Feliz Aniversário, Dionísio! escrita por Mandy-Jam


Capítulo 4
Desprezível diário


Notas iniciais do capítulo

Estou feliz em ver vocês acompanhando a história! São quase 10 mil visualizações, eu nem consigo acreditar! Obrigada mesmo.

Boa leitura.



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ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE

 

Dionísio acordou com batidas na porta.

Com o rosto rechonchudo afundado no travesseiro, não se deu ao trabalho de levantar-se para ver quem era. Emitiu um som, como um grunhido de um animal em sofrimento, e esperou.

— Senhor D?

Se eu fingir de morto, talvez ele vá embora, pensou ainda afetado pelo sono.

— Quíron quer saber se o senhor vai nos orientar a competição de arco e flechas. — Prosseguiu o campista — Ele não vai poder ficar com a gente, tem um compromisso.

Dionísio encheu os pulmões de ar, e depois suspirou pesadamente. Virou-se na cama, desajeitado e olhou para o garoto que falara. Altura média, cerca de 14 anos, cabelos castanhos cacheados, pele morena.

— É mesmo? — Falou com uma voz falhada de sono. Lançava para o jovem uma carranca, mas ao invés de parecer assustador, parecia como um homem de quarenta anos que dormira demais de tarde. Apoiou a cabeça na mão, como uma garota graciosa em um quadro de época — Quíron por acaso chegou a se perguntar se eu teria algum compromisso, garoto?

O semideus piscou os olhos. Teve um vislumbre desagradável da barriga protuberante do deus do vinho e de seu calção de tigre. Tentando se controlar para não esboçar nenhuma careta, o garoto balançou a cabeça devagar.

— Não, senhor. — Respondeu.

— É claro que não. — Concordou Dionísio — Porque todos vocês acham que a minha vida gira em torno de passeios em pégasos, fazer colares de contas e torneio de arco e flechas.

Sem saber o que falar, o semideus permaneceu em silêncio.

— Você vai…?

— Dá o fora daqui. — Ordenou.

O semideus fechou a porta sem perguntar de novo, e o deus deixou o corpo pesado bater contra o colchão uma vez mais. Esfregando os olhos, Dionísio se perguntava como era aquele maldito acampamento antes de sua chegada.

Lembrava perfeitamente de seu primeiro dia de castigo, é claro. Não havia como esquecer. Não poderia nunca apagar de sua memória imortal a cena de seus pés se arrastando pela terra batida até chegar a Casa Grande. Os olhos curiosos e arregalados dos campistas, que cercavam o lugar para poderem conferir o filho mais novo de Zeus sendo punido como uma criança mau educada.

Ares causou a Primeira Guerra Mundial, pensava enquanto arrastava-se para a porta de madeira.

Apolo bateu com o maldito carro do Sol e criou o deserto do Saara, seus dedos socaram a madeira, chamando por quem estivesse lá dentro.

Hermes criou invetou a merda da internet, praguejou quando Quíron finalmente abriu a porta.

E o que eu fiz de tão ruim? Por que eu sou o único a ser punido?, pensou em revolta, fechando os olhos com força. Quíron prontamente o chamou para dentro e ordenou que as crianças voltassem a suas cabanas. O centauro tinha um coração grande, e em termos de receptividade, era tão bondoso quanto Héstia.

Deitado ali naquela cama, Dionísio lembrou de como se sentira humilhado, tendo que andar no meio de adolescentes renegados e se sujeitar a uma função tão mundana quanto a de diretor de acampamento.

Suas mãos tocaram a mesinha de cabeceira ao seu lado e puxaram a gaveta. O deus tirou de lá uma das poucas provas de que aquele dia de fato acontecera: o diário que Quíron lhe dera.

De acordo com seu amigo, escrever seus sentimentos, frustrações e angustias era a melhor forma de lidar com o que ele estava passando. Entregara aquele diário para Sr. D com um sorriso amistoso, esperando que estivesse de fato oferecendo alguma forma de ajuda.

É claro que Dionísio negou. Disse que aquilo era ridículo, que diários eram coisas de adolescentes patéticos, e que ele não perderia tempo escrevendo poeminhas ou palavras tristes. No entanto, guardara o objeto e de fato o usara ao longo dos anos, sem que ninguém soubesse. Não admitiria confessar em voz alta que se sentia melhor conversando com um pedaço de papel, do que com seus próprios familiares.

Seus dedos folhearam as páginas, lendo por alto suas anotações. As folhas eram simples, pautadas em linhas pretas finas. Havia uma marca para o dia em questão que poderia ser preenchida, e um campo no topo da folha com a pergunta “Que boa ação eu fiz hoje?”. Esse campo estava sempre vazio, é claro.

“Desprezível diário” era a forma com a qual ele iniciava a escrita, pois “querido” não era uma palavra que gostava de usar com frequência.

Desprezível diário, — Sr. D começou a escrever em uma página nova. Bateu de leve a caneta que pegara nos lábios, instantes antes de prosseguir — me pergunto o que aconteceria se eu sumisse. Todos aqui parecem depender de mim como se eu sempre tivesse feito parte do Acampamento. Logo eu, quem mais gostaria de ver esse lugar pegar fogo, assim como os romanos queimando as cidades até o chão. Sinto que se eu acendesse um fósforo, no entanto, Zeus faria chover sobre a minha cabeça.

Dionísio olhou para o teto com uma cara feia, como se seu pai estivesse observando-o.

Tenho que ajudar criancinhas a atirar no alvo com arcos e flechas, porque o senhor quatro-cascos está ocupado. — Prosseguiu — Essas crianças, elas não têm respeito. São um bando de baderneiros irritantes mimadinhos, protegidos pelos pais como se fossem floquinhos de neve. Para onde foram os bons dias onde pais e tios podiam educar usando instrumentos de tortura? Não entendo o rumo que o mundo levou.

Suspirou pesaroso.

Eu me sinto velho. — Escreveu. Seus ombros se tornaram pesados assim como os de Atlas, suportando o peso do mundo — Eu sinto como se não fizesse mais diferença. Não quero ser melodramático, mas Dionísio já teve mais amor. As pessoas gostavam de mim, sabia? Elas se importavam. Agora tudo que elas fazem é se esquivar de mim, porque sou o velho chato que corta a onda dos jovens, que não entende o que é diversão. Eu era divertido. Eu sou, acho. Posso voltar a ser.

Fechou abruptamente o diário. Sua cabeça começou a latejar.

Se tinha uma forma com a qual Dionísio lidava com seus problemas era enterrando eles no fundo da mente para não ter que vê-los. Isso de trabalhar seus sentimentos só funcionava em doses. Não doses como doses de tequila, que ele bebia em uma sequência frenética em bares mexicanos com seus muchachos. Mais como doses homeopáticas, um pouco a cada dia, sem ultrapassar o limite.

— Chega disso por hoje. — Colocou o diário de volta na mesinha, vestiu uma roupa e foi ao encontro das crianças.

Os semideuses estavam sentados no chão do pátio, esperando alguém para dar início oficialmente ao torneio de arco e flechas. Quando Sr. D se aproximou, eles não se levantaram. Apenas olharam para o olimpiano com expectativa.

— Atenção, campistas! Vocês conseguiram tornar a minha manhã mais infeliz do que eu imaginei que seria, parabéns a todos os envolvidos. — Ele gesticulou para os jovens — Sem mais delongas, vamos dar início logo a esse grande torneio, para que eu possa tomar conta da minha vida e vocês façam o mesmo.

Dionísio gesticulou apressado, fazendo com que eles se levantassem. Uma vez de pé, os campistas começaram a se organizar por cabine e por alvo.

— As regras são simples: cada campistas tem uma, vocês atiram quando e somente quando eu ordenar. — Explicou em um tom amargo — O chalé que tiver maior pontuação, fica com os lauréis. Qual foi o último ganhador?

O grupo de jovens ergueu a mão, e Dionísio os reconheceu pelos cabelo loiros, porte atlético e postura confiante.

— É claro. Apolo. — Murmurou com pouco interesse — Vamos! Organizem-se, vou dar o sinal para os primeiros disparos.

Nem todos os campistas estavam ali. Os chalés escolhiam só os melhores para representarem-nos no torneio, muito embora os lauréis sempre fossem para os filhos de Apolo. Cada grupo tinha 3 campistas, que se organizaram em fila indiana nos locais de disparo. Cada um tinha um alvo na sua frente a uma distância desafiadora.

— Preparar. — Os primeiros de cada fila prepararam suas flechas — Mirar.

Dionísio cruzou os braços contando mentalmente até três.

— Disparar!

As flechas cortaram o ar e a maioria acertou de fato os respectivos alvos. O chalé de Afrodite errou feio, e a garotinha bateu o pé no chão forte. O Chalé de Apolo acertou impecavelmente o centro, assim como o de Deméter. Ares e Hermes acertaram o círculo maior, Hefesto e Atena acertaram a beirada próxima ao centro.

— Próximo capistas. — Anunciou e os próximos tomaram seus lugares — Preparar!

Enquanto os jovens se ajeitavam, Dionísio correu os olhos pelo espaço, distraído.

— Mirar. — Disse com tédio.

A boca do deus abriu pronta para falar “disparar”, quando seus olhos encontraram Hera. Congelado como uma estátua, Dionísio fitou a deusa que permanecia em pé a uma distância que tornava difícil que fosse reconhecida de primeira.

Eu te reconheceria em qualquer lugar, sua megera.

— Disparar. — Rosnou e as flechas voaram até o alvo. Voltou-se para as crianças, e gesticulou apressado — Anda, próximos. Vamos acabar com isso. Preparar!

— Argh! Meu arco arrebentou! — Exclamou o filho de Apolo chocado. O grupo de Hermes começou a rir entre si — Fomos sabotados!

— Eu disse preparar! — Repetiu olhando ora para Hera, ora para os jovens.

— Eu não posso preparar! — Reclamou o garoto e apontou para os semideuses da cabine 11 — Eles sabotaram o meu arco!

— Se não pode se preparar, está desclassificado! — Gritou para ele, sem paciência — Mirar!

O garoto deixou seu queixo cair, chocado, enquanto todos os outros miravam nos alvos.

— Isso não é justo! — Exclamou emotivo.

— Quem te disse que a vida é justa? — Rebateu — Vai chorar para o seu pai, garoto! Eu não tenho tempo para isso. Disparar!

As flechas acertaram os alvos. Dionísio correu os olhos pelos alvos e bateu palmas rapidamente.

— Lauréis para Atena, vocês ganharam. Agora sumam daqui. — Anunciou e afastou-se em passos rápidos. Os campistas começaram a comemorar e discutir ao mesmo tempo, mas já não era problema do deus do vinho, que só pensava na presença indesejada e inesperada de Hera.

A deusa o aguardava próxima a varanda da Casa Grande, admirando as construções dos chalés com seus olhos de ferro.

— Meu pai te mandou para inspecionar meu trabalho, ou veio aqui para jogar uma partida de Black Jack? — Perguntou parando na frente dela. Hera não se deu ao trabalho de forçar um sorriso de falsa simpatia.

— Mais educação. Por acaso é assim que dá bom dia agora? — Respondeu.

— Bom dia. — Ofereceu em um resmungo.

— Ótimo, estamos fazendo progresso. — Assentiu com a cabeça — Poderia discutir a sua falta de hospitalidade, mas minhas expectativas em você não são altas o suficiente para que eu me sinta desapontada com seus maus modos.

— É sempre um prazer tê-la por perto. — Retrucou — Imagino o que eu tenha feito para merecer a sua visita.

— Não estou aqui por sua causa. — Replicou em um tom tão frio que nem Atena era capaz de recriar — Eu e Zeus temos planos para esse lugar, e vim para concretizá-los.

— Planos? — Repetiu sem esperar por isso — Vai derrubar o Acampamento?

Uma chama de esperança acendeu dentro de seu peito. Seria esse o dia que tanto desejara?

— Eu me refiro a Casa Grande. Vamos reformá-la. — Corrigiu gesticulando para a construção nas suas costas — É espaçosa e grande. Faremos dela algo mais útil.

— Útil? — Repetiu ele e depois riu em deboche — Quer uma utilidade para ela? Eu durmo aí.

— Não mais.

— O quê? — Dionísio piscou os olhos chocado — Você só pode estar de sacanagem. As minhas coisas estão lá dentro! Eu mesmo decorei o lugar, não pode tomá-lo para si.

— Eu já tomei. — Respondeu dando pouca atenção — Só vim aqui para avisá-lo. Removeremos suas coisas para-

— Não, não vai. — Dionísio passou por ela e marchou em direção a porta principal. O rosto de Hera se contraiu em desagrado — Meu pai, Zeus, me puniu tornando-me o diretor desse Acampamento. Logo, sou eu quem decide o que fazer com essa construção, pois ela pertence a mim e a mais ninguém. Se você, cara madrasta, ou qualquer um estejam insatisfeitos, por favor, encaminhe suas reclamações para o senhor dos céus.

— Dionísio, não me faça perder a paciência. — Falou em um tom controlado, mas ameaçador.

— Ou o quê? — Questionou e depois riu de raiva — Você nem mesmo tinha que estar aqui, sabe. Nenhuma daquelas crianças ali são suas. Você não contribuí em nada para esse lugar funcionar, logo eu não devo nada a você.

A mão dele tocou a fechadura da porta da frente no exato instante em que o semblante de Hera mudou.

— Espere! — Ele parou e olhou-a novamente. Seu plano era entrar e bater a porta de forma dramática, mas podia esperar mais um pouco para isso. Hera prosseguiu e ele prestou atenção — Entendo que você se tornou responsável por esse local e que esteja desempenhando o papel da melhor forma possível. Não tenho interesse em me intrometer com sua gestão, porque como você mesmo disse, eu não tenho nada com esse lugar.

Dionísio ergueu uma sobrancelha, sem entender porque ela estava concordando com ele tão repentinamente.

— No entanto, Zeus tem planos para uma nova construção. — Prosseguiu devagar — E seu pai vai ficar extremamente descontente se eu retornar de mãos vazias.

O deus franziu o cenho. A expressão no rosto de Hera mostrava que o que quer que Zeus estivesse planejando, era realmente sério. Sua mão se soltou da fechadura e seus braços se cruzaram.

— O que você espera de mim? — Questionou.

— Espero que você não torne as coisas ainda mais difíceis para si mesmo. — Explicou — Se não quer que eu utilize essa construção, então mostre-me outro lugar espaçoso e bem localizado que possa servir para uma nova construção.

Você só aparece para me trazer problemas, pensou. Eu te odeio, Hera. Espero que saiba disso.

— Outra construção? É claro. — Concordou com a cabeça e sorriu para ela — Acabei de pensar em uma perfeita. Vamos, eu mesmo te mostro. Fica entre o Chalé 1 e o 3.

Hera lançou um olhar de ódio para ele, que contribuiu para que seu sorriso aumentasse. A deusa deixou-se ser guiada pelo olimpiano rabugento, mas não antes de lançar um olhar especial para a janela da Casa Grande.

— Vamos. — Murmurou andando.

 

 

— Então?

Deméter ignorou a voz do irmão. Na cabeça da deusa, se ela fingisse que ele não estava trancado na mesma sala que ela, havia a chance — mesmo que ínfima — dele desaparecer. Quando se virou e saiu de perto das cortinas, porém, ele ainda estava lá, sentado no sofá de Dionísio olhando-a com seus olhos escuros.

Não deu uma resposta, mas seu rosto dizia tudo. Hades deu um meio sorriso de satisfação e assentiu com a cabeça.

— Eu disse que ela não conseguiria tão fácil. — Declarou.

— Seu positivismo me anima. — Rebateu em um tom amargo. Hades abriu os braços.

— Isso é tudo que ele tem agora, Deméter. — Falou olhando para a irmã — Não se desiste assim tão fácil de algo com tamanha importância para você.

— Eu sei muito bem disso. — Respondeu ácida, lançando a indireta para o deus dos mortos. Hades fitou-a em silêncio, abaixou os braços e resolveu que não faria bem nenhum prolongar aquela discussão. Já fazia milênios, e ele já ouvira tudo que Deméter tinha a falar.

O silêncio se prolongou, crescendo como as plantas da deusa da agricultura. Hades se levantou e caminhou até a porta.

— O que está fazendo? — Questionou Deméter — Vai estragar tudo se for visto!

Foi ele agora que não quis respondê-la, na esperança que a irmã desaparecesse. O deus dos mortos abriu a porta da frente no exato instante em que dois campistas passavam conversando. Ambos pararam ao ver o deus ali, estupefatos. Sua presença não era nem de longe algo comum.

— Filhos de Hermes, eu presumo. — Declarou analisando os dois. Lembrou-se então dos nomes — Connor e Travis, não é?

— Deuses, é Hades. — Sussurrou um Connor cutucando o irmão. O deus estendeu a mão e sorriu para eles quando um saco de dracmas surgiu ali.

— Estariam dispostos a fazer um serviço para mim? — Perguntou e viu-os tremer um pouco.

— O que quer de nós? — Perguntou Travis.

— Quero que entrem aqui e destruam o lugar. — Falou em um tom simpático — Em outras palavras, deixem o pai de vocês orgulhoso. Dionísio não vai voltar para cá tão cedo. E se vocês trabalharem direito, ele não vai voltar para cá de forma alguma.

Os garotos ficaram tentados, Hades podia ver. Filhos de Hermes gostavam de oportunidades para aprontar. Para convencê-los de uma vez por todas, abriu o saco e jogou as moedas na palma da outra mão.

Travis e Connor abriram largos sorrisos.

— Vocês não me viram aqui. — Declarou ele, voltando para dentro seguido pelos meninos.

 


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Notas finais do capítulo

Aguardo os comentários de vocês, e nos vemos no próximo capítulo!



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