Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 40
Capítulo 39


Notas iniciais do capítulo

Sei que faz, sei lá, uns cinco meses, mas aqui está o último capítulo de Manchas.
Muito obrigada a Unworldly, Liz Mar e AnaMidori1 pelas recomendações, foram lindas e eu amei.
Gente, eu nem sei o que dizer.
Acho que eu to meio triste.



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Frio.

Eu estava com tanto frio que era impossível pensar. Talvez meu cérebro tivesse congelado.

O tempo era engraçado, não estava passando linearmente como deveria, parecia sofrer grandes pausas, buracos – momentos que eram perdidos para mim, lapsos em minha memória – e, em cada um deles, eu me tornava um pouco mais alerta.

Percebi que sentia, e já há algum tempo, gotas de água gelada no rosto, gotas grossas e afiadas como lâminas pequeninas; minhas roupas estavam ensopadas. Demorei um pouquinho para perceber que as gotas eram de chuva. Eu estava lá fora. Abri os olhos, tentando ignorar a umidade que escorria para dentro deles.

Tudo o que eu via era um túnel escuro. Havia uma luz no fim, uma luz muito clara, branca, ou talvez cinza, que machucava meus olhos.

– Julieta! – ouvi alguém chamando meu nome de muito, muito longe. Eu não conseguia nem definir se a voz pertencia a um homem ou a uma mulher. Eu só queria que ela me alcançasse. Eu me sentia tão sozinha. Tão vazia, como se minha alma estivesse abandonando meu corpo, escorrendo como as gotas de chuva por minha pele.

Lentamente, o túnel foi se desfazendo, na verdade, nunca havia sido um túnel. Meus olhos foram se ajustando. Eu estava deitada de costas sobre uma superfície rígida, olhando para o que deveria ser o céu claro e chuvoso, rodeado por árvores altas e escuras. De fato, tudo parecia meio escuro ao meu redor, apenas o infinito acima da minha cabeça desprendia alguma luz.

Minha mente se perdia nas sensações, era tudo a que ela podia se apegar, talvez para ter a certeza de que eu estava viva, de que aquilo era real. Se fosse um sonho, eu não sentiria as gotas geladas de chuva escorrendo entre meus lábios entreabertos, não sentiria minhas roupas molhadas grudando em minha pele como se quisessem se enrolar em meus ossos. Não sentiria a brisa fria em meus ouvidos nem a luminosidade abafada machucando meus olhos.

Ou será que sentiria?

A dor não era real, não era palpável. Eu sabia que doía, mas era como ter apenas a memória disso, um eco. Não era de verdade.

O chão se movia embaixo de mim, puxando-me com ele. Um rosto flutuava acima de mim, um rosto com esmeraldas manchadas e torturadas. Olhos. Os sons e ruídos ao meu redor iam e vinham, como uma estação de rádio sem boa recepção. Vozes indistintas, sinos, sirenes? Luzes coloridas.

De repente, as árvores sumiram e, acima de mim, restou apenas o céu branco e o rosto com esmeraldas no lugar dos olhos. Elas pareciam se mexer, embora o rosto permanecesse parado, flutuavam na pele extremamente pálida, criando riscos e padrões que me hipnotizavam.

– Julieta – a voz chamou meu nome de novo, mais perto dessa vez, mas os lábios no rosto acima de mim não se mexiam.

As sensações começaram a se perder, a se confundir. O frio era a única coisa que permanecia, envolvendo-me como um manto de gelo. Não me incomodava mais. Eu o recebia, o acolhia. Era a única coisa que eu sentia, a única coisa que me segurava na consciência.

E nem ele me manteve consciente por muito tempo.

...

Vozes. Luz fluorescente. Desinfetante.

O cheiro me deixou doente. Eu sentia gosto de vômito da boca. Meus lábios estavam rachados e machucavam.

Tudo doía. Eu ouvia gemidos e eram todos meus. Meu corpo estava se partindo. Eu gritei e cuspi sangue.

A dor era insuportável.

E ainda assim, aos poucos ela foi passando. Como o frio. Eu estava envolvida em algodão quente e a dor era uma lembrança no fundo da minha cabeça.

Eu sabia que havia algo que devia me preocupar, afligir. Mas naquele momento, eu só conseguia envolver minha mente no meu próprio sofrimento. E me sentir grata quando ele passou.

...

Eu pensei que teria pesadelos naquela primeira noite. Pensei que não conseguiria dormir nem por um segundo, que tudo o que havia acontecido voltaria para me perseguir até na inconsciência. Mas talvez tenham sido os medicamentos, talvez tenha sido por eu não estar exatamente dormindo, mas sim sem consciência...o ponto é que quando eu abri os olhos, foi como se tivesse acabado de fechá-los, lá fora na chuva.

Mas eu não continuava lá fora. Eu estava num quarto de hospital. Era noite e o lugar estava escuro, com apenas a luz do corredor que parecia se arrastar para dentro pela fresta da porta entreaberta.

Eu havia esperado sentir dor. Mas aqueles médicos deviam saber o que estavam fazendo, porque eu não sentia nada além de um ligeiro desconforto na cabeça. Mas também não era como se eu conseguisse me mexer muito, meus braços e pernas pareciam pesar toneladas, como se houvesse um filhote de elefante sentado em cada um deles. Também não tentei muito, já que eu obviamente estava entalada de analgésicos – graças a Deus por eles – então se houvesse algo quebrado eu só pioraria a situação sem sentir.

Mas eu sentiria. Depois. Eu não tinha nem dúvidas disso.

Meus olhos pareciam inchados e cheios de areia. Não era uma sensação desconhecida. Quem já chorou até dormir várias vezes sabe bem como é. Só que agora parecia intensificado, como se eu tivesse esfregado pedras nos meus olhos ou algo assim. Me entreguei a essa sensação, piscando até que lágrimas involuntárias escapassem, limpando minha visão. Eu ouvia ruídos que vinham do corredor, conversas sussurradas, telefones, carrinhos – ou macas – sendo arrastados. Mas dentro do quarto reinava o silêncio. Até o barulho da chuva – que eu demorei algum tempo para perceber – era fraco. Eu nem conseguia culpar algo por ter me acordado.

Eu simplesmente havia aberto os olhos.

As coisas iam entrando em foco aos poucos. O quarto escuro de hospital, meu corpo pesado que não parecia capaz de se mexer, os ruídos lá de fora, meus olhos doloridos, a chuva. Meu cérebro não era capaz de processar todas essas informações de uma vez, como normalmente. Eu bebia a realidade em pequenos goles, acostumando-me a ela novamente. E apenas essas pequenas coisas já haviam me deixado cansada, como se eu fosse cair de novo naquele sono cheio de medicamentos e livre de sonhos a qualquer momento.

Tentei não mexer minha cabeça, porque mesmo que eu não sentisse no momento, eu sabia que ela estava machucada e queria evitar dor a qualquer custo. Mas meus olhos viajaram pelo quarto onde eu estava e eu finalmente percebi que não estava sozinha. Havia um sofá ao lado da cama onde eu estava, encostado à parede. A fraca luz que vinha de fora e se perdia na escuridão do quarto me permitia vê-lo e a seus ocupantes quase perfeitamente. Dois pares de pernas longas em jeans, que terminavam em sapatos sujos. Dois corpos de garotos, um coberto por o que parecia um cobertor fino de hospital e o outro agarrado em um casaco. Uma cabeça com cabelos lisos e pretos encostada nas costas do sofá numa posição que não parecia nem um pouco confortável; e a do outro garoto, com cabelos cacheados cuja cor era roubada pela pouca luz, encostada no ombro do outro, seus lábios entreabertos tocando o lençol que o outro usava para se cobrir.

Os dois estavam no que parecia um sono profundo, muito longe para perceber que eu os observava. Queria poder mover minhas pernas, levantar daquela cama, queria poder mover meus braços e tocar seus cabelos.

Não queria tirar meus olhos deles, mas minha visão periférica parecia voltar a funcionar aos poucos e algo foi pego nela. Do outro lado da minha cama havia uma cadeira. E nela havia um homem, dormindo como os garotos no sofá, sua cabeça encostada na minha cama, ao lado do meu quadril, sua mão apertada na minha. Eu não a tinha sentido antes, mas agora que o via podia sentir o peso calmante e o calor confortável.

Não sei de onde tirei forças, mas apesar de eu reconhecer que foi um esforço, não pareceu um. Levantei minha outra mão, apoiando meu braço no meu próprio corpo, e passei os dedos levemente pelos cabelos negros do homem.

Ele levantou a cabeça imediatamente e me olhou com brilhantes olhos escuros. E então começou a chorar. Eu não chorei com ele, eu não era capaz, não ainda, mas acariciei seus cabelos enquanto ele apertava minha mão e soluçava, quebrando meu coração.

– Pai – consegui sussurrar. Minha voz era rouca e baixa, e doeu ao sair.

Ele colocou um dedo sobre meus lábios e balançou a cabeça.

– Não fale – ele conseguiu dizer entre soluços. – Você está machucada.

Assenti, eu não sabia o que dizer de qualquer jeito.

Meu pai segurou minha mão com as duas dele e a beijou com carinho. Eu podia sentir as lágrimas na minha pele. Elas não paravam de cair. Seus lábios tremiam, seus olhos pareciam perdidos, como se toda a felicidade tivesse sido arrancada da sua alma. Eu queria poder consolá-lo, queria ser capaz de dizer algo para diminuir sua dor, para fazer ficar tudo bem.

Mas eu não era capaz nem de convencer a mim mesma de que aquilo era verdade.

Tudo não ia ficar bem.

Olhei para Paulo e Gabe, dormindo tão próximos, e nem isso me fez sorrir.

– Eles não te deixaram sozinha um segundo – papai disse, voltando minha atenção para ele. – Os dois realmente amam você.

Eu assenti mais uma vez. Eu sabia disso.

– Acho que isso normalmente seria o pesadelo de todo pai, não é? – falou, tentando rir entre as lágrimas, a cena tão tristemente patética que eu precisei me esforçar para não desviar o olhar. – Mas é um alívio pra mim. Saber que você não está sozinha.

Eu tenho você, quis dizer, mas minha voz não saiu. Mas, talvez pela primeira vez na vida, meu pai pareceu ler meus pensamentos.

– Eu não sei quanto de mim ainda resta – confessou, sem nenhuma sombra de sorriso. – Eu não sei se ainda existe o suficiente de mim para ficar com você. Por você.

Nenhum golpe que meu corpo havia sofrido podia ter machucado tanto quanto aquelas palavras. Eu não era adulta ainda. Para ser sincera, naquele momento, eu me sentia uma menininha, pequena, frágil e assustada. Eu não queria que meu pai chorasse. Eu não queria que ele desistisse de mim.

– Chegar aqui e encontrar o que eu encontrei... – ele não conseguiu terminar a frase. Olhou-me com carinho e passou os dedos por minha testa, como se para afastar o cabelo que não havia mais ali. – Sei que você precisa que eu seja forte, mas tudo parece desmoronar ao meu redor...

Apertei a mão dele que ainda estava na minha, tentando passar o pouco que eu podia de consolo para ele. Não era muito, não podia ser, quando eu mesma precisava ser consolada. Eu não o culpava, no entanto. Ele não podia me oferecer o que não tinha, não podia ser forte por mim quando mal podia ser por ele mesmo. Não era falta de amor, embora para alguém que olhasse de fora, assim parecesse. O amor que ele sentia por mim simplesmente não era invencível.

Poucos amores são.

– Sua mãe... – ele voltou a chorar. Nunca tinha parado, na verdade, mas agora seus soluços eram tão fortes que eu temi que fossem acordar os garotos. – Eu não sabia do que tinha acontecido aqui...eu vim para contar a vocês. E quando cheguei...você tinha acabado de ser trazida para cá.

Eu senti meu coração ser lentamente apertado, como se um punho estivesse ao redor dele, decidido a matar-me lenta, dolorosamente. Certificando-se de que eu sentisse cada segundo de dor, cada momento de desespero.

– Sua mãe sofreu um ataque do coração ontem.

Apertei sua mão e abri os lábios, mas o ar mal parecia passar por eles, muito menos palavras. Meu corpo foi ficando gelado, o terror ultrapassando o entorpecimento dos analgésicos, tocando e abrindo cada ferida, quebrando-me.

– Eu sinto muito – foi a resposta do meu pai à minha pergunta muda.

Destruindo-me.

Talvez fossem os remédios que eu mal sentia, talvez eles fizessem efeito afinal de contas. Talvez fosse simplesmente o choque. Mas eu sentia como se a realidade estivesse se perdendo de novo, como se eu estivesse sendo engolida por escuridão, esmagada por um desespero tão sufocante e escuro que era como se eu estivesse me afogando em água gelada e envenenada.

Eu ainda sentia os dedos gelados do meu pai em minha testa, acariciando-me.

– Minha menina linda – eu o ouvia dizer, a voz tão quebrada como eu me sentia. – Minha menina forte. Você vai sobreviver, não é?

Você vai sobreviver?

...

– Ei, linda, acorda.

Tentei me mexer para longe da voz, mas ela continuava me alcançando, mais perto a cada momento.

Lábios macios tocaram minha testa.

– Vamos, você precisa comer alguma coisa.

Abri os olhos com cuidado, sentindo todo o meu corpo rígido e uma dor fraca e constante na parte de trás da minha cabeça.

– Isso mesmo, abra esses olhos. Eu senti falta deles, sabia?

Minha visão foi entrando em foco e eu pude ver um sorridente Paulo olhando para mim. Seus lábios estavam virados para cima, mas eu podia ver que existiam manchas escuras embaixo dos seus olhos, como se ele não estivesse dormindo direito. Seus cabelos pareciam sujos, como se ele também não tivesse tido tempo para lavá-los.

Seu polegar acariciou minha bochecha.

– Bem vinda de volta – sorriu e algo em seus olhos parecia brilhar. Lágrimas? – Você me deu o maior susto da minha vida.

Tentei falar. Parecia que alguém tinha esfregado um gambá morto na minha boca, mas minha voz saiu mesmo assim, cansada e rouca:

– Foi mal.

Paulo riu e se abaixou para beijar meus lábios ressecados. Mantive-os bem fechados, mas ele não se importou.

– Quanto tempo eu fiquei fora? – perguntei quando ele se afastou.

Seu polegar agora acariciava minha sobrancelha.

– Quase dois dias.

Tentei engolir, minha garganta doía. Aparentemente, os analgésicos estavam começando a sair do meu sistema. Não sabia se ficava feliz por isso ou não. Não queria sentir dor, mas talvez fosse melhor do que ficar apagada e grogue. Eu ainda me sentia um pouco lenta e sem controle do meu corpo e isso me irritava mais que tudo.

– E...e os outros? – perguntei, com medo.

Eu quase não queria saber. Estar de volta à realidade significava estar de volta a uma grande pilha de merda. Que era basicamente a minha realidade.

Mas eu não era mais covarde. Eu não podia ser.

Paulo suspirou e se sentou na beira da minha cama. Sua mão segurou a minha, era quase como se ele não conseguisse ficar sem me tocar, como se estivesse confortando a si próprio e não apenas a mim. Eu quase sorri com esse pensamento.

– Não se preocupe com ninguém – ele falou, segurando meus dedos entre os seus, ignorando completamente o quanto minhas unhas estavam sujas. – Estão todos bem. Todos vão ficar bem.

Fechei os olhos por um momento, sentindo um pouco de alívio entrar no meu organismo. Estavam todos bem.

– O que aconteceu? – perguntei, apertando a mão dele. – Eu lembro de pouca coisa depois que Pietro e Willa saíram de lá.

Paulo balançou a cabeça, lançando-me um olhar que era tudo sobre tristeza e aflição. E amor.

– Vamos deixar isso para depois, ok? Você precisa comer agora, ficar forte. Você teve uma concussão e chegou ao hospital convulsionando. Foi um susto pra todo mundo. Mas os médicos disseram que você vai ficar bem, então vamos nos focar nisso agora, tudo bem?

Balancei a cabeça, mas isso só fez a dor quase esquecida no fundo dela passar para primeiro plano. Gemi e voltei a ficar imóvel, mas falei mesmo assim:

– Eu não vou conseguir fazer nada, me concentrar em nada, enquanto não souber o que aconteceu. Eu não lembro muito...as coisas estão meio borradas. Meio como um sonho.

Ele suspirou de novo e soltou minha mão. Levantou-se e me deu as costas, deixando-me com um frio que não podia ser extinto com nenhum cobertor.

– Eu estava a caminho de casa – falou depois de um tempo, a voz calma e homogênea, como se estivesse livre de qualquer emoção. – Kimak me ligou. Ele estava preocupado porque não conseguia encontrar você. Ele procurou em todos os lugares, mas você simplesmente não estava em nenhum deles. E havia algo que o estava incomodando, deixando-o inquieto. Ele não me disse o que era, mas eu percebi que ele estava realmente aflito. Não pensei duas vezes. Voltei.

Assenti, e me arrependi, eu precisava lembrar que não deveria mexer a cabeça ou a dor iria realmente começar a se tornar insuportável. Não era como se Paulo estivesse vendo, de qualquer jeito.

– Eu recebi uma mensagem do celular dele – falei. – Agora eu sei que não era Gabe.

Paulo não se virou, mas assentiu.

– Demorei um pouco para voltar para a escola. Eu precisei descer do ônibus no meio do nada e esperei muito tempo antes que aparecesse outro. Quando cheguei aqui e encontrei Kimak, ele parecia desesperado. Nós dois percorremos a escola toda, sem sinal de você. Quando finalmente estávamos indo em direção à capela, ele bateu a mão na própria cabeça e saiu correndo para dentro do mato. Eu só pude ir atrás dele.

Dessa vez ele se virou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas não derramadas. Sua expressão era derrotada, destruída.

– Encontramos Pietro e Willa no caminho – falou, a voz embargada dessa vez. – Ele só nos disse pra correr. Pra salvar você – seus lábios tremiam, seus olhos brilhavam. – Eu nunca fiquei com tanto medo na minha vida, Julieta. Eu não sabia o que estava acontecendo, o que eu iria encontrar. Eu só conseguia pensar...eu só conseguia pensar que eu podia perder qualquer pessoa...menos você.

Uma lágrima grossa escapou do seu olho, mas ele não a secou rapidamente, como eu pensei que faria. Ela a deixou escorrer, caminhar por sua bochecha, manchar seu rosto, até pingar do seu queixo. E em nenhum momento tirou seus olhos, aquelas duas esmeraldas manchadas de marrom, dos meus.

– Eu não me importava com mais nada naquele momento. Meus problemas com o Kimak, meu irmão, nada disso importava.

Suas palavras subitamente me lembraram do seu irmão. Sua família precisava dele naquele momento e, no entanto, ele tinha voltado por mim.

– Mas, Paulo, seu irmão – comecei, mas ele balançou a cabeça e me cortou.

– Ele está morto, Julieta. Você não. Minha família vai ter que aprender a viver sem ele. Na verdade, nós já sabemos viver sem ele, já vivemos assim há muito tempo, agora é só oficial. Ele fez uma escolha, no fim, foi ele que nos tirou de sua vida. Mas não me peça pra aprender a viver sem você. Porque isso eu não posso fazer.

Eu estava fraca, mas consegui estender minha mão para ele, que se apressou e a segurou entre as suas. Ele se inclinou e beijou cada um dos meus dedos, como se cada pedacinho de mim fosse precioso.

Eu sabia que para ele era.

– Kimak e eu entramos na casa e...Bianca e você estavam deitadas uma ao lado da outra. Havia sangue por todo lado. S-seu rosto estava coberto dele. Havia sangue em sua cabeça, seus olhos, sua boca...p-por um momento... – ele engoliu, respirou fundo e voltou os olhos para baixo. – Por um momento achei que vocês duas estivessem...estivessem mortas.

Mordi o lábio e apertei sua mão na minha.

– Você não entende, Julieta. Não entende o quanto minha vida esteve perto de acabar. Ali, com você. E então você abriu os olhos e me fitou. E sorriu.

Nesse momento ele caiu de joelhos ao lado da minha cama, escondeu seu rosto no lençol que cobria minha barriga e chorou. Um choro completo, com soluços e tudo. Eu segurei sua mão e acariciei seu cabelo oleoso, sabendo que o amava de qualquer jeito, que o queria de qualquer jeito.

Depois de um tempo muito longo, ele pareceu se acalmar. Voltou a falar, mas não levantou a cabeça nem olhou para mim.

– Pietro já deveria ter chamado ajuda àquela altura, mas Kimak tirou-me do estupor e pegou meu celular, ligando imediatamente para a emergência. Se não fosse por ele, eu nunca teria sabido o que fazer. Ele manteve a calma enquanto eu estava desabando.

Ele parecia desabafar, como se sentisse culpa, quando nada daquilo era culpa dele. E foi exatamente o que eu disse.

– Mas se eu estivesse sozinho, talvez...

– Você não estava. E se estivesse, eu sei que teria conseguido me ajudar. Nos ajudar.

Ficamos calados por mais um tempo. Paulo levantou o rosto e secou as lágrimas. Acabou deitando-se de lado no pequeno espaço que havia na minha cama de hospital. Abraçou-me com uma delicadeza exagerada, mas eu agradeci internamente por isso. Meu corpo todo estava começando a doer. O calor de sua respiração na minha bochecha, no entanto, era como uma benção.

– E agora? – perguntei.

– Pietro e Willa já foram liberados – respondeu. – Ele foi expulso, sabe? Sua irmã também.

– Ela ainda está aqui?

– Sim. Ela teve duas costelas fraturadas. Mas agora está bem.

Assenti e quase me xinguei por isso. Minha cabeça estava começando a latejar.

Paulo passou delicadamente o dedo pelo curativo embaixo do meu olho.

– Você a odeia? – perguntou.

Não precisei perguntar de quem ele estava falando.

– Os Becker vão prestar queixas, você sabe. Ela vai ser processada.

Lambi os lábios e consegui me impedir de assentir.

– Eu estarei ao lado dela quando isso acontecer. Ela é minha família.

Ele expulsou o ar pelo nariz e deu um sorriso triste.

– Eu te amo por isso. E também acho que você é a garota mais idiota do planeta.

Eu sorri e ele beijou a ponta do meu nariz.

– Onde está meu pai? Com ela? – perguntei.

– Não. Ele foi descansar. Não saiu do seu lado um minuto, ele já estava virando um zumbi. Eu prometi que ficaria aqui com você e finalmente o convenci a ir dormir por uma ou duas horas.

– Ele não foi vê-la?

Paulo desviou os olhos.

– Não.

Então ele se levantou e pegou uma bandeja que eu não tinha percebido ao lado da cama.

– Agora você precisa comer.

Ele colocou a bandeja no meu colo e se abaixou para ajustar a posição da minha cama. Eu estava me sentindo incomodada por estar deitada de costas por tanto tempo que foi uma coisa boa estar meio sentada. A comida, porém, não fazia nada por mim.

– Estou enjoada – gemi, afastado a comida.

Paulo fez que não com a cabeça e voltou a se sentar ao meu lado.

– Não interessa, você tem que comer um pouco. Ordens médicas.

Fiz cara feia, mas não teve jeito. Não consegui comer tudo, mas Paulo conseguiu forçar um pouco do purê de batata – que tinha gosto de aveia – pela minha garganta sem me traumatizar para o resto da vida.

Eu não tinha ideia de que horas eram, mas imaginei que devia ser mais ou menos perto da hora do almoço. Agradeci aos céus quando Paulo tirou a bandeja com mais da metade da minha comida intacta de perto de mim. Eu estava me sentindo realmente cansada, como se apenas comer fosse algo comparável a escalar uma montanha. Mas eu não queria dormir. Eu estava cansada de dormir.

Porque quando eu acordasse, ainda haveria aquele meio segundo em que tudo pareceria um sonho. Em que eu poderia fingir que nada daquilo havia acontecido de verdade. E seria mais difícil a cada vez.

– Eu posso me levantar? – perguntei. Talvez se eu andasse um pouco, pudesse expulsar o sono. – Eu preciso ir ao banheiro.

Paulo me olhou com desconfiança, parecendo ponderar se eu estava forte o suficiente para ficar sobre meus próprios pés, mas assentiu no fim.

– Acho que não deve ter problema. Vem, deixa eu te ajudar.

Minhas pernas doíam, minhas costas doíam, minha cabeça doía. Notei marcas de hematomas roxas, vermelhas e pretas na pele dos meus braços. A mais feia delas que eu podia ver era no meu ombro direito. Paulo circulou seu braço por minha cintura e praticamente me carregou até o banheiro, embora eu ainda estivesse com os pés no chão.

Ele me fez apoiar na pia e se virou para fechar a porta. Apertei meus dedos na louça fria e levantei os olhos para o espelho.

Havia um pequeno curativo embaixo do meu olho, onde Bianca havia me cortado com a tesoura, eu já o havia sentido antes de vê-lo. Minha boca parecia deformada. Havia um corte grande do lado esquerdo que começava no lábio superior e continuava no inferior. Esse lado estava inchado e escuro, com sangue coagulado preso embaixo de uma fina camada de pele. Era ume surpresa que não estivesse doendo. Mas minhas dores estavam voltando aos poucos. Talvez eu realmente fosse precisar de mais analgésicos.

Mas o que me chocou realmente foi meu cabelo. Ou o que restava dele, de qualquer jeito. Ele estava completamente irregular, a parte mais comprida, um tufo ao lado da minha orelha direita, não chegava até meu queixo. Passei a mão por toda a minha cabeça. A maior parte pelo menos cobria meu crânio, exceto por um pedacinho perto da nuca, onde havia tão pouco cabelo que eu quase podia sentir meu couro cabeludo através dos fios espetados.

Talvez eu fosse realmente fútil, talvez fosse apenas a última gota de um copo que já estava prestes a transbordar, talvez eu simplesmente não pudesse aguentar mais nada. Eu caí de joelhos, soluçando. Coloquei as duas mãos na cabeça e chorei. Chorei por meu cabelo, por Willa, Pietro, por Gabe, Paulo. Chorei por meu pai e minha mãe. Chorei por Bianca. Chorei por tudo o que havia acontecido comigo desde que minha vida começara a desmoronar até aquele ponto. Chorei por meus anos perdidos, por ter afastado o que restava da minha família de mim, por ter achado que eu estava sozinha no mundo, por ter me sentido como se não pudesse ser amada por muito tempo.

Chorei pelo caminho difícil que tinha pela frente. O sofrimento não havia acabado para mim. Chorei por não saber se conseguiria ser feliz algum dia. Por não saber se minha alma sobreviveria intacta. Eu já tinha sofrido tantos baques na vida. E havia levantado do meu jeito. Eu não sabia se conseguiria mais uma vez.

E então os braços de Paulo estavam ao meu redor, segurando-me, protegendo-me. Ele não disse nada, apenas ficou lá por mim, do jeito que podia, do jeito que estava longe de ser o que eu precisava, mas que aceitava de qualquer maneira.

– E...e s-se eu nunca... – comecei entre soluços, agarrando-me a ele, deixando minhas lágrimas molharem seu ombro. – E se eu nunca conseguir superar isso? E s-se...se isso me destruir pra sempre? Como eu vou sobreviver? Como eu vou seguir em...em frente?

Ele me abraçou ainda mais apertado, machucando minhas recentes contusões, e sussurrou em meu ouvido:

– Quando um osso é quebrado, é sempre no lugar que quebra que se torna mais forte quando recuperado.

Balancei a cabeça, pouco me importando se ela doía ou não.

– Não sou um osso.

Ele beijou minha testa e olhou em meus olhos.

– Tem razão. Mas você vai ficar inteira nem que eu tenha que passar o resto da minha vida segurando seus pedaços.

Eu não sabia exatamente o porquê, mas suas palavras me deram um pouco de conforto. Era como ter algo sólido no qual me apoiar, uma montanha, uma muralha.. Eu podia ser quebrável, mas ele seria indestrutível. Por mim.

Você vai ser feliz?

E, naquele momento, eu fiz uma promessa. Uma que parecia impossível de cumprir, mas eu jurei que a manteria.

Eu sobreviveria.

E seria feliz.

Por que o que mais a vida poderia me tirar? Parecia que eu estava tentando o destino, mas eu não tinha mais medo. Eu não deixaria a dor me enterrar viva. Mesmo que naquele momento eu não pudesse fazer nada para impedi-la.

Eu iria me agarrar no que pudesse. Em quem pudesse. Mesmo que isso fosse fraqueza, eu não iria me importar.

Era o que eu precisava fazer para me manter inteira.

...

– Você tem certeza de que quer fazer isso?

Olhei para o meu reflexo no espelho. Haviam se passado três dias desde que eu havia finalmente acordado de verdade. Luma, Gabe e até Willa haviam ido me visitar. Paulo estava sempre comigo.

Apenas meu pai não tinha aparecido mais. Eu não perguntei por ele também. Ainda esperava que ele fosse surgir pela porta a qualquer momento.

– Eu prometo que não vai ficar feio – Luma falou atrás de mim, com as sobrancelhas unidas e parecendo incerta. – Quer dizer, vou tentar meu máximo

Eu sorri e passei os dedos pelo que havia sobrado do meu cabelo.

– Não se preocupe. Além do mais, isso é exatamente o que eu preciso – respondi. – Vai ser uma coisa boa. Como um novo. Meu último laço com o passado sendo cortado.

Luma não parecia confiar muito em suas próprias habilidades, mas suspirou e pareceu reunir confiança. Pegou a tesoura e foi lentamente cortando meu cabelo bem rente à cabeça, os fios curtos caíam no meu colo e no chão. E com eles, todo um peso que eu não percebia que carregava. Eu não chorei. Eu sorri.

Levou um longo tempo. Aparentemente, cortes de cabelo curtos não eram tão fáceis quanto compridos . Quando Luma acabou e descansou a tesoura na pia, eu me levantei e me aproximei ainda mais do espelho, tentando ver meu novo corte de cabelo por todos os ângulos. Fiquei realmente surpresa por não me achar horrorosa. Era certamente diferente, mas eu sorri para o espelho e percebi que não me incomodava com o corte de menino. Talvez fosse até um alívio depois de anos com cabelos tão compridos.

– Você até que ficou bonita – Luma comentou, se colocando ao meu lado e sorrindo. – Claro que isso é por causa das minhas habilidades fora desse mundo.

Soltei o ar pela boca numa risada debochada e empurrei-a com o ombro.

– Cala a boca, cabeça de açúcar – resmunguei, fazendo-a rir e me mostrar a língua.

Eu ri junto com ela, feliz em notar que as coisas entre nós tinham voltado para o normal. Há dois dias, Luma tinha aparecido no hospital, com os olhos vermelhos e inchados. Ela chorou no meu ombro e me pediu perdão. Disse que no fundo sabia que não tinha sido eu, mas que estava cega pela raiva – por ter sido, em suas palavras, tão estúpida.

– Eu nem gostava tanto do Pietro – confessara, depois de eu tê-la assegurado que não guardava mágoas. – Era só orgulho ferido.

E foi aí que eu descobri quem era o namorado secreto da Luma. Aparentemente era o Pietro, que havia dado um fora nela só para tentar alguma coisa comigo, não porque ele estivesse realmente atraído por mim ou qualquer coisa do gênero, mas só porque ele estava cansado de estar sempre um passo atrás do seu melhor amigo.

No início, achei que tínhamos algo em comum. Eu também sempre vivi à sombra de outra pessoa, sempre a segunda opção...mas eu não quero, nunca quis, machucar ninguém...

E então ele acabou entrando de cabeça nos delírios da Bianca. Claro que eu não podia colocar toda a culpa em cima dela, afinal, ele não tinha sido obrigado. Mas apesar do que minha irmã dissera apaixonadamente na cabana, não era eu a que tinha a maior habilidade para convencer as pessoas. Ela sempre tinha sido a mais charmosa de todas nós.

– Paulo nunca teve muita sorte com melhores amigos, han? – Luma comentara, limpando as lágrimas e tentando sorrir. Percebi de quem ela estava falando.

– Ei! O Gabe é uma ótima pessoa!

– Oh claro, ele só comeu a namorada do melhor amigo e depois...

– Luma! Ele é meu amigo e as coisas não são assim, perfeitamente pretas ou brancas. As pessoas cometem erros sim, não quer dizer que elas sejam ruins.

Ela suspirara e me olhara com algo que parecia pena.

– Está falando da sua irmã, não é?

Foi uma pergunta que eu havia preferido não responder, mas sim, era dela que eu estava falando. Mesmo agora, quando eu já estava quase sendo liberada do hospital, eu ainda não tinha ido vê-la. Eu simplesmente não sabia como fazer isso. Como encará-la. O que dizer para ela.

Como realmente me sentir sobre tudo o que havia acontecido.

Eu sabia que não a odiava. E, como dissera a Paulo, ficaria sim ao seu lado durante os tempos difíceis que a esperavam. Não, eu não a defenderia. Eu só ficaria ao seu lado para ajudá-la a aguentar o que precisasse aguentar. Se ela me permitisse.

Fui tirada das minhas divagações por uma Luma que insistentemente balançava sua palma na frente do meu rosto.

– Terra chamando Julieta. Tá sonhando acordada, menina?

Pisquei e encarei minha amiga, que parecia se divertir com minha falta de atenção.

– Acorda – falou. – Tem alguém aqui pra te ver.

Olhei sobre o ombro dela, para a porta do banheiro, onde meu pai estava parado. Ele parecia exausto. Sua barba – que até pouco tempo era completamente negra – agora era grisalha e precisava ser feita. E ele tinha círculos escuros embaixo dos olhos cansados. Mas mesmo assim, conseguiu forçar um fraco sorriso.

– Estou feliz que você esteja bem, Julieta – falou, sua voz soando tão cansada quanto sua aparência. – E seu cabelo ficou ótimo.

– Obrigada – respondi.

Luma, percebendo o momento estranho, anunciou que ia comprar alguma coisa para comer na cafeteria do hospital.

– Não precisa sair por nossa causa – meu pai falou para ela com o mesmo sorriso fraco. – Eu estava prestes a perguntar se Julieta não gostaria de me acompanhar numa pequena caminhada.

Entortei a cabeça e fui colocar meu cabelo para trás da orelha, esquecendo que não tinha mais necessidade disso.

– Eu só vou ser liberada amanhã, pai – lembrei-o. Será que ele não sabia? – Não posso sair ainda.

– Eu sei, querida. É só até o jardim.

Eu nem sabia que o hospital tinha um jardim. Não havia saído muito do meu quarto naqueles três dias, primeiro porque tudo doía muito no início e, agora que meus machucados estavam melhorando, eu estava dando uma de covarde. Eu nem sabia em que quarto minha irmã estava. Tinha medo de encontrá-la. Ainda não estava pronta.

Mas aceitei o convite do meu pai.

Eu estava usando a roupa do hospital, que era como um roupão – até vinha com uma tira para amarrar na frente – azul claro e muito fino. Luma havia trazido algumas roupas para mim, já que eu sairia no dia seguinte, e eu peguei um casaco longo e grosso, preto com botões grandes. Calcei meus tênis sem meias e segui meu pai para fora do quarto.

Não havia muita gente no corredor, apenas alguns enfermeiros e técnicos. Quase nenhum paciente. Seguimos até outro corredor, um com janelas para o tal jardim. Não olhei direito até chegarmos a uma saída com porta dupla que dava para ele.

Chamar aquilo de jardim era usar a palavra muito livremente. Parecia mais um mini cemitério mal assombrado. Havia grama crescendo desordenadamente e estátuas de santos – algumas sem partes do corpo, como mãos e cabeças – sujas e cheias de limo. Havia um canteiro onde alguém deveria ter tentado plantar algum tipo de flor, mas a chuva constante havia transformado tudo num grande lamaceiro.

Não entendia porque meu pai havia me levado para lá, ainda mais com o frio que estava fazendo. Minhas pernas nuas e orelhas desprotegidas já estavam sentindo a rigidez do clima. Agora era um bom momento para sentir saudade do meu cabelo comprido.

– Onde você esteve, pai? – perguntei, um pouco magoada por ele ter desaparecido.

Para minha surpresa, meu pai me puxou para seus braços e me envolveu neles. Meu pai era alto e, abraçados assim, seus lábios ficavam à altura da minha testa. Ele beijou-a com cuidado, com carinho, e eu deixei.

– Desculpe, eu precisei voltar para casa – falou, ainda me abraçando. Eu já estava abraçando-o de volta. – Precisei ir ver sua mãe. Uma vez você me acusou de não ter estado lá quando ela precisou de mim. Não queria cometer o mesmo erro duas vezes. Eu estou tentando, Julieta. Eu estou tentando.

Meu coração se apertou ao ouvi-lo falar da mamãe. Mas o que ele disse me deixou desconcertada.

Afastei-me lentamente, como que soltando meus braços dele em câmera lenta. Olhei para cima, para seus olhos cansados. Ele passou uma mão pelo queixo e olhou de volta para mim.

– Como assim? – perguntei. O que ele queria dizer com isso?

Papai franziu as sobrancelhas e depois suspirou.

– Você provavelmente não lembra – murmurou, parecendo mais cansado que nunca. – Eu estive aqui na sua primeira noite. Você mal conseguiu abrir os olhos. Sua voz quase não saía. Eu não sabia o quanto de você estava consciente, mas tentei conversar mesmo assim. E eu lhe disse que sua mãe...

– Sofreu um enfarto, eu lembro – completei por ele, ansiosa sem saber por que, as mãos suando e tremendo. – Você disse que ela... – engoli antes de consegui dizer as palavras. – Você disse que ela morreu.

A expressão de horror no rosto do meu pai seria cômica se a situação não fosse tão séria. Ele se aproximou de novo e tomou minhas mãos nas suas. Elas estavam tão frias quanto as minhas.

– Meu amor – falou e em seguida me abraçou de novo, encostando minha cabeça em seu peito. – Eu não disse isso, querida. Eu nem sabia se você estava acordada quando falei sobre o que aconteceu com sua mãe. Você falava como se estivesse sonhando e seus olhos estavam fechados. Minha filha, sua mãe não está morta. Ela não está exatamente bem, mas não vai morrer.

Eu não sabia o que dizer. Eu não conseguia nem pensar. Apenas podia sentir o alívio como se estivesse sendo derramado dentro de mim, preenchendo cada espaço do meu corpo até não deixar lugar para mais nada. Não percebi que estava chorando até que meu pai, com olhos assustados, começou a limpar minhas lágrimas com os dedos. Minhas pernas subitamente não conseguiam mais me segurar e eu escorreguei para o chão frio, sem conseguir parar de soluçar.

Minha mãe estava viva.

Eu...eu ia ter a chance de consertar tudo.

Não percebi que havia dito isso em voz alta até ouvir a voz do meu pai, que se abaixara até ficar com o rosto no mesmo nível que o meu:

– Julieta...querida, isso não muda nada – eu podia ver que lhe doía dizer o que estava prestes a dizer, a expressão atormentada em seu rosto o traía. – Sua mãe continua doente. Ela continua em um mundo que não é o nosso.

Eu assenti, ainda sem parar de chorar, mas mesmo por entre as lágrimas, eu consegui abrir um pequeno sorriso.

– Sim, eu sei, papai. Mas agora ela não vai estar sozinha.

...

Não havia sido fácil tomar aquela decisão.

Nem para mim nem para as outras pessoas envolvidas. Não que elas já soubessem. Mas seria doloroso para elas também, eu sabia. E talvez fosse egoísmo meu, mas um pedaço dentro de mim se alegrava com a certeza de que minha ausência seria sentida.

Sim, eu estava indo embora.

Da escola. Da cidade.

Eu estava voltando para casa.

A casa que eu havia passado os últimos dois anos achando que já não me pertencia. Que não era mais meu lugar. Talvez não fosse. Talvez eu realmente não pudesse chamar aquele lugar de lar.

Mas eu precisava voltar de qualquer jeito.

Eu tinha motivos. Obrigações. Família.

Eu queria voltar.

Eu queria fazer tudo o que devia ter feito quando Sofia morreu. Queria ter pelo menos a chance de tentar consertar o que restava de uma família destruída. A minha família. Eu sabia que era improvável que desse certo, que talvez fosse tarde demais para nós. Sim, eu podia falhar. Mas não era por isso que iria deixar de tentar, não de novo.

Eu era diferente agora. Não como antes da morte de Sofia nem como depois. Eu havia me tornado outra pessoa. Uma Julieta que ainda era nova e desconhecida mesmo para mim. Mas que me fazia ter vontade de gostar de mim mesma.

Eu queria estar lá por meu pai, minha mãe – que por um momento havia pensado ter perdido – e minha irmã. Não era como se eu quisesse passar uma borracha no passado e começar do zero. Nisso eu não tinha mudado, eu sabia que era impossível. O passado estava impregnado em mim até a alma – era parte do que eu me tornara. Eu não podia e nem queria mais mudá-lo.

Era coisa de criança querer transformar o imutável. E eu não era mais criança.

Apoiei-me nos cotovelos e levantei meu corpo, fechando os olhos e oferecendo meu rosto para o sol que surgia aos poucos, atravessando as nuvens pesadas e cinzas. Eu saíra do hospital há uma semana e estava de volta à escola desde então. E em dois dias Bianca sairia do hospital – e iria para casa. Por enquanto. Era provável que ela acabasse numa casa de correção. Ou num hospital psiquiátrico, como nossa mãe.

Eu não sabia o que seria pior.

Ainda não a tinha visto. Papai também não quisera vê-la antes que eu saísse do hospital. Eu perguntara e ele dissera que não sabia se seria capaz de encará-la. De encarar seu próprio fracasso como pai.

Bianca não era o fracasso de ninguém. Ela era uma vítima das circunstâncias que lidou com sua dor da forma que sabia. Foi o que eu dissera a ele, que retrucara, de maneira frágil e insegura:

– Como eu posso ir vê-la quando ela tentou...quando ela fez o que fez a você?

Eu podia não ter respostas para muitas coisas. Mas para essa pergunta eu tinha. Joguei minha cabeça para trás e pedi para meu pai olhar meu pescoço atentamente. Pedi que ele procurasse por um machucado ou cicatriz. Ele disse que não havia nada.

– Bianca estava com a tesoura no meu pescoço bem antes de qualquer ajuda chegar. Ela pode ter me machucado. Mas nunca tentou me matar, se é isso o que você ia dizer – tinha sido a minha resposta.

Ela era tão filha dele como eu e deveria estar tão sozinha e assustada como eu um dia me sentira. Como eu ainda me sentia de vez em quando.

Acho que ele foi vê-la, embora não tenha me dito nada sobre isso, exceto que a levaria para casa quando ela saísse do hospital.

Papai era a única pessoa que sabia que eu ia voltar. Não com ele, mas no mesmo dia. Eu queria sair daquela cidade do mesmo jeito que chegara. Sozinha.

– Desculpe a demora – soou uma voz atrás de mim.

Joguei a cabeça para trás para ver Gabe parado atrás do banco onde eu estava deitada, segurando a tela com uma pintura inacabada.

– Você que insistiu em me pintar com as luzes do nascer do sol e chega atrasado? – provoquei.

– Eu fui pegar uma coisa pra você, menina ingrata – resmungou, colocando a tela no cavalete que eu havia levado para lá.

Sentei no banco, cruzando as pernas em cima dele.

– Ah, é? O quê? – perguntei com um sorriso.

Ele me lançou um olhar sujo antes de esboçar um micro sorriso e abrir a mochila. Jogou uma maçã na minha direção e eu quase não consegui pegá-la.

– Você estava com uma na primeira vez em que eu te pintei – falou.

Eu não lembrava, mas parecia algo importante para ele. Podia ver em seu rosto.

– E por que você não trouxe uma no primeiro dia em que começou a me pintar pela segunda vez? – perguntei, girando a maçã nas mãos.

Ele não respondeu, apenas começou a tirar suas tintas e material de pintura da mochila, arrumando-os organizadamente. Ele havia começado a me pintar de novo no dia em que eu voltara para a Werburgh, e todos os dias antes das aulas desde então. A outra tela tinha sido destruída. Rasgada em pedaços no quarto da minha irmã.

– Eu a comi? – perguntei, fazendo-o olhar para mim, confuso. – A maçã, naquele primeiro dia?

– Não.

Mordi a maçã.

– Você vai embora, não é? – perguntou subitamente.

Eu nem devia ter me surpreendido. Gabe me lia como ninguém.

Mastiguei e engoli antes de dizer.

– Depois de amanhã.

Ele assentiu e então começou a trabalhar. Ele não mais escondia seu trabalho de mim e eu podia ver que estava praticamente acabado. Na verdade, a única coisa que faltava era a maçã.

Em sua tela, eu era apenas eu. Com o cabelo cortado o mais curto que eu podia ser sem ser careca, com um corte que cicatrizava embaixo do meu olho. Eu teria a marca para sempre. Na tela, eu não sorria com os lábios, mas havia algo em meus olhos. Não era felicidade, mas era...acho que uma certa paz.

Eu gostava dessa pintura.

– Eu também vou embora, sabe? – Gabe comentou, sem olhar para mim, ocupado com sua tela. Ele normalmente não falava enquanto pintava. – Quando o ano acabar, eu vou para outro lugar. Qualquer lugar. Sem você, não há nada que me prenda a esta cidade.

Eu não sabia o que dizer. Eu tinha a impressão de que aquela era a última vez que o veria. E tive medo de que lágrimas caíssem por meu rosto e estragassem sua linda pintura.

– Pensei que aquela Anna gostasse de você – tentei fazer uma brincadeira, mas minha voz soou embargada.

Gabe deu de ombros.

– Ela gosta. Mas...não. Não existe mais ninguém. Nunca existirá.

A parte egoísta de mim, a parte que queria Gabe só para ela, sorria e regozijava-se em seu amor. O resto de mim sofria por sua dor.

– E dessa vez não poderei dar isto a você – falou, apontando a tela. – Ela é minha.

Assenti, sentindo que aquilo era, de alguma forma, um último adeus.

...

Willa foi embora naquela tarde. Na verdade, ela já não estava no colégio, só voltara lá com os pais para pegar o que restava de suas coisas. Não nos falamos, apenas nos vimos quando ela entrava na parte de trás do carro dos seus pais. Ela não sorriu para mim nem eu para ela, mas ela levantou sua mão num discreto adeus. Eu fiz o mesmo.

Luma chorou a tarde inteira – principalmente quando eu disse que eu também iria embora.

Paulo precisou voltar para sua casa naquela noite. Sua mãe não estava muito contente com ele. Ou comigo. Não importa que não tivesse sido minha culpa, eu afastei Paulo dela quando ela mais precisava dele. Eu não sabia o que era perder um filho, mas vira o que isso fizera para minha mãe. Não podia culpá-la por eu não ser uma de suas preferidas no momento.

Paulo dizia que isso iria passar. Eu realmente esperava que sim.

No dia seguinte, quando ele voltou, eu estava esperando em seu quarto.

Em sua cama, lençóis de cetim. Na mesa de cabeceira, uma garrafa de champanhe barato num balde de gelo, com duas taças ao lado. Pétalas de flores espalhadas pelo quarto e algumas velas perfumadas aqui e ali faziam o lugar ficar com um cheiro quase enjoativo.

Ele abriu a porta e deu um sorriso triste.

– Eu que deveria ter feito isso para você – falou, colocando sua mochila no chão e vindo até mim.

Eu fiz que não com a cabeça, apoiando-me em seu ombro quando ele se sentou na cama ao meu lado.

– Eu queria fazer algo por você – confessei, aspirando seu cheiro e sentindo o calor do seu corpo em minha pele.

Ele segurou meu rosto nas mãos e me fez olhar para ele.

– Você faz. Todos os dias.

Ele me olhava com todo aquele amor nos olhos. Amor que eu não achava que fosse possível alguém sentir por mim. Ainda me surpreendia e me maravilhada. Eu nunca poderia tê-lo como garantido, como certo. Era como se fosse sempre novo, sempre me pegando fora de guarda, me deixando desconcertada.

Lembrei-me de como ele costumava amar meu cabelo. E de como, quando me viu totalmente sem ele, a primeira coisa que disse foi “você é a mulher mais linda que eu já vi”.

Ele. Ele seria a pessoa mais difícil de deixar. Ele seria quem meu coração seguiria, mesmo quando eu já não estivesse lá. Ele continuaria sendo minha luz, meu farol, iluminando meu caminho até que pudesse voltar para ele.

Porque eu voltaria.

Porque estar longe dele seria como prender o fôlego debaixo d’água. Seria como morrer todos os dias, mortes lentas, mortes rápidas, dolorosas e misericordiosas. Mas mortes mesmo assim.

– Eu sei – ele sussurrou em meu pescoço quando falei. – Eu vou esperar até que você possa voltar para mim. Mesmo que eu já esteja na faculdade. Mesmo que eu tenha me tornado um adulto. Mesmo que eu tenha um trabalho, responsabilidades. Mesmo que eu esteja com oitenta anos e não consiga nem andar. Eu nunca vou desistir de você. Eu te amo.

E, naquela noite, eu soube que tinha feito todas as escolhas certas.

Para ser feliz. Para ser inteira.

Não hoje.

Um dia.


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Notas finais do capítulo

Como se vocês não soubessem que eu ia deixar um final aberto.
Quem leu OAEC sabe que eu tenho um modus operandi. Tudo bem que dessa vez nem foi de propósito, não era assim que eu tinha imaginado terminar Manchas, mas meio que...aconteceu. Na verdade, agora, eu não consigo pensar em outro final.
Espero que vocês tenham gostado.
Muito obrigada por me acompanhar nessa jornada.
Nos vemos no epílogo.
Um dia.



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