Capítulo 71 - Dois visitantes suspeitos

Pelas manhãs, enquanto André e Lien estavam na escola, Mestre Wong utilizava o tempo para suas atividades pessoais. Acordado desde às cinco da manhã, ele realizava desde o seu treino diário de três horas até os afazeres comuns da academia, como varrer o chão e verificar as correspondências. Embora hoje em dia as cartas estejam cada vez mais raras (com exceção das contas, é claro), o velho mestre ficou intrigado ao ver algo diferente em meio ao que fora entregue pelos correios.

- O que é isto? - perguntou-se o mestre ao ver um envelope beje com um tipo diferente de papel – Não parece ser uma conta.

Curioso, ele logo abriu a carta e deu de cara com alguma coisa aparentemente não muito agradável. Mestre Wong olhou para os lados, engoliu seco e rasgou a correspondência imediatamente.

- Não, não deve ser aquilo – disse ele – Deve ser só um trote. Isso, um trote de mau gosto.

Pela expressão do ancião, a carta parecia tratar de um assunto delicado, mas o que poderia ser? Isso só o próprio Mestre Wong sabia. Após ignorar a mensagem, o velho mestre continuou seu treino matinal e, assim que voltou para tomar um copo d'água na cozinha, o telefone tocou. O Mestre parecia apreensivo até mesmo com ligações telefônicas. Algum tipo de mistério estava no ar. Temeroso, ele atendeu a ligação.

- Alô? - perguntou ele.

- O consultório do Dr. Marcelo, por favor? - perguntou a voz do telefone.

- Err..não tem nenhum Dr. Marcelo por aqui – respondeu ele.

- Oh, desculpe. Foi engano.

Aliviado, o Mestre desliga o telefone. Havia se preocupado à toa. Hora de voltar para sua água, quando, mais uma vez, o aparelho telefônico começa a tocar. É, ele ainda não estava completamente em paz.

- A-Alô? - Wong atendeu com uma voz trepidante.

- Mestre Wong! Há quanto tempo? - uma voz alegre, descontraída e não muito jovem falava do outro lado – O senhor recebeu a nossa carta? Pelos meus cálculos, deveria ter chegado ontem.

- Aquilo deve ser algum engano. Não tenho mais nenhum assunto a tratar com vocês! - disse o Mestre, em tom sério.

- Isso é o que o senhor pensa – continuava a voz – Nossos assuntos ainda estão longe de terminar.

- E eu repito que estão enganados. Nada daquilo pode ser verdade.

- Ah, mas é, Mestre. Infelizmente, é. Precisamos resolver esse problema.

- E eu já disse que não tenho mais nada para resolver com vocês!

- Isso é mau, Mestre. Muito mau. O senhor, como professor de artes marciais, deveria estar mais ciente de suas responsabilidades.

- Eu nunca falto com minhas responsabilidades, desde que elas façam sentido, mas o que vocês querem...

- Então está combinado...passaremos na Academia ainda essa semana. Obrigado.

- O quê? Parem! Não se aproximem da minha academia e..

Mas a linha já havia caído. Em meio aos “tututus” do telefone desligado do outro lado, Mestre Wong começou a levar suas preocupações mais a sério. Mas, afinal, o que havia acontecido.

Após a última aula, André e Lien seguiram com sua rotina: escola, academia. André continuava firme e forte em seus treinos para ser digno de herdar a Academia Wong ao se casar com Lien e a chinesinha, por sua vez, estava cada vez mais apaixonada por seu esforçado namorado. E, naquele dia, a conversa dos dois era justamente sobre isso.

- E aí? Pronto para mais um dia de treinamento? - perguntou Lien.

- Sempre estou – respondeu André – Mas...

- O que foi? - perguntou a namorada – Parece preocupado com alguma coisa.

- É que...eu gostaria de saber se eu realmente estou melhorando.

- Que pergunta! É claro que está – disse Lien – Antes, você não aguentava lutar comigo por dez segundos. Agora, você já demora uns quarenta segundos para cair.

- Eu sei, mas...sinto que ainda tem um abismo gigante entre nós.

- Você acha? - disse Lien – Eu não diria isso. Lembra? Você ganhou do Draco, um adversário que eu não consegui derrotar!

- Mas mesmo assim...

- Relaxe, meu ansioso amigo – disse Alex, o fotógrafo que sempre estava ao lado do casal, surgindo de repente entre os dois – Eu tenho vídeos de todos os seus treinos e lutas gravados. Posso garantir que houve uma melhora espetacular em todos esses meses.

- Ah, Alex, sempre surgindo do nada – falou Lien – Você não cansa de seguir a gente o tempo todo, não?

- Ora, e tem algo mais divertido do que acompanhar os treinos do André? - respondeu ele – E, admita, eu praticamente já faço parte da família. Vocês, no mínimo, terão que me chamar para ser padrinho do casamento de vocês.

- Opa, sem dúvidas – disse André – Mas pra isso...primeiro eu tenho que ser aprovado pelo Mestre Wong.

- Relaxa, amor – disse Lien – Eu já falei mil vezes, não falei? Meu avô já te aprovou! Você só precisa treinar mais um pouco para provar que é capaz de administrar nossa academia. É só continuar se esforçando.

- É, tem razão, eu não vou desistir tão fácil – disse o rapaz – Por mais difícil que seja.

E eles não tinham noção do quanto ficaria mais difícil. Assim que os três chegaram na Academia, cumprimentaram o Mestre da forma de sempre, mas ele parecia mais distraído do que nunca.

- Boa tarde, Mestre – cumprimentaram os três em uníssono.

- Aaaaah! - gritou ele – Que susto!

- O senhor distraído e de guarda baixa? - estranhou Lien – Que esquisito...

- Esquisito? Não tem nada de esquisito! - ralhou o velho mestre – Vocês que estão imaginando coisas!

- Eu não tô imaginando nada – falou Alex – Mas é verdade que o senhor parece mais nervoso.

- Nervoso, eu? Quem aqui tá nervoso? - ralhou ele.

- Tem certeza de que tá tudo bem? - perguntou André.

- Tudo ótimo – respondeu Wong, sem passar muita confiança – E vamos começar logo os treinos. Já estamos atrasados.

- Atrasados? Mas chegamos cinco minutos antes do horário de costume... - reparou Lien.

- Todo tempo é precioso! - retrucou o mestre – Vamos lá, André. Cinquenta flexões para aquecer.

Mas antes que André se trocasse para o treino e iniciasse qualquer flexão, ouviu-se o som da campainha claramente. Alguém estava na porta.

- Chegou alguém – disse Lien.

- Serão novos alunos? - perguntou Alex.

- Não diz besteira. Só os alunos especiais do vovô frequentam essa academia. Todos os outros assuntos são decididos na filial do centro da cidade.

- Seja lá quem for, eu não estou – disse o Mestre Wong – Apenas ignorem!

Mas voltaram a apertar campainha. Os visitantes pareciam exigentes.

- Deve ser só um vendedor...ou testemunha de Jeová – falou Lien – Eu vou lá atender.

- Não, Lien. Não vá! - Mestre Wong tentou alertar, mas Lien já havia saído para atender o portão.

Ao abrir as portas da academia, a chinesinha deu de cara com duas pessoas que não pareciam em nada com vendedores. Um deles era um senhor baixinho e de idade avançada, certamente com mais de 70 anos, mas com um porte atlético razoável (parecia bem saudável). O outro era um rapaz alto, e quando dizemos alto, é alto mesmo. Devia ter quase dois metros de altura. E não era apenas grande, era também forte. Usava uma camiseta regata preta, com os músculos à mostra. Tinha cabelo curto, com os lados raspados e a parte de cima espetada. Eram figuras peculiares e que chamavam a atenção.

- Boa tarde, mocinha – perguntou o velhinho – Por acaso, o Senhor Wong se encontra?

- O que vocês querem com ele? - perguntou Lien, um pouco desconfiada.

- Apenas conversar – disse ele – Temos um assunto importante a tratar com o Mestre.

- Mas...quem são vocês? - perguntou ela.

-Ah, nós? Ninguém muito importante. Somos apenas os verdadeiros donos dessa academia.

- O QUÊ?! - Lien gritou espantada.

Afinal de contas, quem eram aqueles dois figuras?