostos e escolhas de Gilbert. O que eu não faria, visto que aquele não era um encontro.

...Por outro lado, usar um terno poderia, em uma errônea interpretação, significar que eu tinha expectativas de que Gilbert agisse como se, de fato, estivéssemos em um encontro.

Eu estava começando a ficar bastante confuso.

– Rod, quanto tempo você irá demorar?! – meu colega de quarto berrou, do outro lado da porta.

– Não seja impaciente.

– Bem, foi o que você me disse há vinte minutos e veja o progresso que tivemos! – ele exclamou, acusatoriamente, sendo um tanto irônico em sua queixa.

– Pois bem. Espere um pouco. – solicitei, brandamente.

Lancei um relance final ao espelho, antes de decidir que conservaria o terno. Era o tipo de vestimenta que mais me aprazia e não havia necessidade de que a modificasse. Gilbert não veria um significado em minha escolha, afinal, para ele, aquele também não seria um encontro.

Ele estaria sendo precipitado e arrogante, caso cogitasse que eu havia selecionado o meu terno por outra razão, senão meu próprio interesse em trajar-me assim.

Enfim, não tínhamos que reparar em nossas roupas ou ponderar sobre as razões de nossas escolhas, pois aquele não era um encontro.

Com essas conclusões, saí de meu quarto, abrandado por minha firme convicção de que havia tomado uma decisão apropriada.

Entretanto, meu instante de serenidade e segurança, novamente, foi efêmero. Quando fechei minha porta e deparei-me com meu colega de quarto tive uma visão que disparou uma série de pensamentos confusos e caóticos em minha mente, como se minha racionalidade fosse uma cúpula de vidro que havia sido arremessada violentamente contra o chão.

– S-Senhor Gilbert...?

– Hum?

– P-Por que... – céus, eu não estava conseguindo falar e respirar simultaneamente! -P-Por que o s-senhor está...v-vestido dessa forma? – havia aflição e, não tenho dúvidas disso, uma considerável porção de constrangimento no modo como fiz essa pergunta. Senti-me engolir em seco, diversas vezes, durante a realização dessa questão. O meu rosto ardia. Ardia terrivelmente.

Afinal, diante de meu olhar atônito e nervoso encontrava-se meu colega de quarto, utilizando um terno.

Um terno.

Meu colega de quarto, Gilbert Beilschmidt, usando um terno.

– Do que você está falando, jovem mestre? – ele perguntou, com visível estranhamento – Você também está vestindo assim. O quê? – os cantos de sua boca curvaram-se em um sorriso mordaz - Em mais um momento de teorias conspiratórias, você concluiu que eu me vesti dessa forma, apenas para provocá-lo, imitando as suas roupas aristocráticas? Kesesese! Você realmente deveria dedicar-se a escrever livros dramáticos, jovem mestre!

– N-Não! E-Eu não imaginei que tratava-se de algo assim! E-Eu apenas...!

Ele ergueu uma sobrancelha.

Engoli em seco, novamente, e abaixei meu rosto. Minha sensação febril tornava-o muito pesado para manter-se erguido.

– E-Eu não imaginei que você se vestiria de um modo tão formal...

– Bem, como você sabe, eu não gosto de usar essas roupas, jovem mestre. – ele admitiu e, ao prosseguir, fê-lo com uma expressão ligeiramente contrariada - No entanto, não tenho outra opção. O restaurante que reservei não aceita que seus clientes vistam-se de outro modo, então...

– Espere um pouco. “Reservas”? “Não aceita que seus clientes vistam-se de outro modo”? Isso significa que o senhor realmente pretende levar-me a um restaurante?

Gilbert, em resposta, olhou-me com a mesma confusão e espanto que expressaria, caso eu começasse a falar em russo. Ele parecia não ver nenhum sentido no questionamento que eu havia feito a ele.

– Logicamente, jovem mestre! Não havia sido isso que tínhamos combinado?

– Eu pensei que, por restaurante, você se referisse a um pub ou algo similar...

– De modo algum, Rod. Não subestime os meus incríveis planos. O restaurante que reservei é tão aristocrático que tive que fazer minha reserva há duas semanas! Seja grato pela infinita consideração do incrível eu!

“... Duas semanas?”.

Na verdade – e eu não poderia dizer isso a Gilbert – a consideração dele assustava-me muito. Eu me sentiria mais aliviado, sabendo que ele me levaria a um pub ou outro ambiente igualmente informal e desagradável, do que sabendo que ele encarava com tamanha seriedade o passeio que faríamos.

Afinal, diante daquela inesperada gentileza, eu não podia deixar de questionar-me, o que ele almejava com aquilo. O que ele poderia querer, considerando-se que aquele não era um encontro?

–... Eu pensei que você havia adquirido recentemente os ingressos com o senhor Arthur. – disse, em um fio de voz, enquanto meus olhos, inteiramente voltados a observá-lo, piscavam rapidamente.

– Sim. E o que tem isso? – ele inclinou sua cabeça para o lado, novamente um tanto confuso. Em seguida, prosseguiu com um sorriso calmo e confiante - Eu planejava levá-lo para jantar, antes de receber esses ingressos, mas, como sou tão incrível, consegui um elemento adicional para incrementarmos a nossa noite!

Eu planejava levá-lo para jantar, antes de receber esses ingressos.

– P-Por que você faria algo assim? Se você deseja jantar com alguém, por que não outra pessoa como...?

– O Arthie? – ele sugeriu, implicantemente, com um amplo sorriso que parecia prestes a tornar-se um riso de deboche - Jovem mestre, não seja tão possessivo. A sua namorada imaginária ficará com ciúmes.

– Ela não é imaginária!

– Sim, sim. – ele revirou os olhos e deu de ombros - Afirme isso para si mesmo, caso isso o conforte, jovem mestre. De qualquer modo, deixe-me chamar um táxi. Nós não temos muito tempo para chegarmos ao teatro e seria terrível se a primeira parte do nosso... Como você decidiu chamar o que faremos essa noite?

Repliquei imediatamente a essa questão, que sequer deveria ser necessária, com velocidade e força. Cerrei meus punhos e disse, em um único fôlego, em um tom firmemente recriminativo:

– Nós estamos apenas fazendo um passeio entre amigos. Se houver, em seus intentos, outros planos, eu...

– “Passeio entre amigos”, huh? – ele me interrompeu, lançando um relance para o teto, com sorriso de profundo divertimento, parecendo utilizar-se de um momento para degustar minha escolha de palavras. - Conforme queira, jovem mestre.

Dizendo isso, ele dirigiu-se ao telefone e deixou-me parado no centro da sala, envolto em um maremoto de pensamentos e emoções.

Aquela noite não decorria como esperara.

Em primeiro lugar, em minhas expectativas - na verdade, previsões - Gilbert usaria suas roupas casuais e debocharia da formalidade de minhas vestes. Na realidade, ele usava um terno – um terno! – e sequer havia comentado o meu, como se não cogitasse que eu pudesse vestir algo diferente disso.

Em minhas expectativas, como mencionei, eu esperava que ele levasse-me para jantar em qualquer ambiente em que houvesse uma abundância de comidas e bebidas, preparadas rapidamente. Entretanto, ele havia escolhido um restaurante, dentro de minhas preferências, e havia reservado nossa mesa, com duas semanas de antecedência.

Em minhas expectativas, ele havia pedido os ingressos a Arthur, simplesmente, por estar entediado e escolhera-me, possivelmente por gratidão, devido aos meus cuidados com ele, como seu acompanhante. Na realidade, ele já planejava sair comigo e seu motivo para pedir os ingressos seria para acentuar a qualidade de nossa noite.

Por fim, em minhas expectativas, aquele era um passeio entre amigos, no entanto, a cada instante que passávamos juntos, ele parecia-se mais e mais com um...

“Esse não é um encontro.” – reafirmei, severamente.

Encarei Gilbert, acusando-o com meus olhos, pela confusão e aborrecimento que ele forçava-me a vivenciar. A culpa, evidentemente, era dele. Não fossem as maliciosas sugestões que ele fazia, sempre que falávamos sobre o passeio que faríamos, eu não estaria desconcertado com a possibilidade de que ele encarasse nossos planos para aquela noite, de uma forma diferente da minha. Sim, talvez o excessivo empenho que ele aplicara para propiciar-me momentos agradáveis, deixasse-me um tanto confuso, contudo, eu rapidamente tomaria aquelas atitudes como provas de uma amizade sincera e daria o assunto por encerrado.

No entanto, aquelas insinuações, aquelas persistentes insinuações, não permitiam-me diminuir minha resistência e ansiedade. Por que ele teimava em fazê-las? E se tinha tanto gosto em fazê-las, por que não fez alguma a respeito de meu terno?

Não que eu desejasse algo assim.

Era apenas um tanto inesperado que ele não houvesse comentado algo. Ele comentara fartamente sobre o meu avental e minha ausência de óculos. Por que não sobre meu terno? Ele não gostara do que eu havia escolhido?

Eu não ficava bem em ternos? Era isso?

Indagando-me sobre isso, lancei um olhar avaliativo a Gilbert, perguntando-me se ele tinha algum direito de julgar a minha aparência com um terno, considerando-se que uma vestimenta assim sequer deveria combinar com ele.

No entanto, ao deter-me para noticiar a aparência de Gilbert – que, distraidamente, tentava ligar para um táxi, sem perceber a intensidade de meu olhar irascível - tive um sobressalto febril por perceber que, a despeito de todas as minhas críticas quanto a meu colega de quarto e do fato que ele nunca, nunca me pareceria atrativo, eu não conseguia negar, para mim mesmo, que ele ficava muito bem em um terno.

Arregalei meus olhos, mortificado com minha própria conclusão.

Como podia pensar que Gilbert ficava tão bem em um terno? Quando o vi assim, pela primeira vez, em sua apresentação da Forlane, ele não me provocou nenhuma impressão. Todavia, agora, no primeiro momento em que tencionei observar a sua aparência – e não os seus modos, hábitos ou sentimentos – eu tive essa realização intensamente importuna.

Gilbert ficava bem em um terno. Muito bem, para ser franco. E, observando-o atentamente, sob aquela óptica puramente física, pude entender parcialmente por que tantas pessoas consideravam aquele tolo incorrigível como alguém atraente.

...Céus. Por que eu havia percebido isso, em um dos piores momentos para possuir um pensamento assim? As atitudes estranhas de Gilbert, claramente, estavam influenciando-me!

Eu não devia ponderar sobre a aparência de Gilbert, quando estávamos prestes a irmos para o nosso passeio entre amigos. Nosso programa não exigia esse tipo de reflexão e, sinceramente, a existência delas apenas nos traria incômodos e desconfortos.

Instintivamente, desviei meu olhar e deixei que ele valsasse pelo chão de nossa sala, como, do lado de fora, as folhas secas passeavam aleatoriamente, carregadas pelo vento. Estava absolutamente quieto e o único som que rompia o silêncio era a voz de Gilbert fornecendo o endereço de nosso apartamento.

Mal noticiei, quando ele terminou. Minha distração envolvia-me como uma névoa branca e espessa. Somente percebi que deveríamos descer, quando senti-lo puxar meu braço, forçando meu retorno à realidade, e noticiei sua aproximação. O susto provocou uma instantânea e abrupta aceleração em meus batimentos cardíacos.

– Perdoe-me atrapalhar seus devaneios românticos, jovem mestre, mas nós precisamos descer. Você terá tempo para isso, durante o nosso – ele revirou os olhos e lançou-me um tênue sorriso mordaz – “passeio entre amigos”.

Gilbert estava apenas sendo implicante, mas havia um mínimo toque de verdade em seu ponto e acabei chateando-me mais do que deveria.

– Esse é apenas um passeio entre amigos! – disse, desvencilhando-me dele, com meu rosto tomado por ardor - Se você não pode vê-lo desse modo, encerraremos nossos planos!

– Do que você está falando, Rod? – ele questionou, cinicamente, com uma expressão confusa que, diferente das anteriores, era completamente proposital - Quem disse que eu o vejo de outro modo? E que modo seria esse?

–... Esqueça. – suspirei profundamente, forçando-me a ser paciente- Vamos.

Kesesese! A temperatura está em doze graus, Rod! Você não sofrerá um congelamento instantâneo, assim que atravessar a porta?

– Eu não o sofrerei, caso você apanhe meu cachecol e meu casaco. – sugeri, com suave autoridade.

– Conforme queira, jovem mestre. – meu colega de quarto dispôs-se, prontamente, com um largo sorriso repleto de incompreensível ironia - Alguém tão incrível não poderia recusar um pedido modesto de seu acompanhante em um passeio entre amigos...!

Não ignorei a considerável porção de ceticismo e sarcasmo que ele utilizara, ao concluir sua sentença, e, em resposta, encarei-o, gelidamente, intensamente recriminativo. Ele apenas riu e deu-me as costas, dirigindo-se ao meu quarto.

Senti sua ausência com algum conforto e alívio, pois ela me permitiria acalmar os meus fortes batimentos cardíacos que não tornaram-se a se estabilizar, desde o momento do meu susto.

Esses batimentos eram audíveis, persistentes e rápidos e, cada um deles, trazia-me uma sensação nauseantemente adocicada e um temor profundo de que meu colega de quarto pudesse percebê-los tanto quanto eu.

Eu esperava ansiosamente que meu coração se desacelerasse e era essa a única ação que me era possível. Esperar. Afinal, ele, cedo ou tarde, iria se acalmar. Ele tinha que se acalmar.

“Isso é ridículo. Eu não devo ficar tão apreensivo com um passeio entre amigos. Eu...”.

Antes que Gilbert ou minha calma retornassem, ouvi batidas na porta. Tão leves e suaves que não pareciam similares àquelas que pertenciam aos nossos conhecidos. Estranhei. Quem seria, naquele horário? Não esperávamos visitas.

Presumi, após uma rápida ponderação, que deveria ser a proprietária. Devido aos dias atribulados que tivemos, o pagamento de nosso aluguel estava ligeiramente atrasado. Era descortês e pouco gentil da sua parte importunar-nos com reclamações, durante a noite, contudo, eu estaria agindo com semelhante incivilidade, caso optasse por ignorá-la, logo, decidi abrir a porta.

Eu não tinha qualquer ideia de como aquela decisão afetaria drasticamente o meu destino.

Caso soubesse, não sei se decidiria abrir ou não aquela porta. Se eu conhecesse o peso de minha ação, o que ela desencadearia, não teria agido com tamanha indiferença e despreocupação.

No entanto, naquela época, eu desconhecia o que estava por vir. Ao abrir a porta de nosso apartamento, apenas esperava conceder algumas explicações para o atraso de nosso aluguel. Eu a abri, sem ter consciência do que aquilo significaria, para mim, em um futuro próximo.

E quando vi a pessoa que aguardava-me, por trás dela, fui tomado por uma gélida perplexidade, como se, além de meu espanto, pressentisse, de certo modo, a tempestade que estava por vir.

– O-Olá, senhor Roderich! Eu vim em uma má hora?

Por trás da porta, com um grande - embora tímido - sorriso, segurando diversas malas, encontrava-se a minha amiga-de-infância, a senhorita Elisaveta.

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Notas finais do capítulo

Sigh. Eles chegaram tão perto...Tão perto...
Agora, chega de fluff! A tempestade se iniciou! Muahauahuahua! Os meus divertimentos sádicos, como autora, finalmente, começarão!
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NOTAS IMPORTANTES: DÚVIDAS MAIS RECORRENTES DOS LEITORES DE OBAKA-SAN!
01. "Você demonstra possuir tantos conhecimentos sobre música clássica! Como você sabe sobre tudo isso? Você toca algum instrumento?".
R: Não, não. Eu, infelizmente, não toco nenhum instrumento, embora tenha interesse em aprender piano. Os meus conhecimentos sobre música clássica derivam-se da minha enorme apreciação por esse gênero que me levam a pesquisar BASTANTE sobre ele. Sites de orquestras internacionais, teses e dissertações de estudantes de música, livros sobre o assunto...Essas são minhas principais fontes de pesquisa e, geralmente, as consulto em meu cotidiano e quando desejo aprofundar meus conhecimentos sobre as composições que coloco na fic. Essa é umas das razões pela qual eu demoro tanto a terminar os capítulos.^^º
Muitos leitores dessa fic mostraram um interesse pelo violino e eu não posso deixar de achar isso um tanto engraçado, considerando-se que esse sequer é o instrumento que a fic explora!XD
Não que eu possa reclamar...O piano, na verdade, é meu segundo instrumento preferido. O primeiro lugar pertence ao violoncelo.
02."Em que momento o Gil se apaixonou pelo Rod? Mostre o ponto de vista dele!."
R: Como já comentei com algumas leitoras, eu não posso atender a esse pedido. Um dos grandes pontos de Obaka-san! seria a utilização do ponto de vista do Roderich como uma forma de confundir os leitores, ludibriá-los e fazê-los interpretar, por conta própria, diversos momentos da fic em que algo parece implícito. :3
Para o consolo dos que desejam, ao menos, ter uma noção do que se passa na mente do Gilbo, eu já havia planejado, antes desses pedidos, um capítulo-extra narrado por ele. Esse capítulo não se focará em questões passadas, pois haverá um conflito presente a ser resolvido, contudo, poderá exibir bem os sentimentos e pensamentos dele. Esse capítulo será lançado, quando estivermos no terceiro capítulo de "Wanker!", a próxima fic da série.
Sim, sim. Eu já planejei tudo isso.
Inclusive, em "Wanker!", o ponto de vista do Alfred será aquele explorado e, quando estivermos em um dos capítulos de "Kuso, kono yaro!", eu postarei o capítulo-extra dessa fic, sob a óptica do Arthur.
E o que acontecerá em "Kuso kono yaro!"? Bem, deixemos isso para outro momento! Não vamos mergulhar tanto no futuro!:)
03."Eu ainda não sei como utilizar os links das músicas para o capítulo e variações como 'Não sei qual é a música correta para o momento.', 'Não é pouco prático que eu tenha que subir toda a página para ouvir a composição que preciso?' e etc.
R: Pois bem. Vamos a uma ampla explicação - que se consistirá, sobretudo, de sugestões - sobre o modo como combinar as composições com a história.
A música do capítulo é aquela que confere seu nome a ele. O seu link é o único disponível no próprio corpo da fic. Ela, de um modo geral, combina com a atmosfera do capítulo, portanto, você pode ouvi-la, durante toda a sua leitura.
As outras composições, por sua vez, são específicas de algumas cenas e há momentos certos para colocá-las, a fim de gerar um efeito maior. Geralmente, elas podem ser escutadas, assim que os personagens as tocam. No entanto, há casos em que é melhor escutá-las, quando um determinado personagem a toca em um dado momento. Eu sempre avisarei, quando essas forem as circunstâncias.
E vocês não precisam subir a página a cada composição! Se abrirem abas com o número de músicas disponíveis e colocarem cada vídeo para carregar, vocês poderão escutá-las, sem problemas, no decorrer da fic! Pelo menos, é isso que faço, quando releio meus capítulos!^_^º
Espero ter conseguido ajudá-los!:)
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NOTAS FINAIS: PROJETOS
Para os que não sabem, informo que estou fazendo parte de dois projetos, no momento, que possuem, como intuito, aumentar a quantidade de PRUAUS no Nyah!. Ambos constituem-se de uma coletânea de one-shots, baseadas em desafios, sendo que, em uma delas, eu sou apenas a organizadora e, na outra, sou a autora de todas as ones.
O primeiro projeto chama-se "Imagens, sons e sentimentos" e já conta com a participação de várias autoras. Ele já foi iniciado e eu realmente tenho apenas elogios à one-shot da Kaori-dono, a primeira da coletânea. Eu também faço parte dos leitores ansiosos,aguardando as próximas ones, então unam-se a mim!:3
As minhas ones, por sua vez, também foram baseadas em um desafio inspirado nas cores do arco-íris(/o/)! Eu explicarei melhor os termos desse desafio, quando terminar de escrever a primeira! Eu espero terminá-la até o dia dos namorados! O nome dela será "Flores para um aristocrata", cuja cor seria o anil!:)
Encerro, aqui, os meus avisos! Obrigada por terem a paciência de lê-los!
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O capítulo seguinte, conforme eu disse, será o capítulo que marcará o meio da série. Muito obrigada a todos que a acompanharam até esse ponto! Eu sou sinceramente grata a todos os comentários e apoio que recebo! Se possível, por favor, continuem a ler, comentar e acompanhar essa fic! Reviews são grandes incentivos que recebo com grande deleite!:3
Até breve!:)