Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 39
Capítulo 38


Notas iniciais do capítulo

Hey, to ressurgindo das cinzas, não é miragem! o/
Bom, eu não tenho desculpas pra dar pela minha demora. O negócio é que eu descobri que finalizar Manchas é muito mais difícil do que eu tinha imaginado. E eu fico nessa coisa de querer acabar e não querer acabar...aí não sai nada.
Enfim, eu não sei o que pensar sobre esse capítulo. Ele era pra ser o último, mas ia ficar tão grande que eu dividi em 2. Eu acho que gostei, mas não sei...vou ter que reler amanhã quando eu não estiver caindo de sono.
Um agradecimento especial pra marysgv29 pela recomendação. Muito obrigada mesmo, flor *.*
Boa leitura :3



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Minha cabeça doía. Não só ela, na verdade; meu pescoço latejava e meu corpo parecia ter passado por um moedor de carne. Eu sabia que abrir os olhos só traria mais dor, mas resolvi arriscar mesmo assim, lentamente levantando as pálpebras.

Merda, doía. Voltei a fechar os olhos sem sequer um vislumbre do mundo lá fora, já que a luz parecia enfiar pequenas e afiadas agulhas em minhas órbitas.

– Eu estou fora disso! – ouvi uma voz masculina dizer, frustrada. Mas a voz soava abafada, como se eu estivesse escutando com os ouvidos embaixo d’água.

– Vai se acovardar agora? – outra pessoa perguntou. Outra pessoa que eu não tinha problemas para reconhecer a voz. E foi como sentir mais uma vez aquela pancada na cabeça, mas mil vezes pior. Senti-me nauseada. – Eu devia saber que não podia contar com um idiota como você.

– Nada disso foi como combinamos...eu... – fiz uma nova tentativa e entrecerrei os olhos bem a tempo de ver uma figura familiar passar os dedos nervosamente pelo cabelo liso. – Eu não queria machucar ninguém. Muito menos ela.

A risada da minha irmã machucou meus ouvidos. Eu a ouvira mil vezes antes, mas nunca com aquela ponta tão forte de amargura e rancor. Ódio.

– Ela merece – ela disse, sua voz ainda destilando aquele ódio que me arrepiava até os ossos. Sem me mover, tentei olhar em sua direção, mas meus olhos ainda ardiam e eu não conseguia abri-los direito. Além disso, o ângulo em que eu estava só me permitia ver as costas do garoto. Bianca devia estar sentada no sofá, porque ele olhava para baixo. – Ela matou minha irmã. Ela bem que poderia ter matado minha mãe, seria melhor do que tê-la levado ao estado em que está. Ela destruiu minha família, minha vida. Ela merece toda dor que eu puder infligir.

Eu estava no chão, de bruços. Havia sangue no chão ao lado da minha cabeça e eu tinha fortes suspeitas de que era meu. Minha cabeça doía mais do que eu imaginava possível e eu mal conseguia abrir os olhos, além de me sentir tonta e enjoada.

Merda, eu tinha tido uma concussão.

Mas foi por baixo de toda essa camada de dor, bem fundo mesmo, nos lugares mais frágeis dentro de mim, lugares que já haviam se despedaçado uma vez e que eu havia – contra todas as possibilidades – reconstruído com tanto cuidado, que as palavras de Bianca chegaram. E me fizeram estremecer.

Eu estava tentando não mais enganar a mim mesma. Eu sabia que era uma pessoa egoísta. Eu sabia que, nos últimos anos havia sido ainda pior, pensando apenas em mim mesma, na minha dor, na minha culpa. Eu não tentei alcançar o que restava da minha família, não tentei reconstruir o que eu havia ajudado a desmoronar. Eu apenas me encolhi na minha pequena bolha de penitência e tentei sobreviver.

Bianca tinha quinze anos quando tudo aconteceu. Apenas um ano mais nova do que eu era agora. Até eu podia dizer que não era muita idade. Ainda éramos desesperadamente jovens, ainda estávamos tentando descobrir nosso lugar no mundo, nossa missão na vida. Nossos propósitos, nossos sonhos. Ainda estávamos esboçando o roteiro que iria nos definir. O único problema era que, diferente de um roteiro, não podíamos simplesmente apagar os erros em nossas vidas. Tínhamos que aprender a viver com eles.

Eu havia finalmente entrado em paz com isso. Mas nunca me perguntei se as outras vítimas daquela tragédia haviam feito o mesmo.

Agora eu tinha resposta.

E doía. Mais do que meu corpo enrijecido no chão frio, mais do que a cabeça que latejava ou os olhos que ardiam. Doía.

– E você sabe o que é pior? – a voz de Bianca voltou a preencher o silêncio, a amargura escapando em cada sílaba, fazendo-me tremer de dor e desespero. – Ela sempre foi a que todos amam. A chama que atrai as mariposas e essa merda toda. A preferida. A única para a qual todos os olhos se fixavam – eu podia ouvir, ainda que não pudesse ver, o quanto aquilo a machucava e fazia suas palavras soarem quebradas. – Ela sempre teve tudo. Tudo! Era para o quarto dela que nossa mãe ia todas as noites, acariciar seu cabelo até que ela caísse no sono. Era dos seus talentos que nosso pai alardeava para quem quisesse ouvir. Era para ela que Sofia corria quando precisava confiar seus segredos. Os garotos ficavam comigo porque não podiam tê-la...Você consegue compreender o que é viver toda a sua vida à sombra de alguém?

Apertei os olhos, sei nem saber por que. Não era como se assim as palavras de Bianca fossem sumir na atmosfera. Elas ainda ecoavam nos meus ouvidos, repetindo-se mesmo depois que ela terminara de falar.

Era assim que Bianca me enxergava? Eu nunca me sentira melhor ou mais amada que ela ou Sofia, mas também nunca me sentira deslocada ou diminuída em relação à minhas irmãs. E a dor dela me fazia duvidar de minhas próprias memórias, dos meus próprios sentimentos. Ela estaria certa? Ou sua percepção era distorcida? Como eu podia saber?

A única coisa da qual eu tinha certeza era, suas palavras sendo verdadeiras ou não, aquilo não era algo que eu havia querido. E agora as razões pelas quais Bianca havia disputado Andy comigo eram claras. Se ela se sentia daquele jeito, deveria ter encarado aquilo como perder para mim. De novo.

Mas não era assim!, eu quis gritar. Eu era tão fodida quanto ela, se não mais. Minha mente era uma bagunça e eu não tinha ideia do que estava fazendo na maioria do tempo. Se ela apenas percebesse o quanto eu era odiada ali! Eu não tinha o seu charme natural ou a meiguice de Sofia. Eu era a irmã comum, ligeiramente desordeira e com uma tendência a criar confusão. Eu não tinha nada de especial, nada que me fizesse ser mais amada ou que atraísse as pessoas para mim.

Eu era apenas...eu mesma.

Abri os olhos.

Eu mesma.

– Eu passei a vida inteira tentando ser como ela. Tentando falar como ela, parecer com ela, sorrir como ela. Ser amada como ela. E quando finalmente ela se tornou a ovelha negra da família, senti que havia finalmente chegado a minha vez – Bianca se levantou e eu pude vê-la. Ela chorava. E sorria. – Mas a desgraçada não podia se dar por satisfeita, não podia me deixar brilhar por uma única vez...não, ela tinha que querer voltar a ser a menina de ouro. Fez o homem perfeitinho se apaixonar por ela e resolveu que era hora de se redimir...

– Bianca... – o garoto se adiantou até ela, que se virou subitamente.

– Não! Não! – gritou. – NÃO!

Ele deu um salto para trás e eu estremeci.

Minha irmã está louca.

Risquei o pensamento da minha cabeça tão logo ele apareceu. Não, ela não estava. Ela não estava doente, não como nossa mãe.

Mas então eu lembrei da cena que havia visto logo antes de apagar.

Oh, Deus, por favor, não.

Tinha que ter sido uma alucinação.

– Eu não vou deixar, entende? É minha vez. Minha vez! Quero que Julieta se enterre no esquecimento de novo. Ou eu mesma vou enterrá-la.

As lágrimas pingaram dos meus olhos até a pequena poça de sangue seco no chão, desaparecendo no vermelho como se fossem de fato lágrimas de sangue. Eu sentia como se as estivesse derramando exatamente daquele jeito, sangrando lágrimas.

– Você pirou completamente – ele parecia chocado, assustado até. – Eu não vou compactuar mais com isso, eu pensei que você só queria assustá-las, mas então você prendeu a Willa...

– E o que você queria que eu fizesse? Ela nos viu! – Bianca gesticulava enquanto andava em círculos pela sala. – Ela sabia que éramos nós que estávamos fazendo tudo. Você mesmo me disse que ela viu você atirando as pedras nas janelas do refeitório e por isso você acertou uma nela. Você já a machucou, agora é tarde demais pra esse remorso barato.

Espera aí...eles foram os que quebraram as janelas do refeitório e machucaram a Willa? Mas como...? Por quê? Bianca nem estava na escola naquela época...

Minha cabeça rodava.

– Sim, mas eu disse pra ela que, se contasse algo para a polícia, seria muito pior. Ela é uma coisinha assustada, não faria nada!

Bianca soltou uma risada sarcástica.

– Você é mesmo um idiota, não é? Ela esteve perto de contar para aquela puta de cabelo cor de rosa, mas eu a surpreendi e impedi. Não achei que ela teria a coragem de fazer alguma coisa depois que eu a assustei com meu remedinho, mas estava enganada. Ela teria entregado a gente!

Remedinho? Do que ela estava falando...?

– Espera um minuto...foi você que fez ela passar mal? Você a envenenou?

– Não seja patético. Não foi veneno. Eu não ia matar a desmiolada. Foi só uma coisinha pra assustá-la um pouco, a culpa não é minha se ela só bebe suco orgânico; foi fácil derrubar um pouquinho no copo dela...

Oh meu Deus. Oh meu Deus. Oh meu Deus.

Comecei a ficar ofegante, mas tentei controlar minha respiração e as batidas alucinadas do meu coração para não deixá-los perceber que eu estava acordada.

Eu não podia acreditar. Eu não queria acreditar. Aquela não podia ser minha irmã. A garota com quem dividi uma casa por quinze anos da minha vida, a garota que amei mais do que a mim mesma, que eu vi por muito tempo como uma parte de mim. Sim, o sentimento podia ter se desgastado, desbotado com o tempo e com todos os problemas pelos quais tivemos que passar, mas agora eu percebia que ele ainda estava ali.

Eu ainda amava minha irmã.

E justamente por isso não queria acreditar que ela fizera aquilo.

Mais uma vez, a imagem que me saudou quando entrei na cabana veio à minha cabeça.

Willa, suja de sangue e obviamente fraca, com os braços amarrados atrás de si e os pés amarados juntos, olhando com súplica para o garoto alto que parecia se inclinar para ela, com dor e angústia nos olhos.

– Ela vai me matar – ela havia sussurrado, os olhos apavorados fixos em mim, antes que alguém, eu suspeitava que tivesse sido a própria Bianca, acertasse minha cabeça.

Não, ela não faria isso. Eu apostaria minha vida que ela não seria capaz...

– É isso, estou fora! – os dois continuavam discutindo, mas agora eu não prestava total atenção. Minha cabeça estava rodando, com a dor e tudo que eu havia escutado, eu ainda estava nauseada e, ao mesmo tempo, tentava encontrar um jeito de escanear o lugar à procura de Willa. Ela tinha que estar ali em algum lugar.

Eu estava rezando por isso. Deus nunca foi de me escutar, talvez por eu nunca ter realmente acreditado nele, mas agora eu acreditava. Ou pelo menos, eu estava tentando meu máximo e rezava com uma vontade que nunca tinha tido antes. Eu precisava acreditar em alguma coisa, qualquer coisa, que me desse forças para sair dali. Precisava acreditar que Willa estava bem. E que alguém daria por minha falta e iria me procurar.

Gemi internamente ao lembrar que isso não seria muito provável. Luma voltara a me odiar, agora com até mais fervor que antes, e Paulo não estava na escola. Ainda que estivesse, dificilmente me procuraria, por ainda pensar que eu era a pior criatura do planeta. Além disso, nenhum dos dois sabia sobre aquele lugar.

Exceto...

Gabe.

–... e não foi para isso que eu assinei meu nome – o garoto dizia e eu finalmente voltei a prestar atenção na conversa, ainda que meu cérebro continuasse a formar mil e um estratagemas para resolver aquela situação. Sem sucesso. – No início, achei que tínhamos algo em comum. Eu também sempre vivi à sombra de outra pessoa, sempre a segunda opção...mas eu não quero, nunca quis, machucar ninguém...

– Ótimo! – Bianca gritou, gesticulando violentamente com as mãos. – Vá embora e seja o covarde que sempre foi, sempre à sombra daquele idiota que anda atrás da minha irmã como um cachorrinho.

Ele balançou a cabeça em desgosto, olhando para ela com tanto desprezo que até eu estremeci.

– E você ainda se pergunta por que sua irmã é tão mais fácil de amar? – perguntou.

Bianca congelou. Parecia como se cada partícula do seu corpo tivesse parado no tempo e, apesar do ângulo que eu estava não permitisse que eu visse seus olhos, eu quase podia sentir a intensidade do seu olhar no garoto. Ele continuou:

– Eu vou levar Willa comigo. E vou voltar para pegar a Julieta antes que você faça algo pior do que já fez, que machuque mais alguém.

E aí ele cometeu o erro de dar às costas a ela.

Tudo aconteceu muito rápido. A primeira coisa foi o alívio que eu senti quando ele mencionou Willa; o que queria dizer que ela estava ali e – a minha mente finalmente me permitiu pensar na palavra – viva. Mexi a cabeça, ignorando a dor lancinante e a onda de náusea que isso me causou, tentando procurar por ela. Avistei-a não muito longe de mim, encostada contra a parede, suas mãos ainda amarradas, embora os pés estivessem livres. Seus tornozelos tinham marcas vermelhas que sangravam um pouco. Foi só o que eu pude notar antes que encontrasse os olhos dela por uma fração de segundo antes que ela os desviasse para a cena atrás de mim e soltasse um grito agudo e assustado.

Virei-me na mesma hora, apenas para ver que Bianca havia pegado a pá de ferro da lareira obsoleta e a tinha preparada para atingir...

– NÃO! – ecoei o grito de Willa, mas já era tarde demais. – CUIDADO!

Pietro caiu no chão com um barulho surdo.

Minha irmã o tinha matado.

...

Ok, ele não estava morto.

O alívio que eu senti era sem precedentes, tão forte quanto a náusea que me atacou, forçando-me a me apoiar precariamente em meus braços fracos e colocar para fora o conteúdo do meu estômago. Que era pouquíssima coisa, o que só tornava a situação mais dolorosa e o gosto em minha boca, mais amargo.

Bianca havia atingido o garoto com força nas costas; ele se mexia, mas não havia conseguido se levantar e começara a tossir com força. Willa começou a soluçar bem alto atrás de mim, falando coisas que nem chegavam a ser coerentes. A menina estava apavorada.

Eu também.

Depois de vomitar, ainda tremendo e sentindo o suor frio descer por minha testa (ou aquilo era sangue? Pensei que já estivesse seco), forcei-me a levantar a cabeça e encarar aqueles olhos que eram tão familiares quanto os que eu via no espelho todos os dias.

Exceto que eram olhos que eu nunca vira antes. Não daquele jeito. Nunca.

Talvez eu estivesse sempre tão presa em meu próprio mundinho egoísta. Talvez ela fosse simplesmente boa em esconder o que sentia, o que era. O fato era que, nunca antes em toda a minha vida, eu tinha sido fitada com um ódio tão profundo, tão intenso, tão gelado que ameaçava consumir a todos naquele inferno.

– Que bom que acordou, irmãzinha – sua voz soava tão gelada quanto seu olhar. – Acho que chegou a hora de termos uma pequena reunião familiar.

Engatinhei até o sofá e tentei me levantar. Não foi fácil. Minhas pernas pareciam feitas de chumbo e não me obedeciam; além do mais, eu ainda estava usando minha capa de chuva molhada e enlameada, o que me fez escorregar algumas vezes enquanto eu tentava ficar de pé. Consegui, com dificuldade. Willa continuava chorando e agora Pietro gemia no chão, os olhos apenas semi abertos.

– O que você fez, Bianca? – não consegui impedir a pergunta, que saiu no momento em que voltei a olhar para ela.

Era assustador o quanto éramos parecidas. Eu costumava adorar aquilo quando criança. Era como se eu tivesse uma irmã gêmea. Sofia era bem parecida conosco num primeiro olhar, mas não como Bianca e eu. Éramos o retrato vivo uma da outra, principalmente agora que ela deixara os cabelos crescerem tanto quanto os meus.

Foi então que eu reparei que ela os havia cortado.

Exatamente como Luma cortara os meus, um pouco acima da cintura, dando mais forma aos cachos. Era realmente como olhar num espelho.

Eu passei a vida inteira tentando ser como ela. Tentando falar como ela, parecer com ela, sorrir como ela. Ser amada como ela.

Aquilo era Bianca tentando parecer comigo?

– O que eu fiz? – ela riu, mas o brilho nunca alcançou seus olhos cinzentos e gelados. – Nada de mais, eu presumo. Nada pior do que você já fez. Pelo menos eu não matei ninguém – sua voz pingava sarcasmo e ela não tirou o sorriso do rosto. Por algum motivo, aquele sorriso me deixou arrepiada.

Simplesmente não parecia normal.

Minha irmã não está louca, repeti em minha mente. Era impossível.

Mas a alternativa não era nada agradável também. Eu não sabia o que era pior. Meu coração parecia se contorcer.

– Eu não matei a Sofia, Bianca – me forcei a dizer e minha voz falhou ao dizer o nome de Sofia.

Percebi que aquela era a primeira vez que eu dizia as palavras em voz alta.

Eu não matei Sofia, minha irmã mais nova. Eu não a matei. Meu coração ainda batia com fúria, minhas pernas ainda pareciam incapazes de suportar meu peso se eu não estivesse me apoiando no sofá, minha cabeça ainda doía como o inferno e minhas mãos ainda suavam de medo e angústia, mas dizer aquelas palavras em voz alta, ouvir a verdade desprender-se da minha língua...isso me fez sentir um pouquinho melhor e eu repeti, dessa vez sem hesitar.

– Eu não matei nossa irmã.

O sorriso de Bianca morreu na hora e suas mãos apertaram o cabo de ferro da pá da lareira com tanta força que os nós em seus dedos se tornaram brancos. Ela ficou lívida, mas nem a falta de cor em seu rosto mascarou sua fúria.

– Por que negar agora? – perguntou, tentando soar leve e falhando. – E para mim? Eu sei o que você fez. Você sabe o que fez. Você destruiu nossa família.

– Bianca, eu – comecei, mas ela bateu com a pá na parede com tanta violência que eu estremeci.

– Você matou a nossa irmã! – gritou, completamente transtornada. – Não era o bastante ter tudo, você ainda tinha que destruir o pouco que eu tinha!

– Ela era minha irmã também! – não consegui me impedir de retrucar, embora minha voz não tivesse a veemência da dela. Pontos pretos brilhavam em minha visão e eu estava com medo que fosse desmaiar. – Eu a amava tanto quanto você! E sinto a falta dela todos os dias!

– ENTÃO POR QUE VOCÊ A MATOU?

– EU NÃO A MATEI!

Estávamos as duas arquejantes e nossa respiração era quase visível mesmo dentro da cabana. Só agora eu percebia que fazia um frio lancinante ali dentro e achei que eu devia estar mesmo mal, se não havia notado antes. Eu não queria nem saber como devia estar lá fora. Eu me sentia mais fraca a cada segundo e não sabia quanto tempo eu aguentaria de pé. Eu precisava fazer Bianca voltar aos seus sentidos e ter certeza de que Willa e Pietro estavam seguros.

Eu ainda não sabia quais eram meus sentimentos sobre o garoto, mas eu não queria vê-lo machucado. Seriamente machucado. Eu queria ter tempo para pensar sobre tudo quando todos estivessem a salvo.

– Bianca – eu comecei, me acalmando e tentando usar minha voz mais tranquilizadora. – Eu acho que você deveria largar isso – acenei em direção à pá que ela ainda segurava.

Seus dedos pareceram afrouxar um pouco, mas ela nunca soltou o pedaço de ferro. Ela só me fitou, ainda com a respiração em jorros como se tivesse corrido uma maratona.

Eu me sentia exatamente igual.

– O que você acha que vai acontecer aqui? – perguntei, quando ficou claro que ela não diria nada. – Você não pode estar querendo levar isso adiante. Isso é sério, Bianca. Não é uma brincadeira. Você sequestrou uma pessoa.

Isso fez com que ela tivesse uma reação. Ela gargalhou. Jogou a cabeça para trás e riu como se fosse realmente engraçado, o que fez com que um arrepio percorresse minha pele gelada.

– Eu nunca pensei que esse dia fosse chegar – ela falou, ainda com a sombra da gargalhada em seus lábios. – Depois da delinquente desajustada que você se tornou nos últimos anos, acho que é a última pessoa que pode falar nesse tom comigo – ela voltou a rir, mas foi um som seco dessa vez. – Eu já disse, é tarde demais para querer voltar a ser a Santa Julieta.

Eu respirei fundo, sem saber como lidar com aquilo, o que dizer, o que fazer. Os soluços de Willa haviam diminuído até desaparecer. Eu queria muito me virar para ver como ela estava, mas não queria dar as costas para Bianca nem por um segundo – e não me permitia pensar na razão para isso, apesar de saber que o sangue seco no chão era meu e ela o derramara. – Pietro havia se arrastado para o canto onde eu estivera antes, mas não parecia como se ele pudesse se levantar; temi que houvesse quebrado alguma coisa, mas estava aliviada por ver que ele não perdera a consciência e seus olhos acompanhavam nossa discussão. Eu tinha certeza que ele estava prestando bastante atenção. Esperava que ele estivesse pensando em algo para sair dali, mesmo que sozinho. Era uma pessoa a menos com que me preocupar.

– Vamos voltar pra escola – pedi, ignorando a isca que obviamente Bianca queria que eu pegasse. Eu não iria voltar a brigar com ela, não enquanto estivesse tão fraca a ponto de mal conseguir me manter de pé. – Vamos conversar sobre tudo isso lá.

Ela balançou a cabeça de um modo quase triste.

– Não, irmãzinha – ela falou em voz baixa. – Não posso. Eu tenho uma promessa a cumprir. E eu não vou sair daqui sem completá-la.

Promessa? Do que ela estava falando? Eu estava tentando manter meus pensamentos bem enterrados dentro de mim até que eu pudesse ter tempo para analisá-los. Eu não podia me dar ao luxo de me distrair quando todas as minhas energias deveriam estar voltadas a sair dali e não desmaiar, o que eu pressentia que aconteceria logo. Eu aumentara a pressão dos meus braços no sofá, precisando usar os dois agora para conseguir me manter de pé. Meu equilíbrio era parco e eu balançava ligeiramente antes de conseguir mantê-lo. Apesar de já ter vomitado, a náusea era quase esmagadora.

– Que promessa? – consegui perguntar, minha voz saindo tão fraca quanto eu me sentia, embora não tivesse certeza se queria saber a resposta.

Pela primeira vez naquele dia, o olhar que eu via nos olhos da minha irmã não eram gelados como um iceberg. Ela parecia triste, mas resignada. Mais que isso, ela parecia determinada.

– Você realmente não entende, não é? – ela falou baixinho, desviando os olhos para além de mim antes de voltar a me fitar. – Você nunca entendeu. Mesmo nos últimos anos, quando você não era nada para ninguém, você continuou tendo aquele arzinho de quem tem tudo resolvido.

Arzinho de quem tem tudo resolvido? Eu era a maior bagunça do planeta! Eu não tinha ideia do que fazia em noventa e nove por cento das vezes! Não, eu não tinha ideia do que fazia o tempo todo! Eu estive tão perdida por tanto tempo que havia questionado tudo, principalmente a mim mesma.

Não consegui organizar minha mente rápido o suficiente para dar uma resposta.

– Você sempre foi a que nunca precisou de ninguém, mas tinha todos ao seu redor mesmo assim – Bianca continuou, mais para si mesma, quase como se eu não estivesse lá. – Sempre foi impossível atingi-la.

– Você me atingiu.

Ela soltou mais uma vez aquela risada seca que eu odiava.

– Você acha que eu algum dia quis aquele garoto? Ele não era nada para mim. Você era. Eu o queria porque ele queria você. Eu o queria porque você o queria.

Eu não sabia o que dizer, então novamente não disse nada. Minhas pernas balançaram mais uma vez, quase sem forças.

– Eu não queria estar perto de você de novo – Bianca confessou, os olhos rapidamente se enchendo de lágrimas que ela se recusava a derramar. – Eu queria continuar acreditando que você estava sozinha, exilada nesse lugar, longe de tudo e todos. Eu gostava de fingir que você nunca existiu. E estava tão feliz sozinha com o papai. Pela primeira vez, eu fui a única. Pela primeira vez...eu fui você.

Suas palavras quebravam tudo que eu havia construído com tanto cuidado. Ou melhor, reconstruído. Apenas suas palavras pareciam estilhaçar a felicidade que havia brilhado para mim naquele lugar, destruía a paz que eu pensara ter alcançado.

– E eu prometi a mim mesma, no dia que Sofia morreu, que eu nunca deixaria você ter isso de volta. Que você nunca seria a única de novo. Nunca seria amada de novo.

As mãos de Bianca ainda apertavam a pá da lareira e eu, mesmo com a visão falhando, notei que ela voltara a segurar aquilo tão fortemente que parecia doloroso.

Aquilo não ia acabar bem.

Expulsei o pensamento da minha cabeça no momento em que ele surgiu. Eu não podia me dar ao luxo de ser negativa. Eu não podia sequer pensar em tudo aquilo direito. Eu precisava sair dali.

Mesmo com tudo o que eu estava sentindo, consegui submergir das minhas próprias dores o suficiente para lançar um rápido olhar para o garoto loiro que continuava quieto no canto. Pareceu para mim que havíamos trocado um longo olhar, embora tivesse sido uma coisa de meros segundos.

Ele estava bem. E eu esperava que ele tivesse me entendido. Eu queria que ele pegasse Willa e desse o fora dali, enquanto eu distraía minha irmã.

E para isso, eu precisava enfurecê-la a tal ponto que ela não notasse os dois saindo.

Aquilo não ia acabar bem.

Mente traiçoeira.

Mas ela havia me dado uma ideia. Eu não sabia se funcionaria, mas não tinha tempo nem forças para pensar em outra coisa.

– Você pode tentar, Bianca – comecei, tentando soar arrogante e confiante, mas falhando. Eu soava cansada. Esperava que só as palavras fossem o bastante para empurrá-la. – Mas não importa se passar a vida tentando, nunca vai ser como eu. Nunca vai falar nem sorrir como eu. Nunca vai ser amada como eu – joguei as palavras que ela havia dito mais cedo para Pietro, tentando inflamá-la, fazê-la perder totalmente o controle.

Parte de mim nunca iria me perdoar por isso.

Já não havia sangue nenhum em seu rosto para perder, mas se fosse possível, eu diria que ela tinha ficado ainda mais pálida. Seus olhos se apagaram, quase como se a própria vida os houvesse abandonado. Não eram mais meus olhos, eu mal os reconhecia.

Não, isso era mentira. Eram os olhos que eu costumava ver no espelho logo depois da morte de Sofia. Olhos vazios, mortos. Era quase como se não houvesse nada lá dentro.

Eu tirei uma das mãos do sofá e cambaleei, conseguindo ficar em pé por algum milagre. Soltei meu cabelo do rabo de cavalo e rapidamente busquei a mecha cor de rosa perdida entre os meus fios negros. Segurei-a entre os dedos e a trouxe para frente, mostrando-a para Bianca.

Lembrei de sua reação ao ver que Luma havia cortado meu cabelo. E era impossível não perceber que agora ela tinha o mesmo corte. Era impossível não passar por memórias dos últimos anos e não notar que ela se parecia mais comigo a cada dia. O corte de cabelo, as roupas, os trejeitos.

Ela não queria ser como eu. Ela queria minha vida.

– Você nem mesmo se parece comigo – consegui cuspir.

Eu não sabia se ia funcionar, mas foi o que bastou. Bianca gritou como se os cães do inferno estivessem atrás dela e veio para cima de mim. Pietro correu para Willa enquanto eu tentava desviar da minha irmã. Ela golpeou com a pá contra mim, mas eu consegui me jogar no sofá e escapar do pior; o golpe, porém, acertou minha perna com tanta força que a ponta enferrujada da pá cortou através dos meus jeans. A dor foi súbita e aguda, fazendo-me gritar. Mas consegui me recuperar bem a tempo de usar a outra perna para chutar Bianca no joelho, impedindo-a que voltasse a tentar me machucar. Ela caiu no chão com um gemido. Virei-me rapidamente para trás e vi Pietro liberando os pulsos de uma miserável Willa. Ele foi rápido e logo a puxou pelo braço – tomando cuidado para evitar os pulsos machucados –, levantando-a. Ela cambaleou e quase caiu, mas ele a segurou pela cintura e começou a quase arrastá-la para fora, parando apenas para me lançar um olhar angustiado.

– Vai! – eu gritei. – Corre!

Bianca viu os dois e começou a se levantar para impedi-los, mas eu me joguei sobre ela, sentindo minha visão escurecer por um momento. Caímos em cima de uma das cadeiras da mesa, minha irmã pegando a maior parte do impacto. A madeira velha quebrou com um barulho alto. Eu me virei para o lado, saindo de cima de Bianca, resfolegando e tentando, sem sucesso, encontrar forças para me levantar. Esperava que Pietro e Willa já estivessem correndo de volta para a escola.

– Oh não, nem pense nisso – minha irmã disse ao me ver tentar levantar. Ela não estava tão machucada quanto eu, mesmo que tivesse recebido a maior parte do impacto. – Você não vai fazer isso comigo. Eu não vou permitir!

Ela me acertou um soco. Ao contrário de mim, Bianca não sabia dar um soco, então ela colocou o polegar apertado entre a palma e os dedos e machucou a si mesma tanto quanto a mim. Virei para o lado e cuspi o sangue que encheu minha boca quando o punho dela acertou meus lábios, ouvindo os lamentos de dor dela ao meu lado. Pietro e Willa não estavam em lugar nenhum à vista.

Bianca levantou, eu não a vi, mas ouvi os ruídos. Nem tentei levantar, apenas vomitei mais uma vez antes de sentir minha irmã voltar e me puxar pelos cabelos para longe da minha sujeira. Lágrimas involuntárias se derramaram dos meus olhos com a dor e fui inútil ao tentar impedi-la de me imobilizar, sentando-se em minhas costas e prendendo meus braços com suas pernas. Virei o rosto, sentindo o sangue misturado com o vômito escorrendo pelo lado da minha boca.

Ela tinha uma tesoura nas mãos.

Comecei a gritar e me debater, mas estava tão fraca que não fui capaz de me libertar. Tinha a sensação de que minha cabeça tinha aberto e meu cérebro escorria por ela até o chão. Rapidamente, Bianca agarrou a maior parte da mecha cor de rosa do meu cabelo, com tanta força que achei que ela a arrancaria ao invés de cortar. Comecei a chorar quando ela encostou a tesoura tão perto do meu couro cabeludo que eu sentia o frio do material contra ele quando ela cortou a mecha ofensiva.

Achei que ela pararia por ali, mas aparentemente Bianca tinha perdido todo o controle e eu não conseguia fazer nada além de me contorcer, berrar e chorar enquanto ela começava a cortar todo o meu cabelo.

– Como você se sente agora, irmãzinha? – perguntou com uma voz assustadoramente satisfeita, agora passando a parte afiada da tesoura contra minha bochecha úmida.

– Bianca – eu consegui dizer, embora minha voz falhasse tanto entre meus soluços que era praticamente ininteligível. – Para, p-p-por favor. Para!

Ela pressionou o objeto com mais força, cortando minha pele, logo abaixo do olho, fazendo-me gritar de dor até que minha garganta também entrou para a lista de partes do meu corpo que doíam tanto que eu não conseguia parar de chorar em desespero.

– Sofia implorou também, Julieta? – Bianca perguntou, encostando seu rosto no meu, esfregando sua bochecha em meu sangue como se sentisse prazer com isso. – Ela também pediu para você não machucá-la?

Ainda estava chovendo lá fora e, apesar de eu sentir que tinha se passado uma vida, Pietro e Willa tinham saído há apenas alguns minutos. Estavam ambos machucados. Até encontrarem alguém que viesse me ajudar...meu coração congelou.

Bianca não faria isso. Ela era minha irmã. Meu sangue. Ela não podia me odiar tanto assim. Ela não podia se odiar tanto assim.

Ela não destruiria nossas vidas.

Ela não podia.

Como se lesse meus pensamentos, ela se ergueu e voltou a passar a tesoura por meu rosto, até descer ao meu pescoço, deixando o aço acariciar minha pele suavemente.

– Talvez eu devesse fazer com você o mesmo que você fez com Sofia – comentou de forma tão neutra como se estivéssemos conversando sobre a prova de trigonometria. – Talvez haja certa justiça nisso. Talvez seja o que eu deva fazer...

– Bianca! – eu chorei, minha voz agora era tão rouca que eu tive medo de ter danificado minhas cordas vocais. – Bianca, não faz isso! Bianca, por favor, Bianca...

Ela segurou-me pelos meus cabelos – agora muito mais curtos do que já haviam sido um dia – e bateu minha cabeça contra o chão. Tudo ficou preto por um segundo, mas eu me recusei a desmaiar. Pisquei até que as coisas começaram a clarear um pouco, mas um zumbido no meu ouvido me impedia de ouvir o que Bianca dizia.

Senti que ela saía de cima de mim, mas não consegui mover um único músculo para sair dali. Eu já estava perdendo a luta contra a inconsciência. Pisquei e quando entreabri os olhos de novo, minha irmã estava deitada ao meu lado, sua mão ainda segurando a tesoura contra meu pescoço.

Ninguém chegaria a tempo. Quando finalmente aceitei isso, senti que relaxava. Ou talvez fosse por causa da minha concussão. Eu já não sentia meus braços e pernas.

E tinha começado a não me importar.

– Eu não matei a Sofia – sussurrei, mas não consegui ouvir nem minha própria voz, então não tinha certeza se ela teria ouvido.

Depois do que me pareceram horas – e não os segundos que deveriam ter sido de verdade – Bianca empurrou a tesoura contra minha garganta. Eu não sentia mais nada e mal via qualquer coisa. Logo depois ela soltou o objeto, que caiu no chão embaixo de mim.

Ela chorava.

A porta atrás dela se abriu e minha última visão, antes do mundo escurecer ao meu redor, foi a de dos dois garotos que possuíam meu coração entrando na cabana em uma nuvem escura.

Mas eu não sabia mais dizer se aquilo era realidade ou sonho.

Provavelmente era um sonho.

No meio de um pesadelo.


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Notas finais do capítulo

Eu não revisei, PERDÃÃÃO, então qualquer erro, por favor me avisem.
Vou tentar não demorar no próximo, até porque é, definitivamente, o ÚLTIMO CAPÍTULO DE MANCHAS (vou ter um troço, eu sei disso).
Já respondi a uma página de reviews do capítulo passado e respondo o resto no sábado, amanhã a vida vai ser um caos (hoje né, são 4 da manhã, Julia).
Comentem, a história tá nos seus últimos suspiros!
Beijos e até o próximo :*