Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 37
Capítulo 36


Notas iniciais do capítulo

Lá vem a autora capa de pau...
Mas antes tarde do que nunca, né?
Então, vou logo agradecer às duas leitoras maravilhosas que recomendaram: rosy silva e trappedbird, vocês são lindas, muito obrigada!
E bom, sei que faz um mês e vinte dias que eu não posto, mas é que tá difícil mesmo. Além de estar sem inspiração pra terminar Manchas, tenho outros problemas e tals :((
Mas gostei muito de escrever esse capítulo e espero que vocês gostem dele também. Btw, eu dividi ele em dois, então, contando com esse, serão 3 capítulos pro final, ok? - eu acho...hsuaheuahs
Boa leitura (:



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Era o que aquela escola havia se tornado.

Os alunos estavam espalhados pelo pátio enquanto a diretora chamava-os em pequenos grupos ao refeitório – que havia se transformado em uma espécie de centro de operações ou sei lá o que – para questioná-los sobre o paradeiro de Willa. Qualquer informação era útil.

Os colegas de quarto e os amigos íntimos dela tinham sido, obviamente, os primeiros com quem a diretora quisera falar. Eu estava no grupo, assim como Luma, Paulo, Victor, Maya, Rob e Yuri. Mas nenhum de nós a tinha visto no dia anterior e Luma achara que ela tinha decidido passar o final de semana em casa, como era comum. E uma ordem dos seus pais, depois de tudo o que havia acontecido no colégio.

Sem poder ajudar mais, fomos dispensados. A polícia já havia sido acionada e os pais dos outros alunos, avisados. A maioria dos estudantes iria para casa depois de conversarem com a diretora e muitos pais já estavam ali, ansiosos para levarem seus filhos. Apesar de a principal suspeita da polícia ter sido fuga – era o que os policiais sempre pensavam quando o caso era uma jovem adolescente de classe média alta desaparecida, principalmente se ela estudasse em um colégio interno – os pais dos alunos estavam assustados e queriam seus rebentos por perto.

Eu não os culpava. A situação toda era enervante.

De fato, Willa tinha que ter ido para casa na sexta feira. E seus pais esperaram por ela, que não apareceu. Tentaram ligar várias vezes, mas seu celular estava desligado. Ligaram para a escola, que afirmou que ela não estava ali – já que eles nos fazem assinar uma maldita lista todas as vezes que saímos da escola e o nome de Willa estava lá, prova de que ela tinha ido embora.

No dia seguinte, os pais notificaram a polícia e foi quando essa loucura toda começou. Luma acordara por algum motivo naquela manhã e percebera que seu celular estava descarregado e, quando o ligara, vira o milhão de chamadas perdidas e mensagens dos pais de Willa. Afinal, Luma era sua melhor amiga.

Melhor amiga que tinha sido levada para a enfermaria depois de passar quase uma hora chorando histericamente. Mas eu não tinha ideia de como eles iriam acalmá-la. Duvidava seriamente que a enfermaria da escola tivesse rivotril em seus suprimentos médicos. E o medicamento usual para qualquer emergência médica nas enfermarias das escolas em que eu havia estudado sempre tinha sido gelo, trinta minutos de descanso em uma maca dura e, com sorte, uma aspirina.

Uma aspirina dificilmente acalmaria Luma.

Eu estava sozinha num banco do pátio. Bom, não inteiramente sozinha, já que o pátio estava lotado, mas não havia ninguém no meu banco além de mim. Todos os outros alunos estavam discutindo baixinho em pequenos grupos por ali, mas não havia ninguém do meu próprio grupo.

Ainda era estranho pensar que eu fazia parte de um.

Paulo e Vicentini estavam ajudando a diretora no refeitório, Maya e Yuri haviam acompanhado Luma até à enfermaria e eu não tinha ideia de por onde andava Gabe. Havia deixado duas mensagens de voz no seu celular e tinha sido sumariamente ignorada.

Apoiei a cabeça na mão e soltei um suspiro que era uma mistura de aflição e um pouquinho de tédio. Eu não era insensível, ok? Era claro que eu me preocupava que minha colega de quarto estivesse desaparecida, mas não era como se nós fôssemos Tweedledee e Tweedledum. Eu nem gostava muito dela e tinha certeza de que ela não ia com a minha cara também. Isso não queria dizer que eu queria que alguma coisa ruim acontecesse à garota, só queria dizer que eu não iria me jogar da ponte por isso. E só me parecia hipocrisia agir como se meu melhor amigo tivesse morrido quando eu mal havia trocado duas frases com a garota. Uma coisa era Luma cair no choro, outra era umas garotas do primeiro ano – que eu duvidava que um dia tivessem sequer olhado para Willa – fazerem o mesmo.

Além do mais, ela provavelmente devia ter fugido com um motoqueiro ou algo assim. Não que esse fosse o tipo de comportamento que qualquer um pudesse esperar dela, mas seria emocionante. Eu, pelo menos, acharia o máximo se ela tivesse feito alguma coisa do tipo.

Considerei a possibilidade de voltar ao meu quarto, afinal eu tinha sido acordada mais cedo que de costume, era sábado e eu estava um caco. E possivelmente eu seria apedrejada se caísse no sono ali.

No entanto, resolvi esperar mais algum tempo para ver se alguém aparecia com notícias. Estava tentando conter um bocejo quando vi algo esquisito com o rabo do olho. Achando que provavelmente era o sono me pregando peças, virei-me lentamente para a esquerda, onde duas pessoas estavam discutindo meio escondidas atrás de uma árvore.

Levantei-me e fui me aproximando vagarosamente, com medo que me percebessem. Ainda estava meio longe, mas ao dar mais dois passos, pude perceber que não era o sono coisa nenhuma. Bianca sorria daquele jeito malicioso que normalmente reservava apenas para mim e arqueava uma sobrancelha com seu jeito debochado, e seus braços estavam cruzados em seu peito.

– E o que você quer que eu faça? – ela perguntou, com uma voz que, pela primeira vez, me dava arrepios por ser tão parecida com a minha.

Do lugar onde eu estava, eu não podia ver o rosto de quem falava com ela, mas eu sabia quem era. Eu o reconhecera de longe e, mesmo se não tivesse, sua voz era inconfundível quando disse:

– Você sabe o que eu quero.

Antes que ele continuasse, eu acabei pisando num graveto e, mesmo não estando tão perto deles, como ambos estavam isolados, escutaram e se viraram para mim na mesma hora.

Falei mentalmente todos os palavrões que eu conhecia e alguns que eu nem tinha certeza do que significavam.

Bianca não pareceu surpresa, apenas dirigiu aquele olhar debochado que antes estivera em Gabe para mim.

– Bom – falou, se aproximando. – Talvez eu deva deixar os namoradinhos sozinhos pra conversar.

Sem olhar para Gabe e devolvendo o que eu esperava que fosse um olhar a altura da minha irmã, respondi:

– Ele não é meu namorado.

Bianca riu e se aproximou até tocar meu ombro, então encostou a boca na minha orelha e sussurrou:

– Tem certeza que ele sabe disso? – e depois passou por mim, indo embora.

Não me virei para vê-la ir, em vez disso fixei meu olhar em Gabe, que parecia transtornado. Seus olhos escuros não encontraram os meus e seus cabelos estavam bagunçados, como se ele tivesse passado os dedos por eles repetidas vezes.

– Gabe, o que foi isso? – perguntei, nervosa. – O que você estava falando com a Bianca?

Gabe não me respondeu nem olhou para mim. Ele apenas ficou ali, parecendo extremamente aborrecido e preocupado.

– Gabe! – chamei, me aproximando.

Isso fez com que ele me fitasse, mas seus olhos não eram os de sempre, quentes e acolhedores. Mas estavam cheios de raiva e nervosismo.

– Preciso da sua permissão para falar com outras pessoas agora? – perguntou com rispidez.

Ao ver minha expressão, que provavelmente mostrava dor e incredulidade, que era o que eu estava sentindo, seu olhar se suavizou um pouco.

– Depois falo com você, Julieta – disse, não tão ríspido dessa vez. – Tenho coisas para fazer – e, com um último olhar, saiu correndo pelo mesmo caminho que Bianca, para o pátio onde eu estivera há alguns minutos.

Durante alguns minutos, fiquei apenas ali parada, estática, olhando Gabe se afastar até perdê-lo de vista em meio aos outros alunos. Eu não entendia o que podia ter acontecido para que ele falasse daquele jeito comigo e, pior, estivesse de segredinhos com minha irmã.

Quando havia repensado minha vida, quando finalmente havia conseguido colocar um ponto final na culpa que me corroeu por anos, eu havia pensado também que podia ter um novo começo com Bianca. Claro que eu imaginava que seria difícil e constrangedor no início, mas não tinha pensado na extensão do ódio que minha irmã sentia por mim. Eu não entendia como ela podia me odiar tanto, mas começava a perceber que eu não era muito melhor que ela.

Todos os bons sentimentos que eu tinha por Bianca eram por causa de memórias. De coisas que haviam acontecido há muito tempo. Eu tinha amor por aquela irmã que era a terceira parte do nosso pequeno trio. Da jovem Bianca.

O que eu sentia por a Bianca que conhecia agora, talvez nem pudesse explicar. Eu sabia que não era ódio, muito menos desprezo. Mas era quase...indiferença. Por mais que eu quisesse, eu não conseguia pensar naquela garota que tinha o meu rosto como minha irmã. Ela não era nada para mim, além de algo com que me preocupar – não por ela, mas por mim.

Então, se eu era capaz de me sentir assim sobre ela, era tão inacreditável assim que ela pudesse me odiar?

Eu estava surpresa e machucada, mas por causa de Gabe. Eu não o queria perto de Bianca. Sim, era egoísmo meu e ele tinha toda razão, eu não podia escolher suas companhias ou não me tornaria muito melhor que Paulo logo que entrei na Werburgh. Mas isso não dizia que eu tinha que gostar de ver meu melhor amigo conversando com alguém que me detestava.

E que tinha um histórico de colocar as pessoas contra mim.

Derrotada e ainda cansada, resolvi ir de uma vez para o quarto. Se alguém tivesse alguma notícia, podiam me procurar lá ou me ligar. Tinha acabado de atravessar o pátio – arrastando os pés – e estava no caminho para o dormitório, quando vi Luma um pouco mais a frente.

– Ei! – chamei, fazendo-a se virar.

Sua aparência estava péssima. O rosto muito pálido e seus olhos ainda estavam inchados e vermelhos, prova clara de que ela havia chorado. Além disso, seu sempre arrumado cabelo estava todo arrepiado, a raiz loira já começando a aparecer e o rosa começando a desbotar.

– Tudo bem? – perguntei ao me aproximar, mesmo que fosse uma pergunta idiota.

Ela fez que não com a cabeça.

– Eu odeio a enfermaria – falou com voz fraquinha. – Só quero ir pro quarto.

Eu assenti e passei um braço por sua cintura, para apoiá-la – já que ela parecia prestes a cair – e confortá-la ao mesmo tempo. Eu não era muito de tocar as pessoas – claro, com exceções –, mas só me parecia certo naquele momento. Luma parecia precisar de um abraço.

Chegamos ao nosso quarto e ela se jogou em sua cama. Estava usando tênis, uma calça jeans e uma camiseta qualquer, o que não o seu normal. Luma era a garota que sempre se preocupava em parecer impecável.

Fui até a cama onde ela estava deitada de bruços e tirei seus tênis, colocando-os ao lado da cama. Puxei seu grosso edredom e a cobri. Então, tirei meus próprios tênis e fui até a janela, fechando a cortina. O quarto ficou numa penumbra agradável e eu voltei até a cama de Luma, deitando-me ao lado dela. Depois de alguns minutos, quando eu já estava quase dormindo, senti seu braço passando por minha cintura e seu rosto apoiado em meu ombro.

Senti as suas lágrimas silenciosas em minha blusa.

– Obrigada – sussurrou.

Afaguei seu cabelo e dormi.

...

Horas depois, já acordadas, Luma e eu estávamos tentando nos distrair. Mesmo que fosse contra as regras da escola, havíamos pedido uma pizza e eu fora até o portão para buscá-la. E, enquanto comíamos, Luma preparava a tinta para o seu cabelo. Eu tinha prometido ajudá-la.

– Você não quer me deixar cortar o seu cabelo? – perguntou, limpando as mãos engorduradas na calça.

– Não – respondi imediatamente.

Ela fez um biquinho de indignação.

– Ah, vai! Eu sou muito boa! – insistiu. – Sou sempre eu que corto o cabelo da...

Parou de repente e eu soltei um palavrão internamente. Claro que ela ia falar da Willa. E tudo o que eu queria era que Luma relaxasse e esquecesse da melhor amiga por um tempo. Nós não podíamos fazer nada, exceto esperar por notícias.

– Tudo bem – me surpreendi ao concordar. – Mas se você fizer merda, eu te mato.

Luma ficou um pouco animada e, depois de ajudá-la a passar aquela nojenta tinta rosa por todo o seu cabelo, ela pegou uma cadeira e a levou até o banheiro. Eu a segui e ela me fez sentar na cadeira, de frente para o espelho.

– Seu cabelo é lindo, Julieta – falou, enquanto borrifava água nele para umedecê-lo. – Só é exageradamente longo e tá na cara que você não cuida dele.

Ela tinha razão. Meu cabelo já chegava aos quadris, mas não porque eu gostasse dele assim tão longo, era apenas que, por muito tempo, eu não havia me incomodado com a aparência o suficiente para cortá-lo.

Luma foi ao quarto e voltou rapidamente com uma escova, um pente e uma tesoura. Começou a pentear meus fios com a escova até que desfez todos os nós, mas quando ia pegar a tesoura, eu me lembrei de pedir:

– Não corta muito.

Ela me olhou inquisidoramente. Eu já havia revelado que não cortava o cabelo por pura preguiça e porque não me importava muito.

– Paulo gosta de cabelo comprido – respondi, corando um pouco.

Luma riu e murmurou algo sobre garotas que vivem para agradar os namorados, mas assentiu e logo fios negros começaram a cair no chão.

Confesso que estava um pouco temerosa e não confiava nas habilidades da minha colega de quarto, mas logo relaxei. Luma obviamente sabia o que estava fazendo e, algum tempo depois, meu cabelo continuava comprido, mas não exageradamente como antes. Ela o deixou um pouco acima da cintura e cortou-o de maneira que dava mais forma aos meus cachos. Eu não lembrava de já ter visto meu cabelo tão bonito e sorri, agradecendo-a.

– Mas sabe o que faria seu cabelo ficar ainda melhor? – ela perguntou e eu neguei com a cabeça.

Ela apontou para o próprio cabelo, ainda emplastrado de tinta rosa.

– Nem pensar! – falei na hora, levantando-me e começando a limpar a sujeira que havíamos feito.

– Vamos, Julieta, só uma mecha!

Ela implorou tanto que acabou me convencendo a descolorir uma pequena mecha perto da minha nuca. Depois ela passou o que havia restado na tinta que tinha usado em si mesma e depois foi lavar a cabeça. Demorou tanto que eu fui logo depois dela e acabei tomando um banho completo.

Quando saí, coloquei uma calça de moletom velha e uma camiseta qualquer e voltei pro quarto, onde Luma me esperava com o secador. O seu próprio cabelo já estava brilhantemente rosa e perfeito. Suspirei, mas me sentei na cadeira e a deixei secar meu cabelo, que agora tinha uma mecha rosa escondida na parte de trás. De fato, era fácil não percebê-la, porque eu tinha muito cabelo e só ficava bem visível se eu fizesse um coque ou um rabo de cavalo.

Depois que terminamos, eu fui jogar a caixa de pizza no lixo do dormitório enquanto Luma guardava seu arsenal de beleza. Logo que voltei fui conferir meu celular – como havia feito pateticamente o dia todo – só para me decepcionar mais uma vez. Nenhum sinal de vida de Paulo ou Gabe.

Era muito estranho, nunca passávamos tanto tempo sem nos falar. E depois do que havia acontecido com Gabe mais cedo...

Uma batida na porta tirou-me dos meus pensamentos e desviei os olhos do celular para ver Luma abrindo a porta.

Para a minha irmã.

Bianca estava sorrindo daquele jeito que tanto me enervava quando entrou no quarto, mas ao me ver, seu sorriso desmoronou.

Pela primeira vez, desde que havia entrado naquela escola, vi Bianca perder aquela fachada de controle e deboche que sempre estava sobre ela. Dos seus olhos desprendia uma raiva tão crua, tão incontrolável, que eu cheguei a recuar um passo antes de me dar conta de que estava fazendo isso.

– Você cortou o cabelo? – perguntou, a voz soando tão errada quanto seu olhar.

Sem saber o que a havia feito ficar daquele jeito, apenas respondi:

– Cortei.

Bianca apertava os punhos com tanta força que eu tinha certeza que suas unhas estavam quase cortando suas palmas. Mas então, tão rapidamente como veio, sua raiva pareceu desaparecer.

Ou talvez, ela apenas era muito boa em escondê-la.

– Ficou ótimo – elogiou com a voz agradável e vazia que me dava arrepios.

Pude ver que, atrás dela, até Luma fitava minha irmã com os olhos arregalados.

– O que você quer? – perguntei finalmente.

Bianca foi até a cama recém arrumada de Luma e se sentou como se fosse a dona do lugar. Cruzou as pernas e se inclinou para trás, apoiada nas mãos.

– Papai me ligou – respondeu. – Ele queria saber se nós gostaríamos de ir pra casa, depois de todo esse...problema que aconteceu hoje.

Vislumbrei Luma olhando minha irmã com ódio, ainda na porta, ao ouvi-la se referindo a Willa como problema.

– E o que você disse? – questionei, querendo acabar logo com aquela conversa e fazê-la ir embora.

A verdade era que, não importava o que Bianca tivesse dito, eu não pretendia voltar para casa. Depois dos pequenos e frágeis passos que papai e eu estávamos começando a dar na direção um do outro, eu achava que dificilmente ele me obrigaria a ir embora se eu não quisesse. Isso só me faria voltar a detestá-lo.

– Eu disse que queria ficar – Bianca respondeu, sorrindo de canto. – Disse para ele que as coisas aqui estavam ficando finalmente...interessantes. E que tinha quase certeza que você concordaria comigo.

Eu não sabia nada sobre as coisas estarem ficando interessantes, mas ela tinha razão quanto a ficar e nisso eu concordava.

– Ok, se era só isso, você já pode ir embora – disse numa voz fria que surpreendeu até a mim mesma.

O mais estranho era que essa voz havia sido minha voz de todos os dias durante dois anos. E apenas há algumas semanas eu havia parado de soar como se tivesse engolido uma pedra de gelo. E só percebia isso agora que voltava a falar friamente.

Quase sorri. Aquela parecia a última barreira derrubada.

Mas não foi o que pareceu para minha irmã.

– Oh, então finalmente a doce Julieta está mostrando as garras? – perguntou, debochada. – Eu sabia que a fachada de boa moça não ia durar para sempre.

Respirei fundo, tentando me controlar. Bianca sempre dava um jeito de entrar debaixo da minha pele e me fazer ficar furiosa.

– Bianca, só vai embora, por favor – pedi, mas meu tom não era agradável.

– Ou o quê? – ela perguntou, se acomodando ainda mais na cama de Luma. – Você vai me botar pra fora? Ou vai chamar aquele seu namoradinho pra isso?

Certo, ela tinha conseguido.

Fui até ela, as mãos em punhos.

– Fora! – gritei.

Ela fingiu bocejar.

– Grita mais alto. Talvez assim o tal do monitor possa escutar a prostituta dele.

Eu não sabia o que havia dado em mim. Em um segundo eu estava encarando aquele rosto tão parecido com o meu e, no outro, Bianca e eu estávamos rolando pelo chão entre socos e tapas, depois que eu havia acertado seu rosto. Bianca chutou minha canela e conseguiu se colocar em cima de mim, prendendo meus ombros no chão. Ignorei a perna latejando, usei minhas unhas para arranhar seus braços e mordi seu ombro. Ela gritou e eu dei uma joelhada em seu estômago. Tentei me levantar, mas ela puxou meu cabelo com tanta força que eu caí de costas, lágrimas nos olhos.

– Cadê o seu dono pra te proteger, cachorrinha? – murmurou enquanto tentava acertar meu rosto.

Puxei o rosto de Bianca para o meu e bati com minha testa em seu nariz. Imediatamente, o sangue começou a escorrer dela, sujando meu rosto e minha blusa. Minha visão ficou meio torpe por alguns segundos, por causa da pancada.

– Puta! – gritou, caindo para trás e segurando o nariz.

Eu não percebi que estava indo na direção dela para continuar a briga até que Luma me segurou.

– Para com isso! – gritou. – Não vale a pena e você vai ser expulsa.

Soltei-me dela e retruquei:

– Não se mete!

Bianca continuava no chão, tentando estancar o sangramento do seu nariz.

– Você tá fora de si! – Luma gritou de volta. – Sei que ela é insuportável, mas a garota é sua irmã!

Esfreguei as mãos no rosto, tentando limpar o sangue de Bianca.

– Você não sabe nada sobre nós duas – cuspi, literalmente, o sangue dela que havia caído em minha boca.

Bianca, do chão e com a voz anasalada, mas ainda cheia de deboche, disse:

– Não, mas você está dando a ela um super intensivo sobre as irmãs Trenton.

Virei-me para Bianca e gritei:

– Eu não me chamo Trenton!

– Ah é, esqueci que você ostenta cheia de orgulho o sobrenome de uma mãe que te odeia.

– Cala a boca!

– Toda as vezes em que eu acordo de manhã e lembro que não tenho uma mãe, tenho você pra agradecer.

Aquilo me atingiu com mais força que um soco. Eu quase podia ver o ar saindo dos meus lábios, deixando-me sem fôlego. O sangue ainda corria quase fervendo em minhas veias e meus olhos ardiam, mas eu não iria chorar.

Eu não deixaria que ela me atingisse.

– E todas as vezes que eu olho para você, lembro que matei a irmã errada – falei com desprezo.

Bianca riu, mas Luma olhava para nós duas com surpresa e assombro.

Peguei meus tênis do chão e me virei para ir embora, mas Luma puxou meu braço.

– Ei, pra onde você está indo? – perguntou.

Eu puxei meu braço dela e continuei indo para a porta.

– Julieta, acho que você devia ficar e tentar resolver as coisas com...

Não a deixei acabar e virei, falando:

– Nem se atreva a dizer que eu tenho que ajeitar as coisas com essa daí! Você não sabe como é! Você nem tem irmãs!

Luma me fitava com um misto de preocupação e raiva.

– Talvez não de sangue, mas Willa é como uma irmã pra mim...

– É, pena que, até onde a gente sabe, ela pode estar morta agora – joguei na cara dela e, sem parar para ver sua expressão de dor, fui embora.

...

Começava a escurecer e eu estava andando pela propriedade da escola. Não queria ir para o pátio principal, certa de que ainda havia gente ali. Pensei em ir até o chalé, mas estava cansada e machucada depois de toda aquela briga. Então só fui andando sem rumo.

Parei quando cheguei até o complexo das piscinas. Um vapor suave saía da piscina coberta, fazendo-me lembrar de quando vira Paulo nadando ali numa manhã, no que parecia ser anos atrás.

Aproximei-me, instintivamente sabendo que a pessoa ali era ele. O lugar estava úmido e o vapor era quente. Eu nem percebi que estava com frio – afinal saíra sem casaco e calçara os tênis sem meias na porta do dormitório – até que aquele calor úmido me envolveu, fazendo meus dedos formigarem.

Como da única outra vez que o vira ali, Paulo nadava furiosamente, parecendo deslizar sobre a água de uma maneira que eu achava fascinante. Era quase como se aquele fosse seu verdadeiro habitat. Paulo sempre havia sido gracioso, mas na água atingia outro nível completamente.

Fui lenta e silenciosamente até o ponto mais baixo da arquibancada e me sentei para admirá-lo. Paulo nadou por mais uns vinte minutos e, durante todo esse tempo, eu sabia que ele era consciente da minha presença, embora não tenha levantado a cabeça uma só vez. Finalmente, no meio da piscina, ele parou. Sua respiração saía em baforadas e era óbvio que ele tinha abusado dos seus músculos. Balançou a cabeça, fazendo várias gotas saltarem dos cabelos molhados e então olhou para mim.

Foi o que bastou para me fazer levantar e, sem pensar duas vezes, tirar a camisa, deixando-a cair na arquibancada. Eu tinha finalmente encontrado outro sutiã limpo, o que era bom porque eu ainda não tivera tempo de lavar roupa, e estava usando-o. Era branco e simples – eu nunca tinha sido uma garota muito ousada, do tipo laços e rendas, com roupas de baixo.

Sentir seu olhar sobre meu corpo era mais eficiente que o vapor da piscina aquecida para me esquentar. O sol já havia se posto completamente e lá fora era estava escuro como breu. As únicas luzes acesas ali eram as de dentro da piscina, que davam uma luminosidade fantasmagórica ao lugar. Chutei os tênis dos pés e estremeci quando pisei descalça no chão gelado. Apressei-me e tirei a calça do moletom, ficando apenas com meu sutiã branco que não combinava com a calcinha preta.

Eu não estava nem aí.

Fui até a piscina e me sentei na borda, colocando as pernas dentro da água. Fechei os olhos ao sentir o calor se fechar em minha pele. Dois segundos depois, Paulo estava bem na minha frente. Puxou minhas pernas até que eu caísse totalmente na piscina, com apenas a cabeça para fora. Seus braços imediatamente se fecharam em minha cintura e meu corpo foi puxado para o dele.

Abracei-o, sentindo o calor da água quente e do seu corpo. Sua respiração úmida no meu pescoço me deixava arrepiada e senti seus dedos em meu cabelo.

– Você cortou o cabelo – não era uma pergunta.

Seus dedos então encontraram a mecha rosa e passaram delicadamente por ela.

– Obra da Luma – confessei e, no momento em que disse o nome dela, uma onda de culpa surgiu sobre mim.

Eu tinha sido ridiculamente dura com ela. Luma, que estava muito abalada por causa de Willa e que não tinha nada a ver com meus problemas com Bianca, e que só tentara ajudar.

Eu precisaria me desculpar.

Paulo beijou minha bochecha suavemente e se afastou apenas o suficiente para olhar meu rosto.

– Eu gostei – falou, uma de suas mãos saindo de minha cintura para acariciar meu rosto. – Mas esse é o menor comprimento que seu cabelo vai ter. Eu amo que seu cabelo seja tão comprido.

Uma parte de mim queria dizer que quem decidia o tamanho do meu cabelo era eu, mas a verdade era que eu não me importava nem um pouco. E se ele gostava das madeixas de Rapunzel, não era nenhum sacrifício agradá-lo.

– Onde você esteve o dia todo? – perguntei, e embora quisesse completar “e por que não atendeu minhas ligações?” pensei que soaria muito possessiva. Por isso preferi dizer outra coisa. – Ajudando a madre superiora?

Ele negou com a cabeça, encostando-me contra a borda da piscina e continuando a acariciar meu rosto e meu cabelo.

– Só de manhã – respondeu. – Quando eu estava indo procurar você para irmos almoçar...minha mãe veio aqui.

Arregalei os olhos.

– Ela quer que você vá para casa? – perguntei, surpresa.

Ele apertou os olhos por um momento e parecia realmente...angustiado.

– Sim, mas não por causa do sumiço da Willa.

– Por que então?

Paulo não respondeu. Segurou-me mais forte contra ele e me beijou. Imediatamente entreabri os lábios para aceitar seu beijo, sentindo sua língua no meu lábio inferior. Mas diferente de todos os nossos outros beijos, eu podia sentir que meu monitor não estava ali. Não estava se entregando totalmente. Era como se ele estivesse me beijando apenas para fugir da pergunta.

Afastei-me lentamente dele, separando nossos lábios, e o fitei com olhos preocupados.

Ele suspirou e finalmente disse:

– Você lembra que eu falei para você sobre meu irmão mais velho?

Assenti. Tinha sido há muito tempo, mas eu lembrava.

– Sim. Lucas, não é? O que foi embora?

Ele assentiu.

– Bom, ele foi encontrado.

Segurei seu rosto entre minhas mãos para fazê-lo me encarar e sorri.

– Mas isso é uma coisa boa, não é? – perguntei estupidamente.

Paulo não falou nada por um momento e segurou minhas mãos entre as suas, tirando-as do seu rosto. Seus olhos pareciam vazios.

– Ele está morto.

Senti como se meu estômago caísse aos meus pés. Eu não conhecia o garoto, eu nunca nem havia visto o rosto dele. Mas ele era irmão do garoto que eu amava. Um irmão que ele obviamente amava. Mesmo que tivesse sido há muito tempo, eu lembrava do carinho e da admiração com que Paulo falara de Lucas.

Ele até havia dito que nós éramos parecidos...

Passei meus braços por seu pescoço e o abracei. Apertei-o com toda a força que possuía, quase machucando a mim mesma. Paulo ficou parado, os braços soltos na água, por apenas um minuto. Logo, ele me apertava tanto contra si quanto eu.

– Ligaram de um hospital. Encontraram o número da mamãe entre as coisas dele – falou e sua voz soava quebrada. – Disseram que ele foi esfaqueado numa briga...nós tínhamos ideia de que ele não devia estar metido em coisa boa, mas...

Acariciei seus cabelos molhados e beijei seu ombro e pescoço, querendo consolá-lo, tirar um pouco da dor dele. Eu era especialista em dor, especialmente naquela dor, a de perder alguém que você ama. Eu era tão acostumada com aquilo, que feliz e voluntariamente me ofereceria para sentir o que ele estava sentindo em seu lugar.

Mas eu sabia que era impossível. Eu vivia dizendo que Paulo era inocente, que a vida era doce demais com ele. E quer saber? Eu teria dado qualquer coisa para que ela continuasse sendo.

– Por que você não chora? – perguntei, surpreendendo a mim mesma, quando percebi que ele só ficava calado, agarrado a mim.

– Porque se começar, tenho medo de não conseguir parar – respondeu sinceramente, fazendo meu coração apertar.

Ficamos abraçados por muito tempo. Eu não saberia dizer quanto, mas simplesmente não queria soltar meu monitor. E sentia que ele não queria me soltar também. Eu sussurrava baixinho em seu ouvido, palavras de consolo sem significado nenhum, e acariciava seu rosto e cabelos. Depois de todo esse tempo, Paulo, lentamente, afastou o rosto do meu.

– Tem outra coisa que eu quero te dizer – falou, a voz soando rouca por ter ficado tanto tempo calado.

Assenti e esperei para ouvir o que ele diria.

– Depois que minha mãe veio me dizer isso – começou e sua voz ainda soava fraca, mas ele parecia determinado a controlá-la e fazê-la firme. – Ela me pediu para voltar para casa. Amanhã ela vai até o hospital para...reconhecer o corpo e depois vamos ter que providenciar tudo para o enterro...

Vendo como aquilo tudo era difícil para ele, coloquei um dedo sobre seus lábios, para impedi-lo de falar, mas ele o tirou e pediu:

– Não, me deixa falar.

Beijei delicadamente seus lábios.

– Tudo bem – sussurrei, embora me machucasse muito vê-lo daquele jeito.

Ele respirou fundo e continuou:

– Eu disse que iria amanhã. Hoje eu tinha algo para resolver aqui.

– O quê? – perguntei.

– Fui falar com o Gabriel.

Se ele tivesse dito que havia colocado uma bomba no colégio, eu não ficaria mais surpresa. Tudo bem que ele tinha me dito que tentaria fazer o esforço de entender o Gabe, de conversar com ele, mas eu não esperava que fosse tão cedo. E, principalmente, depois de receber uma notícia daquelas.

Paulo pareceu perceber a surpresa em meus olhos, porque logo completou:

– Eu não pretendo voltar a ser amigo dele nem nada assim. Isso está perdido para nós. Mas...mas saber que Lucas morreu me fez perceber o quanto a vida é frágil. E eu devo aproveitar as oportunidades que ela me oferece. Eu...eu percebi que não queria morrer sem finalmente me acertar com alguém que foi meu melhor amigo por muitos anos.

Meus olhos estavam cheios de lágrimas, enquanto os de Paulo estavam apenas molhados pela água da piscina. Meus lábios tremiam e eu não sabia o que dizer.

– Ele me falou toda a verdade, Julieta – disse, passando o polegar pelos meus lábios trêmulos. – E eu acredito nele. Não posso voltar a ser amigo dele, mas posso perdoá-lo finalmente por uma morte que não foi culpa dele.

As lágrimas finalmente escaparam dos meus olhos ao mesmo tempo que um soluço saía de minha garganta. Voltei a abraçar Paulo, apertando meu rosto em seu peito, soluçando.

– Eu não posso pedir mais nada – consegui murmurar, embora minha voz saísse estranha por causa dos soluços. – Obrigada, obrigada, obrigada...

Ele acariciou minhas costas e meu cabelo, mantendo-me presa em seus braços.

– Confesso que boa parte do motivo para ter ido procurá-lo foi você.

Levantei os olhos para vê-lo, sua expressão ainda séria e triste me comovia.

– Eu percebi que posso trancar um passarinho numa gaiola e prendê-lo comigo para sempre – sussurrou, os olhos fixos nos meus. – Mas eu não posso esperar que ele seja feliz. Eu quero prendê-la para sempre a mim, Julieta. Tanto que dói. Mas mais do que isso, eu quero que você seja feliz. Eu quero fazer você ser feliz.

Meu sorriso foi trêmulo e misturado com minhas lágrimas.

– Você me faz feliz – consegui dizer num fio de voz.

Ele negou com a cabeça, uma de suas mãos na parte de baixo das minhas costas e sua outra segurava meu rosto com delicadeza.

– Não é isso que eu quero ouvir de você – falou. – Não hoje.

A confusão deve ter se mostrado em meu rosto, porque ele explicou:

– Diz que me ama. Minta, se quiser, mas por favor, apenas hoje, diz que me ama.

Mais lágrimas se acumularam em meus olhos.

A última barreira.

Não tinha sido aquela.

Era essa.

– Não vou mentir, Paulo – sussurrei, sem parar de olhá-lo nos olhos e vendo sua dor.

Antes que ele pudesse se afastar, eu o impedi.

– Eu te amo – disse, finalmente.


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Notas finais do capítulo

Se tiver algum erro, por favor, me avisem!
Beijos e até o próximo (: