Capítulo 121 - Velhos Amigos, Novos Problemas

Era um cenário escuro, sombrio, podia se ouvir o barulho dos trovões ao longe. Lien, usando sua roupa de treinos, via um vulto grande, tão sombrio quanto a própria noite, mas mesmo que quisesse saber quem é, não podia. Tudo que conseguia era ouvir uma gargalhada, um som amedrontador e forte, mas desconhecia a voz. O que era aquilo? O que era aquela sensação e...

Naquele instante, a garota desperta de seu sono. Foi um pesadelo. Era uma noite comum. Lien estava ali, deitada na cama com sua camisola verde claro em seu quarto na casa de seus pais, mas mesmo assim o sonho lhe causou uma péssima sensação. Ela se levantou, acendeu o abajur e foi até a janela. Olhando pelo vidro, viu algumas poucas estrelas no céu. Não era um céu livre de nuvens, mas era possível ver algumas estrelas. Lien assumiu uma postura protegida, agarrando seus próprios braços. Após um suspiro, decidiu voltar para a cama. Foi tudo um sonho afinal, mas ainda assim um sonho bem forte. "Que sensação ruim!", pensou ela. Mas acabou adormecendo novamente e seguiu sua rotina do dia seguinte de maneira normal.

Em seu treino diário com André, ela parecia mais distraída do que de costume. Distraída o suficiente para receber golpes bastante conhecidos de seu namorado. Claro que Mestre Wong percebeu o fato.

– O que houve, Lien? - perguntou o Mestre - Parece estar no mundo da Lua hoje...

– Ah, desculpe.

– Estou treinando seu namorado, mas isso não quer dizer que você não precise se concentrar nos seus próprios treinos. Você carrega o sangue dos Wong. Não pode ficar mole, heim?

– Tá, desculpa, vovô. Vou me concentrar mais...

– Mas o que houve, amor? - perguntou André - Parece mais distraída mesmo..

– Provavelmente...está naqueles dias, não é? Aqueles...que dão cólica. Isso acontece todo mês - comentou Alex, que, como sempre, estava filmando o treino (e, claro, se metendo em tudo como adorava fazer).

– Não, não, não é isso! - Lien apressou em responder - Na verdade...ah, sei lá. Hoje tive um sonho esquisito. Estava num lugar escuro e alguém no fundo começou a rir sem parar...mas era uma risada que dava medo.

Alex tentou imitar, mas Lien logo o cortou.

– Eu disse uma risada que dava medo! - censurou ela.

– Tá...só quis ajudar - disse Alex - Talvez lembrando da risada, você também lembrasse de mais coisas do sonho.

– Mas não era nada parecida com essa - respondeu a garota.

– E o que tem esse sonho? Foi só um pesadelo - disse André - Não precisa levar a sério.

– Eu sei. Mas sabe quando dá aquele aperto no peito? Então...senti assim.

– Tô com o André - falou Alex - Foi só um sonho bobo.

– Nem sempre - comentou Mestre Wong, andando pensativo e olhando pela janela - Às vezes os sonhos podem ser sinais do que pode acontecer no futuro.

– Será? - indagou Lien.

– Bah, mas o que pode acontecer? Tá certo, de vez em quando aparecem uns malucos na nossa vida, mas nada de assustador - falou Mestre Wong - Vamos continuar com o treino e..

Nisso, o barulho da entrada da Academia tocou. Quem poderia ser?

– Tem alguém na porta - comentou André.

– Puxa vida...de que adiantou investir em prédios da academia pela cidade se todo mundo só vem aqui? Aposto que é um dos meus discípulos antigos pedindo alguma coisa. Ai, ai. Eu vou lá ver - disse ele.

– Tomara que não sejam credores de novo - comentou Alex, apenas para levar uma cotovelada de Lien. Mas, de fato, não era um credor. Pelo contrário, parecia ser um amigo.

– Não - disse Mestre Wong ao abrir o portão e dar de cara com a figura à sua frente - Não acredito! É você mesmo?

– Wong Laoshi (*) – disse o rapaz com traços orientais, camisa azul e sorriso humilde no rosto que acabara de chegar. Parecia ter a mesma idade de Lien.

– Ming! O que está fazendo aqui? - disse Mestre Wong, em tom alegre, indo abrir o portão imediatamente - Lien! Lien! Veja só quem está aqui!

– Hã? - a garota foi até o portão e também ficou admirada - Ming! É o Ming mesmo?

– Ming? - repetiu André.

– Acredito que seja um amigo da família - disse Alex - Mas não lembro desse nome no Facebook da Lien.

– Você decora a lista de amigos das pessoas? - estranhou André.

– Pode ser útil, sabe? - respondeu Alex - Conhecer as pessoas...a gente nunca sabe quando precisa jogar a carta. Vida de jornalista é assim...

– Sei

Logo todos estavam à mesa, conhecendo a nova visita.

– Jing Ming, muito prazer - disse o garoto, cumprimentando Alex e André educadamente.

– P-Prazer - disse André - Sou namorado da Lien...e este é nosso amigo Alex.

– E aí? - disse Alex, de forma descontraída.

– Este é um amigo nosso lá da China - falou Lien - A família dele também sempre visitou o Brasil, por isso ele aprendeu bem o idioma.

– É verdade...seu sotaque nem é tão forte - falou André.

– É um cara bem inteligente, como o nome diz (**) - comentou Lien - Ele sempre tinha umas ideias loucas.

– Oh, o que é isso? - disse Ming modestamente - Sou apenas um humilde funcionálio..digo, funcionário. Ai, às vezes eu esqueço das pronúncuas..

– Funcionário? - perguntou André.

– Trabalho para a companhia de pastéis da minha família - respondeu ele - Estamos tentando expandir nosso negócio.

– Pastel, é? - comentou Alex - Já gostei de você! Tem algumas amostras grátis aí?

– Oh, claro - disse ele - Posso prepará-los agora.

– Alex! O garoto nem chegou direito e já quer explorar? - bronqueou Lien.

– Para falar a verdade - disse Mestre Wong - Também estou morrendo de saudades dos pastéis da família Ming.

– Uhuhuhu. Então não perdem por esperar - disse ele - Farei agorinha mesmo!

Não demorou muito para todos estarem saboreando bons pastéis de carne. André nunca comeu um pastel tão bom.

– Caraca. É ótimo! - disse ele - Você vai fazer muito sucesso aqui!

– Espero que sim - disse Ming - A família do Mestre Wong sempre admirou muito os pastéis da minha família.

– Sim! A gente costumava brincar muito quando éramos crianças e sempre comia pastéis depois. Férias boas na China. Hehe - disse Lien - Que bom você fazer uma visitinha pra gente.

– Também estava com saudades - disse Ming, mantendo o sorriso.

– Você vai ficar muito tempo aqui no Brasil? - perguntou Lien.

– Bem....só preciso resolver umas coisinhas - disse ele - Mas...preciso partir logo. Hehe.

– Que pena - lamentou Lien - Mas você tem onde ficar?

– Procurarei alguns hotéis por aí.

– Nada disso! - falou Wong - Você vai ficar aqui, na Academia. Temos um monte de colchões para quê? Acomode-se.

– Oh...obrigado, Laoshi. O senhor é sempre muito bondoso - disse ele.

– Nossa...isso é demais. Preciso avisar os meus pais que você está aqui! - disse Lien - André, passa o meu celular.

– Opa. Tá aí - disse o namorado, mandando o telefone para ela.

Nisso, Alex puxou André para um canto na mesma hora.

– Ei, eles são bem amigos, né? Não acha que...eles possam ter sido namorados no passado? - perguntou Alex.

– Ué? E daí?

– Oh, não, não - disse Ming, chegando de mansinho por trás dos dois - Lien e eu somos apenas bons amigos de infância. Nada mais que isso.

"O cara é tão sorrateiro quanto eu!", pensou Alex. "Caraca"

De qualquer forma, Ming não perdia o bom humor. Não demorou muito para um jantar na mesma noite ser marcado na academia contando com a presença dos pais de Lien e o velho amigo. André e Alex também acabaram sendo convidados.

– Oh, puxa vida. Faz mesmo muito tempo, heim, Ming? - disse Hong, o pai de Lien (faz um tempo que ele não aparece, não é?).

– Sim, sim. Oh, a senhora continua linda, Sra. Wong - elogiou o rapaz.

– Oh, puxa, galanteador como sempre - falou Chun (a mãe de Lien) - Então quer dizer que você está planejando continuar seus negócios por aqui?

– Sim. A relação entre Brasil e China está crescendo, né? - respondeu ele.

– Ah, é, o BRIC(***), né? Vi isso na aula de Geografia - comentou Alex.

– Sim, algo do tipo - falou Ming - Hehe. Creio que investir no Brasil seja uma boa ideia.

– Muito legal. Ainda tem aqueles pastéis? - perguntou Shun.

– Claro. São o acompanhamento do jantar.

E o jantar seguiu bem o restante da noite. André e Alex estavam saindo. Hong ofereceu uma carona para os dois.

– Oh, obrigado Senhor Wong - disse André.

– Eu vou ficar - disse Lien - Quero colocar a conversa em dia com o Ming.

– Lien! Deixe o menino descansar! - reclamou Shun.

– Ah, mãe. O que é que tem? A gente não vai ficar em claro a noite toda - disse a chinesinha.

– Tudo bem mesmo, André? - perguntou Alex em voz baixa.

– Alex! Para com isso! Os dois são só amigos..ele já falou - respondeu André, no mesmo tom de cochicho.

– Talvez seja melhor você ir, Lien. Não está cansada dos treinos? - perguntou Ming.

– Nem um pouco - falou ela - Vamos. Tenho tanta coisa pra te contar! Ai, você devia entrar na Internet sabia?

– Não tenho muito tempo para isso - respondeu Ming.

Os dois pareciam se dar bem. Na volta para casa, Alex não demorou em perguntar mais sobre o velho amigo da família.

– Err...esse Ming também luta? - perguntou Alex.

– Luta? Huahuaha - riu Hong, enquanto dirigia - Ele não sabe nada de artes marciais. Mas é um ótimo pasteleiro como vocês mesmo puderam provar.

– Ah...então...o Mestre Wong nem cogitou considerá-lo como genro, né? Hehehe - falou André, como quem não quer nada.

– Ai, que fofo. Ele tá com ciúme - comentou Chun.

– Não, não é isso. É que..os dois se dão bem, né?

– Relaxem. São só amigos - falou Hong.

– Ainda bem - falou Chun -Ele disse que quer investir, mas ouvi falar que a família dele estava sempre endividada.

– Mesmo com um pastel tão bom? - perguntou Alex.

– Pois é...estou com medo por ele. Espero que dê tudo certo - falou a mãe de Lien.

Durante aquela noite, depois de ficarem conversando até altas horas. Lien finalmente se recolheu para o seu quarto. Os dois realmente tinham muita coisa para colocar em dia. A chinesinha estava mais do que contente em ter reencontrado um velho amigo de infância lá na China. Antes de dormir, porém, ela ligou para André.

– Sabia que estava acordado - falou ela.

– Ah, oi. É. Achei que fosse bom adiantar alguma coisa das minhas lições - respondeu ele.

– Ah, amor, desculpa ter dado pouca atenção pra você hoje. É que..faz tanto tempo que não vejo o Ming - disse a garota.

– Eu entendo. Tá tudo bem

– Amanhã a gente podia sair todo mundo junto. O que você acha? Só um dia sem treinar não vai matar ninguém.

– É..acho que não.

– Então tá, combinado e..

Lien mudou o tom de voz de repente ao olhar pela janela.

– O que foi, amor? - perguntou André.

– Não é que...ali embaixo...parece o Ming - disse ela.

Ming estava no jardim da Academia, olhando para os lados, como se estivesse desconfiado de alguma coisa.

– Vou desligar, amor. Preciso ver uma coisa. A gente se vê amanhã, tá? - disse Lien, desligando o celular e descendo imediatamente para ver o que estava acontecendo.

"Ming..o que será que aconteceu?", pensava ela.

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(*) = Pronúncia aproximada de Mestre ou Professor, em chinês

(**) = Jingming significa algo como esperto ou astuto em chinês. Escrito com os ideogramas 精明

(***) = Sigla para os países emergentes Brasil, Índia, Rússia e China