Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 6
Capítulo 5


Notas iniciais do capítulo

Esse cap é meio chato, mas o próximo vai ser bem mais legal, o amor da minha vida (leia-se: Gabe) vai ter um pouquinho mais de participação :)



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Quando saí do dormitório, – sozinha, aquelas duas malucas resolveram me ouvir e foram embora – senti que meu humor melhorava. Pensei que sentiria frio com as pernas nuas daquele jeito, mas a noite estava com o clima agradável e surpreendentemente ameno. Paulo não teria me mandando meias curtas se o tempo estivesse diferente, percebi. Aquele idiota pensava em tudo. Apesar do clima não ter sido o motivo do fim da ditadura da meia calça. Chermont obviamente não esquecera meus joelhos esfolados. Nesse momento até agradecia pela saia do uniforme, já que seria impossível usar calças com aqueles joelhos, que doíam se eu encostasse em qualquer coisa.

   Caminhei pelo pátio, sentindo-me leve depois daquela tarde de descanso. A noite estava bonita, sem lua, – provavelmente encoberta pelas nuvens – mas com algumas estrelas dando uma luminosidade precária e meio azulada ao lugar. Engraçado como a noite era tão escura naquela cidadezinha, só as luzes das casas lá embaixo, alguns postes de luz na rua e as estrelas. O colégio era o lugar mais iluminado dali e ainda assim eu só podia enxergar alguns poucos metros à minha frente. Lembrei-me de como aquele mesmo caminho, que me resultava tão agradável agora, parecia assustador na noite anterior. Sorri, a noite estava mesmo linda agora que eu me sentia bem e descansada.

   Linda demais para ficar enclausurada entre quatro paredes, rodeada de pessoas de quem eu não gostava e que não gostavam de mim. Ali fora dava até para esquecer o maldito do monitor e as minhas colegas de quarto descerebradas. Impulsivamente, passei direto pelo refeitório e segui para o bosque que havia visto da janela do meu quarto.

   Se eu fosse outra pessoa, podia ter começada a saltitar e cantarolar. Era um daqueles momentos em que você se sente bem sem motivo, em que o universo parece estar em equilíbrio, quando tudo parece certo e tranquilo. O momento perfeito para ficar sozinha e tentar esquecer os problemas, especialmente os criados pelo Paulo, aquele mensageiro do apocalipse.

   É mesmo uma pena que esses bons momentos durem tão pouco para mim.

   Passei pelo complexo esportivo e, logo depois, pela capelinha pitoresca. Ela nem me parecia tão irritante naquele momento. Acabei sentando-me aos pés de uma árvore grande, uma das primeiras do bosque, recostando as costas no tronco. Fiquei apenas parada, enchendo os pulmões com o ar limpo e úmido por um longo momento. Uma brisa fez meu cabelo grudar no pescoço, me fazendo cócegas. Quando fui tirar o cabelo do pescoço com a mão, acabei tocando na corrente de prata que sempre usava. Baixei a mão até chegar ao pingente pendurado nela. A luz das estrelas permitia que eu o visse claramente e eu sabia que, se o abrisse, não teria problemas para ver a pequenina foto guardada lá dentro.

   Não o abri. Não tinha forças para isso.

   Depois do que pareceu ser muito tempo, as lágrimas começaram a cair, fluíam livremente agora que eu não precisava me esconder atrás da fachada de garota forte. E logo vieram os soluços e eu estava chorando como uma criança. Há muito tempo não me permitia chorar por toda aquela merda que era a minha vida. Os anos passavam, mas a dor, a raiva e a culpa não iam embora. Aquela noite, dois anos atrás...ainda parecia que tinha sido ontem, ainda doía como se tivesse sido ontem.

   Quem foi o espírito de porco com retardo mental que disse que o tempo cura tudo? Mentiroso descarado.

   Não era justo, droga! Ela só tinha treze anos. Era bonita, inteligente, a mais sensível e carinhosa de nós. Jovem, boba, suscetível, carente, vulnerável.

   A culpa teve dois anos para me corroer. Mais uma vez me perguntei por que não podia ter sido eu, e não ela. Mas não posso mudar o passado. Não posso fingir que minha vida tem um propósito e uma razão. Não posso me impedir de ser inútil. Vazia.

   Estava tão perdida em minhas lágrimas que não percebi alguém se aproximar e a próxima coisa que eu soube é que fui agarrada com força pelos ombros. Levantei a cabeça, com o rosto ainda molhado e os olhos vermelhos, para ver quem me segurava.

   Por quê? Por que tinha de ser justo ele?

   - Você está bem? Está machucada? – Paulo perguntou, preocupado, correndo os olhos por mim à procura de algum ferimento novo.

   Envergonhada, empurrei-o para longe e sequei as lágrimas com os punhos, só pensando em achar um cantinho para me esconder e morrer. Droga! Tinha que chegar logo no pior momento, aquele diabo! Um outro soluço escapou dos meus lábios e eu soube que não ia conseguir me conter. As lágrimas voltaram a cair, por mais que eu me esforçasse para fazê-las parar. Mas não era algo que eu pudesse controlar. Foi quando senti braços ao redor de mim e a realidade daquilo tudo me atravessou. Alô? O idiota do monitor está te abraçando, Julieta, ele realmente teve a ousadia de fazer isso, eu devia quebrar a cara dele. Mas não queria. Eu sabia que devia pelo menos afastá-lo, repeli-lo. Quem era ele, afinal? O otário que me odiava e queria fazer da minha vida um inferno. Eu o detestava. Então por que eu ainda estava deixando-o me abraçar daquele jeito? Por que eu encostei a cabeça no peito dele e não fiz nada quando ele passou os lábios pelo meu cabelo? Até onde eu sabia, o maldito podia estar cuspindo no meu cabelo! Mas ele dizia palavras carinhosas, dizia que tudo ia ficar bem, que eu era bonita demais para chorar e que ele não queria mais me ver assim.

   Sei lá, não deu. Aconteceu de ele aparecer justo quando eu tinha baixado minhas defesas.

   - Você se machucou? – Paulo perguntou quando eu parei de soluçar, sem me afastar dos seus braços. – Alguém fez alguma coisa com você? Pode me falar.

   Enterrei o rosto na camisa dele, humilhada demais para olhá-lo, mas ao mesmo tempo achando conforto naquele corpo grande e quente. E ele cheirava tão bem, como roupa limpa. Contra qualquer pensamento racional, eu estava me sentindo segura com ele. Maldito inferno! Agora eu estava reunindo coragem para me afastar dele e encará-lo. Aquela intimidade era perigosa.

   - As meninas te trataram mal? – ele continuou, sempre me abraçando. – Porque se for isso, eu –

   - Ah, cala essa boca – interrompi rudemente, finalmente me soltando dele e secando as lágrimas com as costas das mãos.

   - O que você tem? – ele perguntou de novo, aparentemente não se cansava de me interrogar. – Estou preocupado com você. Não apareceu para jantar, não estava no quarto e em lugar nenhum. Julieta, me diz, o que aconteceu?

   - Você não tem mais ninguém para atormentar? – perguntei irritada, levantando-me rapidamente. – Não tenho tempo para você.

   Se eu pensei que poderia sair de lá facilmente e sem nenhuma explicação, estava enganada. Devia saber que Chermont não me permitiria ir antes de satisfazer a sua curiosidade. Assim que me levantei, ele se levantou também, bloqueando meu caminho. Inferno, o garoto era rápido.

   - Será que dá para sair da frente? – tentei, desesperada para sair da presença perturbadora dele. – Estou com fome e quero ir jantar – mentira, mas até onde eu sei, esse aí não pode ler minha mente.

   - O jantar já foi encerrado há umas duas horas! – ele respondeu, exasperado. – Você perdeu a noção do tempo?

   - Não, mas você perdeu a noção do ridículo. Acha que é quem pra ficar me pedindo satisfação? – suspirei e tentei passar por ele. – Eu estou indo para a cama.

   Paulo segurou meu braço e me forçou a olhar para ele. Seus olhos brilhavam com a raiva e eu comecei a tremer quando percebi que estávamos sozinhos no meio da noite, num lugar isolado e escondido. Vai que esse menino pira e dá uma de psicopata? Engoli em seco e tentei controlar o pânico.

   - Passa das 10 – ele disse, em tom casual forçado. – Você já devia estar na cama há muito tempo. Teoricamente você está encrencada. E olha só que legal, eu sou autoridade aqui.

   - Quer saber? Que seja! – repliquei, puxando meu braço. – Ótimo! Pode fazer o que quiser, me deixa de castigo, me tranca naquela sala, sei lá, chama a polícia se você quiser. Eu não podia me importar menos!

   Paulo passou os dedos ferozmente pelos cabelos ondulados. Parecia irritado. Ah, era só o que me faltava, eu ter que aguentar a raiva daquele menino absurdo! Não era eu quem estava me metendo na vida dele, era o contrário! Paulo continuava na minha frente, me olhando com aquela cara de ódio, só faltava começar a grunhir. Então, sem aviso prévio, ele segurou meus ombros e me empurrou contra a árvore em que eu tinha me apoiado antes.

   - O que é? – gritei, tentando me soltar. – Vai me bater agora?

   - Você é demente? – gritou ainda mais alto que eu e me segurou mais forte. – Bateu a cabeça em algum lugar? Porque só pode ser isso. Recuso-me a acreditar que você consiga confundir ajuda e preocupação com castigo. Acha mesmo que eu estou querendo te prejudicar agora? Eu fiquei preocupado quando você não apareceu para jantar e quase enlouqueci quando saí pra te procurar e não te achava em lugar nenhum! As piores cenas possíveis passaram pela minha cabeça, desde você tropeçando na escada e quebrando o pescoço até sendo sequestrada por um grupo nômade de ciganos! E depois, te ver chorando daquele jeito...

   Eu estava total e completamente sem palavras. Não conseguia me mover, falar, nem mesmo pensar. Estava naquele estado de estupor de quando alguém fala a última coisa que você esperava ouvir. E principalmente, a preocupação na voz do Paulo me desarmou, não podia pensar em nada para rebater isso. Há quanto tempo alguém não se preocupava comigo? Ou pelo menos demonstrava?

   Tempo demais.

   - Julieta – ele disse, levando uma mão ao meu rosto e apagando os últimos vestígios das minhas lágrimas. – O que colocou essa dor nos seus olhos?

   Quase ri. Ele era tão século passado. Mas era mais gentil e carinhoso comigo do que minha própria família nos últimos anos. Fazia-me querer desabafar, contar tudo o que eu tinha guardado só para mim por tanto tempo. Todas as mudanças que ocorreram na minha vidinha perfeita. Que me transformaram.

   E destruíram.

   E eu percebi que nem era tanto por ser ele, um cara que eu mal conhecia. Eu só nunca tive ninguém para me ouvir. Detestava todos os psicólogos a que fui obrigada a ir, era só mais uma delinquente que eles eram obrigados a atender. Meu pai não conseguia nem me encarar nos primeiros meses, depois fingia que não, mas sei que me culpava, e minha irmã Bianca, essa não olha na minha cara até hoje. Talvez agindo desse jeito eles se sintam menos culpados, jogando tudo nas minhas costas, não sei. Queria poder fazer isso.  Mas, principalmente, queria, aliás, precisava de alguém para me ouvir, alguém que não me julgasse e dissesse que tudo bem, que a culpa não era minha, que eu estava atolada de problemas e não sabia o que ia acontecer. Queria tanto que alguém me dissesse essas coisas e lá estava o Paulo, olhando para mim de um jeito que me fazia sentir protegida, me fazia pensar que se eu contasse tudo para ele, ele diria exatamente as palavras que eu queria ouvir.

   Só que isso não ia acontecer.

   Eu já passei por muito na vida pra ser ingênua desse jeito. As coisas não acontecem do jeito que a gente quer que aconteça. Não sou idiota o suficiente para abrir o bico para qualquer um, muito menos para um garoto estúpido, metido a certinho que só me ferrou desde que eu pus os pés nessa escola. Só estaria dando para ele mais armas para acabar comigo.

   - Presta bem atenção, porque eu só vou falar uma vez – eu disse, olhando-o bem fundo nos olhos. – Não sou fraca. Nem boba. Qualquer que seja o meu problema, saiba que posso cuidar dele muito bem sozinha. Não preciso de você nem de ninguém.

   - Todo mundo precisa de alguém – ele disse, finalmente me soltando agora que nenhum dos dois estava tendo ataques de histeria. – E você não é melhor que as outras pessoas.

   - Ser melhor que você já é o bastante para mim. – respondi com raiva, voltando a me sentir eu mesma. – Vem cá, como é que você faz pra ser tão babaca assim? Tem um manual ou coisa do tipo, ou é algo que vem naturalmente em você?

   Paulo soltou uma risada sem humor e também pareceu voltar ao normal. Ou seja, voltou a ser o mesmo otário manipulador e aprendiz de terrorista de sempre.

   - Então quer dizer que a cascavel recuperou o seu veneno – disse, sorrindo e recostando-se numa árvore. – Então é desse jeito que você fica quando alguém tenta te ajudar. Bom saber.

   - Não me lembro de ter pedido a sua ajuda. Além disso, sei que o que queria de verdade era me humilhar.

   - Essa nunca foi minha intenção.

   - Quer saber? Não importa – já estava cansada daquela conversa que não ia levar a lugar nenhum. – Estou indo pro meu quarto, ok? Não quero saber de você nem das suas intenções. É claro que você deve conhecer um ditado que envolve boas intenções. E o inferno cheio delas.

   Já tinha virado as costas para ir embora quando o ouvi dizer:

   - E quem disse que minhas intenções eram boas?

   Tive que fazer um esforço para parar de sorrir antes de olhar para ele. Paulo continuava na mesma posição, com aquele arzinho debochado e um meio sorriso nos lábios.

   Andei até ele até que ficamos separados apenas por poucos centímetros. Fiquei na ponta dos pés e lhe dei um beijo na bochecha.

   - Valeu pelas meias – eu disse.

   Ele não estava mais com aquele sorrisinho estúpido, quem sorria era eu. Consegui deixar o garoto com uma nada atraente expressão de surpresa. Boa, Jules, mas é melhor largar o jogo enquanto se está ganhando.

   - Vou na frente – eu disse, me afastando dele para ir embora. – Porque você sabe o que dizem sobre as cobras, não é? É melhor não dar as costas a elas. Boa noite, monitor.

   Voltei pelo mesmo caminho, deixando um Chermont surpreso para trás, meu sorriso esmorecendo a cada passo. Engraçado, mas o garoto tem um estranho poder sobre mim. Ele parece ser capaz de me fazer esquecer quem eu sou, mesmo que por alguns segundos. Ele me faz sentir como uma garota normal.

   Mas eu não sou, e não posso me esquecer disso. Preciso lembrar dela, atormentar-me pelo resto da vida. Talvez assim...eu possa me redimir.

   Entrei no dormitório, meio confusa e com um aperto no peito, como sempre me sinto quando penso nela, como se as lembranças e as emoções fossem um fardo muito pesado para o meu coração. E são.

   O efeito Chermont havia passado. Com ele por perto, eu me sentia como uma garota deve se sentir. E é por isso que mantê-lo afastado é o melhor a se fazer.

   Não posso me esquecer de quem sou. Do que fiz. Dos erros que cometi e dos danos que causei. E não vou.


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Notas finais do capítulo

:)