Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 26
Capítulo 25


Notas iniciais do capítulo

Hey, lembram de mim?
Então, eu estou de volta, yeey o/
Não vou falar muito aqui em cima pra vocês lerem logo o capítulo, mas não se esqueçam de ler as notas finais, ok?
Um muuuuuito obrigada pra Ju IIs, Dayana Mayer, idkstyles e pra liiinda da Lara C pelas recomendações maravilhosas *.*
Boa leitura :)



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   – Você está brincando, não é?

   Eu continuei olhando-o. Olhando aquele garoto bonito que me encarava com uma expressão meio incerta. Ele ainda vestia o uniforme da escola, só que estava sem o blazer, que havia tirado no carro, e com dois botões abertos na camisa. Notei que seu cabelo estava precisando de um corte. Os fios ondulados quase tocavam a gola do uniforme.

   Paulo Chermont era bonito, educado, inteligente e, tirando suas tendências machistas e sua mania de querer controlar as pessoas ao redor, era meio que um cara legal. Eu já o havia visto com os amigos, eu já havia notado como as pessoas o olhavam com admiração. Todos gostavam dele. Ele era um desses caras que pareciam imãs, que atraíam os outros para si sem perceber. Quase como se ele fosse o sol e as outras pessoas, os planetas. O cara que tinha uma vida brilhante pela frente, que não parecia ter nenhum problema sério na vida, que tinha um sorriso que ganharia qualquer coisa que ele quisesse.

   E eu era a pessoa que poderia colocar tudo isso a perder.

   Por que eu estava perto dele? Por que eu não simplesmente ia embora? Eu estava literalmente ferrando com tudo, desde antes de sequer conhecê-lo. Minha família era uma desgraça, minha vida era uma grande meleca nojenta, meu passado era feio, sujo e grotesco.

   Por que eu tinha que arrastá-lo para isso? Por quê?

   Ele merecia mais do que isso.

   Ele merecia mais do que eu.

   E por isso mesmo eu precisaria ser sincera com ele. Eu lhe contaria toda a feia verdade. Todos os meus pesadelos da vida real, que me assombravam a cada passo que eu dava. Eu precisaria fazê-lo ter nojo de mim, fazê-lo me odiar, me querer longe dele.

   Porque eu estava em sério perigo de querer continuar escondendo toda a sujeira embaixo do tapete. Porque eu estava em sério perigo de acabar dizendo o que eu sentia. Que eu estava – oh, merda – apaixonada por ele.

   Eu o queria. Queria que ele fosse meu.

   Mas não podia simplesmente foder com a vida dele desse jeito.

   Não faria isso.

   Eu odiava a ideia de colocar a desgraça que era a minha vida em palavras. Sentia-me enjoada só de pensar nisso. Odiava que ele precisasse conhecer meu passado. Ele, entre todas as outras pessoas.

   Mas odiava ainda mais a ideia de atraí-lo para a bagunça que era a minha vida.

   Que. Grande. Merda.

   – Não, Chermont – foi o que eu respondi, o mais séria que pude. Minha voz soou cortante. – Eu não estou brincando.

   Eu vi quando ele caiu em si. Eu vi, quase em câmera lenta, quando sua expressão pareceu desmoronar ao perceber a verdade em minhas palavras. Ele não tinha me levado a sério antes, em nenhuma das vezes em que eu lhe disse o que eu era, mas agora ele sabia.

   Ele viu a escuridão em meus olhos, o vazio da minha alma.

   E eu só queria chorar.

   – Chermont, eu... – comecei, disposta a expor tudo. Tudo o que havia em mim. Toda a mágoa, o remorso, todos os erros que cometi. Coisas que ninguém sabia, coisas que eu não havia contado à polícia e ao meu psiquiatra.

   Droga, não contei nem aos meus pais. Odiava ter de lembrar, odiava que não pudesse apagar tais coisas da minha mente.

   Mas a porta foi aberta subitamente, fazendo-me pular quase um metro.

   – Ah, vocês estão aí namorando, não é? – a irmãzinha do Chermont entrou no quarto com uma expressão maliciosa no rosto. – Foi o que eu disse para a mamãe. E ela disse para os dois descerem e ajudarem a arrumar a mesa para o jantar.

   A menininha continuou lá, parada na porta, sorrindo enquanto Chermont e eu a olhávamos como se fosse um alienígena.

   – Err...Mari, diga a mamãe que já estamos descendo – Paulo conseguiu dizer, olhando de relance para mim.

   A menina balançou a cabeça negativamente.

   – Nem pensar – disse, determinada. – Vocês vêm comigo agora.

   Antes que eu pudesse perceber sua intenção, Mari agarrou minha mão e começou a puxar-me para fora do quarto. Ouvi a respiração de Chermont sair em um jorro audível e, enquanto seguia a irmã dele, virei-me para olhá-lo.

   A expressão no rosto dele quebrou algo dentro de mim. O seu olhar estava fixo na mão da irmãzinha dele agarrada à minha, como se ele quisesse afastá-la de mim. Como se eu fosse suja, como se eu tivesse alguma doença contagiosa.

   Como se ele tivesse medo de que eu fosse machucá-la.

   Soltei a minha mão da de Mari sem muita delicadeza e os olhos do monitor se encontraram com os meus, parecendo ao mesmo tempo satisfeitos e culpados. Mordi o lábio para segurar as lágrimas, dei às costas a ele, passei por Mari e desci as escadas. Meu lábio inferior doía e eu sentia o gosto amargo e salgado do sangue em minha boca. Limpei os lábios com as costas da mão.

   – Ah, você está aí – a voz da mãe do Chermont me fez virar para vê-la saindo da cozinha com uma travessa de comida nas mãos. – Olá, Julieta. Fiquei feliz quando Paulo me disse que você tinha aceitado o convite.

   Ela parecia meio desconfortável e não agia com naturalidade. Não a culpava, afinal, se eu estivesse em seu lugar, não iria querer uma garota como eu para namorada do filho perfeitinho. Relanceei os olhos pela sala até parar na minha patética figura refletida num grande espelho vitoriano na parede. Como Chermont, eu não tinha trocado o uniforme da escola antes de vir para cá, mas havia tirado a meia calça e colocado um all star velho e surrado no lugar dos sapatos de boneca. A minha saia tinha algumas manchas de tinta – vestígios daquela brincadeira com Gabe – que eu não consegui tirar e minha camisa estava amassada. Minha pele mantinha a costumeira palidez e minhas olheiras pareciam se destacar mais do que nunca.

   Não, definitivamente a mãe do Chermont não tinha culpa por não me querer como nora.

   – Precisa de ajuda, mãe? – perguntou Paulo, solícito, descendo as escadas com a irmã.

   – Sim, querido – ela respondeu, sorrindo carinhosamente para ele. – Você se importa de ajudar o Roger com os pratos?

   Ele só acenou com a cabeça e sorriu, indo para a cozinha sem me olhar nem uma vez.

   Droga, eu nem havia contado tudo a ele e sua rejeição já doía. Muito.

   Forcei um sorriso. Eu tinha que fingir ser a namorada, certo? Perfeita não dava mesmo para ser, mas eu faria um esforço para parecer aceitável.

   – Posso ajudar em algo, Sra....Chermont? – perguntei, sem saber se ela tinha o mesmo sobrenome do filho, afinal havia se casado de novo.

   Mas eu tinha certeza de ter escutado Gabe chamá-la de Sra. Chermont...

   – É Chermont sim – ela respondeu, sorrindo ao perceber minha confusão. – Ainda não me casei com Roger, somos namorados.

   – Noivos! – a voz do noivo em questão se fez ouvir lá da cozinha, fazendo a mãe do Paulo rir. – Ela está me enrolando há alguns anos, mas já estamos noivos.

   – Noivos, então – ela se corrigiu.

   Eu tentei sorrir, mas acho que deve ter saído mais como uma careta.

   – E eu tenho tudo sob controle, querida, não se preocupe. Por que não se senta no sofá com Mari enquanto eu chamo a minha outra cria para o jantar?

   Assenti hesitantemente. Não queria ficar perto da irmã capeta do Chermont. Eu realmente não gostava de crianças. Mas fui assim mesmo.

   – Quer ver meus desenhos? – a garotinha perguntou assim que eu me sentei.

   Não.

   – Claro – tentei falar animadamente, mas tenho certeza que falhei.

   Isso não importou muito para Mari, que foi, contente, buscar seus desenhos.

   – Essa aqui é a árvore do quintal – ela foi me explicando, mostrando o primeiro desenho, que era inacreditavelmente bom e quase realista, exceto pela lápide embaixo da árvore. – Pebbles, meu peixe, foi enterrado aí, mas a mamãe não me deixou colocar uma lápide de verdade. Disse que não queria que nosso jardim ficasse parecendo um cemitério... e esse é o cachorro da nossa vizinha – disse, ao mostrar o segundo desenho, que consistia no esqueleto muito bem desenhado de um cão. – Ele morreu há algumas semanas – explicou, ao ver meu olhar curioso.

   Certo, a garota era definitivamente estranha e eu não queria continuar vendo aqueles desenhos macabros.

   – O jantar está na mesa – exclamou a mãe daquelas crianças malucas e eu quase pulei ao me por de pé, ansiosa por ficar longe da Mari.

   Ainda não havia esquecido o olhar de Paulo quando ela me tocou.

   – Julieta, sente aqui ao meu lado – o mesmo garoto que parecia ter medo que eu ficasse perto da sua irmã disse, com um meio sorriso e uma voz carinhosa.

   O maldito era um ótimo ator.

   Nem tentei sorrir para ele. Não conseguiria.

   Mas fui até o lugar que ele me indicava e me sentei educadamente, enquanto todos os outros tomavam seus lugares e Victor descia as escadas, mal humorado.

   – Até o meu lugar essa garota pegou! – exclamou, ao ver onde eu estava sentada.

   Sua mãe o olhou com reprovação.

   – Victor, seja mais educado com a namorada do seu irmão – repreendeu-o. – Sente-se ao lado da sua irmã.

   O garoto bufou e resmungou:

   – Namorada, sei...

   Mas acabou sentando onde sua mãe mandou e não disse mais nada.

   O jantar acabou sendo surpreendentemente agradável. Se eu estivesse com um humor um pouco melhor, teria me divertido. A mãe do Chermont era simpática, seu padrasto era engraçado e seus irmãos...bom, Mari era uma criança bem estranha, mas parecia gostar de mim – eu ainda não entendia por que. Já Victor ficou emburrado por todo o jantar.

   Esse me detestava mesmo.

   – Então, Julieta – Roger começou enquanto terminávamos de comer a sobremesa, uma deliciosa torta de amora. – Como foi que você começou a namorar esse problemático?

   Ele ria, obviamente brincando.

   Aparentemente não sabia que a problemática ali era eu.

   – Ahn – eu não sabia mesmo o que dizer, Paulo e eu não havíamos pensado em inventar uma história para essa situação. – É uma coisa meio recente...

   – Julieta faz aulas de equitação com a minha turma à tarde – Paulo veio em minha salvação, piscando discretamente para mim. – Foi assim que nos aproximamos.

   Victor bufou.

   – Achei que tivesse sido na detenção – murmurou.

   Mas foi alto o bastante para todos na mesa ouvirem.

   – Detenção? – ecoou a Sra. Chermont, mortificada.

   – Paulo ficou na detenção? – perguntou Roger, surpreso.

   Mari soltou uma risadinha e completou:

   – Sabia que esse meu irmão não prestava...

   Não aguentei e soltei uma risadinha com o comentário da garotinha e aí todos os olhos se voltaram para mim. Parei de rir e pigarreei, cruzando meu olhar com o do Chermont por um segundo.

   Ele parecia apreensivo.

   – Na verdade, fui eu que fiquei na detenção – expliquei rapidamente. – E nem foi Paulo que me supervisionou, foi o italiano faj...o Vicentini.

   A mesa ficou em silêncio por um momento e eu percebi o olhar furioso que Chermont lançava ao irmão. O pirralho era uma peste mesmo, aparentemente um soco não foi o bastante para colocar o cérebro dele no lugar certo, quem sabe mais alguns...

    – E por que você estava na detenção, querida? – a Sra. Chermont perguntou, desviando-me dos meus pensamentos.

   Pensamentos cuja natureza ela não gostaria nem um pouco.

   Sua voz era doce, mas eu percebi que por baixo daquela fachada ela estava realmente desconfortável.

   Paulo Chermont associado a uma delinquente. Que tragédia.

   – Eu fugi da escola – respondi a primeira coisa que me veio à cabeça.

   Não era como se eu pudesse sorrir e dizer “agarrei seu filho e o fiz me beijar até que nós dois perdemos completamente a noção, só para depois acusá-lo de ter me agarrado sem meu consentimento, mas aí fui descoberta e me ferrei”.

   Não é o tipo de coisa que se diz à mãe do seu namorado. Mesmo que seja um namorado de mentira.

   – Ah – ela assentiu e levou um pedaço de torta à boca.

   – Julieta estava muito entediada e queria passear pela cidade, não é, amor? – Paulo sorriu, tentando quebrar aquele clima desconfortável. – Ela é assim. Impulsiva.

   Impulsiva. Haha, hilário.

   Assenti, mas não sorri. Queria enfiar o garfo num dos olhos do garoto por me chamar de amor.

   – Não foi no dia que eu a vi no cinema, não é, Julieta? – Sra. Chermont soltou, casualmente. Casualmente demais. – Com aquele menino, o Kimak?

   Filha da mãe. Aposto que esperou a noite toda para fazer isso.

   Roger e Mari me fitaram surpresos, Paulo parecia irritado e Victor, o único contente em ver tudo desmoronar.

   – Não, não foi nesse dia – foi só o que respondi, baixando os olhos para a minha torta como se fosse a coisa mais interessante do mundo.

   – Você saiu com o Kimak? – a pequenina inconveniente perguntou. Sério, nunca ensinaram modos à garota? – Por que você saiu com ele se namora o meu irmão?

   Respirei fundo e respondi, antes que Paulo o fizesse:

   – Gabe é meu amigo.

   – Não gosto da ideia desse menino perto do meu filho e você é a namorada dele, como... – a mãe do Chermont finalmente mostrou as garrinhas, mas eu não a deixei terminar.

   – Seu filho é meu namorado – disse, determinada. – Não meu dono. Não pode escolher minhas amizades. E nem você.

   Certo, a coisa tinha ido longe demais. E depois que a bosta é jogada no ventilador, não faz sentido tentar limpar a bagunça. Por isso me levantei, joguei o guardanapo na mesa e saí da casa pela porta da frente, sem olhar para trás.

   É, como eu consegui ferrar tudo apenas no meu primeiro dia como namorada falsa do Chermont? Só podia ser um talento natural, sério. Da próxima vez que alguém me perguntasse se eu tinha alguma habilidade, eu responderia “ferrar a vida dos outros, isso eu faço com maestria”.

   Estava meio frio lá fora – quando não estava frio naquele maldito lugar? – e úmido por causa da chuva recente. Abracei meus braços e andei até a árvore do jardim. O balanço estava molhado, mas eu não me importei. Balancei-o um pouco para tirar um pouco da água e sentei-me. Apoiei minha cabeça na corda que segurava o balanço e fechei os olhos por um momento. Minha pele estava arrepiada pelo frio e eu usava um dos pés para me balançar.

   Estranho como nesses momentos, a única coisa que passava pela minha cabeça era a expressão “que merda”.

   Acho que minha mente é meio boca suja.

   Só a mente?

   Foi o que a supracitada mente retrucou.

   Oh Deus, eu preciso de tratamento.

   O ruído da porta da frente batendo me trouxe de volta à realidade, mas eu não me mexi, apenas abri os olhos. Segundos depois, senti que ele parou bem atrás de mim.

   – Ei, você está bem? – perguntou, sentando-se ao meu lado no balanço, mas com os pés para o outro lado.

   Suspirei.

   – Não precisa ser legal – respondi, sem olhar para ele. – Eu sei que eu ferrei tudo.

   Ele não disse nada por um momento, mas eu quase podia ouvi-lo sorrir. Olhei-o de esguelha e percebi que ele tinha realmente um meio sorriso estampado nos lábios. Também reparei que ele segurava o blazer do uniforme da escola nas mãos. Ao perceber meu olhar, ele colocou o blazer sobre meus ombros com cuidado.

   – Imaginei que você ficaria com frio aqui fora.

   Ele desviou o olhar e eu também. Certo, isso não fora nem um pouco embaraçoso.

   Eu não disse nada, apenas me aconcheguei mais no seu casaco, respirando fundo porém disfarçadamente, apenas para sentir o cheiro dele que estava impregnado no tecido.

   Por que o garoto precisava cheirar tão bem?

   Ficamos naquele silêncio tenso por alguns minutos. Eu não sabia o que se passava na cabeça dele, mas a minha estava a maior bagunça. Eu não conseguia olhá-lo sem pensar no jeito com que ele me olhou quando eu contei o que havia acontecido à minha irmã. E também não conseguia deixar de pensar em como eu tinha estragado toda a nossa farsa.

   Tinha como eu ofender mais a minha presumida sogra? Praticamente mandando-a não se meter na minha vida no primeiro jantar que tinha com ela? Na casa dela, ainda por cima?

   Por que Paulo não estava gritando comigo?

   – Sabe, Roger gostou bastante de você – ele disse de repente, fazendo-me olhá-lo surpresa e, depois, duvidosa.

   – Sério – ele continuou, sorrindo só com um canto da boca e apoiando a cabeça na outra corda que segurava o balanço, como eu. – Assim que você saiu, ele disse que eu tinha feito bem ao arrumar uma garota decidida e que pensa por si mesma. Independente.

   Eu ri pelo nariz e rolei os olhos, sem saber se acreditava ou não.

   – E você? – resolvi perguntar.

   O sorriso dele se abriu, revelando seus dentes brancos e perfeitos.

   – Eu disse que não me importaria que você fosse um pouquinho menos independente de vez em quando – então ele me olhou mais fixamente e seu rosto ficou mais sério, ainda sem perder totalmente o sorriso. – Gostaria que precisasse de mim às vezes, Julieta.

   Fechei os olhos por alguns segundos. Como seria bom apoiar minha cabeça no ombro daquele garoto sentado tão perto de mim que nossos braços se tocavam. Fingir que o maior problema da minha vira eram as provas semana que vem. Deixá-lo cuidar de mim, acariciar meu rosto e colocar meu cabelo para trás da orelha. Beijá-lo como se fosse meu direito. Como se ele fosse meu e eu, dele.

   Seria bom se eu não fosse assombrada. Seria bom se eu não fosse puxá-lo para a minha sujeira, se eu não fosse deixá-lo a mercê dos meus fantasmas.

   – Mamãe também gostou de você – ele disse e eu soltei um bufo de descrença muito pouco feminino. – Ela pode ter parecido meio contrariada, mas eu sei que você ganhou o seu respeito.

   – Como? – perguntei.

   – Você é nova na cidade, estava na casa dela, namora o filho dela e, mesmo assim, a enfrentou para defender o seu...amigo. Minha mãe não é indiferente à lealdade.

   Abri os olhos lentamente e suspirei. Virei-me um pouco no balanço até ficar quase de frente para o Chermont e, finalmente, deixei seu olhar trancar o meu.

   – E quando você vai falar sobre a conversa que tivemos antes do jantar, Chermont? – perguntei, direta.

   Já havíamos feito muitos rodeios. Era hora de encarar a verdade de frente, não de continuar fugindo.

   Chermont passou uma mão pelo cabelo, inconscientemente. A umidade havia deixado seus fios mais enrolados, revoltos. Davam-lhe uma aparência meio rebelde, meio perigosa. Impossivelmente sexy, o maldito.

   Enquanto que o efeito que a umidade tinha no meu cabelo beirava o desastre. Se cinco centímetros de frizz sobre a minha cabeça pode ser chamado de desastre.

   O garoto estava sério agora. Parecia totalmente concentrado e seus olhos fitavam os meus com tanta intensidade que era impossível desviá-los. Meu coração batia acelerado no peito, ainda que minha expressão fosse quase serena. Ou pelo menos era o que eu esperava. Paulo ergueu uma mão e a colocou na minha, que estava apoiada no balanço entre nós.

   Seus dedos eram quentes e minha pele estava gelada. Ele encaixou seus dedos nos meus, e eu fiquei surpresa por nossas mãos se encaixarem tão perfeitamente, sem que nós sequer desviássemos o olhar um do outro.

   – Desculpe-me por ter agido daquele jeito – ele finalmente disse e sua voz parecia realmente arrependida. – É que você me pegou de surpresa e, deixa eu te contar uma coisa, você realmente sabe deixar uma impressão nas pessoas.

   Alô, mundo, quando foi que você virou de cabeça para baixo mesmo?

   Eu não sabia nem como começar a expressar minha surpresa. O garoto era demente? Maluco? Idiota? Ele tinha noção do que estava falando? Ele sequer me ouviu quando eu contei meu maior segredo para ele?

   A total incredulidade devia estar estampada no meu rosto, porque ele se aproximou, puxando nossas mãos para o seu colo, e disse:

   – Eu sei o que aconteceu. Você não precisa tentar me assustar. Eu não tenho medo, Julieta. Todos temos um passado e...

   E de repente, era demais. Eu larguei minha mão da dele com um puxão violento e me levantei, deixando que o blazer dele caísse no chão enlameado e pouco me importando.

   – Qual é o seu maldito problema, imbecil?! – praticamente gritei na cara dele, tomada de ódio. – Não é como se eu tivesse dito que roubei uma caixa de leite no supermercado, Chermont! Eu matei uma pessoa! Eu tirei a vida de uma pessoa...da minha própria irmã! A quem eu deveria amar...proteger...

   Eu não sei em que ponto as lágrimas brotaram. Mas elas jorravam por meus olhos, escorrendo por meu rosto e pingando no chão.

   Chermont não se levantou. Só ergueu o rosto para continuar me olhando com aquele ar sereno e compreensivo.

   Bom, eu tinha uma novidade para ele.

   Eu não queria sua maldita compreensão!

   – Você não se importa nem um pouco de ter uma maluca assassina por perto, é isso? – cuspi, a raiva atingindo níveis que eu não imagina que tinha. – Não tem medo que eu massacre sua família inteira durante a noite? Não tem medo de acordar e descer as escadas, só para escorregar no sangue daqueles que você ama?

   Paulo não disse nada. Levantou-se lentamente e se colocou à minha frente, olhando-me de cima.

   – Eu ainda lembro do dia em que Roger me contou sobre a garota da foto. Sobre sua morte.

   Eu dei as costas a ele. Mas não me afastei. Eu o sentir se aproximar mais, quase me tocando. As lágrimas eram incontroláveis e pareciam ter fechado a minha garganta. Eu não conseguia falar. Droga, eu mal conseguia respirar.

   – Roger não mentiria para mim. Ele nunca mentiu. Sua irmã não foi assassinada, Julieta.

   E eu sabia exatamente quais seriam as próximas palavras. E eu as odiava. E eu não queria ouvi-las.

   Mas ele disse do mesmo jeito.

   – Ela cometeu suicídio.

   Minhas pernas não me aguentaram mais e eu caí de joelhos na grama enlameada. No segundo seguinte, Chermont estava ajoelhado na minha frente, afastando meus cabelos do rosto com a expressão preocupada.

   Eu afastei a mão dele com um tapa.

   – V-você não...não entende... – eu solucei, apoiando as mãos no chão e deixando que meu cabelo voltasse a cobrir meu rosto como um véu. As pontas encostavam na lama, mas eu não me importava.

   Nada importava a não ser fazê-lo entender...fazê-lo ver quem eu era.

   O monstro que eu era.

   – Julieta, vamos entrar – eu o ouvi dizer, colocando uma mão nas minhas costas suavemente. – Você não está bem. Está gelada. Precisa se esquentar e dormir um pouco.

   Eu balancei a cabeça em negativa. Eu não precisava de nada daquilo. Eu precisava que ele se afastasse. Que sentisse nojo de mim, que me condenasse. Que nunca mais olhasse para os meus olhos vazios. Que fosse embora para bem longe. Longe de mim, longe da minha desgraça.

   – Julieta?

   – Você é idiota? – tentei gritar, mas só o que saiu foi um sussurro patético.

   Ouvi-o suspirar.

   – Já chega. Vou te levar para dentro.

   Ele tentou me puxar para seus braços, mas eu o empurrei com meu último resquício de força. Usei uma mão enlameada para afastar o cabelo do rosto e olhá-lo caído à minha frente.

   – Vai embora.

   Ele se endireitou, mas não se levantou. Ficou olhando para mim – cuja aparência devia beirar a de uma psicótica – no mesmo nível. E, lentamente, negou com a cabeça.

   – Você não vai? – perguntei, mais lágrimas riscando minhas bochechas.

   Ele balançou a cabeça mais uma vez.

   – Não – disse. – Não se você não vier comigo.

   – Você simplesmente não entende.

   – Você que não entende, Julieta! – ele gritou para mim, exasperado. – Você não a matou, ela se matou! Por que...por que você se culpa?

   Por quê? Por que eu me culpava? Porque ela era minha irmãzinha? Porque eu a deixei cair num buraco profundo totalmente sozinha? Porque eu não cuidei dela como deveria ter feito? Porque eu a feri? Porque eu a destruí?

   Por quê?

   – Você não entende – eu balbuciei pelo que me parecia a milésima vez. – Você não estava lá. Você não viu...não...

   Paulo finalmente se aproximou de novo e me abraçou. Eu me joguei nos braços dele como um náufrago se jogaria num pedaço de madeira flutuante. Como se ele fosse salvar minha vida.

   Mas era tudo ilusão.

   – Eu a obriguei – disse num fiapo de voz, o rosto apertado contra seu peito. – Eu a fiz fazer isso. Eu a instiguei. A forcei. Eu a matei, Paulo, eu a matei.

   Paulo só sussurrou para que eu me calasse. Apertou-me mais contra ele, como se eu fosse uma criança, e acariciou meus cabelos imundos.

   – Não foi culpa sua – ele repetia sem parar.

   E, mesmo que apenas minha mãe tenha me acusado diretamente, ele foi a única pessoa a me dizer isso.

   Que a culpa não era minha.

   E eu gostaria de acreditar nele.

   E que o resto do mundo – inclusive eu – estivesse errado.


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Notas finais do capítulo

Hey, eu não gostei muito desse capítulo, mas eu sentia que tava precisando escrever alguma coisa aqui, já que faz dois meses que eu não atualizo. Bem, eu juro que me esforcei ao máximo, desculpem se não foi suficiente :C
E eu sei que tô há dois capítulos sem responder aos comentários. Me desculpem MESMO, eu juro que vou responder todos assim que tiver tempo, ok? Não me abandonem por isso.
Bom, acho que é isso. Espero que tenham gostado.
Feliz Páscoa :3 (mega atrasado, masok D:)