Undead Revolution escrita por caarol


Capítulo 34
Do Aço À Ferrugem


Notas iniciais do capítulo

Olá, queridos !!
Espero que estejam tendo um ótimo final de ano. Muita saúde, sucesso e felicidade para todos vocês, e que 2015 seja ainda melhor! (:
Estou para postar esse capítulo já faz um tempo, mas só agora minha internet firmou, acreditam?
Enfim, façam uma ótima leitura, e nos vemos lá embaixo!



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Localização: Condomínio de Apartamentos Hayfield Path, West Jordan

16 dias após o Surto.


Assim que parou à frente da porta do quarto, Germany bateu três vezes na madeira com o nó de um dos dedos.

– Tyler?

Um murmúrio se fez ouvir do outro lado do cômodo. Ela tomou aquilo como um aceite para sua entrada, e abriu a porta vagarosamente.

Surgindo aos seus olhos estava o mesmo quarto em que haviam deitado Tyler no dia anterior. Os mesmos pôsteres de banda, os mesmos móveis e decorações, tudo permanecia bagunçadamente no lugar, com exceção de uma nova muda de roupas surradas e ensanguentadas negligenciadas ao centro do carpete.

Com um empertigar de ombros, a garota franziu as sobrancelhas e adentrou o cômodo, fechando a porta logo em seguida. Voltou os olhos para a figura esguia do adolescente à sua frente, agora vestindo uma camiseta branca, uma jaqueta em jeans claro e um shorts de tecido impermeável com estampa havaiana, que deixava à mostra suas panturrilhas bem magras e repletas de cortes cicatrizados. Os cabelos verdes, arrumados no moicano, pareciam levemente úmidos e seu rosto bem pálido aparentava um pouco mais descansado.

– Oi, Ann. – O garoto sorriu brevemente, embaraçado, e baixou os olhos para a nova vestimenta. – Não faz exatamente meu estilo – ele soltou um riso nasalado e deu de ombros – mas é melhor do que minhas roupas antigas. Não lembro a última vez que troquei de camiseta.

– Banho e roupa limpa fazem milagres. – Germany respondeu, com um sorriso abatido, e voltou a ficar em silêncio.

Após alguns segundos calados, um fitando o outro com certo receio, Tyler deu alguns passos hesitantes em direção à garota, mexendo nas próprias mãos em sinal de nervosismo.

– Eu... Eu nem sei como agradecer, Ann... – Pigarreou rapidamente, encabulado. - Por me acolher, pela comida, pelo teto... Eu já havia perdido as esperanças de vivenciar isso de novo depois dos últimos dias.

– ...É justamente sobre isso que eu vim aqui, Tyler. – A morena voltou a estampar o sorriso sem dentes. – Eu quero saber de você, o que te aconteceu por aqui, há quanto tempo você está à deriva na cidade...

O adolescente piscou os olhos assustados para ela, crispando os lábios e apertando as mãos ainda mais. Com um movimento rápido, sentou-se à cama.

– Acho que tá na hora de eu te contar como foram meus últimos dias, não é? Você tem mais do que o direito de saber. – Riu sem ânimo e baixou os olhos. – Mas... você se importa se eu... contar só pra você? Não sei se eu conseguiria dizer pra todo mundo o que aconteceu...

– Não se preocupe, Tyler, só estou eu aqui. – Germany abriu levemente o sorriso e se aproximou da cama para sentar-se ao lado dele. – E ninguém precisa saber dos detalhes... Só quero entender o que andou acontecendo com você.

Tyler sorriu sutilmente e ela assentiu com a cabeça, encorajando-o a falar.

– Eu... – Ele demorou alguns segundos, como se tentando organizar seus pensamentos. – Bom, como eu disse o-ontem, eu me encontrei com sua família há uns bons dias atrás, quando West Jordan começou a ser atacada pelas coisas lá fora... E-eu já não sabia dos meus amigos, não sabia do paradeiro de mais ninguém, e a cidade estava um caos completo... Parecia de coisa de filme, com tudo revirado, pessoas gritando e dirigindo feito loucas por aí, mordendo os outros e jorrando sangue pra todo lado.

Engoliu em seco e remexeu nos dedos finos, fitando-os sem realmente vê-los.

– N-não sei como a Jill me encontrou, não sei mesmo. Eu estava no supermercado do centro na hora, aquele grandão, sabe? Tentando pegar tudo o que eu podia, lutando com outras pessoas pelas coisas que sobravam nas prateleiras... Foi quando sua irmã me viu no meio da correria. Acho que o moicano me entregou. – Ele sorriu. - Ela veio correndo até onde eu estava e eu juro, juro por tudo o que é mais sagrado, Ann... – Deu uma pausa rápida, tomando ar, abrindo mais o sorriso trêmulo. – Eu acho que nunca me senti tão feliz na minha vida. Só o fato de ver a Jill ali, ainda sã e salva, já valia mais do que qualquer coisa. E o melhor, é que eu não estava sozinho e estava justo com a companhia que eu mais queria no mundo!

“Só que... – O sorriso esvaiu rapidamente. - As coisas não foram tão fáceis assim. Eu sabia que não seriam. No começo correu tudo bem, eu ajudei sua família a manter alguns zumbis afastados quando voltávamos para a casa deles... Até matei um, acredita? – Ele riu em incredulidade. – Ainda assim, eu sei que eu não havia convencido seus pais de que minha presença não seria descartável naquela situação e tudo piorou quando...”

Parou por um momento, voltando a baixar os olhos para as próprias mãos. Parecia estremecer levemente vez e outra e mordia o lábio inferior com frequência.

– Quando? – Germany levantou as sobrancelhas, procurando ler o rosto enigmático do garoto.

– O merda do Collin apareceu na casa no dia seguinte. Um amigo meu. - Uma sombra enraivecida escureceu seu semblante. - Eu estava ajudando a Jill a terminar as malas quando bateram na porta e eu vi que era ele... Ninguém mais o viu, só eu. Não sei como ele sabia que eu estava ali, a questão era que ele queria entrar e se abrigar com a gente, mas... ele tava paranoico, parecia que tinha cheirado um quilo de cocaína e... bom, eu não duvido que tivesse.

"Não o deixei entrar e ele ficou tão puto que achei que sacaria uma arma do bolso e atiraria em mim ali mesmo... Só que algo nas redondezas o assustou e ele fugiu dali no mesmo segundo, e não voltou mais a aparecer. Mas... o problema real não foi esse. O problema foi que ele deixou para trás uma mochila e eu não sei por que diabos eu decidi pegá-la e consequentemente pegar tudo o que tinha dentro dela."

O adolescente levantou os olhos de esguelha, evitando olhar a garota diretamente.

– Eu... eu juro que quase joguei a mochila dele pra fora da janela quando eu vi o que tinha dentro, mas... Droga, era pra eu ter feito isso, mas... Acabei escondendo a mochila junto das minhas coisas e foi a pior coisa que eu poderia ter feito.

– Tyler, mas o quê-

– Você sabe, Ann, que... – Ele a interrompeu, praticamente sussurrando. Sua voz soava tão apertada em sua garganta que ele parecia estar forçando seu próprio corpo a expulsar as palavras. O furor em seus olhos avermelhados deu lugar a um misto de desespero e auto-piedade. – Que eu já tive um histórico com... certas coisas.

– Drogas. – Germany afirmou, categoricamente.

Tyler encolheu-se instintivamente, não sabendo ao certo como considerar o tom de voz da morena quanto àquilo – não sabia se era repreensão, repulsa, indiferença ou qualquer outra coisa, tamanha a impassibilidade depositava naquela única palavra.

– I-isso. - Engoliu em seco, envergonhado. - E eu... Bom, e-eu já estava limpo há muito tempo, você sabe disso, não é? – Arriscou um rápido olhar para o rosto dela, apenas para encontrar uma máscara mais impassível ainda. – Quer dizer, eu ainda usava quando conheci a Jill, mas... Mas você sabe, ela sabe, que eu fiquei limpo por muito tempo, graças a ela! A questão é que...

Estava limpo? – Germany franziu o cenho e empertigou-se levemente.

Tyler permaneceu calado por alguns instantes, o silêncio dos dois pesando aos ombros finos do rapaz, até que ele voltou a falar, ainda mais acuado.

– É estranho, sabe? - Um sorriso tremulou em seus lábios arroxeados. - Como as coisas afetam as pessoas de maneiras diferentes, como algo pode afetar sua cabeça de uma forma tão... violenta. Acho que é nesses momentos que vemos se somos realmente fortes ou não... A questão é que... Eu não fui forte desde que isso começou. Nem mesmo antes de reencontrar a Jill. Quase dois anos... limpo, e bastou o porteiro do meu prédio quase arrancar meu braço fora pra eu... – Ele suspirou, pesaroso.

“Eu via as poucas notícias na televisão, as pessoas nas ruas, ouvia as histórias dos que eu encontrava nos poucos momentos que saí do meu apartamento... Cada um encarando essa merda toda de uma maneira diferente. Era b-bizarro pensar sobre isso, até. Uns tinham ideias mais espertas, outros mais assustadoras, umas eram completamente malucas... Acho que cada um puxou de dentro de sua alma assustada alguma maneira para manter-se firme o suficiente para aguentar o tranco, ou para tocar o foda-se de uma vez e evitar maiores sofrimentos... O que eu quero dizer é que... a maneira que eu acabei encontrando para encarar essa extinção em massa não foi das mais nobres, mas eu sabia que não ia aguentar me ver enlouquecendo ao ser cercado por tudo isso..."

Calou-se novamente por alguns instantes, passando a língua pelos lábios, como se pensando por alguns instantes em como verbalizar o que pensava. Arriscou um olhar rápido para a garota, apenas para encontrar um par de olhos azuis paralisados, atentos e atônitos, fitando-o de volta.

– Eu nunca teria coragem de fazer algo mais ousado - continuou ele - de tentar me m-matar ou de sair e encarar o mundo como você está fazendo... Eu me senti como um bicho encurralado, fadado a permanecer escondido pro resto da vida na minha toca imunda, e o único jeito que eu achei de evitar perder a sanidade enquanto isso acontecia f-foi... – Apertou os olhos que começavam a arder. - Contanto que eu estivesse alto, desligado, sem ter capacidade para me preocupar com nada, para não sentir nada... Eu estaria a salvo dentro de mim mesmo. Só que... Porra, foi nisso que eu fui reduzido então? Um moleque que mal fez dezessete anos se drogando até o fim da sua vida por ser covarde demais?

Tyler cuspiu as últimas palavras com raiva, seu tom de voz aumentando conforme seu monólogo se encompridava. Fincou as unhas nas palmas das mãos e fixou o olhar arregalado para o chão.

– E-eu... Eu tentei resistir, eu juro que eu tentei, Ann, mas eu...

Ele pigarreou e fungou algumas vezes, passando os dedos trêmulos pelo rosto umedecido. Germany permanecia em silêncio, sentindo-se completamente desarmada - e a falta de palavras dela, fossem elas piedosas ou enfurecidas, deixara o adolescente ainda mais agoniado.

– Eu já tinha usado uma vez logo que a cidade explodiu em mortos-vivos. – Ele continuou, vexado. - Meu primo, que morava comigo, sempre largava coisas pela casa, e quando eu as encontrei... Eu usei sem pensar. Eu tava transtornado, não sabia mesmo o que fazer e ainda teve o porteiro bastardo que me atacou... – Passou as mãos trêmulas pelo moicano, tomando um pouco de fôlego antes de continuar. – Aí eu encontrei a Jill poucos dias depois, mas não contei pra ela que usei de novo... Não queria decepcioná-la. Eu pensava que seria forte o suficiente pra esquecer esse escape repentino contanto que me mantivesse ocupado... Na minha cabeça, contanto que estivesse com a sua família, eu me controlaria. Droga, esse realmente é o momento pra manter o controle e permanecer são se você quer viver, não é? Só que aí o Collin apareceu... e fodeu tudo.

"Ele tinha algumas seringas na mochila e... heroína. - Suspirou profundamente, sua voz ligeiramente fanha pelo choro contido. - Acho que ele pretendia fugir da cidade e dos zumbis só com isso a tiracolo para sobrevivência. – Balançou a cabeça em incredulidade. – Se eu realmente tivesse o domínio próprio que eu achei que tinha, eu jogaria aquela merda fora, mas não foi o que eu fiz. Bom, pra resumir tudo... Naquela noite, na casa dos seus pais, quando finalmente nos acomodamos, eu disse que ia ficar de vigia, mas só esperei todos dormirem pra me trancar no banheiro e..."

Tyler levou a mão ao pulso direito com certa hesitação e levantou a manga do casaco que usava até acima do cotovelo. Furos diminutos se espalhavam acima das veias que saltavam da pele fina, alguns deles com pequenos hematomas se formando discretamente ao redor, delatando que foram feitos recentemente – os machucados das picadas de agulha eram ínfimos, mas bem perceptíveis na pele pálida do rapaz. Germany afastou o tronco inconscientemente ante a visão do braço dele e entreabriu os lábios, mas não emitindo som algum.

– Eu percebi a merda que isso poderia ter gerado só no dia seguinte. – Depositou os olhos aplacados nas próprias marcas na pele, e abaixou a manga da jaqueta com um gesto brusco. - E se zumbis frenéticos aparecessem naquela noite e conseguissem invadir a casa, atacando todo mundo enquanto dormiam? Era pra eu estar de vigia, eu devia estar protegendo a todos, protegendo a Jill...! A ficha caiu quando eu acordei esparramado no chão do banheiro pouco antes de amanhecer. Graças a alguma força divina ninguém ameaçou sua família, mas a possibilidade de algo desastroso ter acontecido era... enorme.

– ...Eles - Germany se manifestou após absorver, calada, toda a trêmula declaração de Tyler – descobriram que você... usou alguma coisa?

– Se algo acontecesse à sua irmã a culpa ia ser inteiramente minha - prosseguiu o adolescente, ignorando a pergunta da morena - e eu não podia abusar da sorte de novo se fosse fugir de West Jordan com a sua família. E depois daquela noite eu soube, infelizmente eu soube, que depois das primeiras recaídas... eu ia acabar usando de novo. E o pior, é que se eu não usasse a abstinência ia fazer eu foder tudo ainda mais, e levar sua irmã junto. Ela e seus pais já estavam com problemas demais pra ainda ter que ficar de olho no drogadinho de merda que eu me tornei... Então eu fugi.

– Fugiu? – Uma nota aguda escapou da garganta da garota.

– Deixei um bilhete para Jill, explicando tudo para ela... – Tyler engoliu em seco. - Eu sabia que eles pretendiam sair da cidade naquela manhã e seus pais provavelmente não iam querer ficar mais um dia nesse lugar condenado para me procurar e me arrastar junto se eu fosse embora. E mesmo se fizessem isso, eu não iria com eles. Por mais que isso me doa mais do que eu gostaria, eu não pude ir junto deles. Eu não queria ser o responsável por qualquer deslize que culminasse na... m-morte da Jill. – Murmurou ele, sua voz falhando novamente, como se ainda estivesse segurando o choro. – Então eu catei minha mochila, me despedi pelo bilhete e... fui embora antes que acordassem.

Fungou mais algumas vezes, apertando os olhos como se para evitar chorar de verdade. Germany fitou-o por longos segundos, atônita.

– Eu... Fui um idiota. Me desculpe, Ann. Me d-desculpe mesmo, eu...

Droga, Tyler! – Ela proferiu, de súbito, endurecendo a voz. O adolescente apenas se encolheu perante a manifestação repentina da garota que ouvira tudo calada até o momento. - Que droga, você poderia muito bem ter evitado isso, e sabe disso! O que você tinha de cabeça de... Será que você não...

A garota suspirou profundamente, passando uma das mãos pelos olhos cansados. O laço afetivo que criara com o adolescente sempre fora o mínimo para considerá-lo o namorado da irmã, não tendo qualquer posição familiar ou zelosa o suficiente para repreendê-lo ou ditar-lhe regras de conduta; mas ele não deixava de ser apenas um garoto. Um garoto assustado, perdido antes mesmo do mundo todo se perder, e não deixava de ter impactado sua família tanto negativa quanto positivamente durante aqueles anos e naqueles últimos dias. Exalou o ar mais uma vez, sentindo-se exaurida.

– Mas - continuou ela, a voz mais suave - pelo menos você lidou com as consequências de uma maneira menos... destrutiva para minha família. Não sei se outra pessoa, se outro menino na sua situação faria a mesma coisa. – Levantou os olhos para ele, não mais com tantas sombras de perturbação no rosto. - E eu... fico grata por isso.

Tyler deu de ombros, encabulado, voltando a olhar para os próprios pés com os olhos marejados.

– E depois...? - Ela questionou, levantando as sobrancelhas para ele.

Vendo que ele se fechara, os próprios braços envolvendo o corpo fino e uma desolação profunda tomando conta de seu rosto jovem, a morena tentou encorajá-lo a continuar.

– D-depois que eu fui embora da casa – ele continuou, cabisbaixo, após alguns instantes em silêncio - vaguei pela cidade até encontrar algum lugar seguro e consegui me virar por algum tempo... Fiquei perto de um mercado pequeno, então tinha o mínimo de comida pra ir levando. Até que... Até que bateu o desespero e eu voltei pra casa da sua família pra ver se já tinham fugido.

– Você voltou? – Germany perguntou e ele anuiu com a cabeça. - E eles não estavam mais lá?

– Não. – Confirmou ele, suspirando. – Realmente conseguiram ir embora, e eu fico muito feliz por isso, mas... Admito que a ideia de estar mais uma vez sozinho e perdido nessa cidade me deixou ainda mais apavorado, mais do que eu estava antes. – Levantou os olhos para a garota, seu semblante perdido e assustado. - E eu já estava há dois dias sem usar nada, tudo o que havia na mochila do Collin já tinha acabado, então... F-fiquei mais paranoico ainda. Eu não tinha notícias de ninguém que eu conhecia que pudesse me ajudar, me dar abrigo ou me dar mais coisas.

Tyler apoiou os cotovelos nos joelhos, passando a palma das mãos pelo rosto. Ficou calado por alguns instantes, apertando o espaço entre os olhos com a ponta dos dedos.

– Ela é uma vadia. – Murmurou ele, enfim.

– O quê? - Germany levantou as sobrancelhas, surpresa.

– Abstinência. – Proferiu ele, o rosto afundado nas próprias mãos. – É uma vadia. Te deixa mais sem-cérebro do que as coisas lá fora... Foi assim que eu fiquei. Perdi a noção do tempo depois dos primeiros dias sozinho, ficava trancado no apartamento o dia todo, sequer lembro o que eu fiquei fazendo durante esse tempo. É como se esses dias tivessem sido cobertos por uma névoa densa... Só sei que eu passava horas olhando janela abaixo, para as ruas, esperando alguma coisa. Qualquer coisa. – Fez uma pausa breve, levantando o rosto para fitar o piso do quarto. - No terceiro ou quarto dia, não sei direito, eu percebi o que era que eu esperava ver pela janela. Não esperava o exército aparecer para salvar a pátria, meu primo tendo voltado com mais heroína ou algo do tipo. O que eu desejava era olhar lá para baixo e ver sua irmã tendo voltado para me buscar... Tendo voltado, me tirado daquele buraco e me levado embora dessa cidade, deixando pra trás toda a imundície e alienação que esse lugar me trouxe.

Germany apertou os olhos, uma ardência conhecida se formando por baixo das pálpebras. Tyler derramava algumas lágrimas, mas parecia não se importar com elas. Ele apenas continuava apoiado sob os joelhos, o rosto voltado à frente com os olhos vidrados, os dentes batendo vez e outra.

– Mas eu sabia que aquilo não aconteceria... e quando me dei conta disso, fiquei ainda mais desesperado. Estava quase sem comida, estava abstinente há muito tempo, estava sozinho, e eu sabia que a Jill não voltaria para me resgatar dali... Eu queria tanto que ela voltasse! Eu me arrependi completamente de ter fugido, mas eu sabia que já era tarde. - Passou as costas da mão pelas bochechas úmidas. - Então... Numa súbita injeção de força de vontade, eu liguei o foda-se e saí do apartamento, só com uma chave de fenda patética como arma. – Riu desanimado, fungando e chacoalhando os ombros finos. – Perambulei pelos bairros mais próximos fugindo dos zumbis que apareciam pelas esquinas, vagando pelas ruas à procura de mantimentos... Foi quando eu vi a delegacia de polícia ao final da rua e me lembrei que... Que geralmente guardam drogas confiscadas em estações policiais.

– Você estava grogue na delegacia ontem – Germany interrompeu, empertigando-se – porque estava...

– ...Sim. – Tyler exalou, com um pigarreio. – Quando eu vi a delegacia, percebi que era minha última esperança de... usar alguma coisa, então eu fui correndo direto para lá sem pensar. Era um tiro no escuro, uma missão suicida por conta de uma merda de uma seringa ou um trago de maconha, mas eu não estava pensando em mais nada... Quando cheguei o lugar estava um caos, mas sem nenhum zumbi vagando pelos corredores, pelo menos não que eu tivesse percebido. Procurei um depósito, algum lugar que poderiam guardar as drogas... Ainda tinha alguma coisa jogada pelos cantos numa salinha. Eu usei ali mesmo, sem pensar. – Ele estremeceu levemente.

"O problema é que quando começou a bater, apareceu alguém... Só que não era um morto. Era um cara vivo, um brutamontes com as roupas sujas e fedendo a pelo menos cinco coisas diferentes. Não consegui ver o rosto do sujeito, mas ele parecia possesso por eu estar ali, talvez por eu ter usando as drogas que ele mesmo pretendia usar... Quando percebi, estava sendo arrastado pela delegacia corredores adentro, mas eu estava alto demais pra me debater ou revidar contra o cara. Fomos para o lugar onde ficam as celas, ele berrando comigo o tempo todo. Acho que teria me... matado ali mesmo se... não tivesse um zumbi no fundo do cômodo."

Arriscou um olhar de soslaio para Germany, que o fitava com o rosto lívido. Engoliu em seco, e continuou, sua voz falhando ligeiramente entre as palavras.

– O cara devia ser um sádico filho da mãe, porque resolveu me algemar e me largar ali, drogado e sem sequer conseguir abrir os olhos, pra morrer comido pelo morto-vivo. Ele deve ter ido embora logo depois, deve ter falado alguma coisa, mas não me lembro. Só fui reparar no zumbi rastejando metade do corpo pra me pegar um bom tempo depois, não sei como. O efeito ainda não ia passar tão cedo e eu tava preso ali, então não tinha muito que eu fazer. Feliz ou infelizmente, aquela coisa era lerda demais, sofria pra arrastar o próprio tronco decepado com os braços finos e deixava um rastro de sangue pra trás que puta que pariu... - Franziu o nariz em asco, relembrando a cena. - Mas... Depois de encarar aquilo mostrando os dentes pra mim pelo o que pareceu uma eternidade, lembro de te ver ajoelhada do meu lado e me tirando dali... E é isso.

Germany anuiu ligeiramente a cabeça, absorta em pensamentos.

– Eu... – Ela balbuciou, após alguns minutos de um silêncio sepulcral. – Isso é... bastante coisa para assimilar, Tyler.

– Eu sei, Ann, me desculpe, eu... – O garoto virou o tronco abruptamente para ficar de frente com a garota, seus lábios tremulando a cada palavra. – Eu só...

– ...Isso é passado agora. - Ela o interrompeu, voltando a fitá-lo. - Um baita dum passado, mas... Agradeço por você ter me contado. Não deve ter sido nada fácil, vivenciar tudo isso e ter de relembrar tudo de novo. - Ela esboçou um sorriso triste. - Mas você está vivo, não está mais sozinho e minha família está longe desse buraco infernal... É isso o que importa. E eu... Eu sinto muito também, Tyler. Por tudo o que você tem passado.

O garoto sustentou o olhar e o semblante complacentes de Germany. Ele tremia vez e outra, os olhos marejando novamente, mas retribuiu o sorriso, envolto na aura pesada e cinzenta que reincidia sobre os dois. A morena apenas apoiou uma das mãos em seu ombro, um tácito gesto de acalento, e os dois permaneceram assim, quietos, amargurados, num conforto compartilhado na tentativa de amainar os momentos marcados a ferro naqueles dias de suas vidas.



Road Runner abriu a porta do apartamento sem cerimônias, já largando sua grande mochila próxima do batente da entrada e estralando um dos lados do pescoço com um gemido aborrecido, uma de suas mãos apertando levemente o ponto dolorido acima do ombro. Molotov entrou logo depois, tomando um gole da garrafa de água e também depositando a mochila e algumas sacolas no chão à entrada.

Red Rock, empoleirada no batente da janela, levantou-se num pulo, a mão já repousando na pistola enganchada em sua calça assim que as duas figuras masculinas surgiram no abrigo. Demorou alguns segundos para relaxar os ombros e voltar a sentar-se à janela, revirando os olhos para os dois rapazes.

– Precisam entrar aqui desse jeito? – Resmungou ela, observando-os retirar armas de seus ombros, cintos e bolsos e colocando-as na pequena mesa arrastada para um canto da sala. – Custa anunciar que são vocês?

– Querida, chegamos. – Proferiu Road num tom sarcástico, trocando risinhos maldosos com Molotov.

– Da próxima vez – ela se levantou num movimento brusco e caminhou em direção ao corredor – não vou hesitar em atirar.

– Da próxima vez – o ruivo aumentou o tom de voz, certificando-se de que ela o ouviria mesmo se dirigindo ao banheiro – peça pro Hollywood estender o tapete pra gente, esse é o trabalho dele. – Trocou mais risos com o outro, voltando a recarregar as armas.

– Aliás – Molotov se pronunciou, levantando os olhos para o outro – onde tá o filho da mãe?

– O plano era que ele seria o vigia enquanto saíamos, não era? Vigiando o corredor? – Road apoiou as mãos na mesa, o sorriso divertido dividindo espaço com um franzir de cenho.

– Sim, mas não vi ninguém pelas escadas e nem do lado de fora do prédio.

Esquadrinharam a sala de estar e a cozinha embutida com rápidos virares de cabeça, percebendo serem os únicos ali. Red remexia em algo no banheiro, produzindo tilintares agudos, vozes baixas vinham de um dos quartos, com a porta fechada, e Sam logo apareceu no corredor, dirigindo-se para a cozinha – o menino recebeu os dois pares de olhos atentos e respondeu com um acanhado aceno de mão. Com um dar de ombros, o ruivo voltou sua atenção para as armas e Molotov passou a limpar um das facas de caça.

Segundos depois os olhares subitamente se cruzaram, arregalados, ao som de um disparo de arma vindo de algum lugar abaixo de seus pés.

Silêncio pairou pela sala de estar, com o menino fitando-os assustado da cozinha, até que Red apareceu, aos tropeços, do corredor.

– Vocês ouviram isso? – A ruiva esganiçou.

– Isso foi um tiro? – Sam engoliu em seco.

– Hollywood. – Road anunciou, verbalizando o pensamento dos quatro.

Um novo encontro de olhos dos dois rapazes foi o suficiente para concordarem sobre o que deveria ser feito.

– Red - Molotov já voltava a encaixar a faca na bainha de couro e a passar a bandoleira da espingarda pelo ombro – avisa a Germany. Peguem as armas e fiquem de olho na porta.

–M-mas...

– Nós vamos ver o que aconteceu. – Road já se dirigia para a saída com o outro rapaz, empunhando uma das espingardas. - Não deve ser nada de mais, mas aconteça o que acontecer - levantou os olhos austeros para a irmã – fiquem aqui.

A ruiva entreabriu os lábios diversas vezes, balançando a cabeça negativamente, apenas observando-os armando-se até os dentes com as mãos apressadas. Sam recostou-se à parede da cozinha, assustado.

E, tão rápido quanto vieram, os dois saíram pelo apartamento brandindo suas armas e fecharam a porta atrás de si, deixando para trás o menino e a ruiva, ambos estarrecidos.


Road e Molotov corriam degraus abaixo para o andar de baixo. Haviam feito o mesmo caminho enquanto subiam com os resultados da busca por remédios e não notaram absolutamente nada que pudesse vir a ser uma preocupação; por isso, o sumiço de Hollywood e o disparo de arma vindo de dentro do prédio os deixaram mais desconfiados.

O loiro só podia estar dentro de algum dos quartos, mas o barulho abafado do tiro não deu sua localização exata. No quarto andar, os dois rapazes invadiram todos os apartamentos com empurrões nas portas entreabertas e gritando pelo nome de Hollywood em cada cômodo.

Sem nenhuma sorte, encontraram-se novamente no corredor e avançaram para as escadarias, descendo mais um lance de degraus e chegando ao terceiro andar. Road adiantou-se para o primeiro apartamento e Molotov começou a investigar os que estavam na parede contrária, ambos balbuciando palavrões a cada novo cômodo que aparecia vazio à frente de seus olhos.

O moreno, então, chegou à moradia de número 305 e empurrou a porta fechada e adentrou com alvoroço o apartamento - mas deu um passo involuntário para trás à visão que pintava o cenário dentro do cômodo.

À sua frente, um corpo jazia caído de bruços, com uma poça de sangue se formando ao redor de sua cabeleira suja e desarrumada. As roupas puídas também tinham respingos de sangue e uma de suas mãos tinha a palma, voltada para cima, tingida de vermelho sob os cortes profundos na pele.

– Road! – Bramou o rapaz, o olha arregalado e o cenho franzido para o cadáver.

Arriscou vagar os olhos para averiguar o cômodo, ali dentro sendo certamente diferente de todos os outros apartamentos que acabaram de investigar, mas qualquer tipo de atenção que viria a depositar nas peculiaridades dos móveis e apetrechos dali foi completamente voltada para a parede ao lado da porta.

– O que foi?! - O ruivo apareceu logo atrás, a sola de seu tênis fazendo ruídos agudos ao parar de abrupto ao lado de Molotov. - Mas o quê... – Baixou os olhos para o homem com a poça de sangue, e voltou a levantar o rosto para o outro rapaz. – O que diabos-

Então se calou ao seguir a direção dos olhos assustados de Molotov.

Hollywood estava encostado à parede, sentado no chão frio com as pernas desajeitadamente dobradas. A mão direita agarrava debilmente a arma de fogo enquanto a outra pendia solta ao lado do corpo, uma mancha vermelha gigantesca tingindo praticamente sua camiseta por inteiro. Estava pálido, quase desfalecido, com manchas arroxeadas sob os olhos e os lábios secos exalando ar ruidosamente.

Os olhos malmente entreabertos e opacos piscavam lentamente, como se o simples movimento fosse um esforço descomunal para seu corpo. As íris castanhas se levantaram paulatinamente assim que viu os dois rapazes parados próximos de si, e o loiro arriscou esboçar um sorriso trêmulo.

– ...Vocês... vieram....

Foi o que exalou fracamente antes de perder a consciência.


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Notas finais do capítulo

Romance e depois suspense nos capítulos anteriores - tinha que ter um draminha nesse, né? ahahha E muito diálogo, já peço desculpas para quem não é muito fã de diálogos.Eu particularmente acho bem interessante diálogos/monólogos em cenas mais dramáticas, dá mais um ar cinematográfico pra coisa, já que você consegue captar bem o que o personagem está sentindo ou transmitindo naquele momento.
Enfim, achei um momento oportuno pra lançar um monólogo na história, e pra vocês saberem um pouco mais sobre o Tyler também. Espero que a minha abordagem tenha sido bem sucedida (:
De qualquer forma, prometo que zumbis vão voltar a aparecer - é uma história de zumbis, no fim das contas, né? Com bastante sangue e ação, do jeito que a gente gosta, ahhaha
Fico muito feliz que estejam acompanhando, não esqueçam de deixar um comentário dizendo se gostou, se não gostou, porque gostou, pra quem tá torcendo, adoro ler o que todos escrevem!!
Aliás, estou em dívida com muitos quanto a responder comentários, né?? Prometo que vou responder todos essa semana mesmo.
Beijos, queridos!



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