Obaka-san! escrita por Mayumi Sato


Capítulo 10
09. Le Cygne(Saint-Saens)


Notas iniciais do capítulo

http://www.youtube.com/watch?v=Ry6CJOEmSeI&list=PL3648F0177AE76819&index=52&feature=plpp_video - Le tombeau de Coperin
http://www.youtube.com/watch?v=6TrCDlvhrkg&feature=BFa&list=PL3648F0177AE76819 - Junho, Barcarolle
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Vocês conhecem a tradição: a música do capítulo pode ser ouvida, durante a sua leitura, mas as demais devem ser escutadas, apenas no momento da história, em que as executam.:)
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Liebestraum - Tradução: Sonho de amor
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Olá, queridos leitores! Como ocorreu, anteriormente, esse capítulo ficou grande demais e tive que dividi-lo em duas partes! Como resultado, eu estou postando a primeira parte, agora, e postarei a segunda, dentro de poucos dias!:3
PERDOEM-ME, SINCERAMENTE, PELO MEU ATRASO. Assim como a faculdade provoca a demora de alguns comentários, ela também provoca uma demora um pouco maior da autora. Culpem a fonologia por meu atraso, sim? ^^º
Leitores novatos, sejam bem-vindos!
As notas finais do próximo capítulo serão muito importantes, pois farei esclarecimentos gerais sobre as dúvidas mais frequentes dos leitores e comentarei sobre um projeto meu.:3



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http://www.youtube.com/watch?v=Hr7h8FPiAnw&feature=BFa&list=PL3648F0177AE76819&index=62– Le Cygne(Saens)

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09.

– Le Cygne -


Eu concordei que Gilbert tocasse o piano, contudo, em nenhum momento, meu coração concordou com isso. Esse foi o motivo pelo qual, durante toda a minha espera por sua apresentação, não consegui conter minha apreensão e descontentamento.

Enquanto aguardava pelo início daquele recital, os meus sentimentos sofriam variações profundas, decorrentes do conflito entre meu lado pragmático e emotivo. Mesmo que minha racionalidade insistisse que Gilbert era um tolo irresponsável que nada mais merecia, além de silenciosas condenações de minha parte, e que eu não deveria deixar de usufruir àquele recital por sua causa, uma força, tão inexplicável quanto inevitável, motivava meus olhos a percorrerem todo o teatro na expectativa de encontrá-lo.

Eu gostaria de ver aquele idiota. Eu queria que ele desistisse de se apresentar e aparecesse, dizendo que deveríamos ir para casa. Assim, eu poderia fingir que estava aceitando sua proposta a contragosto e não pareceria estar cuidando dele por minha sincera preocupação com meu colega de quarto, mas por um altruísmo cortês que forçava-me a aceitar o apelo de uma pessoa debilitada. Eu queria vê-lo. Eu queria vê-lo. Desejava brigar com ele por ter feito uma decisão que provocou, em mim, tamanha inquietação.

Eu não queria que Gilbert tocasse.

Por pensar assim, quando as luzes se apagaram e ele subiu ao palco, com o início de um sorriso que possuía um incontido divertimento quase cruel, com suas faces vermelhas e uma respiração ofegante, eu afundei meu rosto em minha mão e dei um longo suspiro cansado.

Meu colega de quarto era um inconsequente. Ele não reconhecia sua insensatez e tinha tamanha confiança em sua capacidade de superar, por conta própria, suas dificuldades que, mesmo ardendo em febre, ainda conseguia olhar para o público como se risse internamente da inferioridade de cada um deles, que logo seria evidenciada por sua apresentação.

O sorriso de meu colega de quarto, naquele momento, era extremamente similar ao de um general percebendo que as tropas inimigas cairão em sua armadilha. Eu o vi como a comprovação de que Gilbert não possuía qualquer bom senso. Eu não poderia detê-lo. Ninguém poderia detê-lo. Os seus olhos ardiam com determinação e confiança. Consciente disso, eu apenas pude torcer que sua apresentação não fosse inteiramente estragada por sua febre e que ele não tivesse um colapso em seu decorrer.

Após fazer uma breve reverência formal aos presentes, ele sentou-se ao piano. Mortifiquei-me ao perceber que não havia uma partitura nesse. Ele tocaria de memória? Com febre?

“Há limites para o convencimento, seu tolo!” – foi necessário um grande esforço de minha parte, para conseguir evitar meu impulso de erguer-me de minha cadeira e gritar isso a ele.

Os segundos que antecederam a apresentação de Gilbert foram o auge de meu pessimismo. Eles provocaram o cessar de minha respiração e o surgimento de uma sensação fria e adocicadamente nauseante que desceu por meu corpo. Ele não conseguiria tocar. Eu estava certo que ele não conseguiria. Aquela apresentação seria um fracasso. O que ele estava pensando ao aceitá-la? O que eu estava pensando, quando permiti que ele viesse? Ele parecera tão seguro de si, quando afirmara que poderia tocar, que acabei sendo movido por sua convicção e permiti que a situação chegasse àquele ponto...

Eu havia cometido um grande erro.

Ansioso, não pude deter meus pequenos movimentos inquietos em minha cadeira. Sim, Gilbert demonstrara uma enorme confiança em sua capacidade, mas, pensando melhor, quando ele não havia feito isso?!

Céus. Gilbert iria desmaiar. A sua febre chegaria aos quarenta graus. Talvez já houvesse chegado. Abatido pela doença, ele faria uma apresentação pior do que a de uma criança de três anos...!

As límpidas primeiras notas da Forlane interpelaram meus devaneios sombrios.

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Antes de escutar a execução de Gilbert, eu estava tão convicto de que ela seria arruinada pela condição de sua saúde que consideraria um feito se ele ao menos conseguisse concluir aquela composição. Eu não condenaria seus erros ao tocar, pois o simples fato de ele conseguir tocar o piano com uma temperatura tão elevada era, em si, um feito. A estima que eu possuía por seu piano não sofreria reduções, ainda que ele errasse notas, tempos e escalas. Sentia-me disposto a ser complacente com qualquer resultado que ele exibisse, incluindo, claro, a possibilidade de que, no meio de sua execução, ele se erguesse do piano, murmurasse uma exclamação enraivecida e saísse do palco, sem dar explicações.

No entanto...

“Como...?”

Uma pessoa com febre não conseguiria executar a Forlane como Gilbert a tocava.

“Eu... não entendo... Como ele está... Como...?”

Um pianista comum não conseguiria executar a Forlane como Gilbert a tocava.

“... Como esse tolo pode tocar desse modo com uma febre tão elevada?!”

Eu não conseguia entender. Eu não conseguia entender! Meu colega de quarto estava doente, não estava?! Eu senti sua temperatura! Como ele poderia tocar daquele modo, quando mal podia sustentar seu corpo?! Aquilo não fazia qualquer sentido!

Meu primeiro sentimento, diante da execução de Gilbert, foi uma completa incredulidade.

Aquela composição não podia estar sendo tocada por alguém com febre. Não havia desordem, hesitação ou insegurança em suas notas, como o esperado do desempenho de alguém febril. Pelo contrário, cada nota sua deslizava com suavidade e distinção em uma execução que apresentava uma elegância sóbria. Havia uma dominância de meu colega de quarto sobre a composição, sobre seus movimentos e sobre a atmosfera que, gradativamente, construía. Ele possuía pleno domínio sobre o que tocava, não permitindo que uma única nota fosse desperdiçada.

Por tocar desse modo, ele, rapidamente, conseguiu retirar-me de meu estado atônito e dragar-me para os sentimentos de sua execução. Absorvido por esses, tornei-me incapaz de prosseguir a questionar o que escutava. Tornei-me incapaz de pensar algo, além da imagem que a composição me trazia.

Estrelas. Muitas estrelas. Milhares de estrelas.

Eu via Gilbert e o piano flutuando sobre o espaço, entre estrelas, cometas e galáxias.

Os crescendo e os decrescendo eram marcados pelas imagens de corpos celestes luminosos afastando-se ou aproximando-se do piano.

Havia algo de singular no estilo de Ravel que simplesmente lembrava-me o cosmo. Infinito, inexplicável e sereno. Essa característica dele era especificamente latente em sua Forlane. Especialmente, naquela de meu colega de quarto.

Minha imagem, certamente, era dotada de simplicidade, mas ela sugava-me, provocando-me uma emoção que eu não poderia nomear ou definir.

O contraste entre a escuridão do universo e as luzes coloridas dos corpos celestes e da agitação desses com a serenidade da execução de Gilbert não era violento, mas aprazível. Esses elementos antagônicos pareciam complementar-se perfeitamente, assim como a excêntrica mistura de estilos do próprio compositor. Da mesma forma como Ravel conseguira mesclar algo do período clássico, com o impressionismo vigente na época, o jazz e uma porção de seu próprio estilo e criar, utilizando-se dessa incomum mistura, uma peça deleitável, as oposições dentro meu cenário não eram conflitivas e, unidas, formavam uma paisagem que deixou-me completamente estático.

O modo como Gilbert executava aquela composição e o modo como ela atingia-me eram singulares e quase incompreensíveis, no entanto, eram inegavelmente belos e harmônicos.

Aquele sentimento não era propriamente alegre, embora estivesse próximo disso. Tampouco, triste. Se precisasse descrevê-lo, diria que ele era como a sensação de flutuar no vácuo ou como sentir seu corpo afundando gradativamente em águas frias e turvas.

“Equilíbrio”? “Leveza”? “Serenidade”? Qual palavra eu deveria associar àquilo que parecia ter separado meus sentidos de meu corpo?

As estrelas haviam tomado o teatro. Eu também me encontrava entre elas, apesar de seus movimentos sempre focarem Gilbert. Eu mergulhava em uma escuridão profundamente anil, onde não havia qualquer elemento da minha realidade concreta. Com exceção a Gilbert. Mesmo perante uma vastidão de estrelas, os meus olhos não se desviaram de Gilbert. Afinal, ele exibia aquela expressão séria que sempre provocava sufocantes ondulações dentro de mim, enquanto tocava aquela fantástica Forlane... Como eu poderia deixar de encará-lo? Mesmo que, com algum esforço, eu conseguisse fechar meus olhos e deixar de observá-lo, eu estava certo de que ele, inevitavelmente, apareceria em minha mente. Em minha imagem, para ser mais exato. Essa não seria a primeira vez que isso aconteceria.

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O encerrar da execução de Gilbert não foi abrupto. A sua execução lentamente foi se dissipando até que apenas restasse o silêncio. Um profundo e momentâneo silêncio, rompido por um cavalheiro que se levantou e aplaudiu meu colega de quarto vigorosamente.

Como se aquele som nos levasse a realização de que deveríamos reagir, todo o público saiu de seu estado de torpor, ergueu-se e aplaudiu o pianista sobre o palco com sincera admiração. Eu, particularmente, aplaudi-o tanto que minhas mãos passaram a arder.

Eu estava tão extasiado com a apresentação de Gilbert que demorei a perceber que havia algo errado.

Somente pude chegar a essa realização, quando alguém murmurou, no meio da ininterrupta chuva de aplausos, com uma voz suficientemente audível para que eu e a pessoa ao meu lado, a quem o comentário era dirigido, escutássemos:

– Por que ele não está se levantando?

Uma horrível sensação subiu por meu corpo quando ouvi essa sentença.

Por que ele não está se levantando?

Havia dois minutos que estávamos aplaudindo e meu colega de quarto ainda não se levantara do piano. Ele não se movera, desde o momento em que concluíra sua Forlane. Apenas permaneceu sentado, com sua cabeça abaixada, de um modo que me impossibilitava ver seu rosto.

Uma certeza atingiu-me com a dor aguda e imediata de um choque.

Gilbert não estava bem.

Aos poucos, outras pessoas começaram a desconfiar do que já me parecia uma verdade. Os aplausos começaram a ser cessados e substituídos por sussurros nervosos.

“O que está acontecendo?”. “Por que o pianista não está se levantando?”. Essas eram as perguntas mais frequentes. Porém, a minha dúvida era muito mais urgente e angustiante.

“O que eu devo fazer?” – eu me perguntava, atordoado e assustado.

O meu colega de quarto não estava bem e eu era o único que sabia a causa disso. Aquela febre inoportuna, enfim, conseguira derrubá-lo. Se Gilbert, com sua inesgotável energia e um ego ainda maior, não estava conseguindo levantar-se para receber aplausos, a sua situação devia ser grave. O meu senso de responsabilidade e a minha franca preocupação com aquele tolo incitavam-me a subir no palco e carregá-lo para o nosso apartamento ou – precisei conter um fundo suspiro, quando pensei nessa alternativa – a um hospital. Entretanto, eu não podia fazer isso.

Aquela era uma apresentação pública. Caso tentasse subir ao palco, seria impedido. Além disso, não seria bom para a reputação de Gilbert, como pianista, ser lembrado como aquele que desmaiou de exaustão, após tocar uma peça de Ravel. Nesse caso, como eu deveria agir? O que eu deveria fazer? Como eu poderia...?

Bloddy hell!

Essa irritada exclamação partiu de uma voz familiar e surpreendeu-me imensamente. Embora imaginasse que os outros amigos de Gilbert também estariam assistindo à apresentação, não pensei que essa seria a reação deles ao entender o que se passava com meu colega de quarto. Havia mais impaciência do que aflição em seu tom.

O senhor Arthur levantou-se de sua cadeira e deslocou-se pelo teatro, desviando-se de diversas pessoas até chegar ao palco em que subiu, sem hesitação. Eu estava perplexo com suas ações e ainda mais assombrado com o fato de que ninguém o detivera. Eu não podia entender por que Arthur Kirkland podia subir no palco de um teatro, durante um recital nacionalmente reconhecido, como se estivesse entrando em um cômodo de sua casa.

Arqueei imensamente minhas sobrancelhas ao vê-lo apanhar o microfone a sua frente e declarar, com certo aborrecimento:

– O meu nome é Arthur Kirkland e, como uma parte dos presentes reconheceu, eu sou aluno de condução do professor Müller no conservatório de música de Paris. O pianista que acabou de se apresentar chama-se Gilbert Beilschmidt, um idiota, cujo profissionalismo impede-o de desistir de uma apresentação, mesmo quando ele está tão doente que mal consegue andar... – ele parou de falar, por um momento, cobriu parte do seu rosto com sua mão direita e franziu as sobrancelhas, parecendo ter dificuldade em prosseguir -... Ele também é, de certo modo, um amigo meu. Ah! N-Não interpretem mal essa afirmação! D-De qualquer modo, eu estou preocupado com ele e irei levá-lo ao médico. P-Perdoem aquele estúpido, sentado ao piano, por fazê-los passar por essa situação embaraçosa. Eu teria o impedido se tivesse conhecimento das suas condições físicas, mas com uma Forlane como aquela, como eu poderia saber que ele estava doente?!

Esse comentário gerou risos e uma considerável redução na tensão que havia se estabelecido naquele ambiente. No entanto, eu não ri e meu coração não foi confortado ou acalmado por aquelas explicações. Ele ainda parecia preso entre as nuvens de uma tormenta.

Apenas entreabri minha boca, respirando lentamente. A distância entre o palco e o meu assento que, antes, parecia-me tão curta, tornou-se, para mim, quase infinita.

Eu e Gilbert estávamos separados pela intransponível distância de alguns passos. Uma distância que não abalou Arthur Kirkland e, por algum motivo, a casualidade com a qual ele a superou, comparada ao meu medo de impor-me ou de ser guiado por um impulso, machucou-me significativamente.

Tive que deter esse sentimento. Ele não próprio à ocasião. Entretanto, mesmo com um esforço para conter-me, uma questão vinha à minha mente como um doloroso sussurro do meu coração.

Por que era Arthur que estava sobre aquele palco?

– Ei, Francis! Antonio! Romano! Por que vocês estão apenas sorrindo como idiotas?! Venham me ajudar a carregá-lo! – brigou Arthur, gerando mais risadas. Provavelmente, o público pensava que ele estava brincando, o que era um grande engano. Sua exclamação fez-me erguer o rosto e tornar a fixar minha atenção no presente.

Após sua agressiva solicitação de ajuda, que mais soava como uma ordem do que como um pedido, Arthur encaminhou-se a Gilbert e tentou falar com ele, enquanto segurava e agitava seus ombros, como se tentasse acordá-lo. Enquanto ele estava ocupado com essa atividade, os outros amigos de Gilbert aproximaram-se do piano, sorrindo de forma extremamente irritante. Apesar de não entender por que eles estavam assim, eu compreendia o aborrecimento de Arthur com aqueles sorrisos.

Houve um conflito entre o senhor Arthur e os demais amigos de Gilbert, mas o consenso de que deveriam centrar sua atenção no indivíduo semiconsciente ao piano evitou que esse se estendesse. Antonio e Francis colocaram os braços de meu colega de quarto em torno de seus ombros e o carregaram consigo, sendo seguidos por Arthur que ainda reclamava de algo e por Romano que, possivelmente, nunca havia parado de reclamar em toda a sua existência.

Quando desceram do palco, finalmente, autorizei-me a segui-los e o fiz com pressa e ansiedade.

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– Hum... Jovem mestre?

Era a primeira vez, em horas, que eu ouvia a voz de Gilbert. Ela pareceu-me confusa e lânguida. Mesclava-se perfeitamente a seu estado febril e exausto. Pude ver que ele esfregava os olhos com um de seus punhos, como se fizesse um esforço consciente para despertar.

– Ah. Perdoe-me. Eu o acordei? – perguntei, fechando, delicadamente, a porta de seu quarto. Havia acabado de entrar naquele recinto e arrependia-me em ter feito isso. O barulho devia tê-lo acordado.

Com olhos baixos e pesados, um pijama amassado e uma coberta que, desajeitadamente, cobria seu corpo, Gilbert exibia a aparência esperada de uma pessoa que havia adormecido por horas. Eu, possivelmente, desenvolveria uma terna complacência por ele, se tivesse permanecido com esse semblante.

Ele, no entanto, recobrou-se rapidamente.

– Há! Eu não estou certo disso, aristocrata! – ele disse, sorrindo, subitamente desperto - Eu estou em meu quarto, na minha cama, e você está aqui também, utilizando um avental. Há a grande possibilidade de que isso seja um sonho erótico.

– Eu não me aproximarei da sua cama. – declarei, serenamente, sentando-me em uma cadeira próxima a sua mesa, que possuía uma apropriada distância em relação à cama.

A resposta dele foi diferente de minhas expectativas. Gilbert não pareceu minimamente desapontado ou irritado com a minha previsível recusa. Pelo contrário. Ele parecia utilizar-se de todos os seus esforços para não explodir em uma intensa gargalhada.

–Devo inferir que você prefere o chão ou as paredes? – ele perguntou, com falso espanto e evidente deboche, cobrindo parcialmente, com sua mão, a sua boca que tremia e, inutilmente, continha o riso que tentava escapar por ela - Que intenso e inesperado da sua parte, Rod!

Por diversos motivos, meu rosto adquiriu uma vívida tonalidade escarlate.

– Por favor, fique quieto!

Percebendo meu constrangimento e irritação com sua proposta, Gilbert sorriu perversamente. Ele parecia obter um grande deleite em observar meu desconforto. Tentei ignorar a forma predatória com a qual ele me fitava e dei minhas costas a ele, fingindo folhear um livro sobre sua mesa, com o forte desejo de que minhas orelhas e meu pescoço não delatassem o ardor presente em meu rosto.

– A sua febre diminuiu? – perguntei, com forçada indiferença. Os fatos daquela manhã ainda estavam vívidos em minha memória e, com o seu despertar, eles começaram a latejar em meu interior.

– Hum? Eu estou muito bem, jovem mestre! – ele respondeu, prontamente, antes de dar de ombros e balançar seu rosto, com os olhos fechados e um sorriso que transmitia alguma pena de minha ingenuidade - Tsk! Tsk! Tsk! Não é tão fácil derrubar o incrível eu, Rod! Seria necessário que um...!

– Você havia perdido a consciência, quando nós o levamos ao hospital. – eu o interrompi, secamente - A sua febre quase alcançou quarenta graus. Precisaram dar-lhe soro e uma injeção para diminuir sua temperatura. Os seus amigos ficaram preocupados com você. – hesitei em prosseguir - Eu fiquei preocupado com você...

Ele franziu suas sobrancelhas, adquirindo uma inesperada seriedade e alguma surpresa.

– Eu não sabia que...

Eu não quis ouvir o que ele diria. Estava farto de Gilbert.

– Eu pedi que você não fosse ao teatro! – exclamei, arrebatado, sem conseguir voltar-me para ele. - Francamente, custava tanto me ouvir? Eu estou cansado do seu comportamento egoísta e irresponsável, Gilbert! Eu...!

– Desculpa.

Ele disse isso de uma forma tão breve e suave que quase se podia confundi-la com um suspiro. No entanto, eu o ouvi. Seu quieto murmúrio paralisou-me instantaneamente. Pisquei os olhos rapidamente, necessitando conferir o que havia escutado.

–... O que você disse?

Não pude ver a expressão de Gilbert, por ainda estar de costas para ele, mas o breve silêncio entre nós, significativamente denso, delatou-me que ele não estava indiferente ao que eu dissera. A sua resposta foi séria e ponderada.

– Estou pedindo desculpas – respondeu, um tanto mais firme e audível -. Eu não queria deixá-lo tão nervoso, Rod.

– E-Eu não estava nervoso, digo, e-eu não estou nervoso, apenas...!

Repentinamente, os braços de Gilbert envolveram-me por trás e eu esqueci-me do que ia dizer, sendo absorvido por um pasmo silêncio. Eu não chamaria aquele gesto de um “abraço”. Há uma força e impetuosidade, em abraços, que não estava presente naquele contato delicado e confuso. Gilbert não puxara-me contra si, não colocava a pressão de seu peso sobre meu corpo e, muitas vezes, parecia questionar a posição atual de suas mãos. Além disso, as costas da cadeira impediam um contato completo entre nós. Aquilo, portanto, definitivamente, não era um abraço, embora estivesse próximo disso e desnorteasse-me tanto quanto um.

– Você irá me desculpar? – ele perguntou, contra o meu rosto, com uma inocência quase infantil e eu percebi que, para o meu imenso desagrado, não conseguiria deixar de perdoá-lo.

Minhas sobrancelhas franziram em desgosto e meu rosto foi tomado por escarlate. Era imensamente frustrante o quanto eu era fraco tratando-se de meu colega de quarto

. É claro que eu perdoaria aquele estúpido. Como eu poderia deixar de perdoá-lo? Se eu pudesse guardar rancor dele, isso teria acontecido muito antes daquele incidente.

Além disso, embora eu não fosse admitir isso a Gilbert nem inteiramente a mim, a ternura de seu gesto e de suas desculpas havia provocado, em mim, uma morna alegria, cuja existência deixava-me severamente envergonhado e desconfortável.

– Por que perguntar algo cuja resposta você conhece, seu tolo? – perguntei, com impaciência, abaixando meu rosto e tentando expressar um rancor que supostamente deveria sentir.

Ao ver minha reação, ele riu. Não com o divertimento sádico que ele costumeiramente demonstrava, mas de uma forma sincera e um tanto afetuosa que dissolveu uma considerável porção de minha raiva contra a minha vontade.

Perturbado com a própria fragilidade de minha ira, decidi voltar minhas queixas para outro ponto.

– Solte-me. Eu não o autorizei a me tocar. – solicitei, repreensivo, enquanto batia ligeiramente uma mão sua que passeava por meu torso, tentando afastá-la. O meu perdão não autorizava Gilbert a tratar-me como se existisse uma intimidade excessiva entre nós. Além disso, aquele abraço tinha uma duração desnecessariamente longa.

– Não. – ele disse, sem qualquer nuance de hesitação.

– Pare com isso. – insisti, secamente.

– Ei, Rod, os médicos disseram qual é o meu problema?

Gilbert, novamente, estava ignorando minhas reclamações para agir como quisesse. Uma reação adequada para isso seria desvencilhar-me dele, berrar algumas ofensas e sair de seu quarto. Ah, claro, sem deixar de bater a porta com violência, em minha saída. Contudo, inexplicavelmente, eu nunca conseguia agir conforme meus planos, diante de meu petulante colega de quarto e essa não foi uma exceção.

Eu não me desvencilhei de Gilbert. Afinal, eu não me sentia absolutamente desconfortável com nossa posição atual. Além disso, era importante que eu falasse com ele sobre o que havia ocorrido naquela manhã. Eu não queria desperdiçar minhas forças e paciência discutindo inutilmente sobre a impropriedade de seu gesto. Isso não o deteria, de qualquer modo. Por que, então, desgastar-me brigando com ele? Convencendo-me desse ponto, resignei-me, dei de ombros e respondi, com uma expressão perfeitamente calma, apesar de uma desconfortável pressão incomodar o meu peito.

– Estafa. O seu corpo não conseguiu tolerar o cansaço extremo, um início de desnutrição e a desidratação. – um suspiro pesado acompanhou minha resposta.

– Ah, mesmo?

– O senhor não me parece surpreso. – repliquei, grave, em um tom moderado, mas acusatório.

– Sim, eu não me surpreendo que meu corpo não consiga tolerar uma existência tão incrível...!

Ele estava brincando. Como sempre. A despeito de tudo que havia ocorrido entre nós, a despeito de minha aflição e nervosismo por seu estado... Ele ainda não me levava a sério. Eu não mais pude tolerá-lo.

– Senhor Gilbert, não se trata disso! – exclamei, em uma agitação enérgica e expressiva. Em um movimento rápido e inquieto, voltei meu rosto para o lado e meus olhos, finalmente, colidiram com os dele - O senhor estava com um início de desnutrição! Como você poderia estar com desnutrição, quando eu preparo o seu jantar, todas as noites?!

– Er...

Ele abaixou seu olhar. Não tinha uma resposta a me dizer e eu não o escutaria, ainda que ele tivesse.

– Além disso, espanta-me o fato que ninguém ficou chocado com esse diagnóstico! Os seus amigos estavam se comportando como se essa fosse uma ocorrência comum! O senhor está se comportando como se essa fosse uma ocorrência comum!

– Essa é uma ocorrência comum! – ele exclamou, encarando-me com impaciência - Vamos, Rod! Quem nunca foi parar no hospital por estar com estafa, desnutrição e desidratação? Isso acontece todos os dias na turbulenta vida urbana! Você não poderia saber disso, por ser um aristocrata que vive à parte da sociedade, tocando o piano para lidar com as profundezas sombrias do seu coração solitário!

– O meu nível de isolamento não é tão intenso nem tão excêntrico! Não seja cínico! Eu conheço suficientemente o cotidiano urbano para dizer que não, não é uma ocorrência comum que alguém vá para o hospital nessas condições!

– Não seja dramático! Isso acontece comigo o tempo todo!

– Há uma evidente necessidade que eu seja dramático, considerando-se que isso acontece com você o tempo todo!

– Bah! Esqueça, Rod! – ele disse, apertando os braços em torno de mim, enquanto fazia a mesma expressão de uma criança insatisfeita com um presente de natal – Nós precisamos discutir algo mais importante!

– E o que seria isso? – esforcei-me para que aquela questão soasse apenas irônica, ao invés de colérica.

Ele fez sua pergunta com uma expressão mórbida e mortalmente séria.

– Quem trocou minhas roupas?

A minha raiva subiu por minha garganta como um vapor quente e denso. Quase cheguei a externá-la. As minhas ofensas e acusações já estavam em minha língua, quando as detive.

Eu não deveria brigar com Gilbert.

A sua opinião e atitudes não seriam alteradas, pelas minhas reclamações. Se tivesse um ataque colérico, ele não me proporcionaria nada além de um prazer próprio e irracional por descontar os meus sentimentos difíceis e tumultuosos em Gilbert. Seria um desperdício de energia do qual eu me arrependeria, assim que recobrasse a razão. Eu não queria brigar com meu colega de quarto, sem um motivo, novamente. Não gostaria de machucá-lo, por não saber lidar de outra forma com a minha confusão e mágoa.

Ele sabia que não iria mudar, independentemente, do que eu dissesse. Também estava ciente de que, caso nos prolongássemos naquele tema, eu me sentiria ofendido e chateado por não obter respostas dele e não conseguir influenciá-lo. Por esses motivos, ele tentava mudar de assunto e fingir indiferença ao que discutíamos, anteriormente.

Assimilando isso, decidi auxiliá-lo.

– O Francis. – respondi, com aparente convicção e indiferença.

O seu semblante externou tamanho repúdio e horror que não pude deixar de graça da sua expressão e de sentir-me um tanto satisfeito com a eficiência da minha pequena brincadeira. Afinal, não seria justo que eu apenas o perdoasse, sem aplicar-lhe algum castigo por sua conduta irresponsável. Aquele momentâneo susto pareceu-me uma punição suficiente e, esforçando-me para conter meu riso, dei uma resposta sincera.

– Não. Não se preocupe. O Arthur foi aquele que trocou suas roupas. Ele também deu um banho morno em você. O senhor não recorda-se disso?

– Não. É uma pena. Kesesese! Deve ter sido um ótimo momento!

Não pude ter outra reação, além de permanecer profundamente quieto.

–...

– Eu estava brincando! – ele afirmou, de repente, com seu rosto tomado de incredulidade e urgência.

– Eu não disse nada.

Um estranho silêncio estabeleceu-se entre nós.

– Er... Hum... – Gilbert balbuciou, nervosamente, com seus olhos ansiosos, passeando pelo chão do quarto, sem deterem-se em um ponto. Ele não era insensível à gélida tensão estabelecida entre nós, mas, possivelmente, desconhecia uma forma segura de rompê-la.

Em meu caso, não houve um esforço de minha parte em retornarmos a uma conversa.

Assim, continuamos por alguns segundos, em um desconfortável silêncio, até que um lampejo em seu rosto revelou-me que ele havia encontrado um assunto para sobrepor-se ao anterior:

– O Lud apareceu no hospital?

– Quem?

– O meu extremamente e inegavelmente incrível irmão! – seu sorriso externou abertamente o seu orgulho e afeição pelo alvo de seus elogios.

– Não. Não cheguei a encontrá-lo. – repliquei, com franqueza, sem recordar-me da presença de algum rosto desconhecido, dentre os que aguardaram por sua melhora - Apenas eu, Francis, Antonio, Romano e Arthur estávamos no hospital.

O conhecimento desse fato, pelo que percebi, não causou um bem a Gilbert. Ele adotou uma expressão severa e contemplativa, exprimindo, em sua resposta, um “Ah.” seco e quase inaudível. Por fim, afundou a cabeça em meu ombro, parecendo um tanto desapontado.

– Não fique assim. – disse, gentilmente, a meu colega de quarto - Ele talvez venha visitá-lo mais tarde. Mesmo que ele tivesse ido ao hospital conosco, não faria muita diferença, visto que o senhor estava inconsciente.

– Faria diferença! – ele exclamou, irascível - O Lud é o meu importante irmão mais novo! Ele deveria ter ficado ao meu lado, durante todo esse tempo, chorando como a protagonista de um drama com doenças terminais!

– Você está me dizendo que gostaria de deixar seu irmão mais novo desolado e aflito?

– Exatamente!

“Eu não sei por que esperaria algo diferente vindo dele.” – pensei, com um suspiro conformado, enquanto batia levemente em sua cabeça, tentando consolá-lo.

Mesmo que eu recriminasse sua imaturidade em esperar que seu irmão mais novo sofresse por sua causa, ao invés de sentir-se aliviado por esse não ter se afligido desnecessariamente, Gilbert parecia tão inconformado com o que ele via como uma falta de consideração que não pude deixar de sentir alguma simpatia por ele.

– Quem sabe, ele venha visitá-lo mais tarde? – perguntei, buscando animá-lo.

– Mais tarde, eu poderei estar em meu túmulo, Rod! – ele berrou, com impaciência, intensamente convicto do que afirmava.

Afundei meu rosto na palma de minha mão direita.

Francamente.

Quão incoerente ele podia ser?

– O senhor estava se declarando invencível, nessa manhã, e, agora, diz que morrerá em algumas horas?

– Eu era jovem e ingênuo!

– O senhor está propositalmente ignorando o fato de que disse isso nessa manhã?!

A partir desse atribulado começo, tivemos uma briga, mais agitada do que grave, sobre a forma imatura como Gilbert lidava com suas frustrações. Apesar de meu colega de quarto ser aquele que recebia a maior parte das críticas, em nosso pequeno conflito, esse foi mais desagradável, para mim, pois, quando aborrecido com uma opinião minha, Gilbert despejava o peso de seu corpo sobre as minhas costas, esmagando-me de uma forma que não chegava a ser dolorosa, mas que era incômoda.

Gastei alguns minutos nessa discussão, quando o barulho do fogão fez-me recordar que eu havia colocado um bolo no forno – o que era, a propósito, o real motivo do meu uso de um avental – e tentei desvencilhar-me de Gilbert para apanhar nossa sobremesa. Fui impedido. Os braços dele cercaram meu corpo com maior domínio e determinação, impossibilitando-me de afastar-me dele. Gilbert não queria que eu fosse embora.

Novamente, tivemos uma briga sobre a forma imatura como Gilbert lidava com suas frustrações e, novamente, sofri os efeitos físicos desse impasse, visto que meu colega de quarto apertava-me fortemente em seus braços, deixando minha respiração rarefeita e acelerada. Aquilo era tão inapropriado! Ele precisava me soltar!

Como sabia que nenhum de meus discursos o convenceria a largar-me e a adotar uma postura digna e solene quanto ao seu desapontamento com o seu irmão, utilizei-me de uma técnica que já era tradicional, entre nós, e, calmamente, propus que ele me libertasse para receber um bolo de chocolate que eu havia acabado de preparar.

Estranhamente, ele hesitou um pouco e houve algum desgosto em seu semblante, antes que ele aceitasse minha proposta. Contudo, após uma breve ponderação, seus braços caíram por meu corpo, permitindo-me sair.

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Ao retirar nossa sobremesa do forno, eu não conseguia parar de sorrir.

Gilbert parecia alguém completamente diferente, quando estava doente e, por alguma razão, senti-me deleitado com isso. A disparidade, entre o Gilbert habitual e o presente, não estava em suas efusivas demonstrações de imaturidade. Meu colega de quarto tendia a agir de forma bastante infantil, cotidianamente, e não me surpreendia vê-lo comportar-se como uma criança. A real diferença estava na atual dependência que ele possuía quanto a mim.

Durante aqueles meses de nosso convívio, Gilbert nunca expressara a necessidade do meu suporte. Ele não compartilhava seus problemas comigo e, tampouco, esperava que eu os noticiasse. Sua autossuficiência e seu orgulho motivaram-no a tomar decisões sem consultar-me e a lidar com suas dificuldades, sem contar com o meu auxílio.

Essa atitude, que deveria ser vista, por mim, como um ato de exemplar maturidade, deixava-me profundamente desapontado.

Por que Gilbert era o único que não revelava os seus verdadeiros sentimentos? Por que ele os camuflava sob um sorriso sardônico, mesmo que os meus estivessem constantemente expostos? Aquilo era injusto. Eu expressava minha tristeza, minha raiva e minha insegurança, diante de meu colega de quarto, ainda que quisesse disfarçar essas emoções - normalmente, provocadas pelo próprio. Descontente em apenas comunicá-las, eu também esperava um conforto como resposta. Um conselho, um consolo ou uma simples demonstração de compreensão da parte dele podiam produzir mudanças drásticas em meu ânimo. Em certas ocasiões, após gritar fervorosamente com Gilbert, eu estava, em pouco tempo, rindo discretamente, ao seu lado, e pensando no que deveria preparar para o nosso jantar.

Eu confiava naquele idiota que morava comigo. Precisava do seu apoio, quando passava por momentos difíceis. No entanto, essa dependência era unilateral.

Gilbert Beilschmidt estaria perfeitamente bem, mesmo que eu não estivesse ao seu lado.

Essa era minha preposição.

Contudo, ela havia sido destruída por uma febre de 39º, como se fosse desnaturada junto às proteínas.

Nesse momento, ele dependia de mim. E não poderia deixar isso mais óbvio. Suas reações infantis requisitando a minha presença, a sua espera impaciente pelos meus cuidados... Elas deixaram meu coração aos pulos.

Eu sabia que aquele era um prazer egoísta e incorreto. Que abominável felicitar-se com a doença de alguém! Contudo, naquela ocasião, descobri que havia esse lado abominável em mim, considerando-se que eu mal conseguia conter a felicidade que me dominara.

Talvez ela se devesse ao fato de que eu havia conseguido uma ótima oportunidade para saldar algumas de minhas dívidas com Gilbert, uma rara ocasião. Talvez se devesse ao meu alívio ao ver que mesmo o meu enérgico e inabalável colega de quarto possuía, como eu, algumas fraquezas. Eu não sabia exatamente por que a ideia de ver um lado vulnerável de Gilbert e perceber que, por enquanto, ele precisava de mim lotava-me com um sentimento alegre. Entretanto, concluí que tal fenômeno se devesse a um desses motivos, embora, inexplicavelmente, eles me soassem como desculpas ou como um forçado desvio. Pensei nisso, enquanto retirava a compressa do congelador.

Além disso, adicionei às minhas razões, eu devia admitir que meu colega de quarto parecia adorável, quando doente.

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Retornando ao quarto de Gilbert, precisei abrir a porta, empurrando-a com o meu ombro. Minhas mãos estavam ocupadas com uma bandeja que continha a sobremesa, um copo d’água, remédios e uma compressa. Ao entrar novamente, naquele espaço, eu pude, enfim, observá-lo com maior esmero. Quando o visitei, anteriormente, estava tão preocupado em observar a febre de Gilbert e esperar que esse despertasse que não pude enxergar nada além de meu inconsciente colega de quarto.

Noticiando melhor aquele ambiente, fiquei um tanto surpreso com o que observei.

Aquele não parecia ser o quarto de Gilbert, um boêmio lascivo e desordeiro. Aquele espaço era completamente antagônico ao que imaginei que seria o quarto dele.

Não havia pilhas de roupas sujas acumuladas pelo quarto, nem latas de cerveja despejadas sobre a mesa. A cama estava arrumada, o chão estava limpo. Aquele quarto possuía uma sutil fragrância de limão que considerei muito agradável, apesar de minha preferência pela lavanda. Era, em resumo, um quarto perfeitamente organizado.

Essa realização, em si, seria suficiente para chocar-me? Sim, mas ainda havia mais.

Havia estantes ali. Elas não estavam lotadas de fotos de rapazes e senhoritas, nem de revistas pornográficas. Percebi, mortificado, que essas continham uma enorme quantidade de partituras e livros sobre história, música, arte e filosofia, além de obras de literatura clássica. Hamlet, Guerra e Paz, Crime e Castigo...

Céus. Aquilo não fazia o menor sentido.

Aqueles livros deviam estar ali, apenas para impressionar as pessoas que se dispunham a dormir com ele. Devia ser isso. Gilbert e livros? Esses elementos não combinavam!

Eu ainda encarava as estantes, estupefato, quando Gilbert, que estivera todo aquele tempo, deitado em sua cama, com a cabeça afundada em seu travesseiro, realizou minha presença e moveu ligeiramente o seu rosto, voltando-se para mim.

– Rod?

Como se despertado de um sonho, a voz de Gilbert interrompeu meus devaneios e trouxe-me abruptamente a realidade.

– Ah, olá. – eu o cumprimentei, ainda um pouco atordoado – Como está sua febre?

Ele fez um som aborrecido.

– Compreendo. – declarei, sentando-me na extremidade de sua cama – O senhor deve tomar esse comprimido. Ele reduzirá a sua febre. Depois que você tomá-lo, eu colocarei a sua compressa e darei o seu bolo, certo?

Ele acenou positivamente com a cabeça, com inesperada obediência, recebeu os remédios e os engoliu rapidamente, junto a um gole d’água.

– O que foi? – ele questionou, com desconfiança, quando devolvia o copo.

– O quê? – repliquei, singelamente.

– Por que você está sorrindo assim?

Eu estava sorrindo?

– Deve ser impressão sua. – respondi-lhe, esforçando-me para manter um semblante impassível, enquanto colocava-lhe a compressa.

– Um sorriso involuntário, huh? - os cantos de sua boca curvaram-se para cima, em divertimento. - Talvez você apenas esteja externando a sua incontida alegria em ter um momento a sós com o incrível eu?

– Absolutamente não. – refutei, prontamente.

– Oras, jovem mestre! - ele riu, incrédulo - Quem você pretende enganar? Você mal consegue disfarçar o próprio deleite! Vê? Você está sorrindo, de novo!

– Eu não estou sorrindo, estou rindo do absurdo das suas sentenças. – falei, entre risos baixos que, inutilmente, tentava conter.

Kesesesese! Eu esperava uma desculpa mais elaborada, jovem mestre! Algo como “Eu apenas não consigo deixar de sorrir, diante de tantos elementos incríveis reunidos em único quarto!”.

– Essa não é uma desculpa mais elaborada. – corrigi-o, com um pequeno sorriso que teimava em escapar por meus lábios - Apenas a que mais satisfaz o seu ego.

– Não, não! A que mais satisfaria o meu ego seria – ele abriu seus braços e contraiu seu rosto, com um dramatismo teatral - “Oh, Gilbert Beilschmidt, você é tão incrível que eu não consigo conter minha felicidade em tê-lo ao meu lado e fico sorrindo como a protagonista de um romance juvenil...!”.

– Pare com isso! - eu tentei externar rancor, mas não conseguia parar de sorrir e precisei cobrir minha boca com a mão para evitar que ele percebesse isso.

– Estou tremendo, diante de uma ordem tão autoritária!- ele riu, aproveitando-se da proximidade, entre nós, para abraçar-me novamente, dessa vez, pelos ombros.

Novamente, eu não me incomodei em absoluto com aquele contato e decidi permiti-lo. Meu colega de quarto tornava-se muito afetuoso, quando estava febril. Por isso, ele estava me abraçando. Porque estava doente. Por essa mesma razão, eu estava permitindo que ele me tocasse. Porque ele estava doente.

Convencido disso, não desvencilhei-me do abraço de Gilbert nem o retribuí.

– O seu corpo está quente, seu tolo... – disse, com minhas palavras soando como um sussurro tímido e um pouco irritado. – Como você pôde tocar nessas condições?

– Você quer saber um segredo? – ele disse, rindo, em uma voz tão baixa quanto a minha.

Sim.

– Não me desagradaria que você o dissesse.

– Por um momento, eu realmente achei que não conseguiria tocar... – ele tomou fôlego, antes de prosseguir, com forçada casualidade - Eu não sei como pude ter esse pensamento! Digo, eu sou tão incrível! É óbvio que eu...!

– Volte ao seu ponto.

– Ah, sim! Como estava dizendo, mesmo sendo tão incrível, eu estava com uma febre terrivelmente alta e, por um momento, comecei a pensar uma série de coisas estúpidas como “Eu não irei conseguir” ou “Qual será a reação dessas pessoas, quando eu desmaiar sobre esse piano?”... Argh. – ele agitou seu rosto, com os olhos fechados e os lábios curvados para baixo, recriminativos - Por mais estúpidos que fossem esses pensamentos, devo admitir que, naquela hora, eles pareceram-me bem assustadores... Eles me perturbaram incessantemente até o momento em que subi ao palco e vi você – a narração dele começou a ser entrecortada por risos – usando roupas de frio o suficiente para aguentar uma caminhada pelo Alasca! Exibindo o seu semblante solene, mesmo que sua aparência lembrasse um novelo de lã...!

– Há algum ponto nessas colocações provocativas?- interpelei-o, irascível.

– Quando vi você, que havia enfrentado a congelante temperatura de dezesseis graus, para assistir a minha apresentação... – enquanto prosseguia, sua expressão foi se tornando mais amena e gentil- Quando pensei na expressão de donzela apaixonada que provocaria em você... Eu senti que poderia fazer qualquer coisa.

Gilbert, certamente, desconhecia o quão desconcertante era a sua franqueza. Eu não sabia como respondê-lo.

–Essa é uma tentativa de comover-me?- indaguei, contido e desconfortável.

– Como eu me saí? – ele inclinou seu rosto para o lado e arqueou uma sobrancelha, provocativamente. Percebendo que não meu colega de quarto não pretendia conferir dimensões extensas à declaração embaraçosa que havia feito, pude respondê-la com maior confiança, disposição e humor.

– Não muito bem. – menti, sorrindo e empurrando, de leve, seu peito para afastar-me ligeiramente dele – Agora, coma o seu bolo, seu tolo.

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Enquanto comíamos, minha sobremesa de chocolate, sentados em sua cama, encontramos uma oportunidade para conversarmos sobre a apresentação dele e os ensaios que a precederam e, certamente, pudemos aproveitá-la.

Gilbert explicou que sua dificuldade em interpretar a Forlane, devia-se, sobretudo, a sua especialização em obras românticas. Apesar de estar apenas no terceiro semestre, ele já havia escolhido os compositores nos quais se aperfeiçoaria e investia o máximo de seu tempo, estudando os trabalhos desses. Portanto, havia sido uma grande surpresa, para ele, descobrir que, ao invés de Chopin, Liszt ou Schubert, ele teria de tocar Ravel, um neoclássico bastante peculiar e um compositor que meu colega de quarto, definitivamente, não conseguia entender.

– Eu e o velho Ravel não nos entendemos muito bem. Nós não somos compatíveis. Claro, nós tivemos nossos momentos juntos e alguns até se mostraram um tanto agradáveis, no entanto, nosso relacionamento, geralmente, é repleto de conflitos e eu não tento mantê-lo.

Ele falava de Maurice Ravel como se os dois houvessem saído, por um tempo, mas realizado que não conseguiriam construir um futuro juntos. Quis criticar sua forma de expressar-se, contudo, temi que minhas queixas interrompessem sua narrativa e mantive-me em um necessário silêncio, deixando que minhas reclamações fossem externadas apenas por meus olhos.

Ele riu brevemente de minha expressão e prosseguiu.

Segundo Gilbert, como se não bastasse a incompatibilidade habitual entre ele e Ravel, dessa vez, havia sido incumbido de executar uma execução, cujos sentimentos era incapaz de entender.

– Como você sabe, Rod, a Forlane é uma das composições de La tombeau de Coperin e, teoricamente, seria difícil não associá-la a primeira guerra mundial. Ela foi composta, durante o nacionalismo francês, quando a França estava tentando separar-se da música clássica germânica, a mais reconhecida, na época, e recordar o seu apogeu artístico. O nome “O túmulo de Coperin” já traz uma ideia mórbida e cada uma das composições foi dedicada aos amigos de Ravel que morreram na guerra! Naturalmente, eu esperei que elas fossem deprimentes e melancólicas! Digo, mesmo que o velho Ravel fosse um tanto excêntrico, ele não dedicaria uma composição alegre aos seus amigos mortos!

No entanto, aquelas eram composições alegres.

– Quando li aquelas partituras, o que me veio à mente foi algo como “O que diabos ele quer dizer com isso?!”.

Confuso e impaciente, Gilbert decidiu esforçar-se para compreender Ravel e executar sua composição adequadamente. Ele leu livros sobre Ravel. Revisou a partitura, diversas vezes. Ouviu diversos pianistas a tocarem. Pediu ajuda a Arthur. Ainda assim, ele não conseguiu compreender o significado daquela composição e havia desistido, quando...

– Essa semana, quando eu estava ensaiando, no conservatório, e você me trouxe aquela coisa laranja...

– Era uma soljanka!

– Que se dane! – ele revirou os olhos – De qualquer modo, antes de você aparecer com aquela coisa laranja, eu estava com um péssimo humor. Argh. Como eu poderia conformar-me com a ideia de que a minha execução não alcançaria a minha grandiosidade?! “Quer saber? Eu vou esquecer tudo isso. O velho Ravel e esse recital cheio de pirralhos não merecem os esforços de alguém tão incrível”... Eu estava pensando nisso, quando você apareceu.

– Eu não poderia adivinhar... Você estava rindo!

– Aquela não era uma risada, jovem mestre. Era uma gargalhada maligna.

Precisei de muito esforço para conter o intenso riso que subia por minha garganta e que provocava um sutil tremor nos cantos de minha boca.

– Bem, você chegou, entregou aquela coisa laranja, disse que eu não deveria demorar a voltar para casa e ficou reclamando porque o meu professor de prática acha que nós parecemos um casal.

– Você precisa desmenti-lo! – lembrei.

– Bah. Não seria divertido!

– Você...!

– Eu fiquei feliz ao vê-lo, Rod. Com os seus modos aristocráticos e com aquela comida estranha que, misteriosamente, estava ótima. Eu me senti mais disposto, quando você apareceu e, enquanto comia aquela comida laranja...

– Como eu disse, era uma soljanka!

– Tanto faz. Como eu dizia, comendo aquela comida laranja e divertindo-me com a sua recusa em admitir sua fervorosa dedicação ao incrível eu, comecei a realizar algo...

– O quão rude e ingrato você é?

– Talvez o velho Ravel, assim como eu, apenas estivesse apreciando sua felicidade cotidiana, após vivenciar tantos momentos difíceis e tumultuosos.

A minha parcial compreensão do que ele tencionara dizer, não impediu-me de fazer a seguinte interrogação:

– Você está comparando a sua incapacidade de tocar Ravel com o sofrimento de um homem, durante a primeira guerra mundial?

– Exatamente, Rod! E, devo dizer, foi uma brilhante comparação! – ele vangloriou-se, erguendo os punhos, extasiado com sua própria glória – Ela proporcionou, ao incrível eu, uma compreensão plena de Ravel, demasiadamente profunda para ser alcançada por outro mortal! Você gostaria de ouvi-la?

– Não me incomodaria em escutá-la.

Kesesese! Jovem mestre, prepare-se para escutar uma resposta, cuja genialidade preencherá seus olhos com lágrimas emocionadas! Eu percebi que o velho Ravel não estava, através da música, tentando expressar o luto pelos seus amigos ou o horror da guerra. Ele estava farto daquele conflito trágico e estava aproveitando verdadeiramente a sua felicidade em ver que esse havia acabado. Esse é o real contexto da Forlane. Ele não compôs a “Le tombeau de Coperin” para lamentar-se e, sim, para valorizar o retorno da harmonia e serenidade a sua vida. “A guerra, em si, é suficientemente triste. Eu não preciso expressá-la em minha música.”, disse o velho Ravel, quando questionado sobre a natureza de suas composições. Ele, evidentemente, foi questionado, pois, se o incrível eu não pode entender o propósito dele, como outros poderiam compreendê-lo facilmente? Bem, retomando meu foco, eu apenas pude tocar a Forlane que almejava, quando realizei o significado dessas palavras. O velho Ravel, após lutar e perder amigos em um conflito horrível como a primeira guerra, conferiu um grande valor ao seu cotidiano. As composições de “La tombeau de Coperin” são homenagens e reflexos da alegria de Ravel por retornar a sua vida normal.

– Você fala isso como se houvesse conversado um longo tempo com Ravel, a respeito desse assunto. – declarei, sorrindo discretamente. - No entanto, não o condenarei por pensar assim. De fato, sua apresentação foi muito deleitável.

Ele puxou uma de minhas bochechas, implicantemente, com um largo sorriso adornando o seu rosto.

– É raro vê-lo sendo honesto assim, jovem mestre! Sim! Sim! Foi uma apresentação fantástica! Como o esperado do incrível eu! Sinta-se à vontade para mostrar sua apreciação, Rod! Elogie-me! Elogie-me! Reverencie minha incrível execução!

– É espantoso como você se torna enérgico quando se trata do seu ego, mesmo que, supostamente, esteja debilitado.

Ele apenas riu. As nossas trocas de provocações eram, simplesmente, parte de nossa rotina, portanto, não nos magoavam ou ofendiam. Elas, raramente, continham algum intuito verdadeiramente agressivo. Na maioria das vezes, eram apenas expressões espontâneas que podiam ser feitas para mediar nosso convívio e para despejarmos, um no outro, nossas frustrações ou nosso sarcasmo contido. Além de, implicitamente, acentuarem a nossa proximidade.

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Quando Gilbert encerrou sua sobremesa, coloquei o prato sobre sua mesa e o recomendei a dormir, apanhando um livro para distrair-me, durante seu sono. Eu precisaria conferir sua febre, com uma recorrente frequência, portanto, não seria conveniente que eu saísse de seu quarto. Entretanto, estava certo de que ele não dormiria, caso continuássemos a conversar e decidi que deveria apenas ler um romance e deixar que seu tédio, naturalmente, convencesse-o a adormecer.

Meu plano parecia-me razoável, contudo, não decorreu conforme minha vontade. Minhas tentativas de ler “Mansfield Park” foram frustradas pela maneira persistente com a qual Gilbert observava-me.

Eu estava tão consciente de seu olhar fixo, em minha direção, que quase podia senti-lo. Ele atrapalhava minha concentração de modo que, ao invés de compadecer-me da lastimável situação da senhorita Fanny, os meus olhos apenas vagavam aleatoriamente pelas palavras, forçando-se a manterem-se nas páginas, somente para escaparem dos de Gilbert.

Esse instante de silêncio inquieto foi rompido, casualmente, por meu colega de quarto que, abruptamente, fez uma questão.

– Qual foi a imagem que você teve da minha Forlane, Rod?

Aquela era uma pergunta inesperada. Não cogitei que fosse nisso que Gilbert estivesse pensando. Ainda um tanto surpreso, pus o livro sobre meus joelhos e respondi, com honestidade:

– Você, tocando o piano, cercado por milhares de estrelas.

– Você quer dizer algo como aquele brilho que cerca os personagens atraentes em animações? – ele sorriu, com incontido sarcasmo - Nesse caso, eu posso entender totalmente por que você...!

– Não se trata disso. – interrompi, gelidamente - Não distorça a minha imagem poética com as suas suposições reprimíveis. A minha imagem da Forlane era a de um universo anil no qual havia diversas estrelas e galáxias. Esporadicamente, alguns corpos celestes passavam como se...

– Estivessem acompanhando os crescendos e decrescendos?

Arqueei as sobrancelhas, espantado.

– A sua imagem era a mesma?

– Não! Não! – ele agitou suas mãos para enfatizar sua negativa - Eu apenas cheguei a essa suposição! Posso assegurar-lhe que minha imagem era bastante diferente da sua! Então, - um sorriso maligno surgiu em seu rosto – estrelas, não é? Oh, tão romântico, jovem mestre!

– Condenarei sua falta de maturidade, em outro momento. Por enquanto, posso saber qual é sua distinta imagem que o permite debochar da minha, senhor Gilbert? – questionei, em um sutil sarcasmo que provinha de um desejo de retorqui-lo.

Ignorando as implicações irônicas de minha interrogação, ele deu uma resposta direta e franca.

– Um avô e seus dois netos estão passeando, em um dia de outono, às margens de um pequeno lago, próximo a sua velha casa de veraneio. Uma chuva começa. Ela não é violenta, mas faz com que os três corram para a casa. Eles estão correndo e rindo, quando percebem que a chuva tornou-se um pouco mais forte e decidem parar debaixo de uma árvore, onde ficam descansando e observando a paisagem nublada.

“...”

– Com uma imagem sentimental como essa, você debocha do romantismo da minha?

– Ela é sentimental? – ele questionou, cinicamente, com um assombro evidentemente falso - Mesmo? Eu mal havia noticiado! Acho que apenas não tenho sensibilidade suficiente para perceber esse tipo de...!

O meu rosto, imediatamente, tornou-se irritado e vermelho.

– Fique quieto!

Kesesesese!

Apesar de minha intenção original de deixá-lo dormir, a questão inicial de Gilbert foi o princípio de nossa prolongada conversa sobre composições e imagens.

A partir de Ravel, falamos sobre Debussy, Chopin, Shostakovich, Mozart, Brahms, Scriabin, além de diversos pianistas, cujo nome ocorria-nos, quando discutíamos esses compositores. Conversamos, conversamos e conversamos. Por mais que falássemos, não havia um momento em que nos sentíssemos entediados ou em que não possuíssemos algo a dizer.

Eu sabia que deveria interromper aquele diálogo. Meu colega de quarto precisava repousar. Todavia, sempre que abria a boca para dizer a Gilbert que deveríamos parar de conversar para que ele dormisse, acabava por fazer uma pergunta ou um comentário sobre o assunto que discutíamos e, desse modo, permanecíamos conversando.

Apesar das diferenças existentes entre a minha personalidade e a de Gilbert, tínhamos, em comum, o mesmo gosto e entusiasmo pela música erudita e pela melhoria de nossas habilidades. O que era suficiente para unir-nos em diálogos que deixavam-me feliz e confortável.

Era maravilhoso poder falar espontaneamente sobre um tema que eu amava, sem precisar preocupar-me se estava entediando meu ouvinte e percebendo que ele, não apenas escutava atentamente cada sentença minha, como era capaz de elaborar respostas que sempre capturavam-me.

Em resumo, apesar de ter que lidar com algumas provocações e rompantes de egocentrismo de sua parte, eu gostava de conversar com Gilbert e estava exultante por termos uma oportunidade para isso. Esse contentamento permitiu-me a sentir-me à vontade, para confessar, quando falamos sobre Liszt, em algum ponto de nossa discussão:

– Não sei se estou pronto para participar do recital de Liszt... Não tenho muita experiência com esse compositor. – admiti, denotando meu receio por meu semblante e voz.

– Não se preocupe. – ele me recomendou, com tranquilidade, agitando sua mão, como se pusesse em gestos, seu completo desprezo pelo meu temor - Se eu consegui me conciliar com Ravel, um antipático, estou certo que você se dará bem com o velho Liszt. Qual composição você pretende tocar, durante as audiências?

– A Liebestraum nº03... Pare de rir!

– Quão previsível, jovem mestre! – ele sorriu, debochadamente, agitando seu rosto, enquanto pregava-me um olhar de falsa piedade - Se fosse Debussy, você tocaria a Valse Romantique! Se fosse Tchaikovsky, o tema de amor de Romeu e Julieta! Em Dvorak, o romance para violino e piano, op.11! Nem mesmo o mais macabro dos compositores estaria livre do seu inefável romantismo!

– Eu não estou sendo romântico! A Liebstraum nº03 é uma peça cativante e comovente! Naturalmente, ela possui minha preferência, se comparada às demais composições caóticas de Liszt!

– “Cativante e comovente”! – ele repetiu, arregalando seus olhos, enquanto seu sorriso tornava-se mais triunfal - Há! Essa é a opinião comum sobre uma peça que Liszt compôs como uma forma de piada!

– Piada?

– Precisamente, jovem mestre. Liszt, que conquistou uma princesa e uma condessa casada, era uma espécie de Don Giovanni, em seu tempo, então, ele fez essa composição, como uma forma de gabar-se dos seus conhecimentos sobre o amor. A Liebestraum é quase uma ironia!

– “Parece que ele está expressando algo profundo, mas, essencialmente, há apenas deboche em seu intento”... As semelhanças entre vocês não cessam, senhor Gilbert. – assimilei, rapidamente, fazendo-lhe uma crítica indireta que era mais perceptível pelo meu semblante do que por minhas palavras.

Ele estava prestes a retorquir-me, quando batidas em nossa porta, fizeram-no calar-se.

Pelas circunstâncias e horário, era fácil presumir que tratava-se de uma visita.

“Ah.”.

Em outra ocasião, eu poderia sentir-me mais alegre e solicito em receber visitas, contudo, naquela tarde, esse evento pareceu-me muito inconveniente. Eu não queria ir. Estava divertindo-me em minha conversa com Gilbert e, especialmente, com a nossa oportunidade de compartilhamos a companhia um do outro, sem preocupações, interferências ou tumultos. Elementos que, inevitavelmente, nossos visitantes trariam.

– Eu preciso atender... – disse, mais para mim mesmo, do que para o meu colega de quarto. Em seguida, levantei-me para abrir a porta.

Eu deveria atendê-la rapidamente. As batidas estavam tornando-se mais persistentes e pesadas. Além disso, eu sabia que não havia nenhum sentido em tentar monopolizar Gilbert, nem em permitir a existência de um desejo como esse, portanto, a pressa em minhas ações também devia-se à minha urgência em refutar uma possibilidade tão absurda e a minha íntima lamentação por ter aquele momento, brando e deleitável, interrompido.

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O suave assovio da chaleira unia-se delicadamente ao frio sopro do outono sem interromper ou desafiar a voz firme e elevada de Arthur. O ardente monólogo do amigo de Gilbert já durava vinte e oito minutos.

–... e você não deveria agir como um inconsequente, quando sabe que outras pessoas serão atingidas pela sua irresponsabilidade! Meu tempo não deve ser desperdiçado com atividades tão desnecessárias quanto...!

– Sim, sim. Desculpa, Arthie. – suspirou Gilbert - Mil desculpas. Minhas sinceras desculpas. O arrependimento quase me destrói por dentro.

– Eu não sinto sinceridade em suas palavras, seu estúpido! Vê?! Esse é um dos seus defeitos! Você pensa que confortar-me com suas desculpas hipócritas o redimirá por mentir por mentir para mim, ainda que...!

Aquela briga unilateral durava um longo tempo e, se ela há muito havia me cansado, o que se dizer de Gilbert a quem todas essas críticas eram dirigidas? Consumido por seu tédio, ele possuía o olhar vazio e distante de uma pessoa cuja presença é apenas física. Meu colega de quarto parecia mais atento à sensação provocada pelo contato entre seu rosto e a gélida madeira da mesa do que às reclamações de Arthur Kirkland. Seu desinteresse por essas não poderia ser mais profundo ou aparente. Eu o considerava justificado.

Desde o momento em que Arthur entrara no quarto de Gilbert, o arrastara para a mesa da sala, para conversarem, e iniciara suas queixas, eu havia decorado meu bolo, arrumado as almofadas do sofá e começava a preparar um Earl Grey para nossos convidados. Durante todo esse tempo, o senhor Kirkland não havia pausado suas reclamações em nenhum momento. Eu podia, agora, entender a espantosa mudança nos modos de meu colega de quarto, ao perceber quem era seu visitante.

Gilbert, que, antes, parecia deliciado com a ideia de receber seus amigos, teve seu sorriso desfeito e substituído por uma expressão de horror, ao perceber qual deles havia chegado. Quando Arthur disse que eles precisavam conversar, ele exclamou, com uma efusão próxima do desespero, que não possuía quaisquer condições de manter-se em um diálogo e, nervosamente, começou a dar desculpas para recusar aquela proposta. Suas condições eram péssimas, ele disse. Ele poderia desmaiar, conversando com Arthur. Ele poderia morrer, conversando com Arthur!

Por ceticismo ou insensibilidade, o senhor Arthur não aceitou essas desculpas e, revirando os olhos, tomou-lhe o braço, conduzindo-o a nossa sala, para nela iniciar seu sermão.

Um sermão que já durava trinta e dois minutos, quando terminei de preparar nosso chá.

O que era curioso, naquela cena, era a falta de qualquer interrupção àquele discurso.

Gilbert, embora desatento àquelas sentenças hostis e à indignação de seu amigo, não se movera da mesa, desde que Arthur começara a falar. Ele não mais tentara escapar. Parecia perceber aqueles maçantes minutos, como parte de uma desagradável sentença que ele era forçado a cumprir.

Francis, por sua vez, era o que agia mais estranhamente, pelo simples fato de não estar agindo. Apesar de ter acompanhado Arthur em sua visita ao meu apartamento, ele nada disse a Gilbert, limitando-se a sorrir melancolicamente e a concordar com o que seu colega de quarto dizia, através de demorados meneios de sua cabeça. Admito que sua passividade assustava-me mais do que qualquer palavra que o senhor Arthur pudesse dizer.

Por não compreender o que acontecia, hesitei em aproximar-me dos três. Minha sensação, ao oferecer-lhes um lanche, para tentar conciliá-los, era similar a de uma pessoa que caminha em um quarto escuro, sabendo que existem cacos de vidro espalhados pelo chão.

– Os senhores gostariam de comer bolo e tomar uma xícara de chá? – arrisquei um sorriso, estendendo uma bandeja com sachetorte e copos de porcelana que continham um líquido marrom e exalavam um vapor adocicado.

Arthur ergueu uma sobrancelha. Ele parecia surpreso com a minha presença, embora houvesse sido eu a abrir a porta.

– Ah. Eu... – após realizar que eu os observava, ele pareceu desconcertado e, por um momento, houve uma confusão em seu rosto que sugeria uma indecisão quanto ao modo como deveria agir. Essa dúvida durou apenas alguns segundos. Decidido, ele sorriu cordialmente e estendeu sua mão em minha direção– Eu adoraria experimentá-los, senhor Roderich. Muito obrigado.

Gilbert fitou-me com tanto alívio e gratidão que precisei conter-me para não rir.

“Seu tolo, se você queria tanto que aquilo parasse, deveria ter inventado uma desculpa mais convincente.“.

Ao ouvir minha proposta, Francis também voltou sua atenção a mim, exprimindo uma grande – e, de certo modo, perigosa - satisfação ao ver-me.

– Oh, senhor Roderich. – ele disse, com passional arrependimento - Perdoe-me pelo modo reprimível como estava o tratando. Eu estava profundamente preocupado com o meu amigo Gil, e demasiadamente assustado para interpelar o nosso cavalheiro britânico. A fúria dele, quando interrompido, é quase tão grande quanto suas sobrancelhas.

– O que você quer dizer com isso, seu...?!

Antes que Arthur avançasse sobre Francis e iniciasse um conflito que bagunçaria a toalha da mesa, eu coloquei a bandeja sobre ela. O baque seco do contato entre a madeira e o metal foi meu indireto pedido por silêncio e, felizmente, esse foi compreendido e respeitado.

Arthur, a contragosto, conteve suas ofensas e limitou-se a expressá-las em uma expressão amarga, com as pontas de seus lábios, curvando para baixo, em desdém. Francis continuou a sorrir, em minha direção, com o divertimento cúmplice de duas pessoas que compartilham uma piada interna. Ele, aparentemente, havia tomado minha interrupção como um modo de apoiá-lo. Era mortificante que ele acreditasse em uma possibilidade tão absurda.

Ignorando-o, servi os copos, pratos e talheres a todos na mesa, com serena indiferença.

Houve um breve momento de silêncio, quando eles se serviram. Gilbert, como sempre, começou pela sobremesa, degustando-com tamanha voracidade, quanto um predador devoraria sua presa. Ele bebia o chá seu chá em grandiosos goles, como se sorvesse vinho em uma taverna. Francis decidira, igualmente, iniciar pelo bolo, mas tinha tanto esmero ao cortar seus pedaços que nem havia começado a comer, quando meu colega de quarto terminou sua primeira porção. Arthur, por sua vez, iniciara pelo chá. Ele tomou um pequeno gole, como se apenas umedecesse sua boca, e declarou:

– Um Earl Grey? Devo elogiar seu bom gosto, embora este chá esteja apenas tolerável.

Conhecia Arthur suficientemente para saber que aquelas palavras seriam o mais próximo que escutaria de um elogio, portanto, recebi-as com contentamento. Gilbert, que era ainda mais íntimo daquele que me criticava, riu por dentro de sua xícara, e por pouco não permitiu que o líquido escapasse pelo copo.

–Jovem mestre, por “apenas tolerável”, ele quer dizer – Gilbert colocou a mão sobre o peito - “Oh, que chá! Sinto que vim ao mundo, apenas para provar essa bebida. Minhas papilas gustativas estão dançando em deleite!”... Kesesese! Tratando-se do Arthie, nós precisamos fazer essas pequenas traduções!

Arthur Kirkland reagiu a essa ironia com uma expressão insatisfeita e um longo gole de chá. Não se daria ao trabalho de respondê-la. Constatei, com divertimento, que, apesar de ele não gostar do que ouvira, havia um fundo de verdade na declaração de meu colega de quarto. Afinal, Arthur não havia parado de beber o chá.

Prosseguimos, tranquilamente, com nosso lanche da tarde. Francis, às vezes, arriscava alguns deboches mordazes quanto às sobrancelhas de Arthur, e esse, em resposta, murmurava alguns insultos, como se conjurasse uma maldição, contudo, essa troca de injúrias não culminou em uma briga. Minha toalha de mesa, felizmente, seria poupada.

Gilbert estava ocupado, devorando o bolo, como um urso preparando-se para sua hibernação, e não se incomodou em intervir nos atritos dos dois. Em sua distração, ele não percebia a gradativa construção de uma atmosfera conflituosa, nem a maneira persistente como eu o observava.

“Apesar de estar recuperando-se de uma febre que o deixou semiconsciente, esse é o terceiro pedaço dele...”. – fitei-o, reprovativo.

Como se lesse meus pensamentos e concordasse com eles, Arthur emitiu a seguinte opinião:

– Seu idiota. Você está certo de que está doente? Esse deve ser o quarto pedaço que você come!

– Terceiro! – defendeu-se Gilbert.

– Como se houvesse uma grande diferença! Francamente, o que há com o seu organismo? É assustador que você esteja tão animado, quando acabou de sair do hospital!

– O fato de eu ter saído do hospital não deveria ser animador? – ele perguntou, com um sorriso mordaz.

– Você entendeu minhas palavras, seu estúpido! Eu vi atletas olímpicos que, antes de uma competição, pareciam menos enérgicos do que você! Como você pode estar conversando e bebendo chá com tamanha casualidade?! Aliás, como você pôde tocar o piano, daquele modo, apesar de doente?! Eu não posso dizer que aprovei inteiramente o tempo utilizado por você, mas....- a expressão de Arthur suavizou-se e adquiriu um discreto tom róseo – aquele foi um belo Ravel. Eu estava impressionado.

– Obrigado. – sorriu docemente, o receptor daqueles elogios.

Arthur pigarreou e desviou seu rosto para o lado. Não era possível definir se era a vergonha ou a irritação que tingia-lhe as faces de escarlate. Gilbert, possivelmente, acreditava na segunda possibilidade. Durante os silenciosos e desconfortáveis segundos que seguiram-se a seu agradecimento, ele ainda sorria afetuosamente a seu sisudo amigo.

O que, por alguma razão, deixava-me inquieto.

– Oh, a música francesa! – exclamou Francis, juntando as palmas de suas mãos e, com isso, rompendo, abruptamente, aquela carregada atmosfera, como se nos despertasse de uma ilusão coletiva - Ela é tão bela que nem mesmo um pianista doente pode estragá-la!

Arthur piscou os olhos, algumas vezes. Parecia confuso. Depois, como se, finalmente, realizasse a própria presença naquela sala e a necessidade de uma resposta à questão de Francis, retomou sua compostura e replicou, espirituosamente:

– É irônico que você diga isso, quando estamos falando sobre Maurice Ravel, um homem que, diversas vezes, recusou-se a receber os aplausos por seu Bolero de Ravel, por criticar a qualidade da condução dos maestros que a regeram.

– Eu não sabia dessa história. – admitiu Francis, mas, sem conceder a vitória a Arthur, acrescentou, dando de ombros e sorrindo, debochadamente – Os maestros, provavelmente, eram ingleses! Nesse caso, não posso culpá-lo!

– Retire o que disse, seu...! –- Arthur exigia, agressivamente, quando Gilbert tocou-lhe o braço e chamou-lhe a atenção.

– Então, você não gostou do tempo do meu incrível Ravel, Arthie?

A ira foi, rapidamente, dissipada do semblante do senhor Arthur, com aquela pergunta. Seus olhos exibiram o característico brilho, que continham, quando a atenção desse era fisgada.

– Em seu lugar, eu teria tocado mais lentamente. – comentou Arthur Kirkland, placidamente.

– “Mais lentamente”! – Gilbert repetiu, revirando os olhos, com um sorriso que possuía um toque de escárnio – Arthie, não me assuste assim! Por um momento, eu havia me preocupado que você tivesse uma crítica relevante a fazer sobre o meu tempo! Kesesese! - ele estendeu sua mão, pondo sua habitual expressão de escárnio - É um elogio ser chamado de “rápido”, por você, cuja música não flui e, sim, rasteja-se!

– A sua música não flui, seu idiota! Ela, praticamente, participa de uma corrida de cem metros!

Assisti, espantado, a essa discussão entre dois pianistas, muito respeitados por mim. Eu havia escutado o piano de ambos e os apreciado imensamente, portanto, era tão curioso ver o quanto eles divergiam em suas opiniões sobre uma dada composição. Como na noite em que visitei o apartamento de Francis, cada um defendia suas opiniões com uma convicção próxima da violência. E por reconhecer a capacidade de ambos, aquela cena parecia-me tão singular.

Gilbert acusava o piano de Arthur de “arrastar-se” e recebia a acusação de “tocar disparadamente”. Eu não podia concordar com esses insultos. A meu ver, ambos possuíam uma grande sensibilidade quanto à interpretação de uma composição e refletiam isso, em sua utilização do tempo. Embora o piano de Gilbert, particularmente, parecesse-me superior ao de Arthur, a diferença entre seus níveis não estava na forma como eles utilizavam seu tempo, mas na diversidade de emoções que meu colega de quarto conseguia transmitir, através de seu piano, como um todo.

Tocar lentamente era um erro? Não. Tocar rapidamente era um erro? Não. Aquele era um debate que não culminaria em uma resposta, pois as opiniões que se contrapunham não se cancelavam.

Não havia uma escolha errada. Apenas interpretações diferentes.

Essa percepção que, para mim, era inteiramente nova, envolveu-me como uma luz esclarecedora. A sua importância, porém, apenas seria realmente compreendida, por mim, dentro de alguns dias.

– A Forlane que enxergo possui um rio e uma chuva de verão! Que rio e que chuva se deslocariam tão lentamente, Arthie?

–Chuvas e rios? Como você pode fazer uma associação tão desconexa? A minha Forlane mostra um cavalheiro, andando pelas ruas de Londres para chegar a um acolhedor café, onde encontrará seu namorado!

– Meu caro Arthie, você deseja dissociar chuvas e Londres? Eu pensei que Gil fosse o desconexo! – opinou Francis, implicantemente.

– Não é como se chovesse sempre!

– De qualquer modo, parem com essa briga desnecessária. – continuou Francis, surpreendentemente maduro - Arthur, você é muito lento. É por isso que o seu relacionamento com o Al não avança, ou melhor, não começa. Gilbert, você é muito rápido, é por isso que você parece prestes a se casar com o seu aristocrata, mesmo que eu o recomende tanto a aproveitar as liberdades da vida de um solteiro.

Essas declarações atingiram a todos os presentes na sala, como bofetões.

Unidos por um espanto coletivo, deixamos nossa boca cair, como se estivesse prestes a escorregar de nosso rosto, e arqueamos significativamente nossas sobrancelhas. Rápidas trocas de olhares ocorreram entre nós, como se, mutuamente, tentássemos confirmar a realização de frases tão absurdas. Elas desafiavam tanto a sanidade de Francis que não poderíamos simplesmente aceitá-las, sem questionar nossos sentidos.

Dentre nós, Gilbert era o que mais parecia mortificado. O seu choque possuía um elemento adicional, em relação ao meu e ao de Arthur. Ele não parecia apenas surpreso. Havia medo em seu rosto.

Sim, medo, mas... do quê? O que o assustava tanto, naquilo que me parecia apenas uma brincadeira de extremo mau-gosto? Pareceria mais natural se ele tivesse gargalhado e se unido à Francis, em sua brincadeira de constranger a mim e a Arthur, do que sua atual reação.

Como Gilbert abaixou seu rosto, parecendo hesitante em dar uma resposta, e eu estava ocupado, observando meu colega de quarto, Arthur foi o primeiro dos três a reagir e o fez tão vigorosamente quanto se tentasse defender aos três:

– N-Não diga coisas estúpidas! – ele berrou, franzindo as sobrancelhas, muito vermelho - Q-Quando eu demonstrei ter qualquer interesse por aquele idiota que desafia a pirâmide alimentar e sustenta seu corpo, apenas com hambúrgueres?!

– Ah, meu caro dependente de chá! Não me exija uma resposta como essa! Ela seria longa demais para ser contada em apenas uma tarde!

– O quê? Não me envolva nas suas fantasias doentias, seu bêbado! O álcool debilitou tanto o seu cérebro a ponto de provocar-lhe alucinações?!

– Eu também não possuo qualquer interesse por esse aristocrata! – Gilbert adicionou, repentinamente, com uma efusão próxima do desespero. Voltei-me para ele, imediatamente, indignado e atônito com aquela declaração. Por que ele parecia tão enojado com aquela ideia? Como se fosse ele que estivesse desprezando-me!

– Eu achei que seria desnecessário dizer algo tão óbvio quanto o fato de que, nem mesmo em três séculos ou mais, haveria a possibilidade de que eu e o senhor Gilbert nos envolvêssemos romanticamente, mas, visto que ele considerou necessário ressaltar esse ponto, devo reforçá-lo. Eu, jamais, me senti ou me sentirei atraído por Gilbert Beilschmidt.

Gilbert, ouvindo-me, apenas lançou um olhar desinteressado a um ponto aleatório, no teto, e bufou, em concordância. Arthur e Francis, por sua vez, foram tomados por perplexidade.

– Vocês não estão saindo? – indagou Arthur, com o mesmo cuidado de um estudante que teme que sua dúvida seja demasiadamente ridícula para receber uma resposta séria.

– Não. – respondemos simultaneamente, sem nos encararmos, e, estranhamente, parecia haver em ambas as vozes, a mesma dose de rancor.

Arthur franziu as sobrancelhas, em estranhamento.

A princípio, pensei que sua expressão devia-se a negativa que eu e meu colega de quarto demos à pergunta que ele havia feito e já ia perguntar-lhe como ele podia estar tão chocado com uma resposta apenas previsível, quando vi que seu olhar dirigia-se, especificamente, ao meu colega de quarto que tinha o seu rosto, encostado na mesa, em uma séria e contraída expressão de dor.

– Você está bem? – perguntou Arthur, quando a minha boca ainda se abria para realizar a mesma pergunta.

– Dor-de-cabeça... – meu colega de quarto murmurou, com esforço, essa resposta junto a alguns sons lamuriosos e sem sentido.

– Tão subitamente? – questionei e percebi, com arrependimento, que minha pergunta havia soado mais insensível e cética do que eram os meus sentimentos.

– Eu apenas... – ele tentou responder, contudo, fechou os olhos e produziu um longo e languido gemido - Hum... Sou tão incrível que... – tentou erguer seu rosto, todavia, por sentir-se tonto teve que apoiá-lo em uma de suas mãos - Ahn... Vocês entenderam...

– Completamente. – replicou Arthur, nitidamente sarcástico.

– Desculpe-me, eu estava distraído pelos seus sons sexuais, meu caro Gil, você poderia repetir o que disse? Incluindo os gemidos? – questionou Francis, casualmente, e tive o receio de que ele não estivesse sendo sarcástico.

– Vocês são amigos horríveis... – Gilbert deu um pequeno riso, sem forças, e ligeiramente distorcido pela dor.

Uma realização acendeu em mim, ao ouvi-lo dizer isso.

Eu deveria ajudá-lo. Naquele momento, eu era a pessoa que deveria apoiar o meu colega de quarto.

Como poderia haver alguém mais indicado para esse papel?

Nós morávamos juntos e aquele era o nosso apartamento. Arthur e Francis, apesar de compartilharem de uma grande amizade e intimidade com Gilbert, eram apenas visitas, e as normas da convivência não nos permitem deixar que visitantes resolvam os problemas da casa.

Satisfeito por encontrar uma desculpa convincente o bastante para poder cuidar de meu colega de quarto, sem precisar receber olhares implicantes e indiscretos ou intervenções que me deixariam deslocado e, inexplicavelmente, ressentido, eu havia me levantado para ajudar Gilbert a encaminhar-se para o seu quarto, quando ouvi pancadas na porta.

“Uma visita.” – pensei, desorientado com o desvio que meus planos haviam sofrido – “Eu tenho que recebê-la.”.

Essas pancadas pareciam atingir o meu ânimo.

Como morador do apartamento, eu deveria receber nossos visitantes, ainda que houvesse uma enorme possibilidade que eles fossem Romano e Antonio, mais íntimos de nossas visitas atuais do que eu era. Todavia, se eu fosse...

– Eu levarei esse idiota a seu quarto. – determinou Arthur, colocando os braços de Gilbert em torno de seus ombros – Como anfitrião, você deve atender a porta. Não se preocupe com ele ou comigo. Não é a primeira vez que Gilbert age de um modo estúpido e sofre as consequências por isso. Estou acostumando-me a cuidar dele.

Fiquei sem reação. Permanecido parado, em pé, sentindo um frio anormal tomar o meu rosto.

Eu estava completamente desnorteado.

Arthur estava sendo altruísta e fazendo um favor, tanto para mim, quanto para Gilbert. A sua decisão era a melhor para todos e eu deveria aceitá-la, sem prolongar-me em considerações. No entanto...

“Eu não quero atender a porta.”

A sinceridade desse pensamento fez meu coração contrair-se dolorosamente.

Sim. Eu deveria atender a porta e permitir que Arthur cuidasse de Gilbert. Essa seria uma decisão sensata. Entretanto, uma porção minha, imatura e impulsiva, desejava que eu ignorasse nossos visitantes e dedicasse-me ao meu colega de quarto, como era a minha vontade.

Uma parte ainda mais íntima e irracional, ainda lutava para digerir a posição atual dos braços de Gilbert e a frase, supostamente inofensiva, de Arthur que ressoava em minha mente.

Estou acostumando-me a cuidar dele.

Para mim, que recebia, raramente, uma oportunidade de fornecer algum apoio a Gilbert e sentia-me tão feliz, quando podia fazê-lo, ver como era habitual, para Arthur, que meu colega de quarto exibisse sua porção vulnerável e dependente a ele, não era algo que eu pudesse aceitar de imediato.

Durante meus segundos de indecisão – que pareceram minutos, horas – toda a minha alma e meu coração gritavam que eu deveria intervir, todavia, a minha mente, mais austera e solene, tomou minha decisão final.

– Obrigado. – abaixei meu rosto, entrelacei minhas mãos e agradeci a Arthur, em uma voz inesperadamente fraca e baixa.

Antes mesmo de ouvi-lo responder-me, dei as costas e encaminhei-me rapidamente a porta da sala, dominado por um extenuante conformismo e frustração, que faziam meu coração acelerar-se nervosamente.

Ainda muito perturbado para coordenar minhas ações, abri a porta, sem conferir quem eram nossos visitantes e tornei-me perplexo ao perceber que, diferente do que previa, não eram Antonio e Francis que estavam a nos visitar, embora houvesse, dentre nossos visitantes, um rosto alegre, muito familiar.

Veh! Senhor Roderich!

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Feliciano Vargas seria, para mim, o que costumam denominar de "amigo-de-infância". Nós morávamos, no mesmo bairro, quando crianças e, naturalmente, ocorreu uma socialização entre nossas famílias. Os Eldestein e os Vargas compartilhavam a paixão por música e culinária, portanto, nossa relação foi aprovada e incentivada. Lamentavelmente, a nossa amizade foi tão prazerosa quanto breve. Em cerca de oito meses, os Vargas viram a necessidade de retornar à Itália, devido a questões familiares. Como eu, Elisaveta e Feliciano, estávamos em uma idade em que um afastamento físico significa uma separação definitiva, nosso antigo convívio tornou-se uma lembrança que seria esquecida ou embaçada, se fôssemos mais sociáveis e adquiríssemos outros amigos de quem lembrar.

Passaram-se treze anos, desde então. Logo, era um tanto assustador ver que, com exceção à sua altura e o timbre de sua voz, Feliciano permanecia praticamente o mesmo, como se houvesse parado no tempo.

Eu fui o primeiro a reconhecê-lo, mas ele foi ele que tomou a iniciativa de cumprimentar-me. Visivelmente contente com nosso reencontro, ele tomou minhas mãos e as agitou para cima e para baixo, declarando, animadamente, em um único fôlego:

Veh! Veh! Senhor Roderich! Eu fico tão feliz em encontrá-lo! Que divertido vê-lo, novamente! – antes que eu pudesse reagir, ele desvencilhou nossas mãos e abraçou-me pelos ombros, lançando-se sobre mim e desequilibrando-me, por um momento. - Eu estava muito assustado em visitar o irmão do Ludwig, mas, se você está aqui, tudo ficará bem!

Logo vi que não somente a sua aparência foi preservada, como sua personalidade. Ele ainda continha os mesmos modos expansivos e imaturidade cativante que possuía, quando o conheci.

Não retribuí seu abraço, mas, singelamente, devolvi seu sorriso. Sim. Eu não sabia que voltas o destino havia dado para promover nossa reunião, contudo, devia concordar com Feliciano. Era bom revê-lo.

Subitamente, o comovente momento de reencontro entre dois amigos foi rompido por uma exclamação raivosa.

– FELICIANO! O que eu já comentei sobre abraçar desconhecidos?! – recriminou-o um anônimo cavalheiro, com cabelos loiros e olhos azuis que ferviam em indignação. Ele o puxou, contra si, envolvendo um braço em seu pescoço, de modo a prendê-lo.

Veh! Ludwig! Ludwig! Ele não é um estranho! Nós somos amigos!

– Eu já falei que pessoas não se tornam suas amigas, simplesmente, por que você decide isso!

O cavalheiro continuou a pressionar o pescoço de Feliciano, enquanto esse debatia-se, chorosamente, em seus braços. Observei aquela cena, com meu espírito carregado por uma curiosa mistura entre horror e complacência pelo agressor de meu amigo de infância.

Eu sabia que sua intervenção era justificada por eventos anteriores. Pobre homem. Parecia tão nervoso. Eu mal podia estimar o quanto ele se esforçava para lidar com Feliciano Vargas... Por um momento, perguntei-me se deveria detê-lo. Dessa vez, ele estava enganado, mas isso retirava o seu direito de aproveitar-se de uma oportunidade para maltratar alguém que tanto o exauria?

Sim, retirava. Minha moderada identificação com aquele cavalheiro não deturpara o meu senso de justiça, por isso, após uma momentânea inércia de minha parte, confirmei o que Feliciano dissera. Nós éramos amigos por acordo mútuo.

O comportamento do anônimo mudou completamente, após minhas palavras. Extremamente desconcertado, ele lançou-me um olhar apavorado e soltou Feliciano, repentinamente, como se deixasse um objeto cair de suas mãos.

Ele, apressadamente, ajeitou suas vestes e postura. Prostrou-se, diante de mim, com os ombros erguidos e as mãos cruzadas em suas costas, fazendo um respeitoso meneio em minha direção:

– Perdoe-me pelo meu rude comportamento. Não era minha intenção, agir de modo tão vergonhoso, perante um desconhecido. Apenas concluí que meu colega de quarto o importunava e decidi intervir... Ele, frequentemente, comporta-se como um íntimo de completos estranhos e eles não costumam gostar disso, então... – ele tossiu secamente, cobrindo sua boca, com sua mão fechada. Parecia um tanto embaraçado. - A despeito de minhas boas intenções, admito que fui precipitado. Minhas sinceras desculpas.

A conduta educada e cortês daquele cavalheiro desfez qualquer má-impressão deixada pelo modo como ele avançara sobre Feliciano.

– Não se incomode com isso. O senhor é...?

– Ah, sim. Eu ainda não me apresentei? Er... Como posso dizer? Apenas confirmando, esse é o apartamento de Gilbert Beilschmidt?

– Sim. – ergui minhas sobrancelhas. Aquele senhor era um conhecido de Gilbert? Qual amigo de meu colega de quarto, eu ainda não havia conhecido?

– Ah. – ele suspirou aliviado e pareceu relaxar – Por um instante, questionei-me se estava no endereço correto. Suponho que você more com a pessoa que procuro? – confirmei essa questão, acenando positivamente. Ele prosseguiu, estendendo sua mão para que eu a apertasse – É um prazer conhecê-lo. O meu nome é Ludwig Beilschmidt, sou o irmão mais novo de Gilbert.

– Mais novo! – arregalei os olhos. O assombro não me permitiu apertar a mão que eu segurava. Que inacreditável! Ele era o mais novo? Não aparentava, minimamente! Digo, com aquele fato, o mais velho seria Gilbert! A imagem esperada de um irmão mais velho não seria a de um adulto amadurecido pelas suas experiências de vida? O meu colega de quarto, absolutamente, não adequava-se nesse perfil!

– Er... Sim. – ele confirmou, estranhando minha reação exagerada - Eu soube que meu irmão está doente e vim fazer-lhe uma visita. Nós poderíamos vê-lo?

Concordei com esse pedido e permiti que nossos visitantes entrassem no apartamento, guiando-os até o quarto de Gilbert. Durante o percurso, passamos por Francis que, para a minha irritação, estava estirado em nosso sofá, como se pousasse para uma tela, e reconheceu aqueles que acompanhavam-me.

– Oh, Ludwig! Assustador, como sempre! É uma terrível injustiça que você ainda não tenha sido convidado a participar de um dos filmes do Tim Burton! – sorriu Francis – Ah! Feli! Você veio também?

– Olá, irmão Francis! – Feliciano acenava, alegremente, até seu pulso ser tomado, possessivamente, por seu colega de quarto.

– FELICIANO! Não o responda amigavelmente! Ele não é um bom exemplo ou companhia para você!

Veh! Veh! Que assustador! N-Não fique bravo comigo, Ludwig! – encolheu-se Feliciano, como um filhote que pressente uma agressão.

– Quanta rispidez! – disse Francis, em um tom de fingida decepção. Ele exibia um meio sorriso, balançando seu rosto, com seus olhos fechados – Diga-me, Feli, ele também é sádico assim na ca...?

– FRANCIS!!!

Soltei um pequeno suspiro e ajeitei os óculos em meu rosto.

“Como o esperado de conhecidos de Gilbert...” - pensei, com certa resignação, abstraindo-me do barulho, gerado pela provocação de Francis, e sentindo o metal frio da maçaneta envolver inteiramente minha mão.

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– Irmão, tente entender... – Ludwig, com a voz abafada por uma raiva contida, inspirou, obrigando-se a ser paciente- Como disse, eu apenas faltei à sua apresentação, pois tinha um ensaio marcado com a minha orquestra! Em outras condições, eu não teria...

– Como se eu pudesse acreditar nisso! Pare com essas desculpas e ajoelhe-se, implorando pelo meu perdão!

Era a quarta vez em que Gilbert havia interrompido uma justificativa razoável com solicitações absurdas e hostis. Ele estava sendo imaturo e persistente. Sua insatisfação era expressa de uma forma tão efusiva que poderia ser considerada cômica, se não estivesse cansando tanto a pessoa que tentara desculpar-se diversas vezes e que inspirava, novamente, tentando manter-se circunspecto.

– Irmão, não seja irracional.

– Por que você ainda está de pé?!

Assim persistia uma briga unilateral que durava um tempo demasiadamente longo para capturar minha atenção. Apesar da maneira dócil e melancólica com a qual Gilbert lidou com o suposto desprezo de seu irmão mais novo, quando estávamos a sós, na presença dele, meu colega de quarto havia adotado uma postura completamente diferente.

O seu ressentimento converteu-se - pelo menos, em sua aparência - em um rancor profundo e as desculpas de seu irmão não eram suficientes para apaziguá-lo, visto que Gilbert era alguém demasiadamente orgulhoso para admitir que poucas justificativas e desculpas, vindas de alguém que ele estimava, eram suficientes para mudar inteiramente o humor.

Por estar familiarizado com as expressões e modos de meu colega de quarto, a briga entre eles, desde o seu início, não me provocou nenhum sentimento, diferente de uma monotonia rarefeita. Apesar de minha solidariedade por Ludwig, que vivenciava um aborrecimento latente, sabia que aquele conflito não possuía dimensões alarmantes e não resultaria em nada.

Afinal, apesar de tentar expressar mágoa e cólera, a agitação de meu colega de quarto indicava que a visita de seu irmão acabara por animá-lo. O que ele, certamente, não admitiria para mim e muito menos a Ludwig.

Arthur, por sua vez, também não parecia sentir apreensão pelas consequências de uma briga entre os irmãos Beilschmidt. Sua postura, entretanto, foi diferente da minha. Assim que os dois começaram a discutir, ou seja, no instante em que Ludwig entrou no quarto e Gilbert começou a disparar ardentes acusações de ingratidão, traição e insensibilidade sobre esse, Arthur Kirkland revirou os olhos, concluiu que aquilo iria demorar e ofereceu-se a preparar o jantar. Uma oferta que aceitei de bom grado, apesar do grito espantado e coletivo de “NÃO!” que Gilbert, Ludwig e Feliciano deram em um rápido momento de união entre eles.

Eu considerei a atitude deles, meramente, como um ato de implicância com o senhor Arthur e muito estarrecido com a grosseria dos três, insisti que ele preparasse o jantar. Arthur Kirkland, rapidamente, concordou com minha solicitação e, enquanto os três demais presentes gemiam, desgostosos com minha decisão, ele retirou-se, irascível, com o rosto bastante vermelho e decidido, dizendo que ele prepararia a comida de qualquer modo, pois não era como se estivesse fazendo isso por eles.

Em poucos minutos, Arthur cozinhava, os Beilschmidt discutiam e tanto eu quanto Feliciano líamos, acomodados em nossas cadeiras.

Apesar de presumir, pela aparência resoluta e vingativa de Gilbert, que aquela briga duraria por várias horas, ela não chegou a completar uma hora, quando foi findada por Ludwig.

– Irmão, como mencionei, eu não tinha... – ele justificava-se, novamente, quando deteve-se, acometido por uma solução. Os seus olhos adquiriram um estranho brilho e ele prosseguiu em outro tom. Um tom que, essencialmente, era similar a uma armadilha – Eu trouxe morangos. Você quer?

Um suborno com comida.

Essa havia sido a ideia dele.

Caso estivéssemos tratando de alguém mais maduro e sensato, seria ofensivo pressupor que uma oferta como essa pudesse apaziguar a fúria de uma ofensa, entretanto, aquele era Gilbert e, por experiência própria, eu sabia quanto sentido havia naquilo.

Tive minhas suspeitas de que aquela discussão estava prestes a ser encerrada, quando vi o rosto de Gilbert. Ele olhava para cima, enquanto ria, exibindo um sorriso que tentava exprimir escárnio, mas estava repleto de nervosismo e hesitação.

– Q-Que ridículo, Lud! N-Não pense que coisas simples como essas são suficientes para aplacar a minha indomável fúria...!

– Eu trouxe panquecas também.

Pronto. A briga havia sido terminada.

– Há, há, há! – Gilbert riu, ainda com um nervosismo que tentava camuflar-se em deboche, recebendo a sacola que Ludwig carregava consigo - E-Eu sempre afirmei que a capacidade perdoar é uma das maiores virtudes humanas! Regozije-se, Lud! Em um ato de extrema generosidade, esquecerei o seu erro!

“Tão manipulável.” – pensei, agitando meu rosto, ligeiramente perturbado com a forma como meu colega de quarto era orgulhoso, tratando-se de aceitar pedidos de desculpa, mas não o era, quando esses vinham acompanhados por comida.

Quão enigmática a mente dele podia ser?

Refletia sobre isso, quando vi que Gilbert abria o depósito, onde se encontravam seus morangos, e, recordando-me que, naquela tarde, ele já havia ingerido uma quantia demasiada de alimentos, decidi-me por detê-lo. Segurei seu pulso firmemente, antes que ele pudesse apanhar um morango, e aproveitei-me da distração resultante da surpresa que ele teve com meu gesto, para retirar a sacola de suas mãos e depositá-la sobre sua mesa.

– Você não deveria comer tanto, quando está doente. – repreendi-o calmamente- Há o risco de que você tenha náuseas, devido ao seu apetite descontrolado.

– Ei, Rod! O que você está fazendo?! – ele protestou, batendo seu punho fechado em sua cama e encarando-me com indignação e assombro - Eu estou me sentindo melhor!

Como se alguém pudesse se curar apenas em ver uma porção de morangos! Gilbert estava doente e a ausência de sua noção quanto a esse fato, deixava-me fortemente impaciente.

– Pare de mentir, quando o convém! – ralhei, franzindo minhas sobrancelhas, em uma repreensão que julguei necessária.

– Pare de ser tão cético quanto às minhas ações, aristocrata! – Gilbert replicou, ainda inconformado - É apenas natural que alguém incrível como eu, recupere-se rapidamente! Não compare as nossas velocidades de recuperação! Os meus anticorpos riem dos seus!

Nesse ponto, quietei-me, decidido a não deixar que meu temperamento fosse abalado e que, com isso, acabasse por levar-me a reagir de uma forma tão infantil quanto meu colega de quarto.

– Recuso-me a sentir-me ofendido por suas colocações despidas de sentido, portanto, as ignorarei e serei mais direto em meu ponto. – expressei-me, com fria e forçada tranquilidade - Diga-me, precisamente, como o senhor está se sentindo.

– Rod, por que você...?! – ele impacientou-se e estava prestes a reagir, quando, farto de vê-lo reclamar desnecessariamente, respondi, seriamente, com uma inevitável sinceridade.

– Eu estou preocupado com você.

...

Após um instante de silêncio e perplexidade, ele virou seu rosto com a aborrecida frustração de um vencido. Parecia um pouco mais enrubescido. Era interessante ver seu rosto com uma tonalidade que era mais frequente no meu e não pude deixar de observá-la, inferindo que sua irritação, combinada à sua temperatura, provocava esse efeito.

– A minha cabeça ainda dói um pouco... – ele murmurou, encolhendo-se entre os lençóis.

– Apenas isso? Como está sua febre? – perguntei, inclinando-me para tocar em sua testa.

– Não muito alta, mas...

Veh! Vocês parecem ser tão amigos!

Voltamo-nos para Feliciano, igualmente surpresos, embora por motivos diferentes. Eu estava chocado por ter esquecido sua presença e Gilbert...

– Quem é esse?!

...por não ter percebido, em nenhum momento, aquele intruso que estava em seu quarto há vários minutos.

Ludwig, rapidamente, levantou-se da cama de Gilbert, pronto para iniciar apresentações que, pela severidade de seu semblante, poderiam ter sido ensaiadas por semanas, mas Feliciano adiantou-se e erguendo-se de sua cadeira, tomou as mãos de meu colega de quarto e disse, apertando-as carinhosamente:

– Olá! Meu nome é Feliciano Vargas! Eu sou um aluno do segundo semestre do conservatório de música e estou me especializando em violino! Eu e seu irmão, Ludwig, estamos morando juntos, desde agosto! Ele é muito bondoso comigo e cuida de mim, de muitas maneiras! Eu estava um pouco assustado em conhecê-lo, senhor Gilbert, mas fiquei mais tranquilo, ao perceber que você e o senhor Roderich são amigos! Vamos ser amigos também! Você gosta de pasta?

Gilbert demorou um instante para orientar-se naquela tempestade de informações. Olhando para o rosto sorridente de Feliciano, meu colega de quarto parecia profundamente atordoado. Por fim, ele assimilou parcialmente o que se passava e decidiu como deveria responder àquela proposta de amizade.

Ele sorriu.

Kesesese! Ele é tão bonitinho, Lud! Onde você o encontrou?

Ele perguntava isso como se falasse sobre um filhote.

– Nós estamos dividindo um apartamento. Os custos seriam elevados, caso eu tentasse morar sozinho, em Paris, então, em julho, eu procurei por estudantes do conservatório que quisessem ter um colega de quarto. A localização do prédio de Feliciano era conveniente para os meus planos e...

– Sim, sim. Eu me lembro da história da sua traição!- a exclamação de Gilbert ganhou um tom acusatório e excessivamente dramático, novamente. Suspirei ao pensar que seus discursos sobre traição e desunião entre famílias recomeçaria. - Você decidiu mudar-se para outro prédio, pois não quis morar no mesmo local que o incrível eu! Como se isso não fosse suficiente, você mal fala comigo, no conservatório, e mal responde os meus e-mails!

– Irmão... Você grita o meu nome, quanto me vê, no conservatório. Isso é constrangedor! E como eu poderia responder os seus e-mails?! Você me manda cerca de quarenta deles, todos os dias! Eu não tenho tanto tempo livre!

– Nem tempo, nem consideração por mim, aparentemente! Francamente, Lud! O que há de errado com você?! Você deveria saltar de alegria por ser o irmão mais novo do incrível eu!

Ludwig respirou profundamente, antes de responder, com uma voz grave, afetada pela raiva:

– Irmão, eu...

Veh! N-Não briguem, por favor! B-Brigar não é bom! S-Se vocês começassem a se agredir fisicamente, eu não poderia impedi-los!

O pedido de Feliciano que, inicialmente, pareceu-me inútil, teve algum efeito, afinal. Fitando meu choroso amigo de infância, Ludwig e Gilbert acalmaram seus ânimos e perderam sua disposição de brigar.

– Eu apresentei meu colega de quarto, irmão. Você não poderia me apresentar o seu?

– Ah, sim! – ele pegou minha mão, sem um motivo. Aversivo a ideia de parecermos mais íntimos do que éramos, tentei recuperá-la, contudo, ele era mais forte e persistente do que eu e, para o meu incômodo, ela permaneceu no mesmo lugar. – Esse é o Rod! Nós estamos morando juntos, desde julho!

– Compreendo. – disse o irmão de Gilbert, condescendente, fixando o seu olhar em nossas mãos que, contra a minha vontade, permaneciam unidas. – Compreendo... – ele repetiu, como se estivesse mais ciente do que se passava, se comparado a um momento anterior. O que, exatamente, ele havia compreendido?

– O meu nome é Roderich Eldestein. – corrigi Gilbert – Por favor, perdoe-me por não ter me apresentado devidamente, quando nos vimos.

– Ah. Tudo bem. – ele apressou-se em dizer – O meu irmão havia falado a seu respeito, em alguns dos e-mails dele... Obrigado por ter cuidado do meu irmão mais velho, durante esses quatro meses, senhor Eldestein. Ele pode ser um tanto idiota, às vezes, mas ele não age assim por mal... – ele acrescentou, em uma voz baixa e hesitante - Eu acho.– seguindo-se a esse murmúrio, o senhor Ludwig, inesperadamente, fez uma reverência respeitosa e formal - Por favor, continue ao lado dele.

Não detive-me no quão estranho poderia ser um pedido como aquele, quando feito a um mero colega de quarto de seu irmão. O irmão de Ludwig, definitivamente, precisava dos cuidados e da companhia de quem pudesse suportá-lo e pareceu-me apenas natural que houvesse uma preocupação como essa.

No entanto, houve um ponto que capturou minha atenção.

– O meu irmão havia falado a seu respeito, em alguns dos e-mails dele...

...

Não havia nada demais naquilo. Era algo natural e previsível que Gilbert tivesse comentado sobre seu colega de quarto com seu irmão mais novo. Seria até descortês, se ele não tivesse o feito. Não havia nisso nenhum significado especial.

O que confundia-me, portanto, não era o fato de Gilbert ter comentado a meu respeito e, sim, o intenso efeito que esse gesto tão simples teve sobre mim. O meu coração, com aquelas palavras, tornara-se tão apertado que chegava a doer.

Que reação estúpida. Por que eu estava me animando tanto com algo tão simplório?

– Eu... – balbuciei, com minha boca entreaberta, em uma voz fraca e trêmula – Eu...

– Lud, você não precisa pedir isso ao aristocrata! – ele sorriu, inocentemente - O Arthie, como sempre, estará cuidando de mim!

Com essa réplica, senti-me como se aquilo que havia se acumulado, em meu peito, houvesse escorrido para o chão.

– Sim. Por favor, permita que o senhor Arthur permaneça cuidando dele. – falei, em um tom perfeitamente calmo que, em parte, continha uma mistura de cinismo e rancor - Eu não gostaria de responsabilizar-me por alguém tão estúpido.

– Entendo. – respondeu Ludwig, como se realmente compreendesse os meus motivos para discordar de seu apelo. – Nesse caso, não o importunarei mais e simplesmente pedirei que tente tolerá-lo até que a sua formatura.

– Ei, Rod! Por que você me lançou o seu olhar de “sinta o meu profundo desprezo”?! O que eu fiz?!

– Fique quieto, seu tolo.

– Vê? De novo! O que há com você, jovem mestre?!

– Então, é isso que significa esse olhar? – questionou Feliciano - Veh! O senhor Roderich costumava utilizá-lo muito, quando éramos crianças!

– O quê? Você conhecia o jovem mestre, antes de visitar o incrível eu, Feli? – perguntou Gilbert, tratando por um apelido, uma pessoa que havia acabado de conhecer.

Eu o recriminaria por tratar com tamanha intimidade alguém que, para ele, era praticamente um estranho. Entretanto, percebi que, com essa intervenção, poderia retirar a conversa do campo seguro, na qual estava estabelecida, e mantive-me em silêncio. Não era como se Feliciano fosse se incomodar com demonstrações de afeto.

– Sim! Nós morávamos no mesmo bairro, quando crianças! A minha família havia acabado de se mudar para a Áustria e...!

Um violento baque interrompeu a narrativa e assustou a todos os presentes, quando a porta do quarto foi brutalmente aberta, como se derrubada por um chute.

– VOCÊ ESTÁ BEM, SEU DESGRAÇADO?!

Romano entrara, naquele recinto, do mesmo modo como um policial interromperia um criminoso prestes a cometer um delito e provocou um rápido, mas terrível susto em cada um de nós. Pisquei diversas vezes, ainda atordoado com o que havia acontecido, quando um incidente bastante singular ocorreu.

O olhar de Ludwig encontrou-se com o de Romano e os dois tornaram-se conscientes do encontro entre eles.

O susto de Ludwig tornou-se ainda maior do que antes. Romano, por sua vez, foi tomado por incompreensível revolta.

– O quê?! Você também está aqui?!

–... Olá, Romano. – suspirou Ludwig. Ele cobria a sua testa, com sua mão direita, como se a visão de Romano fosse suficiente para exauri-lo.

– EI, Antonio! – Romano voltou-se a seu recém-chegado colega de quarto com a mesma violência injustificada que dirigira a Ludwig - Por que você não me avisou que estava me arrastando para uma reunião com o clã Batata, seu bastardo?!

Antonio, um pouco atrás dele, não demonstrou nenhum espanto ou ofensa pelos modos agressivos de Romano e manteve uma expressão suave, embora ligeiramente reprovativa.

– Romano, não seja rude com o Lud! – ele recriminou-o, singelamente, pondo as mãos em sua cintura - Ele cuida muito do seu irmão! Ah! Olá, Feli! – ele cumprimentou Feliciano, com um largo, largo sorriso que quase derretia-se em seu rosto, com o calor que irradiava. Aquela, na verdade, foi a expressão mais suspeita que eu havia visto em seu rosto, até então. - Fusososo! Você parece amável como sempre!

Inesperadamente, aquele cumprimento teve um efeito intenso sobre Romano que, por um instante, fitou-o, parecendo ferido, e, em seguida, abaixou-se e usou sua cabeça para diferir um golpe violento sobre o peito de Antonio, gerando, em seu colega de quarto, uma exclamação de dor similar a um engasgo.

– P-Por que você está flertando em um momento como esse, seu idiota?!

– H-Hã? M-mas eu...!

– A comida está pronta! – Arthur entrou no quarto, com um radiante sorriso, interrompendo o que poderia ser um momento dramático ou cômico, segurando uma travessa que continha uma massa disforme e escura. Era impossível adivinhar do que aquilo se originara e, apesar de descrente quanto às minhas próprias esperanças, eu torci imensamente para que aquilo não fosse o que ele chamava de “comida”. – Vamos para a mesa!

– Essa... Essa é a comida? – eu perguntei, apontando para a travessa, necessitando confirmar.

– Oh. Essa foi uma dúvida oportuna, senhor Roderich. – respondeu Francis, que surgiu por trás de Arthur, apoiando a cabeça em seu ombro – Repare que o nosso cavalheiro britânico chama isso de comida, embora o termo comumente usado seja “arma biológica”...

– O-O que você está chamando de arma biológica, seu estúpido?! – berrou Arthur, levando a travessa a seu peito e comprimindo seus ombros, como se estivesse prostrando-se para uma ofensiva.

– E-Essa comida deve estar horrível! – gemeu Feliciano, indiscretamente, com pequenas lágrimas acumuladas em seus olhos. Ele agarrou-se ao braço de Ludwig, como se esperasse que esse o protegesse - Eu não posso comê-la! Ludwig, diga-me que eu não precisarei comer! Ludwiig!

– Sabe, bastardo, - Romano dirigiu a Ludwig um sorriso, claramente, sardônico - essa porcaria ainda é melhor do que as suas batatas!

– Feliciano, por favor, pare de balançar o meu braço... – foi o único pedido do irmão de Gilbert que tinha as pálpebras fechadas, espremidas pelo seu esforço para manter-se calmo.

– Romano, o que você está dizendo? – disse Antonio, com alguma surpresa - Você não deve insultar a comida intragável do Arthie!

Wankers!

Aquele quarto, há muito, havia tornado-se um cenário caótico e confuso. Havia tantas vozes, opiniões divergentes, conflitos de diversos graus por variados motivos, pessoas e comportamentos excêntricos...

Era, portanto, surpreendente que eu não me incomodasse com aquilo.

Sim. Eu realizei, um tanto atônito e confuso, que não me sentia incomodado com aquele caos.

Normalmente, eu me sentiria imensamente desconfortável ao estar inserido em tal situação e desenvolveria um asco silencioso por aqueles que provocavam minha perturbação. No mínimo, sentiria-me deslocado, diante de uma agitação da qual não fazia parte. Entretanto, mesmo possuindo, dessa vez, diversos motivos para sentir-me assim, não eram essas as minhas emoções.

Era muito chocante, de fato, perceber que eu, Roderich Eldestein, podia reagir com tanta calma a uma desordem como aquela, por estar acostumado, e, talvez, resignado, com ela.

Em que momento, tal mudança havia ocorrido em meu interior?

Eu podia ver Arthur, Antonio, Ludwig, Romano e os demais, não como os importunos geradores de uma bagunça que eu recriminava, mas como indivíduos. Eles, ocasionalmente, podiam ser bastante importunos, no entanto, as suas qualidades pareciam-me mais significativas do que os seus defeitos. Eu não os via como uma forma indefinida que trazia-me perturbações, mas enxergava a singularidade presente em cada um deles.

Além disso, noticiei que, por conhecer cada um deles, eu podia lidar com as confusões entre eles, sem sentir-me perdido ou horrorizado. Nunca apreciaria, por completo, o fato de eles fazerem tanto barulho e gerarem tamanha desordem, entretanto, percebi, naquela ocasião, que ocasiões assim não encurralavam-me, como antes.

Eu poderia, inclusive, ver o comportamento agitado e excêntrico dos amigos e parentes de meu colega de quarto com uma contida dose de bom humor.

Eu esperava que ele não a percebesse.

Afinal, Gilbert, meu colega de quarto, a pessoa com quem compartilhava minhas opiniões, problemas e medos, certamente, era o culpado por essa mudança em mim.

Minha vida era como um lago, em sua mansidão permanente, antes de sua vinda. Ele, no entanto, trouxe-me tumulto, caos e conflitos que geraram em mim, emoções arrebatadas que não imaginei ser capaz de possuir.

Essas emoções podiam ser tão incômodas quanto significativas e, em algum momento, acostumei-me a adquiri-las. Acostumei-me com o caos, com o barulho e o tumulto, pois percebi que, em certas ocasiões, eles não eram de todo mal. Evidentemente, eu ainda os recriminaria, no entanto, ainda que minhas queixas se repetissem, os meus sentimentos haviam sofrido mudanças irrevogáveis.

Eu podia ver aquelas cenas de caos, tumulto e desordem, com bom humor. Eu podia ver aquelas cenas de caos, tumulto e desordem, com alguma afeição. Era assustador pensar que minhas intensas mudanças interiores haviam ocorrido, sem que eu sequer as percebesse! Era ainda mais surpreendente que elas houvessem ocorrido, por causa de Gilbert!

Sim, Gilbert. Da mesma forma como estava consciente de todos os seus múltiplos defeitos, eu sabia dolorosamente bem o quanto as nossas vidas haviam se interligado. Essa ligação podia, às vezes, ser extenuante e pesada, contudo, em momentos como aquele, eu não podia evitar um contentamento profundo pela existência dela.

– Rod. – o objeto de meus pensamentos, delicadamente, puxou a manga de minha camisa, chamando minha atenção. – O que você fará para o jantar?

– Eu pensarei sobre isso.

Com esforço, consegui deter o sorriso que tentava surgir em meu rosto, entretanto, não consegui impedir aquele que estava presente, dentro de mim.

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Notas finais do capítulo

Esse capítulo é tão feliz e adorável!:3
Entretanto, ele é o que costumo denominar de "a brisa, antes da tempestade". O capítulo seguinte será o capítulo central - no sentido de "o capítulo que marca o meio" - da fic e será nele que iniciarão uma série de fatos que farão vocês pensarem algo como "OMFG!", várias vezes, por diversos motivos. Apenas aguardem, sim? Como disse, várias vezes, essa fic POSSUI um progresso. Ele é lento, muito lento, mas existente.:3
Muito obrigada pelos comentários! O apoio que recebi no último capítulo foi o que me incentivou a dedicar-me a esse, mesmo que estivesse tão ocupada e que ele tenha exigido grande parte das minhas forças!:)
Leitores antigos, como sempre, é bom revê-los! Leitores novos, obrigada por comentarem e, por favor, não voltem ao limbo dos leitores-fantasmas novamente!:(
Enfim, obrigada por lerem, apreciarem e comentarem essa fic! Por favor, continuem a fazer o mesmo e esperem, pacientemente, pela segunda parte desse capítulo! Acredito que poderei postá-la até o fim dessa semana! Bai, bai!:3