Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 22
Capítulo 21


Notas iniciais do capítulo

Heey, eu tenho uma boa notícia. Estou finalmente de férias! O que significa mais capítulos! o/
Bom, desculpem a demora de novo e muuito obrigada por todos os comentários no cap passado :)
Um agradecimento especial à XBabyDollX pela recomendação que eu amei *-*
Desculpem se esse cap estiver ruim, é que eu tava meio sem inspiração e fiquei o dia toooodo tentando escrevê-lo.
Bom, boa leitura :)



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   É claro que fomos pegos.

   No fundo, não acho que realmente esperávamos outra coisa. Como se o Chermont não fosse notar minha ausência na detenção. Além disso, Gabe era o responsável por fazer os cartazes de boas vindas para amanhã e matou o trabalho pra fugir comigo. Enfim, apesar de sermos as ovelhas negras do colégio – ou talvez por isso – nossa pequena travessura não tinha como ter passado despercebida.

   A chuva estava inacreditavelmente forte quando Gabe e eu saímos do cinema. Fomos comer em uma lanchonete antes de correr para pegar o último trem de volta à escola. Eu estava cansada, mas envolta em uma sensação tão boa que nem conseguia dar um nome a ela. Talvez por não tê-la sentido em muito tempo. A chuva fez o clima ficar ainda mais frio, mas pela primeira vez eu não me importava. Gabe colocou o braço ao meu redor para me aquecer enquanto dividíamos um fone de ouvido – escutando todas as músicas do OneRepublic do meu velho IPod – e eu olhava para as gotas de chuva na janela com olhos sonolentos.

   Talvez por já ter escurecido ou por já estarmos tão cansados, a viagem para St. Werburgh pareceu ter durado mais tempo que quando saímos de lá. Mas eu me sentia tão confortável que não me importaria de passar a noite toda ali. Eu estava naquele tipo de torpor relaxante que me fazia não ter vontade de levantar nem para dar um passo e só queria que pudéssemos adormecer com o embalo suave do trem em movimento.

   Mas chegamos à cidade. E Chermont estava esperando na estação. Gabe e eu o vimos pela janela.

   Eu disse que fomos pegos.

   – Ele está se esforçando bastante, não é? – Gabe disse com um sorriso meio desgostoso enquanto me ajudava a pegar as sacolas.

   Eu não entendi o que ele quis dizer com isso, então preferi não responder nada. Ele não parecia estar esperando por uma resposta, de qualquer jeito.

   Minha agradável sonolência ficou para trás assim que saímos do trem. Não, assim que eu coloquei os olhos no monitor mais irritante da escola. Fomos direto em direção a ele, era inevitável. Um bom jogador sabe reconhecer quando perde e nem adiantaria tentar fugir. Chermont estava encostado casualmente em uma coluna, com um sobretudo impermeável e grosso por cima do uniforme e os cabelos molhados. Pequenas gotas d’água escorriam dos seus fios castanhos para seu pescoço e ombros, mas ele não parecia estar com frio.

   Por alguma razão, eu estava nervosa. Não percebi até estar parada na frente dele, sob aquele olhar verde frio. Minhas mãos pareciam tremer um pouco em volta das alças das sacolas que eu carregava e eu sentia dificuldade para engolir a própria saliva, como se algo estivesse bloqueando minha garganta. Eu sabia que seria expulsa se sequer pensasse em sair da linha, a madre superiora tinha sido bem clara nesse ponto, e uma fuga – mesmo que fosse só por um dia – era o fim. Não havia pensado nisso antes, mas talvez eu estivesse de volta àquele trem mais cedo do que tinha imaginado.

   E eu não queria ir embora.

   Esse pensamento me pegou totalmente de surpresa. Quando eu comecei a me sentir assim? Quando a ideia de abandonar um lugar onde quase todos pareciam me odiar – e para o qual eu nem queria ir, para começo de conversa – passou a ser tão assustador? Ali, exatamente onde eu estava, há um mês, eu havia chegado nessa cidade estranha, sentindo-me tão sozinha e deslocada no meio de tantos rostos desconhecidos estampados com sorrisos que pareciam debochar de mim. Eu não sorria. Nunca. Eu estava tão solitária, por tanto tempo, que já era algo normal para mim. E nunca pensei que, em tão pouco tempo, eu pudesse...mudar.

   É, eu mudei.

   Quem me vê não pode perceber, porque mesmo eu – até aquele momento – não tinha notado. Mas eu passei a sorrir mais desde que vim para cá. Eu passei a ficar mais irritada e a sair mais da solidão a qual me condenei. Passei a pensar, pelo menos um pouco, em outras pessoas. Acho que Gabe é a maior prova de que eu deixei de ser tão egoísta. E Paulo, de que meu coração não é de pedra e eu não tenho o menor controle sobre meus próprios sentimentos.

   Quando eu comecei a agir assim?

   Quando eu comecei a...pertencer a esse lugar?

   Eu não sabia. Não tinha a menor ideia. Eu só não queria ir embora.

   Eu não podia ir embora.

   Não agora.

   – Vamos – foi a única palavra dita pelo Chermont, que pegou as sacolas que estavam em minhas mãos e passou a carregá-las para mim.

   Fiquei parada, sem acreditar, fitando as costas largas do monitor enquanto ele caminhava para fora da estação. Onde estavam as acusações e as lições de moral? Será que ele as estava deixando para a madre superiora? Não parecia ser algo que ele faria, já que não perdia uma oportunidade para dizer na minha cara que Gabe era um delinquente e eu era uma idiota por andar com ele.

   Voltei a mim quando Gabe passou seus braços sobre meus ombros e me puxou para seguir Chermont para a rua.

   Lá fora, na chuva torrencial, Paulo abriu a porta de trás do carro dele e jogou minhas sacolas de qualquer jeito lá dentro. Ainda sendo meio puxada por Gabe, saímos na chuva até o carro do monitor, que abriu a porta do passageiro para mim. Eu entrei, Gabe foi para o banco de trás e Paulo ocupou seu lugar atrás do volante. Ele ligou o carro e tomou o caminho para o colégio.

   Ninguém dizia nada e eu estava completamente perdida. Ao meu lado, Paulo tentava o seu máximo para não parecer furioso, mas ele não me enganava. Seus lábios estavam comprimidos numa linha fina e seus dedos apertavam o volante com mais força do que o necessário. Já Gabe parecia relaxado no banco de trás, expondo uma expressão ligeiramente debochada.

   Que merda era aquela?

   Eu não queria quebrar o silêncio, talvez por medo de receber respostas que não queria ouvir, mas não entender o que estava acontecendo já estava me deixando irritada.

   – O que significa isso, Chermont? – perguntei finalmente. – Por que você veio buscar a gente? Foi a madre superiora que mandou?

   Paulo não respondeu nada e Gabe riu. Olhei para trás, surpresa e o peguei me olhando e balançando a cabeça.

   – Você ainda não entendeu, não é Julieta? – ele disse e riu mais um pouco.

   Eu não gostei da risada dele. Não era aquela espontânea e verdadeira que eu havia arrancado dele algumas vezes. Era meio venenosa.

   – A madre superiora não sabe de nada disso – ele continuou, enquanto eu continuava a olhá-lo por cima do ombro. – O monitor preferido dela está acobertando os delinquentes aqui.

   – Cala a boca! – rosnou Paulo, sem tirar os olhos da estrada. – Você é o único delinquente aqui, Kimak.

   – Que seja – Gabe respondeu, colocando os braços atrás da cabeça numa posição bem confortável.

   Eu ainda não tinha entendido muita coisa. Por que a madre superiora ainda não sabia que tínhamos fugido? Paulo estava realmente nos acobertando? Como Gabe sabia de tudo isso?

   – Espera aí – eu disse, franzindo o cenho. – Isso é verdade? Você está acobertando a gente, Chermont?

   Ele não disse nada, continuou dirigindo sem olhar para mim, os dedos apertando o volante com mais força ainda. Gabe também ficou calado. E então eu assumi que fosse verdade. Se não fosse, ele teria negado. Mas quem cala consente, não é?

   – Por que você está fazendo isso? – perguntei, fitando seu perfil.

   Mais uma vez ele não respondeu.

   – Por mim é que não é – Gabe comentou.

   – Já mandei calar a boca! – Paulo gritou e não tinha mais como esconder sua raiva. – Por sua causa, Julieta correu o risco de ser expulsa!

   Essas palavras me pegaram tão de surpresa que eu fiquei com a mente em branco por alguns segundos. Paulo Chermont estava me protegendo? Ele acobertou a transgressão do cara que mais odiava só para...só para eu não ser expulsa?

   Ele fez isso por mim?

   – Lembra do que a madre superiora disse, Julieta? – ele perguntou e, pela primeira vez desde que entramos no carro, lançou um rápido olhar na minha direção. – Você seria expulsa se ela soubesse disso. Esse idiota – acenou para Gabe – quase conseguiu isso!

   Chocada era pouco para me descrever no momento. Era mais que isso. Eu estava aliviada também, é claro. Eu não queria ir embora. Ainda não era capaz de admitir em voz alta ou até mesmo explorar os motivos mais a fundo, mas eu precisava ficar ali.

   Era o meu lugar.

   Mas...por que eu sentia que algo não estava certo?

   Ficamos em silêncio até chegarmos à escola. A chuva havia finalmente diminuído um pouco quando Chermont parou o carro perto do dormitório masculino.

   – Aqueles cartazes têm que ficar prontos até amanhã, Kimak – ele disse com a voz dura. – Não me importo que você tenha de ficar a noite toda trabalhando neles. Nem eu vou poder salvar essa sua pele imunda se você não fizer seu trabalho.

   Gabe ainda estava com um sorriso meio debochado quando disse:

   – Você que manda, chefe – e depois, colocou a mão no meu ombro. – Nos vemos amanhã, Julieta.

   Ele saiu na chuva e Chermont não esperou nem um segundo para arrancar com o carro em direção ao dormitório feminino.

   Ficamos aqueles poucos minutos em silêncio e quando ele parou bem em frente ao meu dormitório e desligou o carro, continuamos calados. Eu estiquei o braço até o banco de trás e peguei minhas compras, mas não fiz nenhum movimento para sair do carro. Estava bem escuro e eu só podia ver os contornos do rosto do garoto ao meu lado.

   Eu continuava sentindo que havia algo errado.

   Eu queria ficar naquela escola, mas não daquele jeito. Chermont culpou Gabe por nós termos fugido e por isso estava me ajudando.

   Não parecia certo, já que a culpa não foi do Gabe.

   Realmente não parecia algo com que eu me importaria há algumas semanas atrás, mas eu estava mesmo me tornando menos egoísta. Se fosse para ficar ali daquele jeito, então era melhor eu ir embora de uma vez.

   – Não foi culpa dele – eu disse de repente. – Você não tem que me proteger achando que Gabe me obrigou a sair daqui ou coisa assim, porque não foi desse jeito. Eu não faço nada que não quero, Chermont.

   – E o que você quer dizer com isso? – perguntou, sem olhar para mim.

   – Eu estou dizendo que, se é por isso que você nos acobertou, não precisa. Eu sou culpada. Eu quis fugir. Ninguém me obrigou a nada.

   Ele ficou calado por um longo tempo. Um relâmpago cortou o céu e eu pude ver seu rosto virado para o meu por alguns segundos. Seus olhos estavam suaves, sua boca não mais apertada em raiva.

   – Não é por isso – ele finalmente respondeu, a voz mais baixa e rouca. – Eu não estou te protegendo porque acho que o Kimak te induziu a fugir. Eu sei que você não é o tipo de garota que os outros conseguem obrigar a fazer alguma coisa.

   – Então por quê?

   – Porque eu não quero que você vá embora.

   O sangue pulsava rápido em minhas veias e eu podia ouvir meu coração batendo rápido. Controlei o impulso de bater no peito e mandá-lo parar. Eu levantei os olhos e fitei o pouco que eu podia ver dos de Paulo na escuridão. Como se houvesse um fio invisível em volta de mim, eu me sentia puxada por ele. Para ele. Mas não me mexi. Nem acho que respirei. Mas ele se aproximou, devagar, até que eu quase podia sentir sua respiração se confundir com a minha.

   Era por isso que eu não queria ir embora? Era por ele? Por Paulo Chermont?

   Eu não poderia responder. E eu não queria responder. Não agora. Talvez nunca.

   Eu só queria beijá-lo naquele momento. Queria seus braços em volta de mim, queria roubar seu calor e sentir o gosto da sua pele. Queria ouvir sua voz grave em meu ouvido. Não me importava com as palavras, só queria que ele as dissesse só para mim. Que fossem só minhas.

   Querer tanto isso me assustou. Que direito eu tinha de querer essas coisas? Mas aí uma voz em minha cabeça retrucou “por que você não teria, Julieta?”

   E a minha resposta de sempre, atrás da qual eu me escondi por dois anos, não veio imediatamente como sempre fez. Isso era certo? O que significava?

   Paulo se aproximou mais e colocou uma das mãos em meu rosto, puxando-me para ele.

   Mas eu não podia. Não estando tão confusa. Eu não pensava só em mim, mas nele também. Eu não queria machucá-lo e...Luma Britto estava certa. Eu ia acabar machucando.

   Afastei-me, abri a porta do carro e saí com todas as minhas compras o mais rapidamente que pude. Alcancei a entrada do dormitório e parei, mas não olhei para trás. Depois de quase um minuto inteiro, ouvi, sob o barulho da chuva, Chermont ligar o carro e ir embora.

...

   Minhas colegas de quarto me ignoraram quando entrei toda molhada e cheia de sacolas de compras. Agradeci mentalmente por isso, já que eu estava tão cansada e com os pensamentos dando voltas que não tinha a menor disposição para brigar com ninguém. Só troquei de roupa e caí na cama, adormecendo logo em seguida.

   Mas a impressão que tive foi que, assim que apoiei a cabeça no travesseiro e fechei os olhos, fui acordada por uma garota de cabelos cor de rosa.

   – Por mim você podia dormir o dia todo – ela disse numa voz entediada. – Mas Paulo pediu para eu te acordar.

   Virei-me na cama e tentei voltar a dormir, mas a garota continuava falando para eu me levantar e a voz dela já estava me irritando. Entreabri os olhos devagar e percebi que já era de manhã. Finalmente, reuni coragem e sentei-me na cama, esfregando os olhos.

   – Por que acordar tão cedo num sábado? – me queixei.

   – Porque hoje é dia da família e Paulo disse que você precisa estar na entrada da capela em meia hora – Britto respondeu, finalmente se afastando da minha cama e indo até a penteadeira.

   Ela pegou um gloss labial e passou, olhando-me através do espelho. Só então percebi que ela não estava vestindo o uniforme, mas uma calça jeans muito colada, uma blusa branca cheia de babados por baixo de um cardigã amarelo com estampa de passarinhos, e sapatilhas.

   É, de repente eu lembrei. Dia da família.

   Dei uma olhada no relógio em cima da mesa de cabeceira e vi que ainda não eram nem oito da manhã. Com um gemido mental, me levantei e fui até minha mochila pegar minha escova de dente, o tempo todo imaginando o que o Chermont poderia querer comigo tão cedo.

   Minha vontade era simplesmente ignorá-lo e voltar a dormir, mas, depois de ontem e do que ele fez por mim, eu sabia que não poderia. Eu podia não ter dito – e nem iria dizer – mas eu estava agradecida. Por causa dele, eu poderia ficar ali.

   Tinha acabado de pegar uma das minhas velhas e amassadas camisetas da mochila quando Luma olhou para mim e torceu o nariz.

   – Hoje é o dia da família, você bem que poderia se arrumar um pouquinho, não é? – ela disse, guardando o gloss. – Para nenhum pai pensar que isso aqui virou uma clínica de reabilitação.

   Eu levantei e sorri falsamente para ela.

   – Eu não me preocuparia com isso – disse. – Afinal, é só olhar pra você que eles vão saber que isso é um bordel mesmo.

   Ela me olhou com raiva, mas não disse nada, me deu às costas e foi embora. Não sabia como o Chermont podia afirmar que aquela garota não me odiava. Não que “não gostar” não fosse o suficiente, mas ela me olhava com tanto nojo que era difícil não imaginar a garota com ódio no coração. Talvez ele simplesmente não quisesse enxergar os motivos por trás das ações dela. Eu tinha quase certeza de que ela havia contado para ele que eu tinha pesadelos não por estar preocupada comigo, mas por puro deboche.

   Finalmente sozinha, fui vasculhar uma calça jeans em minhas sacolas de compras, mas a primeira coisa que achei foi um dos vestidos que Gabe insistiu para que eu comprasse. Era o cor de rosa. Geralmente eu não era muito fã de rosa, mas aquela cor era até bonita, suave e discreta.

   Você vai ser a garota mais bonita da escola com esse vestido.

   Tudo bem que Gabe dissera isso quando eu estava vestindo o azul, mas o cor de rosa era bem mais quentinho que o outro e estava muito frio.

   Aquele dia da família era uma piada, principalmente para mim. Família é uma palavra que reúne tantas coisas...tantas coisas que eu não tinha mais. Eu podia ter parentes, mas isso é diferente de família. Unidade, amor, carinho...eu realmente não tinha mais essas coisas. Eu tinha um pai, uma mãe e uma irmã. E não podia esperar nada de nenhum deles. Não que minha mãe tivesse culpa, mas eu sabia que não podia contar com ela para nada e isso era um fato. Já meu pai e minha irmã...bom, o fato é que eu não queria contar com eles.

   E é claro que minha “família” não iria aparecer ali, naquele sábado da escola. Para falar a verdade, a última coisa que eu queria era vê-los, mas mesmo assim eu não podia deixar de me sentir meio invejosa, eu acho. Luma estava se arrumando para ver os pais, assim como todos os outros alunos daqui. Os que, como eu, não podiam ir para casa nos fins de semana deveriam estar muito animados. Se tudo fosse diferente, talvez eu pudesse ser um deles, esperando para ver meu pai, minha mãe e minhas irmãs. Feliz, querendo apresentá-los aos meus amigos.

   Mas se tudo fosse diferente, eu não estaria ali para começar. Se tudo fosse como há dois anos, eu nunca me separaria das minhas irmãs.

   E hoje só a ideia de ver Bianca me deixava meio nauseada.

   Mas eu não tinha que me preocupar com isso. E, para ser sincera, eu estava começando a pensar em seguir o conselho de Gabe e, inacreditavelmente, de Luma. Talvez eu devesse mesmo me arrumar. Não, é claro, para meus parentes, já que eles não viriam, mas...

   Bom, a verdade é que eu queria ver a reação de uma certa pessoa quando me visse naquele vestido.

   Corei, mesmo estando sozinha, só com esse pensamento idiota. Pensamentos como esse estavam invadindo minha cabeça com cada vez mais frequência e eu não sabia como pará-los. E foi com esse pensamento que eu peguei minhas coisas e fui para o banheiro. Havia algumas garotas lá, mas a maioria tinha acordado mais cedo – acho que para ajudar com os últimos preparativos – e não estava mais no dormitório. Ignorei os olhares de e os cochichos como sempre e, sentindo-me terrivelmente desconfortável, entrei numa cabine para tomar banho. Demorei o máximo que pude debaixo do chuveiro para dar tempo de todas irem embora, mas quando saí ainda tinham duas garotas lá se arrumando. Eu havia levado aquele estúpido vestido, então o coloquei e escovei meus dentes o mais rápido possível.

   Finalmente saí de lá e voltei para o meu quarto – abençoadamente – vazio. Vesti a única meia calça preta que havia comprado ontem e coloquei as sapatilhas novas também, penteei o cabelo e fiz uma trança. Até pensei que seria bom usar um pouco de maquiagem para disfarçar minha palidez, mas não tinha nenhuma. Talvez eu devesse ter comprado ontem com Gabe.

   Tá, no que eu estava pensando?

   Eu estava agindo como uma ridícula, me arrumando para um garoto! Desde quando Julieta Vaughan faz esse tipo de coisa? Eu não preciso me arrumar para ninguém! Desfiz a trança e baguncei os cabelos, mas como já estava atrasada, não troquei de roupa. Apenas saí logo daquele quarto antes que tivesse mais alguma ideia idiota.

   Por sorte, não estava chovendo, não penso que meu humor, que já não estava muito bom, sobrevivesse a mais um dia de chuva. Enquanto eu atravessava a escola, pude ver vários alunos ajudando a colocar cartazes de boas vindas – provavelmente feitos pelo Gabe – e a colocar cadeiras e mesas perto do palanque que haviam montado na noite anterior. Parecia mesmo como um festival.

   Também pude notar que todos por quem eu passava ficavam me olhando com expressões surpresas. Não parei nem uma vez, apesar de sentir muita vontade de bater num desses idiotas que ficavam me encarando. Não é como se nunca tivessem visto uma garota de vestido. Será que estava tão ruim assim? Droga! Maldita hora em que deixei Gabe me convencer de que usar um vestido no dia da família era uma boa ideia!

   Bom, agora era tarde. Continuei meu caminho até a capela, que estava com as portas fechadas quando cheguei lá. Eu estava dez minutos atrasada, será que o Chermont resolveu ir atrás de mim? O garoto não consegue ser menos impaciente? Eu é que não iria ficar ali esperando até que ele resolvesse voltar.

   Certo, a impaciente era eu.

   Logo quando eu ia sair para procurá-lo, a porta atrás de mim se abriu e eu o vi. Chermont estava usando jeans e um suéter verde musgo que fazia seus olhos parecerem mais brilhantes. Seu cabelo estava arrumado e não a confusão de fios ondulados de sempre. Por alguma razão, a visão dele me fez querer sorrir. Ele estava muito engraçado com aquele cabelo de bom menino. Eu me controlei. Sua expressão, entretanto, não foi tão controlada quanto a minha. Ele parecia não conseguir fechar a boca.

   Qual o problema dos alunos dessa escola? Onde está escrito que eu não posso usar um vestido sem que todo mundo fique com essa expressão chocada?

   – Ahn...Julieta, você...eu...quer dizer, você está... – ele gaguejou, sem fazer sentido nenhum. – Você está...err...atrasada.

   Bufei.

   – Você queria o quê? – perguntei, rolando os olhos. – Hoje é sábado, eu deveria estar dormindo. O que você quer de mim, afinal?

   Ele corou e ficou calado por alguns segundos, antes de passar os dedos pelos cabelos arrumados, bagunçando-os do jeito que eu gostava.

   Espera aí, eu não tenho que gostar do cabelo dele de nenhum jeito. De jeito nenhum. Para de pensar nessas coisas, Julieta.

   – Bom, você fugiu da detenção ontem, então você vai cumpri-la hoje – ele respondeu, ainda com o rosto meio vermelho. – Entra – disse, saindo da frente da porta para eu passar.

   Eu não me movi.

   – Isso não é justo! – reclamei. – Se a madre superiora não sabe que eu saí da escola ontem, ela não tem como saber que eu faltei à detenção. Então por que eu tenho que cumpri-la agora?

   – Por que eu sei que você faltou – ele respondeu apenas. – E você está me devendo uma por ontem. Entra logo.

   Rolei os olhos mais uma vez e entrei na capela. Era a minha primeira vez ali e devo confessar que igrejas sempre me deixam meio desconfortável. Todas aquelas imagens te encarando com aqueles olhos imóveis e expressões piedosas...sei lá, acho meio enervante. E a capela da Werburgh nem deveria ser chamada de capela, já que era tão grande. Tinha o pé direito alto, uma pintura no teto e vitrais coloridos por toda a parede.

   – Com toda a agitação de ontem, esqueceram de pedir para alguém limpar a capela – Chermont começou, fechando a porta atrás de nós. – E é isso que você vai fazer.

   – O quê?! – soltei, incrédula.

   – Os pais dos alunos vão chegar em pouco tempo e tudo tem que estar limpo e arrumado – ele explicou.

   – E eu vou servir de faxineira? – retruquei, incrédula. Aquele garoto não podia estar falando sério...

   – Bom, se tivesse pensado antes de ter feito o que queria ontem, poderia estar dormindo agora.

   Droga! Soltei um longo suspiro. Odeio quando os caras irritantes têm razão.

   – Certo – cedi, baixando os ombros. – Por onde eu começo?

   Com um meio sorriso, ele pegou um espanador e o estendeu para mim.

   Isso era tortura. Tinha que ser.

   Mas, para ser justa, Chermont não me obrigou a fazer tudo sozinha. Nós fizemos o trabalho juntos. Começamos com os bancos, que eram muitos. Aquilo parecia interminável. Eu não entendia como aquele lugar poderia estar tão empoeirado se havia missa toda semana. Mas eu resolvi ficar calada e não reclamar, para terminar logo aquilo e poder ir embora. Se eu soubesse que viraria faxineira, teria colocado uma roupa mais confortável. Eu devia queimar aquele maldito vestido!

   Depois dos bancos, limpamos o chão. Sempre em silêncio. Eu não podia deixar de ser consciente da presença de Chermont, mas fiz o possível para me concentrar no trabalho e não pensar nele, não olhar para ele, não chegar perto dele. Eu tentava fazer um bom trabalho fingindo que ele não estava ali. E acho que ele estava fazendo a mesma coisa comigo.

   Preciso dizer que não deu certo?

   Quando finalmente acabamos – depois de limpar todas aquelas imagens sinistras – eu me joguei no primeiro banco logo em frente ao altar, cansada e com sono. Paulo saiu pela porta à direita da capela – que dava para uma sala, eu acho – e voltou carregando uma caixa de luzinhas de natal.

   – Arrume isso aqui lá na frente – mandou ele, jogando a caixa para mim.

   Quem ele pensava que era para falar desse jeito comigo?

   – Nem pensar – respondi, largando a caixa ao meu lado. – Estou exausta, coloca você.

   – É melhor você fazer isso logo, Julieta, lembre que está cumprindo detenção – seu tom era uma cópia daquele tom de reprovação dos adultos.

   Mas eu já tinha tido o suficiente daquilo.

   Era sábado, eu passei o dia anterior andando para lá e para cá, dormi mal, precisei acordar cedo, fui obrigada a limpar uma capela na companhia da pessoa que me deixava mais confusa no mundo, o que não fazia nada bem para o meu psicológico. De vestido, ainda por cima. E agora precisava aguentá-lo mandando em mim daquele jeito, como se eu fosse sua empregada?

   É, eu estava finalmente puta.

   – Quer saber? – falei, levantando-me, pegando a caixa e jogando nele com força. – Se você quer tanto, coloca você! Nem é natal! Aliás, faz melhor, amarra essa merda no seu pescoço e se enforca logo!

   Chermont lançou para mim um olhar cheio de surpresa e raiva.

   – Qual o seu maldito problema?! – ele gritou de volta, jogando a caixa da discórdia no chão. – Você se esforça pra ser maluca, é?

   Maluca?! Ele estava falando sério?!

   Era incrível a capacidade que só aquele garoto tinha de me tirar do meu estado normal e me mergulhar naquele mar de emoções intensas. Raiva, frustração, medo...

   E algo muito, muito pior.

   – O meu problema?! O meu problema é você! – gritei de volta, aproximando-me mais dele, sentindo o rosto quente de raiva. – Você e esse seu arzinho de superioridade me deixam maluca sim! Sem falar nessa sua mania de querer mandar em mim! Ninguém manda em mim, entendeu?

   Ele ficou parado, olhando-me com olhos em chamas durante alguns segundos. Passou os dedos pelos cabelos duas vezes, numa tentativa de se acalmar. A respiração dele era um reflexo da minha, acelerada e irregular. Depois do que me pareceram séculos de silêncio, ele finalmente pareceu chegar a uma decisão, assentiu e disse:

   – Entendi.

   E trancou sua mão no meu braço, me puxou para ele e colou seus lábios nos meus.

   E foi como se tudo ao meu redor desaparecesse. Foi como em todas as vezes em que nos beijamos, só que melhor, como sempre parecia ser. Sua respiração era quente na minha pele e sua boca ainda tinha o gosto da pasta de dente que usou de manhã.

   Eu queria aquilo há tanto tempo que não pude me obrigar a pará-lo. A cada beijo dele, eu só queria beijá-lo mais. Seus lábios não satisfaziam a fome que eu tinha dele, só a aumentavam. E era assustador saber que aquele garoto tinha aquele poder sobre mim.

   Mas tudo o que importava no momento era que ele estava me beijando.

   E era tão bom que eu queria chorar.

   Passei os braços por seu pescoço e ele passou os dele pela minha cintura, apertando-me contra ele até que não existisse mais espaço entre nossos corpos. Eu passei a bagunçar os fios ondulados dele com meus dedos, deixando-os do jeito que eu gostava. Sim, eu não podia negar, eu adorava quando o cabelo dele estava bagunçado. Deixava-o com um ar menos certinho. E saber que eu o estava deixando assim era ainda melhor.

   Entreabri os lábios e o deixei aprofundar o beijo. A língua dele na minha fez um arrepio passar por meu corpo como um raio. Meus olhos estavam fechados e eu estava completamente entregue ao momento. Nossa raiva não havia desaparecido, apenas se transformado em algo igualmente intenso.

   Como eu disse, o garoto tinha o talento para arrancar as emoções mais fortes de mim.

   Minha mente estava completamente afogada por ele, incapaz de um único pensamento coerente. Por isso, quando ele me empurrou até uma mesa e me fez sentar nela, eu não fui capaz de nada para impedi-lo. Nem queria. Ele me abraçou, encaixando-se entre minhas pernas, passando as mãos pelas minhas costas e cintura. Eu passei minhas mãos de seus cabelos para seus ombros, apertando os músculos com os dedos. Senti suas mãos em minhas costelas, apertando tanto que quase chegava a machucar.

   O cheiro dele ficaria impregnado em mim. Aquele cheiro que me fazia suspirar involuntariamente e ajudava a trazer o rosto dele para a minha cabeça. Eu não poderia mais queimar aquele vestido.

   Como se viesse de muito longe, ouvi um barulho de porta sendo aberta, mas não me importei com isso. Podia ser o vento ou coisa da minha cabeça. Mas eu não teria como imaginar o que veio depois e duvidava que o vento pudesse soar como aqueles ofegos de surpresa.

   Com o coração praticamente saltando do peito com o susto – e com os lábios do monitor, para ser sincera – soltei-me dele e me virei na direção do barulho. Paulo fez o mesmo.

   É, era o pior cenário possível.

   A madre superiora estava lá, com as mãos cobrindo a boca, nos olhando como se estivéssemos cometendo um pecado capital e, logo atrás dela...

   – Mãe?! – Paulo praticamente guinchou, o rosto pegando fogo.

   A mesma mulher que eu havia visto ontem com Gabe. A mãe do garoto que eu estava agarrando dentro de uma igreja. Sua expressão era uma cópia exata a da madre. E não era apenas a mãe dele que estava lá. Não, a família inteira tinha que ter presenciado tudo. Ao lado dela estavam Victor e Mari, os irmãos dele, que nos olhavam com uma expressão surpresa e divertida, respectivamente.

   – Eu disse que ela era namorada do Paulinho – soltou Mari com um sorrisinho estranhamente malicioso para uma criança. – Não é?

   Mas as surpresas não acabaram por aí. Antes que Paulo e eu pudéssemos sair daquela posição constrangedora, antes que um de nós pudesse dizer alguma coisa ou inventar alguma desculpa estapafúrdia como “ah, um cisco caiu no meu olho e ele estava apenas me ajudando a tirar”, eu percebi outras duas pessoas naquela porta.

   Não sei como não as havia visto antes, como meus olhos não foram guiados até aqueles que eram tão iguais aos meus.

   Aqueles olhos que ainda me assombravam em sonhos.

   Ali estavam as últimas pessoas que eu poderia esperar ver, mesmo naquele maldito dia.

   E foi minha vez de soltar, embora numa voz baixa e totalmente diferente da do monitor:

   – P-pai? Bianca?


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Notas finais do capítulo

Sei que eu tinha prometido algumas revelações, mas eu tô tão sem inspiração que achei melhor deixar pro próximo cap.
Espero que vocês tenham gostado desse.
Mandem muitos reviews porque agora que eu tô de férias, eu posso postar mais frequentemente! :D
Beijos :**