Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 27
Capítulo 26


Notas iniciais do capítulo

Não morri yeey o/
Então, em primeiro lugar, tenho quatro pessoas muito fofas pra agradecer aqui. A Malura, por ter tão lindamente recomendado a fic (que linda, amei muito *.*), ao Tsukasa, pelos reviews INCRÍVEIS que tem mandado *.*, a Agatha, por ter me aguentado com esse cap todos esses dias (mas me abandonou no último minuto, a sem vergonha ù.ú) e a Feeh, que REALMENTE ficou até o fim comigo nesse cap tão angustiante.
Eu realmente não sei se vocês vão gostar. Eu ODIEI escrevê-lo, mas é isso. Nos vemos nas notas finais.
Boa leitura :)



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Manchas – capítulo 26

Quando eu tinha oito anos, eu tinha uma melhor amiga chamada Louise. Ela era minha vizinha e nós fazíamos tudo juntas. Minhas irmãs, Bianca e Sofia gostavam de brincar com a casinha da Barbie que nosso pai tinha feito no último verão com o que antes tinha sido a estante do seu escritório. Era uma bela casa de madeira, bem maior do que as que eram vendidas nas lojas de brinquedos, única. Mas Lou e eu logo cansamos dela. Porque descobrimos algo bem mais divertido.

Um velho livro de jardinagem da avó da Louise.

Não sei bem como ele foi parar em nossas mãos. Acho que foi quando a mãe da Lou estava limpando o sótão. O fato é que passamos as férias inteiras cuidando da nossa pequena horta que ficava num canto do jardim atrás da casa dela. Eu saía de casa de manhã depois de engolir meu cereal com leite e só voltava quando minha mãe aparecia do outro lado do muro, chamando-me para o jantar. Eu me despedia da Lou e entrava em casa suada, as mãos sujas de terra, os músculos doloridos, o rosto vermelho por ter passado o dia todo no sol e os lábios esticados num luminoso sorriso.

Eu estava feliz. Eu era feliz.

E nem percebi que estava sendo feliz sem minhas irmãs, independente delas. Para mim era normal que tivéssemos interesses diferentes, apesar de sermos muito parecidas. Elas gostavam de Barbies e eu gostava de passar o dia mexendo na terra.

Até que, no fim do verão, Louise e seus pais compraram uma casa do outro lado da cidade e se mudaram. Ela não queria se mudar nem sabia explicar porque tinha de fazê-lo. Era só mais uma daquelas coisas que os adultos faziam sem consultar ou explicar nada às crianças.

E assim, minha melhor amiga foi embora.

A sensação de vazio que uma pessoa que você ama deixa em você ao ir embora permanece por muito tempo. É um saco. Apenas olhar para a casa da Louise – que já estava com uma grande placa escrito “vende-se” no jardim da frente – pela janela do meu quarto fazia um enorme peso se instalar em meu estômago e um bolo crescer em minha garganta. Claro que eu podia ligar para ela, mas nunca seria a mesma coisa.

Um dia antes das aulas começarem, eu pulei o muro que separava a minha casa da casa vizinha. Eles já tinham se mudado, mas ainda não havia novos moradores. E, desde então, eu não tinha ido checar nossa pequena horta. Cheguei lá e me surpreendi ao ver que nossas folhas de hortelã e manjericão haviam brotado e agora luziam verdes e saudáveis à luz do sol.

E então eu percebi que eu não gostava de jardinagem.

Nem um pouco.

Droga, eu odiava manjericão.

Eu gostava de brincar com minha amiga. Ela fazia aquilo ser divertido. E ela havia ido embora.

Eu realmente preferia brincar com a casinha da Barbie.

Quando eu cheguei em casa chorando naquele fim de tarde, vi minhas irmãs brincando com a supracitada casa no meio da sala. Mamãe tinha acabado de voltar do trabalho e ainda vestia seus jeans confortáveis que cheiravam a pelo de cachorro.

Ela era veterinária.

– Por que você não vai brincar com suas irmãs? – perguntou, passando as mãos em meus cabelos carinhosamente. – Elas estão sempre aí esperando por você. Elas são suas amigas também. E não vão embora. Família nunca vai embora.

Eu acreditei nela naquele momento, sequei minhas bochechas e corri para brincar com minhas irmãs.

E, tirando as ocasionais férias que passávamos com nossas primas, eu nunca mais brinquei com outras crianças. E nunca mais tive outras amigas além de Bianca e Sofia. Elas eram tudo o que eu queria e precisava e eu as amava.

Até o dia em que eu disse a uma delas que ela era uma inútil, um peso para a nossa família. Eu a odiava e queria vê-la morta.

Então ela se matou.

Na minha frente.

E, quando finalmente o ódio que me cegava arrefeceu, eu percebi que a irmã que ouviu todas as minhas palavras cruéis, era a irmã errada.

Eu matei minha irmã.

Foi a acusação que minha mãe lançou contra mim logo antes de papai ligar para a ambulância e a polícia. E enquanto nós assistíamos ao enterro de Sofia, minha mãe foi trancada num hospital psiquiátrico.

Eu destruí a vida de todos que me rodeavam.

Então por que, quando Chermont disse que não era minha culpa, eu senti como se um peso fosse tirado do meu coração?


...


Chermont me fez levantar e passou um braço por minha cintura, praticamente me arrastando para a casa. Mas não entramos pela porta da frente. Ele me guiou por um caminho lateral até os fundos da casa.

– Mamãe me mataria se sujássemos a sala com lama – ele explicou, mas eu não estava prestando atenção.

Estava cansada. De tudo. Cansada demais para pensar, para sentir. Estava vazia, oca. Dois anos de culpa, de dor, de exílio, do mais terrível e solitário sofrimento pareciam ter finalmente me deixado entorpecida.

O garoto me controlava como a uma boneca e eu não fiz esforço nenhum para lutar contra isso. Ele me fez sentar nos degraus que levavam à porta dos fundos e tirou meus tênis e meias imundos. Tirou os seus também e deixou-os ali mesmo, no chão ao lado dos meus.

– Vem – mandou, ajudando-me a levantar e me fazendo entrar.

A luz artificial da cozinha feriu meus olhos depois da escuridão do lado de fora. Coloquei um dos braços sobre os olhos e deixei que Chermont entrelaçasse sua mão na minha e me guiasse até as escadas.

– Todo mundo já subiu pros seus quartos – disse ao ver que eu hesitava em entrar na sala.

Subir as escadas foi quase doloroso. Minhas pernas pareciam ter o dobro do peso normal e tudo o que eu queria era me encolher ali mesmo e dormir até o sol explodir. Mas a mão firma na minha não permitiu que eu fizesse isso e, antes que eu percebesse, estava outra vez no banheiro do monitor. Ainda que esse fosse outro banheiro. E o monitor fosse ex-monitor.

Temporariamente ex-monitor.

Por – novidade – culpa minha.

– Você precisa de ajuda? – perguntou, indicando o chuveiro.

Eu não estava tão detonada assim, então neguei com a cabeça e ele assentiu.

– Vou pegar sua mochila – disse e saiu, voltando com minha mochila e uma toalha segundos depois.

Não sei se agradeci, mas ele saiu do banheiro logo em seguida. Tirei minhas roupas e as dobrei cuidadosamente. Enfiei-me embaixo da água tão quente que parecia que, junto com a lama, minha pele estava escorrendo. Levei a mão aos meus cabelos e também lavei a lama deles. Saí pouco tempo depois, me sequei e vesti o short e a blusa surrados que trouxera para dormir. O dono do quarto não estava lá quando eu saí, mas a cama estava feita e alguém desaparecera com os livros e roupas espalhados pelo chão.

Deixei minha coisas no chão ao lado da cama, afastei as cobertas e me enfiei entre elas, enterrando a cabeça num travesseiro fofo e aspirando o cheiro do Chermont, que estava impregnado em todo o aposento. Eu tinha acabado de me cobrir quando a porta do quarto foi aberta e Paulo entrou, vestindo só uma calça de moletom e com os cabelos molhados do banho. A visão do seu peito e dos seus pés descalços diminui minha insensibilidade, como uma chama que se aproxima de um cubo de gelo.

– Mamãe arrumou o quarto de hóspedes para você – informou, aproximando-se da cama enquanto eu me apoiava nos cotovelos.

– Você quer que eu vá? – perguntei, surpreendendo-me e odiando a vulnerabilidade em minha voz.

Ele se sentou na beirada da cama, mas não me tocou.

– Não – sua voz correspondia com a profundidade dos seus olhos, que hoje estavam mais castanhos que verdes. – Você quer ficar aqui comigo? – perguntou, deixando claro que, se eu quisesse ficar ali, ele não me deixaria sozinha.

Assenti sem perceber que o estava fazendo. Só não queria, não aguentaria ficar sozinha aquela noite. Queria, pelo menos uma vez, sentir-me protegida por aquele garoto que tanto me confundia e fascinava. Precisava dele.

Paulo segurou meu rosto e se inclinou para me beijar, mas eu virei para o lado e seus lábios encontraram minha orelha.

Eu era jovem, Julieta. Mais jovem, quer dizer. E estava meio decepcionado com o relacionamento que tinha na época. Esses olhos me atraíram. O rosto me atraiu. Eu guardei a foto e, às vezes, ficava horas deitado nessa cama, olhando-a. Memorizando cada detalhe. Acho que foi assim que me apaixonei por você.

Mas não era eu naquela foto. Não era por mim que...

Como se lesse meus pensamentos, ele sussurrou:

– É você que eu quero, Julieta – sua mão segurou meu pescoço carinhosamente, seu polegar acariciando minha pele arrepiada. – É você que tem me levado à loucura nas últimas semanas. Só você.

Eu não sabia até o momento, mas aquelas eram exatamente as palavras que eu precisava ouvir. Também precisava falar, contar o que eu não havia contado a ninguém, expor-me como nunca pensei que faria.

E, surpreendentemente, a ideia não mais me assustava tanto.

Não foi culpa sua.

Talvez ele mudasse de opinião quando soubesse de tudo, mas agora eu não acreditava muito nisso. Era um garoto especial o que eu tinha na minha frente. Muito doce e protetor, além de irritantemente lindo e controlador. Mas o que era uma pequena síndrome de monitor fascista quando ele me olhava com olhos tão intensos, tão apaixonados?

No momento, eu me sentia perfeitamente capaz de fechar os olhos para essa falha de caráter e me concentrar nas sensações que ele despertava em mim.

Dessa vez, quando ele se inclinou para me beijar, eu lhe ofereci meus lábios ansiosa e voluntariamente. Conversas ficariam para depois, eu não tinha pressa nenhuma. Não queria fazer outra coisa que não fosse beijá-lo. Não queria estar em outro lugar que não fosse em seus braços.

Entreabri os lábios e toquei a língua dele com a minha ao mesmo tempo em que era empurrada contra a cama, sentindo seu peso sobre mim. Ele afastou os lençóis e enfiou uma das mãos por baixo da minha camisa, tocando a pele da minha barriga com seus dedos longos e ligeiramente trêmulos. Logo, essa mão foi para as minhas costas, me fazendo arqueá-las até sentir todo o corpo dele sobre o meu. Um gemido involuntário escapou dos seus lábios, sendo abafado pelos meus.

Eu havia beijado um monte de caras nos últimos anos. De muitos eu não lembrava nem o nome – alguns não chegaram nem a se apresentar – e os rostos da grande maioria eram como um borrão em minha memória. Acho que eu procurava algo nesses garotos que me fizesse esquecer quem eu era. Queria fechar os olhos e flutuar. Sair desse mundo, sair da minha própria pele. Ultrapassar as nuvens, dançar nelas. Tocar as estrelas, explodir com seu calor. Queria poder esquecer meu passado, minha família, Sofia. Algumas vezes eu acho que queria esquecer até que ela um dia existiu. Queria esquecer meu nome e mergulhar em sensações que nem acreditava que podiam existir.

E nunca as alcancei. Nunca alguém me fez sentir nem metade do que eu queria.

Até Paulo Chermont.

Ele me fazia sentir todas as coisas que eu procurava sem realmente achar que encontraria. Eu corria o sério risco de me viciar em seus lábios, suas mãos, cheiro...nele. Chermont me beijava como eu nunca havia sido beijada antes. Como se eu nunca tivesse sido beijada antes. Como se me beijar fosse a melhor coisa que ele já tinha feito, como se mal acreditasse que sua boca estava realmente tocando a minha. Seus lábios eram reverentes, suas mãos, trêmulas e um pouco desesperadas. Era como se me ter em seus braços fosse algo quase irreal.

Como se nunca fosse me deixar ir.

Deixei que ele tirasse minha camisa e gemi quando nossas peles se tocaram. Suas mãos brincaram com as alças do meu sutiã antes de rumarem para o fecho, que ele soltou com alguma dificuldade. Paramos de nos beijar quando ele puxou o sutiã pelos meus braços. A minha respiração – assim como a dele – era curta e ofegante. O rosto de Chermont estava corado, os olhos escurecidos, quase totalmente castanhos, e os lábios vermelhos e úmidos. Um cacho caía em sua testa e eu o afastei com a mão. A mecha voltou imediatamente para o mesmo lugar, como se eu nunca a tivesse tocado.

Paulo desviou os olhos do meu rosto.

Meninos.

– Nós não devíamos estar fazendo isso – murmurou com a voz rouca, as palavras saindo com dificuldade. Seus olhos continuavam fixos na minha pele nua.

– Por quê? – inquiri, a voz tão difícil quando a dele.

Paulo levantou os olhos e fitou meu rosto, parecendo lutar para fazer as palavras saírem:

– Você não quer. Você só está vulnerável.

Eu me apoiei nos cotovelos para me erguer um pouco e beijei a pele entre o pescoço e o ombro dele.

– Eu quero – sussurrei, quase sentindo quando um arrepio passou por seu corpo.

Ele suspirou e beijou meu ombro, uma de suas mãos subindo pela minha cintura.

– E vai me querer amanhã? – perguntou.

– Sim – respondi e mordi os lábios quando ele beijou minha clavícula.

– E depois de amanhã?

Eu gemi mais um sim ao sentir os dedos dele me acariciando delicadamente.

– E daqui a um ano?

Assenti, sem nem entender o que ele estava dizendo e incapaz de falar enquanto seus beijos desciam. Mas depois de alguns segundos angustiantes, suas mãos me apertaram e seus lábios voltaram aos meus, tomando-os com uma violência e um desespero que exigiam que eu respondesse com a mesma intensidade. E eu respondi, abraçando-o com força, passando minhas mãos pelos músculos esticados das suas costas. O ar me faltava, mas morrer por falta de oxigênio parecia uma alternativa mais agradável a separar minha boca da dele.

Mas ele se afastou.

– Ótimo – disse, os olhos e a voz parecendo escuros e ásperos, e ele respirava como se tivesse corrido por quilômetros. – Então teremos muito tempo, porque eu duvido que seja capaz de deixar de te querer algum dia.

Ele voltou a me beijar – suave e calmamente dessa vez – antes que as suas palavras pudessem ultrapassar a névoa densa que envolvia minha cabeça.

– O que você fez comigo? – sussurrou nos meus lábios, passando os dedos pelos meus cabelos.

Ele se ergueu para me olhar e eu o fitei de volta, sem entender.

– Eu estou apaixonado por você, Julieta. Eu não queria, eu não pedi por isso. Mas eu estou.

Eu ainda estava voltando lentamente para este mundo quando essas palavras me fizeram desabar no chão. Paulo pegou minha camisa, antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, e a entregou a mim. Eu só fiquei com ela nas mãos, sem fazer nenhum movimento para vesti-la, esperando que ele pudesse ler nos meus olhos a resposta para suas palavras antes que as lágrimas a escondessem. Resposta que eu nunca diria em voz alta.

Mas se ele entendeu o que eu queria dizer sem realmente dizer, não demonstrou. Só disse:

– Vista-se, por favor. Eu estou tentando fazer o que é certo, mas não sou de ferro, Julieta.

Eu obedeci enquanto Paulo se deitava ao meu lado, suspirando mais uma vez e esfregando os olhos. Quando eu já estava “decente”, deitei na cama e me aconcheguei ao corpo dele, que passou um braço por minhas costas, abraçando-me. Eu descansei minha cabeça em seu ombro e coloquei minha perna entre as suas.

– Pensei ter dito que não era de ferro – ele me lembrou, a voz voltando ao normal. Seus dedos batiam de leve em minha cintura.

Naquele momento, eu era dele. Ele era meu. E eu era apenas uma garota 16 anos como qualquer outra. E ele era quem sempre foi.

– Estou contando com isso – provoquei, fazendo-o rir e beijar minha testa.

No dia seguinte, eu me preocuparia com a vida real. No dia seguinte, eu precisaria lembrar quem eu era, o que eu fiz e todas as razões que eu tinha para me afastar de Chermont para sempre.

Mas naquele momento, abraçada a ele em sua cama, aspirando seu cheiro e sentindo seu carinho e sua proteção me envolverem, eu não lembrava nem meu nome.

Se eu me concentrasse bastante, podia ouvir o coração dele batendo e isso, por alguma razão, soava como a melodia mais bonita que eu já tinha escutado.

À luz do dia, tudo voltaria a ser o que era, mas, por enquanto, não havia nada que me perturbasse. Resolvi que ficaria acordada a noite inteira só para aproveitar aquele momento, torná-lo um pouquinho mais longo.

Cai no sono mais profundo e reparador que tive em anos. E nem percebi quando aconteceu.


...


Antes e depois da minha breve amizade com Louise quando eu tinha oito anos, minhas irmãs e eu sempre fomos incrivelmente unidas. É até difícil fazer as pessoas de fora entenderem nossa conexão. Se meu coração batia de maneira diferente, Sofia e Bianca saberiam. Eu confiava mais nelas que nos meus pais e nunca havia segredos entre nós. Éramos irmãs, amigas, a mesma alma separada em três corpos diferentes, que eram assustadoramente parecidos. Ou pelo menos era o que eu achava. Perdi a conta de quantas vezes precisei explicar que não éramos trigêmeas, e algumas pessoas nem acreditavam. Bianca era um ano mais velha que eu e eu era 11 meses mais velha que Sofia. Ainda lembro como era divertido quando, um mês por ano, ficávamos com a mesma idade.

Bianca e Sofia também não tinham mais ninguém. Amigos iam embora e nos machucavam, mas a família estaria sempre ali. Para cuidar de você, amar você. Então, éramos sempre só nós, vivendo em nosso mundinho cor de rosa. Não tínhamos amigos na escola e sempre passávamos o intervalo juntas. As pessoas nos achavam estranhas. Não nos importávamos. Éramos felizes assim.

Foi difícil, doloroso sair dessa nossa redoma de cristal e perceber que sim, a família podia machucar você, podia ferrar com tudo e explodir uma bomba na sua cara. E a dor era muito maior, porque quem estava te machucando era justamente quem deveria te proteger.

Na infância, éramos unidas de maneira quase igual, mas logo que entrou na adolescência, Bianca começou a se interessar por garotos e namorar, o que não a afastou totalmente de nós totalmente, mas fez com que perdesse alguns dos nossos momentos e – obviamente – fez com que Sofia e eu – que demoramos um pouco mais para sair da fase “meninos são nojentos” – ficássemos ainda mais próximas. Bianca sempre ficava irritada quando ríamos de uma piada que só nós entendíamos ou quando comentávamos um filme que tínhamos visto sem ela.

Eu tinha 14 anos e nove meses quando um garoto novo foi transferido para a minha sala na escola. Andrew. Andy, como ele gostava de ser chamado. Altura mediana, cabelos muito loiros, gentis olhos castanhos e um sorriso fácil e espontâneo. Sua personalidade era tão luminosa e expansiva, que nem eu pude deixar de notá-lo. Foi o primeiro garoto por quem me apaixonei. Ele era razoavelmente bonito e muito carismático. Eu costumava ser muito tímida, não tinha a menor habilidade para falar com pessoas que não conhecia. Mesmo os colegas de turma que eu conhecia há alguns anos, não passavam de conhecidos mesmo e, por me verem como a garota fria e estranha que não se aproximava de ninguém – eu nem sabia que era vista desse jeito na época –, nem tentavam falar comigo.

Eu não costumava me importar. Achava que era melhor assim. Então fui pega meio fora de guarda quando o garoto que era o centro das atenções da nossa sala começou a tentar falar comigo. Ele não desistiu nas primeiras vezes que eu o ignorei e, à medida que os dias passavam, eu comecei a querer que ele falasse comigo. Eu comecei a parar de ignorá-lo e a tentar conversar com ele.

Eu era tão boba e apaixonada que ria e corava de qualquer coisa que ele me dizia.

E ele parecia gostar disso.

Todo o resto do mundo desapareceu. Eu simplesmente não soube balancear aquele primeiro amor com o resto da minha vida. Passava as manhãs na escola trocando olhares com ele e os intervalos ouvindo-o falar sobre tudo o que ele quisesse falar. Às tardes, eu saía com ele. Íamos ao cinema, tomar sorvete, caminhar pela vizinhança, íamos ao shopping, ao parque de diversões. E era lindo e mágico como um primeiro amor deve ser. E nosso primeiro beijo me deixou sem ar.

E durante o mês que eu vivia o meu pequeno conto de fadas, eu passei a odiar Bianca e a ignorar Sofia.

Por algum motivo que eu só fui entender muito tempo depois, Bianca guardava um ressentimento contra mim. Na cabeça dela, todos gostavam mais de mim. Nossos pais sempre diziam que eu era a mais doce e obediente e mamãe sempre mexia nos meus cabelos até eu dormir. Mesmo quando eu deixei de ser criança, eu adorava que ela ficasse comigo até o sono me levar. Minhas notas eram as melhores sem que eu precisasse estudar e eu tinha talento para música, tocava piano e violão. Até Sofia corria atrás de mim como um cachorrinho e sempre me “obedecia”.

As coisas não eram assim, mas era assim que Bianca as via. E Bianca sempre tinha sido a mais confiante de nós, a mais segura de si que era até difícil acreditar que ela se sentisse assim.

Mas ela se sentia e, logo antes que eu começasse a namorar Andy, ela jurou roubá-lo de mim. Não sei como chegamos àquilo, mas a partir desse dia nós mal nos suportávamos.

– Nenhum garoto vai aguentar esse seu olhar de menina ingênua por muito tempo – ela jogou na minha cara uma vez enquanto Sofia pedia para que parássemos de brigar. – Um dia desses ele vai perceber que você é perda de tempo e vai atrás de uma garota de verdade.

– Se por garota de verdade, você quer dizer promíscua, então nem alimente tantas esperanças. Ele não gosta de vagabundas que nem você – eu rebati e ela veio para cima de mim, enquanto Sofia se colocava no meio, tentando nos apartar, com lágrimas nos olhos.

Sofia era a mais vulnerável, a mais perdida, a mais influenciável. Fazia tudo o que Bianca e eu queríamos, era como se não fosse nada sem nós duas. E era especialmente apegada a mim.

E eu a deixei de lado por causa de um garoto. E por uma rixa ridícula com Bianca.

Não foi propositalmente. Eu nem sabia que estava afastando-a de mim. Eu nem percebi o que estava fazendo. Minhas noites em casa eram sempre iguais. Eu ficava escutando música com fones de ouvido e imaginando como seria o dia seguinte com Andy. Minha porta ficava trancada para que Bianca não pudesse ir me perturbar.

Sofia também ficava do lado de fora.

E o pior é que eu nem senti falta da companhia da minha irmãzinha.

Uma semana antes do aniversário de 14 anos de Sofia, meus pais tiveram uma briga. Não ficamos sabendo o motivo naquele momento, mas eles nos mandaram para nossos quartos e a coisa parecia bem séria. No entanto, no dia seguinte, eles não comentaram nada com a gente, apesar de parecerem frios e distantes. Eu resolvi tirar isso da minha cabeça, o problema era deles, eles que resolvessem. Egoísta como eu sempre fui, só pensava que em breve faria um mês de namoro e queria fazer algo especial.

E no dia do nosso primeiro mês de namoro, enquanto jantávamos num restaurante charmoso e romântico, meus pais brigaram de novo e Bianca ficou trancada no quarto.

Era o aniversário da Sofia. E ninguém lembrou.

Era quase como se ela tivesse sido apagada. Ninguém notou como ela passou a chegar tarde da escola ou como ficava calada e estranha durante as refeições que – ainda – fazíamos em família, mesmo naquele clima tenso. Ninguém notou que ela não dormia muito à noite e ficava dando voltas pelo seu quarto. Bianca era a única que dormia no andar de baixo e lembro que um dia reclamou com Sofia por ficar fazendo barulho a noite inteira, mas foi só isso. Ninguém nem mesmo notou quando ela começou a roubar dinheiro da bolsa da mamãe, que sempre ficava no balcão da cozinha.

Uma semana depois do aniversário esquecido, eu cheguei em casa mais cedo porque Andy não ia poder sair comigo porque ia ficar na biblioteca terminando um trabalho que tínhamos para a aula do dia seguinte. Bianca tinha aulas extras na escola e Sofia não estava em casa. Apesar de que, se alguém se perguntasse, não saberia aonde ela estava.

Eu resolvi treinar um pouco no meu piano, estava compondo uma melodia nova que queria tocar para Andy. Ele nunca tinha se mostrado muito interessado pelos meus talentos musicais, então eu queria mostrar para ele que era realmente boa.

Mas nada, absolutamente nada naquele dia saiu como eu queria.

Assim que cheguei em casa, ouvi meus pais discutindo na cozinha. Na verdade, mamãe gritava com papai, que ou falava baixo ou não respondia nada. Eles não haviam percebido minha presença, então eu me aproximei do balcão que separava a cozinha da sala e me agachei para ouvir o que eles diziam sem ser vista.

Eu nunca poderia imaginar o quanto me arrependeria.

Mamãe gritava, dizendo que papai não podia ir embora, que ela não lhe daria o divórcio, que ele tinha que pensar nas filhas que tinha antes de colocar uma vagabunda qualquer acima da própria família.

– Fique avisado que, se sair por essa porta – gritava, sua voz quase insana. – Nunca mais deixarei que veja as meninas. Nunca! Vou colocá-las contra você e elas a odiarão como eu o odeio!

Levei as mãos à boca para abafar um ofego de surpresa. Nunca havia escutado minha mãe falar assim e só a ideia de que papai estivesse nos deixando porque tinha uma...amante, era inconcebível para mim.

Meus pais eram doces e gentis. Minha mãe mexia em meus cabelos até que eu dormisse e meu pai era o tipo de pai que construía casas da Barbie para as filhas. Ele me ensinou a cavalgar e a arquear as sobrancelhas. Meu pai era o melhor pai do mundo.

Eu simplesmente não conseguia acreditar. Não era verdade. Mamãe estava simplesmente enganada.

– Você sabe porque eu estou te deixando, Victoria – a voz grossa e firme do papai finalmente se fez ouvir. – Não é só por Rachel, é por você. É você quem eu estou deixando, não as nossas filhas.

Mas eu não conseguia ouvir mais nada. Não sei como eu fiz para sair dali sem que me percebessem, simplesmente não sei como consegui segurar as lágrimas até sair correndo pela entrada de carros totalmente sem rumo. Finalmente parei na frente de um supermercado e entrei no estacionamento. Fui para o canto mais escuro e deserto e me agachei entre dois carros, chorando descontroladamente.

Meu pai ia embora.

Ele tinha uma amante e ia trocar a mamãe por ela.

E ia embora.

É claro que eu sabia que não era incomum pais se divorciarem. É claro que eu sabia que isso acontecia com muitos casais, com ou sem filhos, todos os dias. E minhas irmãs e eu não éramos mais criancinhas. Mas mesmo assim, para uma garota que, por quase 15 anos de vida, sempre acreditara a família sempre vinha em primeiro lugar, que a família era tudo o que ela precisava, a família nunca ia embora...era como perder completamente o eixo de gravidade e despencar de um precipício, sem ter nada em que se agarrar, ninguém para segurar.

Era como se sentir perdida de repente. Como ter novamente cinco anos e entrar num supermercado como aquele segurando as mãos dos pais e então, graças a um minuto de distração, se perder lá dentro. Ficar sozinha durante aqueles poucos minutos que se arrastam como horas, sentindo o pânico crescer dentro de si, olhando, procurando desesperadamente por todos os lados por uma figura familiar e acolhedora, que vai brigar com você e dizer para nunca mais soltar sua mão.

Só que não tinha mais ninguém para segurar a minha.

Pode parecer exagero, drama, o que for. Ninguém poderia saber o que eu senti. Ninguém estava na minha pele. E, mesmo que soasse como coisa de adolescente mimada, eu sentia sim, meu mundo inteiro desabar.

E, depois que o choque se abrandou – ainda que minimamente – eu, sem parar para pensar em nada, peguei meu celular e liguei para o Andy. Não sei o que eu queria que ele fizesse ou dissesse. Não sei por que liguei pra ele. Talvez eu só estivesse procurando aquela segurança doce e aquele sentimento de pertencimento que eu tinha com ele. Eu só queria que algo ainda fosse normal, ainda fosse meu, ainda fosse como era antes. Queria que ele me abraçasse. Só isso.

Mas ele não atendeu.

Então eu, decidida, levantei e fui caminhando a passos rápidos até a escola, onde ele disse que estaria. Não me preocupei em enxugar as lágrimas, elas não parariam de cair de qualquer jeito. A escola não era tão longe, já que morávamos bem no centro da cidade, mais ou menos meia hora de caminhada. Mas eu cheguei lá mais rápido. O lugar não estava cheio como ficava de manhã, mas alguns estudantes continuavam por lá, para suas atividades extracurriculares ou para fazer algum trabalho, como Andy.

Corri como uma louca até a biblioteca e estanquei quando entrei lá e não vi ninguém. Nem o bibliotecário. A ampla sala cheia de estantes com livros empilhados até o teto estava imersa num silêncio sepulcral. Dei dois passos incertos e vi, numa das mesas, a mochila do meu namorado, bem como alguns dos livros que eu sabia que ele estava usando para o trabalho.

– Andy? – chamei timidamente, passando as mãos pelas bochechas para enxugar as lágrimas.

De repente, ouvi um barulho. Na verdade, soava mais como uma respiração ruidosa, que logo foi seguida pelo som de alguns livros caindo no chão. O som vinha da última e mais sombria prateleira da biblioteca, onde só ficavam livros acadêmicos que ninguém gostava por serem técnicos e difíceis demais. Debilmente, andei até lá, meus passos leves e sem ruído.

Andy estava lá. Seus cabelos estavam bagunçados, sua camisa largada no chão. Ele estava inclinado sobre uma garota, as mãos enfiadas embaixo do uniforme dela, os lábios dos dois grudados em um beijo violento, apaixonado. Os cabelos da garota eram longos e negros, ondulados. Sua pele era pálida e ela tinha longas pernas, ainda que estivessem cobertas pelos jeans. Seus olhos estavam fechados, mas eu sabia que eram apenas um pouco mais azuis que os meus, menos cinzentos.

Pela segunda vez naquele dia, eu presenciava algo que não havia sido feito para os meus olhos e, como da outra vez, saí sem ser notada. Não apressadamente dessa vez. Nem com raiva. Apenas perdida. Completamente.

Meu paraíso havia sido transformado num inferno.

Ou pelo menos era isso que eu pensava naquele momento. Eu ainda estava longe do inferno, aquele era só o gostinho do purgatório. Foi apenas mais tarde que minha alma despencou completamente.

Saí da biblioteca e da escola com passos que eu não sentia que dava e olhos vagos. Eles estavam dolorosamente abertos, mas eu não podia enxergar nada na minha frente. Talvez por isso eu não tenha ficado muito surpresa quando quase fui atropelada.

Eu simplesmente atravessei a rua sem me preocupar em olhar para qualquer lado. O carro só não me bateu porque um homem na calçada viu o que ia acontecer e me empurrou para o outro lado. Eu só ouvi uma buzina e pneus cantando no asfalto.

– Menina, você está bem?! – eu lembro de ter ouvido o homem perguntar, como se eu tivesse piscado e perdido alguns segundos.

Estava no chão, mas não lembrava de como havia ido parar lá. Ouvi alguém falando que era melhor chamar uma ambulância e foi quando percebi que algumas pessoas começavam a se amontoar ao meu redor. Levantei-me, ignorando os pedidos para que eu continuasse sentada e, mesmo sentindo-me tonta e confusa, consegui me desvencilhar daqueles estranhos e andei o mais depressa possível para casa.

Até hoje me pergunto como consegui chegar em casa. Minha cabeça doía como eu não teria achado possível, meus olhos doíam com a claridade do fim de tarde e eu me sentia tão enjoada que vomitei na entrada de carros de casa. Não havia nenhum sinal de vida quando eu entrei e fui direto para a cozinha. Nenhuma dica do que havia acontecido ali mais cedo, de como, naquele mesmo lugar, meu mundo havia se quebrado em vários pedacinhos como um copo de cristal.

Cambaleei até a pia, peguei um copo e o enchi de água, bebendo até que voltei a ficar enjoada. Lavei o rosto e foi só então que percebi o sangue. Minha cabeça sangrava profusamente, mas eu não sentia a dor específica do corte, não enquanto toda a minha cabeça doía como se cada centímetro dela tivesse sido amassado por um caminhão.

Ouvi um barulho atrás de mim e me virei.

E lá estava ela. Parecendo bonita e satisfeita. Olhando-me com desprezo, com altivez. Seus cabelos estavam bagunçados e suas roupas, meio amassadas.

– Minha carta chegou – ela disse e, mesmo com minha mente embotada, eu pude perceber que sua voz parecia meio enrolada, ainda que contente.

Ela segurava um grande envelope pardo nas mãos.

Cega, insana, frustrada e destruída, com o peso de todas as coisas que haviam acontecido naquele dia, no pior dia da minha vida, eu cortei a distância entre nós e desferi um sonoro tapa em seu rosto pálido.

– Vadia! – gritei. – Eu te odeio! Eu te odeio!

A traição dela pesava tanto em meu coração como a traição de papai. Eu finalmente entendia como a voz da minha mãe, geralmente doce, havia se transformado naquele som medonho, louco.

A minha era uma cópia.

Ela caiu no chão, soltando o envelope para tentar se segurar. Eu o apanhei, sem nem saber o que continha, sem querer saber.

– Por que você tá dizendo isso? – ela perguntou chorosa enquanto se levantava. – Por que você tá dizendo isso pra mim?

Afastei-me dela e balancei o envelope em minhas mãos.

– Me devolve – ela mandou, avançando na minha direção.

Então aquele maldito envelope era importante para ela.

Eu queria destruir tudo que era importante para ela.

Ainda estava meio tonta, talvez não conseguisse impedir que ela o tomasse de mim, então o joguei no triturador de lixo e vi enquanto seu rosto já pálido perdia totalmente a pouca cor que tinha.

– Não faz isso, por favor. Não faz isso.

– Eu te odeio – eu ficava repetindo. – Eu te odeio. Eu te odeio.

A fina linha entre a civilidade e a loucura pareceu ter sido ultrapassada por ela também.

– Devolve! Devolve! – ela gritou, a voz dilacerada, as mãos percorrendo os cabelos negros com tanta agressividade que era como se estivesse tentando arrancar os fios da cabeça.

Eu a ignorei e liguei o triturador de lixo. O som alto e ruidoso da máquina preencheu o lugar e abafou o grito estrangulado dela:

– Por quê?! Por que você fez isso?!

A raiva pura, o ódio quente fluíam em meu sangue, fervendo e ardendo, transformando-se em dor. Dor fina, aguda, que crescia em espiral e se grudava em minha pele como uma camada de suor. A dor e o ódio eram tão intensos que nublavam meus olhos e mente, escureciam meu coração, apertavam-no como um punho de aço escaldante. Prejudicavam meu discernimento até o ponto em que eu só enxergava o que queria ver. E era ela que estava ali, atormentando-me, puxando-me para fora da linha fina da civilidade.

– Cala essa boca, sua vadia inútil! – as palavras rasgaram minha garganta, impregnadas do ódio profundo e fluido que corria por minhas veias e envenenava meu coração. – Por que você não desaparece?! Você não é ninguém para mim, para nós, sua parasita maldita! Por que você não morre?

As palavras ecoaram, vermelhas e densas, maculando o branco das paredes como se tivessem sido escritas com sangue. Olhos azuis me encaravam, tão familiares para mim quanto os meus. Eram os meus. Tornando-se mais cinzentos à medida em que meu ódio se espalhava por eles, moldando-os, virando parte deles.

Ódio escuro e irracional. Úmido e quente como um beijo. Doloroso como sal em uma ferida.

Um último lampejo de claridade iluminou minha mente, permitiu-a respirar e fugir da escuridão por um segundo. Percebi que não era ela que eu vira momentos antes, minhas palavras cruéis haviam atingido a pessoa errada.

Por que você não morre?

E meu próprio rosto se virou para mim, os olhos escurecidos, quase...sem alma. Senti como se um dedo gelado deslizasse por minha espinha quando vi o brilho trêmulo em suas mãos.

A lâmina era comprida e fina, fria ao toque como um mau presságio. Tão inofensiva quando guardada na gaveta do balcão. Tão mortal e assustadora naquelas mãos brancas e frágeis, porém determinadas.

– Por que você não morre, Julieta?

Ela veio para cima de mim antes que eu pudesse ter qualquer reação. O choque ainda restringia meus movimentos. Era como se eu tivesse simplesmente acordado e me descoberto num pesadelo. Um pesadelo da vida real.

Ela não era quem eu pensava que era. Não era a irmã que havia me traído. Que havia roubado a única coisa que eu ainda achava que me pertencia.

Tentei me afastar no último segundo, mas a lâmina se enterrou na pele do meu braço em um longo e profundo corte. Eu mal o senti, mas aquilo me despertou completamente para quem estava ali na minha frente.

Empurrei-a de modo quase involuntário, instintivo. Ela não caiu no chão dessa vez, mas se afastou, os olhos azuis tão bonitos transformados, vermelhos.

Perdidos como os meus.

– Você quer mesmo que eu morra, não é? – perguntou finalmente, a voz soando como lágrimas que escorrem pelo rosto. – Vocês todos querem, não é? Vocês nem sabem mais quem eu sou. Vocês me ignoram. Me desprezam. Me odeiam.

– Não... – tentei falar, apertando o meu braço ensanguentado.

– MENTIROSA! – seu grito me fez tremer. – Vocês me odeiam! Me querem morta! É isso que querem, não é? – perguntou, posicionando a faca em seu pescoço, cortando superficialmente a carne, o bastante para um pequeno fio de sangue escorrer pela pele clara. – Pois é isso que terão.

– Sofia, NÃO!

Tentei impedi-la. Juro que tentei. Mas foi isso que acabou matando-a. Lancei-me contra ela e, na ânsia de me impedir, ela recuou.

Acabou tropeçando nos próprios pés e bateu com a lateral do corpo na bancada que dividia a cozinha e a sala.

A lateral atingida era a com o braço que segurava a faca. Que, com o impacto, entrou até o cabo em sua garganta.

Ela caiu de costas, os braços frouxos, a faca enterrada no pescoço.

Caí ao seu lado, sem entender, sem conseguir que meus olhos e minha mente aceitassem aquilo.

Achei que meu mundo tinha desabado mais cedo.

Não era nada comparado àquilo.

Sofia mexeu os lábios e, sem som nenhum, disse:

– Me desculpe.

E a vida abandonou seus olhos.

Assim como a minha também me abandonava naquele momento.

Não chorei.

Também não fechei seus olhos. Mesmo mortos, eu queria continuar olhando para eles. Sempre haviam sido mais lindos que os meus e eu os amava.

Tirei a faca do seu pescoço com um puxão que fez o sangue espirrar na minha roupa e deitei a cabeça dela no meu colo. Continuei segurando a faca com uma mão, mas realmente não sei o que teria feito com ela.

Com a outra, eu acariciei os cabelos da minha irmã tão amada, como mamãe fazia para eu dormir.

– Eu te amo – eu sussurrava, em completo oposto às minhas palavras de ódio momentos antes. Eu cantava essas palavras como se fossem uma canção de ninar. – Eu te amo.


...


– Foi assim que meus pais me encontraram – continuei. Paulo não havia me interrompido em nenhum ponto do meu relato completo e honesto, mas agora ele havia se aproximado de mim na cama. A luz da manhã penetrando pela janela e tingindo seus cabelos de dourado. – Mamãe ficou histérica. Gritou que eu era uma assassina até que meu pai, depois de se recuperar do choque, chamou uma ambulância.

Minha voz estava, como tinha estado durante todo o tempo em que eu abria as portas do meu passado para Paulo, estranhamente calmas. Vazias. Inexpressivas.

– Ela teve um colapso nervoso e precisou ser internada. Nunca mais voltou ao normal. Meu pai a trancou num hospital psiquiátrico para não ter que lidar com uma esposa que ele não queria mais, para começo de conversa. Eu também fui levada. Tinha batido a cabeça no acidente e tido uma concussão, o que, segundo os médicos, explicava minha confusão, minha tontura e falta de sensibilidade. Precisei insistir para me deixarem ir ao enterro de Sofia e fui interrogada pelos policiais logo depois.

“Eles logo concluíram que ela tinha se matado. Descobriram que ela estava sob forte efeito de drogas e tinha várias marcas nos pulsos. Algumas cicatrizes eram de anos atrás.

“Meu pai me fez mudar de escola, enquanto Bianca continuou na antiga. Soube que ela começou a namorar Andy alguns meses depois da morte de Sofia, mas eu nunca mais o vi, nem aos dois juntos. Papai demorou algum tempo para conseguir me olhar nos olhos. Acho que ele não conseguiria conter a acusação muda. Sei que todos me culparam. Sei que todos estão certos. Tornei-me o que sou hoje, mesmo com papai me forçando a frequentar o consultório de vários psiquiatras. Fui expulsa mais uma vez da escola e meu pai me mandou para cá. Fim da minha história.”

Calei-me. Não havia mais o que falar.

– Foi um acidente – Paulo concluiu, pensando alto. Então se virou para mim. – Foi um acidente, mas você deixou que todos pensassem que sua irmã tinha se matado. Por...Por quê?

Dei de ombros.

– Ela morreu. Nada a trará de volta. Simplesmente não achei importante, nem pensei nisso. E, no fim das contas, a verdade nunca vai estar lá. Eu a matei. Eu.

Abracei meus joelhos, encolhendo-me com tanta força como se aquilo fosse me fazer sumir. Sentia novamente todo o peso daquilo, de tudo pelo que havia passado. Nunca havia contado o que acontecera a ninguém. Nunca relatara com clareza em voz alta aquela tragédia.

E tinha sido como viver tudo de novo.

Não percebi que estava tremendo até que Paulo passou um braço por minhas costas e me abraçou, puxando-me para ele. Segurou meu queixo e me fez levantar os olhos.

Os dele estavam verdes nessa manhã. Um halo dourado envolvia sua cabeça, o sol brilhando nas suaves ondas do seu cabelo. Ele era lindo como um anjo. E olhava para mim como um.

– Eu te amo – sussurrou, antes de beijar delicadamente meus lábios, cantando as palavras. – Eu te amo.

E só então eu chorei.


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Notas finais do capítulo

Se ficou confuso ou tiver algum erro, me desculpem :(
Vou amar se vocês me deixarem reviews, eu REALMENTE morri escrevendo esse capítulo. Sério.
Ah, e pra quem não sabe, eu comecei uma nova história (não me matem D:), então quem quiser ir dar uma olhadinha:
http://fanfiction.com.br/historia/360597/Perfectly_Wrong/
Muito obrigada pela atenção, beijooos e até o próximo :*