Undead Revolution escrita por caarol


Capítulo 19
Sombras


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo, com uma demora maior do que eu esperava... peço desculpas!
Na realidade era para ser maior do que está, mas resolvi dividir as situações em dois capítulos. Dessa maneira não fica uma coisa confusa e eu consigo atualizar mais rápido.
Além do mais, eu gostei desse capítulo e achei que o clima seria cortado se eu continuasse.
Enfim, vejam por si mesmos, haha!
Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/164702/chapter/19

Localização: Interestadual 80 - Residência da família Cross

10 dias após o Surto.



– Vem, Sam, vamos lá pra casinha. – Pronunciou Red, desviando os olhos para o menino e logo seguindo em direção à cabana com artigos de caça e pesca dos Cross.

Sam acenou com a cabeça, seguindo rapidamente a garota.

Durante a caminhada da pousada até a loja, a ruiva parecia não se importar com a umidade da grama que molhava e pesava seus tênis, já que caminhava com determinação e sequer se importava com os vestígios da chuva recente. Já o menino constantemente saltitava por largas poças de água e franzia o nariz para a lama que se acumulava em seus tornozelos. Logo alcançaram o pequeno caminho com placas cimentadas e pedras redondas que seguiam até a outra instalação, dando uma aliviada trégua do solo barrento e encharcado.

– Será que... vão ter muitos zumbis dessa vez? – Perguntou o menino, engolindo em seco, após alguns minutos de silêncio.

– Não sei... Talvez. – Suspirou a ruiva. – Espero que eles nem venham para cá.

– Se não vierem a gente vai embora?

– Provavelmente. Se não vier ninguém, só vamos terminar de ajudar o Frank e a família dele e depois podemos voltar pra estrada. – Red sorriu para ele.

Sam retribuiu o sorriso, tímido.

Desviando os olhos para o horizonte, puderam observar que uma calmaria tomava conta daquela manhã, com um enfraquecido sol iluminando cinzentamente o dia. As nuvens eram constantes, contribuindo para a atmosfera melancólica e carregada, porém não estavam mais enegrecidas como na noite anterior. Ameaçavam vez e outra retomar a fina garoa, mas a água não mais caía depois de escassos segundos. O clima não parecia condizer com a possível chegada de zumbis ao final da tarde, mas ninguém se atreveu o suficiente a descartar esta opção.



Aproximando-se da loja da beira de estrada, os dois rapidamente contornaram a construção, chegando à pequena varanda repleta de cadeiras de balanço. Red parou há poucos centímetros do primeiro dos três degraus da sacada, vagueando os olhos por toda a longínqua extensão asfaltada da Interestadual 80 e pelo outro lado da estrada - estava tudo deserto. Apenas estranhou brevemente quando avistou um quarteto de pequenos pássaros sobrevoarem o terreno lá no alto, se dirigindo para o horizonte à frente.

Virando-se novamente para a cabana, a ruiva pisou levemente na madeira rangente da varanda, temendo que o chão recentemente molhado e ligeiramente apodrecido cedesse a qualquer momento. Como não obteve nenhuma surpresa desagradável ao permanecer alguns segundos em cima das vigas do assoalho, decidiu se aproximar da porta e verificar se estava aberta.

– Será que tá trancada? – Perguntou Sam, seguindo de perto a garota.

– Parece que sim. Qualquer coisa tem a porta dos fundos. – Red empurrou sutilmente a porta de tela, mas esta não se moveu. – É, não vai abrir. Vem, querido, vamos ali atrás.

Dando a volta pela construção, voltaram a avistar, há poucos metros, a pousada dos Cross. Logo alcançaram a pequena portinhola dos fundos, também de tela e tão empoeirada quanto a da entrada principal. Desta vez Sam se prontificou a abri-la, e obteve sucesso assim que puxou a pequena maçaneta redonda de madeira. A porta rangeu, sibilante, e permitiu que os dois vislumbrassem sutilmente as escuras sombras do grande salão dali de dentro.

A fraca iluminação do dia que adentrou ali revelou apenas as silhuetas de várias prateleiras, a porta principal na parede contrária, diversos objetos dispersos pelas paredes e um balcão mais ao fundo, onde provavelmente ficava a caixa registradora da loja. Formas irregulares e delicadas de poeira planavam no ar à luz que preencheu o lugar.

Com um engolir em seco, os dois adentraram a escura loja, a ruiva tateando a parede mais próxima à procura de algum interruptor. Ela rapidamente percebeu uma saliência excêntrica próxima da porta e logo acendeu a luz dali de dentro.

Uma solitária lâmpada, com uma precária luz amarelada, auxiliou fracamente na iluminação, mas, ainda assim, do pouco que conseguiam discernir, os dois visitantes concluiram que a aparência externa bucólica da cabana era fortemente reforçada com seu interior – graças ao piso envelhecido, o teto alto e o cheiro acre de madeira molhada, assim como os diversos produtos rústicos à venda. Algumas teias de aranha nos cantos das paredes e a camada de poeira acumulada acima de alguns objetos denunciavam a possível falta de atividade da loja, provavelmente inutilizada até mesmo antes dos Cross se isolarem em sua própria casa após o surto de zumbis.

– Olha, Red! – Exclamou Sam.

O menino apontava para uma parede repleta de cabeças de animais empalhados – cervos de pontudas galhadas, aves de bicos grandes e coloridos e até alguns mamíferos pequenos se destacavam como sombras irregulares se prostrando para fora da parede lisa. Red torceu o nariz, sua pouca afeição por Frank Cross diminuindo cada vez mais.

Outros objetos, como armas, lampiões, varas de pescar, e até alguns quadros e decorações campestres, cobriam praticamente todas as paredes; que, juntamente da quantidade gritante de pequenas embalagens e vasilhames dispostos pelas três prateleiras e pelo chão úmido, contribuíam para a sensação claustrofóbica, sombria e pesadamente abarrotada dali.

– Que lugar esquisito. – Sussurrou Sam, observando uma prateleira repleta de tipos diferentes, e enferrujados, de anzóis.

– Que gente esquisita, isso sim. – Proferiu a ruiva, caminhando pelo interior da loja e desviando os olhos para todos os lados.

– Onde será que guardam as balas?

– Não sei... não parece estar por aqui. – Ela retirou uma vasilha redonda de uma das prateleiras e logo viu se tratar de comida enlatada de prazo de validade vencido.

– Tem algumas armas lá. – O menino apontou para uma espécie de móvel com portas de vidro, que dispunha diversas armas de fogo em prateleira, todas propícias para a caça. – Vou ali dar uma olhada.

Red meneou com a cabeça, ainda absorta com a quantidade de coisas dali de dentro, muitas delas encobertas pela escuridão e as quais ela sequer imaginava o que seriam. Porém, foi na parede à esquerda que uma pequena porta, quase engolida pelas diversas decorações e cabeças empalhadas dispostas ao seu redor, chamou a atenção da garota. Com um franzir de cenho e uma rápida olhadela para Sam – que vasculhava os cantos da porção da loja onde estava – ela se aproximou da entrada para o próximo cômodo dali.

Hesitou primeiramente em girar a enferrujada maçaneta, mas tomou coragem e assim o fez. Diferente do que imaginava, não encontrou nenhuma resistência, e logo ouviu o sutil ranger em resposta da porta maciça de madeira permitindo a passagem.

Nenhuma iluminação veio de dentro do cômodo que descobrira, porém, a luz amarelada da loja foi suficiente para a garota perceber que se tratava de uma sala relativamente menor, mas ainda assim com consideráveis proporções. Do pouco que conseguia enxergar, concluiu que estava infinitamente mais organizada do que a loja em si, com apenas algumas sombras angulosas de mesas altas e dos diversos objetos pequenos repousando em cima delas.

Adentrou lentamente o novo cômodo, novamente procurando alguma fonte de luz, mas desta vez não encontrando nenhum interruptor. Decidiu que confiaria na lâmpada solitária da loja e em sua visão para ver se encontrava algo útil ali dentro; mas logo percebeu que as porções mais laterais do aposento se encontravam ainda escuras, uma vez que a entrada permitia iluminação quase exclusivamente para a mesa central dali. Os cantos mergulhados no breu proporcionaram alguns arrepios à garota, que logo concluiu ser melhor vasculhar apenas a bancada central e mais iluminada.

Caminhou hesitante até a parede contrária à porta, desviando os olhos a todo o momento para o restante do cômodo. Nenhum movimento ou ruído suspeito emanou das sombras, mas um odor diferente, sutil porém acre, fez Red franzir o cenho. Não conseguia identificar do que se tratava o cheiro, mas não o achou nada agradável.

Aproximando-se da bancada, pôde ver um alto armário de porta única de alumínio repousando a seu lado, parcialmente coberto pela luz. Parecia trancado por um grande cadeado que, surpreendentemente para ela, não estava enferrujado ou sequer envelhecido – parecia, inclusive, bem novo. Percebendo, porém, que a chave não aparentava próxima para conseguir vasculhar seu conteúdo, passou dali para a bancada ao lado. As linhas expressivas na testa da ruiva se intensificaram ao baixar os olhos à mesa.

Esta apresentava coisas muito diferentes da loja, em especial um antigo computador desktop com um teclado que faltavam algumas peças. Porém, o que mais a surpreendeu, foi a quantidade de embalagens, potes e caixas do que aparentavam ser de diferentes remédios e pomadas - algumas das caixas, inclusive, estando abertas e vazias, sem o medicamento correspondente em seu interior. Pegando alguns frascos e tubos, Red encontrou certa dificuldade em ler os nomes e informações, mas rapidamente percebeu se tratarem de remédios veterinários, alguns para animais de porte grande, outros para porte pequeno. A loja dos Cross aparentemente também era responsável pela manutenção da vida animal das propriedades adjacentes.

Analgésicos, anestésicos, vermífugos, carrapaticidas e diversos outros produtos de nomes científicos complicados se dispunham em grande quantidade naquela bancada. Muitos estavam sem tampa e inclusive já haviam sido utilizados, fato que confundiu a garota ainda mais - os Cross não possuíam nenhum animal doméstico ou de fazenda, pelo menos não que ela soubesse, para serem aplicados aqueles medicamentos.

Passos se aproximando a libertou dos pensamentos e a ruiva logo viu Sam também adentrando a salinha separada, segurando três caixas pequenas de papelão.

– Encontrei, Red! Pelo menos acho que são as balas que a gente tá procurando. – O menino deu de ombros para os caixotes que encontrara. Parou no meio do cômodo e ergueu a cabeça, fazendo uma careta. – Que cheiro esquisito! – Ele franziu o nariz. Logo percebeu o quase breu dali de dentro e retesou os ombros, receoso e incomodado pelo odor. – Tá tão escuro...

– Não encontrei nenhum interruptor. – Respondeu a garota.

– Mas tá vendo alguma coisa útil? Quer dizer, tem alguma coisa aqui?

– Ter até tem, mas definitivamente não é munição. – Red baixou o olhar para as duas mãos, que seguravam frascos diferentes. – Só remédios para animais.

– Animais? Eles têm bichos?

– Então, acho que não. Provavelmente eles vendiam isso ali na loja também, mas não sei porque estão aqui, separados. E alguns tão até usados. – A garota mostrou um tubo de pomada bactericida que parecia vazia até a metade.

– Usados?

– Sim. E muitos aparentam ser remédios bem fortes.

A ruiva estreitou os olhos para um frasco cilíndrico com algumas drágeas coloridas, procurando ler o que estava escrito ao lado de uma tarja negra sob a iluminação precária. Desistindo de tentar naquele momento, colocou-o no bolso da bermuda e pegou mais algumas caixas para analisar posteriormente. Lançou um último olhar confuso para os medicamentos que ficaram em cima da mesa e caminhou até Sam.

– Encontrou as munições então? – Ela pegou uma das caixinhas nas mãos.

– Sim! É isso aqui mesmo, não é?

– Não manjo muito dessas coisas, mas imagino que sim. – Red sorriu para o menino. – Bom trabalho, fiel escudeiro. Agora é só voltarmos lá pra pousada.

– Vai mesmo levar as coisas da mesa? – Ele sussurrou, vagueando os olhos pela bancada parcialmente iluminada.

– Ah, peguei mais pra descobrir o que é... mas não acho que vai ser muito útil pra gente não. São coisas de veterinário... alguns não vão fazer muito efeito em nós se usarmos, e outros são fortes demais, tipo os pra cavalos e animais grandes.

– A gente podia perguntar pro Frank porque eles têm isso aqui. – Disse o menino, já se dirigindo para a saída do cômodo.

– Acho melhor nem tocarmos no assunto, querido, peguei só por curiosidade mesmo. – Red riu nervosamente. – Quanto menos nos intrometermos com essa família esquisita, melhor.

Sam soltou um riso estridente, que foi seguido de um remexer de caixas no canto escuro mais próximo da porta. Os dois pararam imediatamente de andar, permanecendo estáticos por alguns segundos.

– O... o que foi isso? – Sussurrou ele, virando lentamente a cabeça para olhar a garota.

Red fez sinal de silêncio para o garoto, que obedeceu prontamente e com um arregalar de olhos. Aguardaram calados por alguns segundos, mas nenhum outro ruído ecoou pela saleta.

– Sam. – Chamou a garota num sussurro quase inaudível. – Me arranja uma lanterna.

– O quê? – O menino exaltou a voz, logo repreendendo a si mesmo com uma careta. Voltou a cochichar, se aproximando dela. – Não, Red! E se for algum... algum zumbi?

– Se fosse já teria feito alguma coisa com a gente, não é?

Sam sustentou o olhar de Red com uma súplica crescente em seus próprios olhos. Ela, no entanto, apenas sorriu fracamente, encorajando-o, e ele soltou um gemido incomodado.

– É rapidinho, Sam, só quero ver o que tem aqui.

– Pensei que não queria se intrometer nas coisas dos Cross. – Sam voltou a se dirigir lentamente para a saída do cômodo, sem desviar os olhos do canto negro de onde proveu o barulho.

– Se for algo perigoso, nós já podemos dar um jeito. – Retrucou a garota, com uma confiança que apenas serviu para o garoto olhá-la com ainda mais incredulidade.

– Dar um jeito? Nós?

Com um leve empurrão nas costas do menino, Red o colocou para fora da porta.

– Só encontre alguma coisa pra eu iluminar melhor isso aqui, tá bom? Não precisa ficar com medo, querido. – A garota riu nervosamente, dificilmente acreditando em suas próprias palavras.

Sam arqueou as sobrancelhas em preocupação e engoliu em seco.

– Depois criança que é curiosa! – Murmurou ele, aflito.

Caminhou rapidamente em direção ao balcão com a caixa registradora. Subitamente estancou na metade do caminho, primeiro baixando os olhos para as pequenas caixas em suas mãos, depois virando o pescoço para a saída posterior da loja. Pareceu pensar por alguns instantes e rapidamente se dirigiu à porta, depositando as caixinhas com munição próximas ao batente - deixando-as acessíveis caso precisassem fugir rapidamente dali - e logo voltou para o balcão.

Satisfeito com seu rápido e útil raciocínio, vasculhou com certa confiança uma prateleira ali próxima, já sabendo onde procurar o que precisava. Encontrou uma grande lanterna vermelha, aparentemente nova, e uma embalagem com pilhas abaixo dela. Rasgou o papelão da embalagem com uma trêmula pressa e tentou posicionou as baterias no local correto, mas encontrou certa dificuldade graças à iluminação pobre de onde estava.

O silêncio de Red o deixava ainda mais apreensivo, complicando seu serviço relativamente simples de fazer a lanterna funcionar. Após alguns segundos batalhando com o objeto, conseguiu um fecho de luz amarela, forte o suficiente para iluminar o canto escuro da coisa que estava no cômodo separado da loja.

Voltou rapidamente para a saleta, logo entregando a lanterna para garota, que respondeu com um rápido sorriso. A luz, posicionada para os pés da ruiva, foi logo levantada para a porção direita à porta com certa lentidão, como se demonstrando o receio dela de descobrir o que estava ali.

Uma rápida varrida da área com a iluminação demonstrou uma nova bancada com mais objetos espalhados, semelhante à que possuía os remédios veterinários, e diversas caixas amontoadas no chão em uma pilha da altura de Sam no canto do qual veio o barulho de anteriormente. Os dois permaneceram calados e pacientes por alguns instantes, como se esperando alguma coisa – ou algum zumbi – saltar dali para atacá-los. No entanto, nada aconteceu.

Passada a inquietude inicial, Red se dirigiu à bancada a passos leves, recebendo um prender de respiração de Sam em resposta.

– Red! – Chamou ele, num sussurro desesperado.

– Tem coisa aqui nessa mesa também, Sam. Só vou dar uma olhada.

A curiosidade audaciosa da ruiva fez o menino grunhir em medo novamente. Se fosse por ele, já estariam de volta à pousada Cross, seguros do que quer que estivesse ali dentro e alheios à toda aquela farmácia tétrica.

– Red. – Repetiu o menino, após alguns instantes de silêncio, em que a garota analisava o conteúdo da mesa.

– São... sedativos. – Respondeu ela, com a voz trêmula, enquanto virava uma pequena ampola nas mãos.

– O quê?

Afastando-se ligeiramente da mesa, ainda direcionando a luz para ela, Red permitiu ao garoto a visão de algumas caixinhas, pequenos vidros cheios de líquidos, alguns transparentes, outros coloridos, alguns potes com comprimidos e ampolas e agulhas dispostas de forma desorganizada no tampo da bancada. Mais próximos à beirada estavam um chumaço de algodão, uma caixa com gaze e rolos de esparadrapo.

– É só um monte de coisa de primeiro socorros. – Proferiu o menino, permanecendo aonde estava, não se atrevendo a se aproximar. – Vamos, Red, por favor! – Gemeu ele.

– Primeiros socorros? Só se você tiver falando dessa gaze aí, porque acho que dá pra nocautear um elefante com todo esse resto aqui, Sam. – Red iluminou um vidro em sua mão, exibindo uma etiqueta com uma palavra destacada: Diazepam¹. – Pra quê tudo isso? – Perguntou ela, para si mesma.

Um novo ruído, vindo do mesmo canto escuro, sobressaltou aos dois novamente. A ruiva rapidamente desviou a lanterna em direção à pilha de caixas, e o que viu foi o suficiente para arregalar os olhos e perceber Sam arfando em horror – sob a luz amarelada, as caixas balançavam lentamente, como se algo atrás delas se movesse, tentando se livrar da fortaleza de papelão. Uma corda se revelou próxima aos pés da garota, serpenteando sutilmente e sendo tensionada vez e outra. Com um pulo, Red foi de encontro a Sam, lançando o feixe de luz para a corda e procurando suas extremidades: uma estava presa à parede da bancada central por uma grossa argola de ferro; a outra terminava atrás das caixas tremulantes.

Subitamente, o que quer que se mexia parou, evidenciado pela frouxidão inerte da corda. No entanto, algumas caixas saíram de sua formação, caindo em direção aos dois visitantes alarmados. Red desviou a luz das caixas, iluminando os próprios pés novamente, e sentindo os dedos magros de Sam cravando em seu antebraço direito.

Imóveis, permaneceram encarando as sombras daquele canto, imersos em um tenso e sombrio silêncio. A fraca iluminação vinda da loja, e que adentrava o cômodo pela entrada, banhava aos dois muito debilmente - ainda mais após uma das caixas ter esbarrado na porta, quase a encostando por completo. A silhueta da ruiva, no entanto, ainda era relativamente perceptível aos olhos do menino grudado ao seu lado, tanto que este percebeu o sutil cutucão no ombro dado por ela e um apontar de cabeça com cabelos avermelhados para a saída da saleta.

Sam engoliu em cedo, sem retirar as mãos do braço de Red, e finalmente começou a se afastar, muito lentamente, para a porta. Pé ante pé, ainda com os olhos cravados no canto escuro da criatura que ali repousava, puxava sutilmente a ruiva, que o acompanhava hesitante. A lanterna, ainda apontando para baixo, ameaçou se erguer por duas vezes, mas em ambas o menino cravou ainda mais os dedos no pulso fino, num pedido calado para não piorar a situação.

Por fim, a corda voltou a se mexer e Red rapidamente levantou a luz para o canto do cômodo. A garota prendeu a respiração involuntariamente.

Repousando abaixo de uma das caixas, uma sombra disforme, escura, se projetava para fora do esconderijo, como se soterrada pelo papelão - era uma pata de animal. Garras acinzentadas precipitavam-se da pata de cor negra, que possúia um resquício de pêlo amarronzado na porção inferior. Repousava lateralmente, o restante da perna peluda escondida pelas caixas, e tremendo vez e outra, para horror dos dois visitantes.

– Red... – Sussurrou Sam, voltando a puxá-la.

Ignorando a súplica abafada do menino, a ruiva apontou a luz para os outros caixotes. Novamente viu a corda sumindo em meio a elas e a pata continuava a tremular, as unhas fechando contra a pele em movimentos involuntários e espasmódicos. Por fim, direcionou a lanterna para a porção que anteriormente se recusara a analisar e sentiu Sam dar um passo para trás, afastando-se dela.

Uma grande e encorpada cabeça de cachorro repousava no piso do cômodo, deitada com a mandíbula cerrada ao chão. Estava coberta por um pêlo negro, ralo, que também recobria a porção superior do focinho curto e da maxila avantajada, com o restante da bocarra apresentando um tom acastanhado apagado. As orelhas triangulares, parcialmente fechadas, estavam para baixo, inertes. Do grosso pescoço principiava a corda que se estendia por quase todo o aposento, estando presa ao animal por uma corrente de elos graúdos. Dos ombros fortes para baixo, o cachorro estava recoberto pelas caixas de papelão envelhecidas.

Red arqueou as sobrancelhas. Do pouco que entendia de raças de cães, conseguiu concluir que aquele se tratava de um Rottweiler. Porém, apesar do porte robusto e vigoroso da raça, aquele em especial não aparentava nem um pouco enérgico - sequer aparentava saudável. À luz da lanterna, uma densa e avermelhada baba escorria da boca cerrada do animal e ele tinha os olhos semi-cerrados injetados. Sequer pareceu notar a presença dos dois intrusos, já que não se moveu mais, mesmo com o feixe amarelado sendo apontado em sua direção.

– Red! – Chamou Sam novamente, cutucando a garota no braço.

– É só um cachorro, Sam. – Respondeu ela, num cochicho.

– Um baita dum cachorro! – Retrucou o menino. – E se está preso é porque é bravo!

– Porque largariam ele aqui, escondido nessa salinha? E em baixo dessas caixas? 

Sam não respondeu, já se dirigindo para a saída do cômodo, de certa forma aliviado por não se tratar de um zumbi escondido ali.

– Red, vem! A corda é comprida o suficiente para ele vir atrás da gente! – Ele voltou a abrir a porta, agarrando com força a maçaneta e baixando os olhos para a criatura próxima de seus pés.

– Ele não parece com muita vontade de levantar, Sam.

Red deu alguns passos hesitantes em direção ao animal.

– Pra falar a verdade – continuou ela – ele não parece nada bem.

– Por quê?

– Ele tá babando muito, os olhos tão vidrados...

– Ele só tá dormindo, Red, e é melhor a gente não perturbar ele!

A garota não respondeu. Retirou as caixas que estavam em cima do Rottweiler com aparente coragem e uma lenta cautela, temendo acordá-lo a qualquer instante. Um “o quê?!” abafado escapou dos lábios de Sam. Retirada toda a obstrução de papelão, a lanterna revelou uma corpulenta silhueta acomodada no chão frio. Red franziu o cenho para a visão do cachorro.

Várias falhas nos pêlos, com tufos espalhados ao redor do corpo, somadas a curativos mal feitos nas pernas e às feridas e marcas de mordidas expostas nas ancas do animal, confirmaram seu estado debilitado. Apesar de possuir uma estrutura corpórea memorável para um cão, aquele estava com as marcas de costelas visíveis sob a pele, além de um afunilamento no focinho discrepante daqueles de sua raça, evidenciando sua fraqueza e esqualidez.

– Será que ele... tá vivo? – Perguntou Sam, num sussurro.

Red, ainda calada, se aproximou sutilmente do corpo jazido, mas se afastou de súbito, fazendo uma careta ao sentir as narinas invadidas novamente pelo cheiro desagradável que sentira anteriormente. O odor vinha do animal à sua frente, mais precisamente da baba pastosa que inundava os pêlos de sua mandíbula. Desviando a lanterna para o tronco do cão, percebeu um sutil, quase imperceptível movimento de respiração em seu tórax.

– Vivo ele está, mas acho que não vai ficar por muito tempo. – Ela esquadrinhou o Rottweiler lentamente, da cabeça ao rabo. – Ele parece bem ferido.

– Mas tá cheio de curativos, alguém tem cuidado dele.

– ...Pois é. – A garota franziu o cenho, levantando os olhos para a bancada central do cômodo, aonde repousavam os remédios veterinários.

Baixando novamente a luz, pôde perceber duas silhuetas pequenas e finas próximas das pernas traseiras. Duas seringas, ainda com as agulhas posicionadas na ampola, jaziam negligentemente no piso.

– Não só cuidando... – ela pegou uma das seringas, revirando-a lentamente nas mãos – como dopando ele.

Um novo remexer de patas e um grunhido rouco e gutural resultaram num assustar coletivo, e o Rottweiler finalmente pareceu se incomodar com as presenças dali – já que desviou lentamente a cabeça em direção aos dois e arreganhou dentes avermelhados e acompanhando de um brilho apagado, porém desvairado, no olhar. Fez tudo de maneira sonolenta, provavelmente graças aos resquícios dos efeitos dos sedativos que ainda corriam em seu organismo, mas foi o suficiente para Red agarrar Sam pela camiseta num movimento instantâneo e arrastá-lo dali bruscamente.

Fechando a porta num baque surdo e posicionando uma pesada caixa de ferramentas à sua frente, procurando bloquear a saída do cachorro, a ruiva arfou por alguns segundos, vidrada na madeira maciça que separava a loja dos Cross do cômodo do animal agora acordado. Sam gemia baixinho, abraçando o próprio tronco.

– V-vem, Sam... Vamos dar o fora! – Proferiu ela, ainda empunhando a lanterna com os dedos trêmulos.

– Até que enfim! – Exaltou o menino, que já corria em direção à porta, agarrando as caixas de munição no piso e sequer olhando para trás.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹Um fármaco forte, ansiolítico, anticonvulsivante, relaxante muscular e sedativo; conhecido comercialmente como Valium.
Então... será que é este o segredo de Savannah? Se for, porque foi escondido? E porque as drogas fortes? Será que é um zumbi?
Ah, veremos, veremos! E digo mais: tem mais coisa vindo por aí... a situação dos Cross é bem mais cabulosa do que apenas a descoberta feita por Red e Sam, isso lhes garanto, muahaha!
Enfim, achei que a atmosfera desse capítulo foi diferente do que eu geralmente estava escrevendo. Sei lá, foi só uma sensação, haha
Espero que tenham gostado, o próximo não tardará a ser postado!
Até!