Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 21
Capítulo 20


Notas iniciais do capítulo

Heeeeeeeey, antes de tudo eu quero dizer que esse capítulo é especialmente pra Biscuit, pra Lucy Lima e pra Júlia, não só por terem deixado recomendações perfeitas, mas por serem umas fofas *-*
Júlia, esse cap não tem 6 mil palavras, mas deve ter umas 4, tudo bem? Espero que você goste mesmo assim.
O que dizer? Só que eu estou encantada com os reviews, muito obrigada mesmo a quem deixou no cap passado, vocês me fizeram muuuito feliz. Obrigada por serem leitoras tão lindas e compreensivas com a minha demora. Espero mesmo que gostem do cap :)
Boa leitura.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/162378/chapter/21

   Desculpe, mas não vou poder ver você hoje. A irmã Carmen teve a brilhante ideia de me pedir para ajudá-la a arrumar a sala de teatro. Com sorte, terminarei em alguns anos.

   Espero que esteja bem.

   Gabriel.

   Fiquei olhando para o texto na tela do meu celular com um sorriso meio triste nos lábios. Gabe mandava as mensagens mais bobas e escrevia de um modo que me fazia conseguir visualizá-lo falando aquelas palavras. Era muito ele. Quando foi mesmo que Gabe Kimak se tornou tão importante pra mim? Não poderia dizer o momento exato, porque não foi em um momento, de uma hora para outra. Ele só era. Depois de tantos anos sozinha, eu agora tinha um amigo. Um amigo que confiava em mim embora eu não confiasse totalmente nele. Não era nada pessoal, eu só não podia evitar. Eu não confiava em ninguém. Não sabia confiar em ninguém.

   Mas Gabe achou pequenas brechas nas minhas barreiras emocionais e se esgueirou por elas. Começou a se tornar...necessário, eu acho.

   Ao contrário de Paulo-Monitor-Fascista-Chermont, que acho que não entendia o conceito de sutileza e simplesmente chegou derrubando todas as paredes ao meu redor de forma violenta. E tornou-se...perigoso. Porque eu não podia controlá-lo.

   Por muito tempo, mesmo antes da morte da minha irmã, eu me convenci de que era feliz sozinha...não, boa sozinha. Eu achava que era uma daquelas pessoas que eram feitas para a solidão. Achava que gostava de ser solitária. Então a sensação de querer alguém, de precisar de alguém era nova, estranha e aterrorizante para mim.

   E eu queria e precisava de Gabe naquele momento.

   Eu ainda não me sentia eu mesma. Ainda estava meio magoada, meio ferida. Eu não costumava me importar – ou talvez não costumasse sentir – mas parecia que aquele lugar estava me afetando mais do que eu pensei que faria. De repente, ser odiada por todo mundo era mais doloroso do que costumava ser e eu não conseguia mais permanecer indiferente.

   Pela primeira vez desde que cheguei ali, quis ter uma casa para a qual pudesse voltar.

   E desejar tanto uma coisa impossível só faz o coração sangrar.

   Gabe, eu digitei no celular. Eu preciso conversar com você. Eu sinto a sua falta

   Não coloquei um ponto final.

   Ele era o único que podia entender um pouco do que eu estava sentindo porque também era odiado por todos aqui. Ele era um proscrito como eu. Talvez ele pudesse me ajudar a passar por isso ou apenas me escutar. Eu só queria que alguém pudesse me ouvir. Uma vez.

   Mas depois de ter fitado aquelas palavras por alguns minutos, apaguei tudo e joguei o celular do outro lado da cama. Eu havia me sentado para pegá-lo e ver a mensagem de Gabe e voltei a me deitar sob as cobertas.

   Era fim de tarde e a chuva havia diminuído, mas ainda batia de modo ritmado contra a janela. Continuava a fazer um frio de doer, mesmo embaixo das cobertas. Aquele maldito colégio deveria mesmo investir num sistema de aquecimento central se não quisesse fazer com que os estudantes morressem de hipotermia.

   Eu havia dormido a maior parte do dia, mas ainda me sentia cansada. Parecia que quanto mais eu ficava deitada na cama sem fazer nada, mais cansada eu ficava, só que estava com preguiça demais para fazer algo a respeito. Para completar, meu estômago reclamava de fome. Frio, fome e cansaço, meu estado quase permanente desde que eu cheguei aqui.

   Eu nem percebi que havia cochilado até que fui acordada por leves batidas na porta. Sentei-me rapidamente na cama, sobressaltada, sentindo-me meio tonta. Meus olhos não pareciam entrar em foco e o quarto estava escuro. Levantei-me e cambaleei até a porta, destrancando-a. A luz do corredor machucou meus olhos quando eu abri a porta, fazendo-me colocar o braço sobre o rosto.

   – Você parece péssima – eu ouvi Chermont dizer.

   Não respondi nada. Eu me sentia péssima. Afastei-me para deixá-lo entrar e fechei a porta, mergulhando novamente o aposento na escuridão e ainda sentindo pequenas luzes pipocando em meus olhos. Não estava surpresa por ele estar ali. Sabia que ele viria. Talvez eu estivesse começando a entendê-lo. Ou talvez ele estivesse se tornando previsível.

   – Fiquei preocupado quando você não apareceu para o almoço, então trouxe o jantar – foi dizendo e eu finalmente consegui focalizá-lo quando ele acendeu o abajur que havia em cima da mesa de estudos bagunçada. Ainda no escuro, ele havia conseguido empurrar algumas coisas na mesa e abrira espaço para apoiar uma bandeja com comida. – Você ainda não comeu, certo?

   Não precisei responder. No momento em que dei um passo em direção a ele, meus joelhos cederam, e eu precisei me apoiar na cama de Luma para não cair. Chermont correu até mim e me ajudou a levantar, passando meu braço por seus ombros. Ele precisou se abaixar para fazer isso e eu tive vontade de rir. Não eram muitos garotos que conseguiam ser tão mais altos do que eu.

   – Você está bem? – perguntou, as sobrancelhas unidas em preocupação.

   Eu assenti, apoiando-me nele.

   – Só estou meio tonta – falei e minha voz saiu arranhada. Tossi para clareá-la. – Passei a maior parte do dia jogada na cama.

   Ele me ajudou a voltar à minha cama e ajeitou os travesseiros atrás de mim para que eu sentasse confortavelmente. Eu me cobri com o edredom – já que ainda estava morrendo de frio – enquanto ele ia até a mesa pegar a bandeja.

   – É porque você ficou muito tempo sem comer – ele disse, só com um ligeiro tom de reprovação, enquanto apoiava a bandeja no meu colo.

   Ele me trouxera dois sanduíches, suco de laranja e – para a minha surpresa – um cupcake de baunilha e chocolate.

   – Onde você conseguiu isso? – perguntei, apontando para o bolinho.

   Ele só levantou um canto dos lábios num meio sorriso e não respondeu. Pegou a cadeira da mesa de estudos, sentou ao lado da minha cama e ficou me observando começar a comer vagarosamente. Eu tinha consciência do meu estado patético e semi catatônico de quem dormiu o dia todo. Meu cabelo, para variar, estava uma calamidade e meu rosto devia estar parecendo uma lua de tão inchado. Eu sempre acordava com o rosto inchado. E mesmo assim – ou talvez por isso – Chermont não tirava os olhos de mim.

   Ficamos em absoluto silêncio até eu acabar o primeiro sanduíche. Perguntei-me se ele também estava pensando na outra vez em que estivemos em uma situação parecida com aquela. Paulo, não o sanduíche. Parecia ter sido há séculos, mas foi apenas há um mês. Naquele dia eu só detestava o garoto bonito e arrogante, alto como uma montanha e com olhos que não decidiam se eram verdes ou castanhos.

   Um mês depois e eu não conseguia mais me obrigar a sentir isso. Eu simplesmente não conseguia odiar aquele garoto como eu gostaria.

   – O que foi? – perguntei finalmente enquanto apoiava o copo de suco meio cheio na bandeja, cansada daquele silêncio e daqueles olhos sobre mim. – Perdeu alguma coisa aqui?

   Ele só deu de ombros e fitou meus olhos.

   – Acho que sim – respondeu simplesmente.

   Eu fiquei esperando que ele parasse de dar uma de misterioso, mas ele só partiu aqueles lábios macios num sorriso meio bobo. Meu coração pulou uma batida.

   – Eu só estou preocupado – ele finalmente disse, levando uma mão até a minha testa. – Você não parece nada bem.

   Eu fui pega de surpresa e por isso demorei alguns segundos para afastar a mão dele.

   – Você está meio quente, Julieta. Acho que está com febre – disse, abaixando a mão e me fitando com uma expressão ainda mais preocupada que antes, o que só me deixou desconfortável.

   Era algo meio novo ter alguém se preocupando comigo daquele jeito. Era bom, mas estranho. Fazia-me sentir culpa por parecer vulnerável. Fazia-me sentir segura.

   – Eu estou bem – respondi, sem olhar para ele e voltando a comer.

   Paulo balançou a cabeça e se levantou, dizendo:

   – Já volto.

   Eu assenti e o observei ir enquanto mordia meu cupcake. Parecia gostoso, mas eu não conseguia sentir o sabor direito. Continuei comendo mesmo assim. E, antes que pudesse pensar em algo que fizesse sentido mesmo dentro da minha cabeça, Chermont estava de volta com um vidro de comprimidos e cobertores extras. Ele colocou os cobertores na beira da cama e tirou dois comprimidos do vidro, colocando-os na minha bandeja.

   – Você quer me drogar? – perguntei, arqueando uma sobrancelha.

   Ele me lançou um olhar debochado.

   – Claro. Você fica chapada com aspirina?

   Rolei os olhos.

   – E como vou saber que isso é realmente aspirina?

   – Acho que você vai ter que se arriscar – ele disse, voltando a sentar na cadeira ao lado da minha cama e beliscando meu braço com força.

   Eu soltei uma exclamação de dor e surpresa e Paulo aproveitou para pegar os comprimidos e jogá-los na minha boca. Precisei engoli-los para não engasgar e peguei o copo de suco de laranja que Paulo me estendia, bebendo tudo.

   – Idiota! – gritei, jogando o copo em cima dele depois que acabei.

   Ele conseguiu pegar o copo antes que caísse no chão e quebrasse e colocou-o seguramente no chão, antes de começar a rir.

   Fiquei olhando para ele. Ele estava rindo mesmo. Seu cabelo ondulado caía em sua testa e seus olhos estavam fechados. Uma mão dele estava apoiada na minha cama e a outra foi parar em sua nuca enquanto ele continuava com aquele sorriso tão aberto. Não era engraçado. Não mesmo. Mas vendo-o rir daquele jeito, eu não me importei com isso. E eu nem percebi que havia começado a rir com ele.

   Ele estava mais perto de mim agora. Levantou da cadeira e sentou ao meu lado na cama. Não estava mais rindo, apenas sorrindo. Um sorriso completamente diferente daqueles sorrisos tortos que estava acostumado a me dar. Era um sorriso largo e meio ingênuo, como o de um garotinho. Eu devia estar estampando um parecido. Mas duvido que o meu tivesse o efeito que o dele tinha em mim.

   Ele levantou uma mão, devagar, fazendo-me vê-la e ter tempo para decidir se iria afastá-la ou não. Eu fiquei parada enquanto ele a aproximava do meu rosto. Pensei em fechar os olhos, mas os dele haviam se trancado nos meus e eu não conseguia pensar em parar de fitar aquele verde intenso. Sua mão acariciou gentilmente minha bochecha. Depois ele passou o polegar gentilmente pelo meu lábio inferior. Então levou a mão até os próprios lábios e provou o chocolate do cupcake que havia manchado os meus.

   Senti um arrepio passar por mim. Ele pareceu perceber e pegou os cobertores que trouxe junto com a aspirina, colocando-os sobre mim e quebrando nosso contato visual. Eu não disse nada e fiquei fitando minhas mãos apertando o edredom.

   – Você é tão bonita – o ouvi dizer baixinho e me virei para encontrá-lo me encarando com uma suavidade que não pensei que podia existir em seus olhos. – Eu percebi desde a primeira vez que vi você. Mas eu imaginei que você seria doce e alegre. Eu imaginei que você sorriria para mim o tempo todo. Mas só hoje eu pude realmente ver o seu verdadeiro sorriso. E é mais lindo do que eu pensei que seria.

   A confusão estava definitivamente estampada em meu rosto. Qual era o sentido daquelas palavras? Ele me imaginava doce e alegre? Mas eu fui uma vaca completa desde o primeiro dia em que nos conhecemos...o garoto estava maluco? Delirando?

   Ele colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha, ignorando minha confusão.

   – Com o que você sonha? – ele perguntou tão de repente que eu não entendi imediatamente.

   Senti meu corpo congelar e o sangue fugir do meu rosto. Ele estava falando do que eu pensava que estava?

   Ele pareceu ficar um pouco envergonhado, como se soubesse que tocara num assunto proibido.

   – Desculpe por me intrometer assim. Mas Luma me disse que você tem pesadelos.

   Nada do que ele pudesse ter dito teria me deixado mais surpresa. Luma sabia que eu tinha pesadelos? Como ela havia notado? E por que...por que contar ao Chermont?

   – Ela me disse que você grita como se sentisse dor – ele continuou, evitando meu olhar. – Que mesmo dormindo, seu rosto fica marcado de lágrimas. Que você nunca consegue dormir uma noite inteira e sempre acorda de madrugada.

   Saber que a garota de cabelos cor de rosa sabia o que acontecia comigo quando eu dormia era uma sensação devastadora. Eu me sentia invadida, de alguma forma. Sentia que minha privacidade havia sido violada. Meus segredos, vislumbrados. Ela vira a minha fraqueza, o meu sono assombrado por lembranças. E ela podia contar para quem quisesse. E ela contara ao Chermont.

   Fiquei sem ar como se tivesse levado um soco no estômago.

   Eu finalmente achei minha voz e disse, também sem olhar para o monitor ao meu lado.

   – Se ela está tão incomodada, por que não pede pra ser trocada de quarto?

   – Ela não está incomodada – ele respondeu, e eu pude sentir seu olhar sobre mim de novo. – Só está preocupada.

   Eu me virei para fitá-lo com a descrença escorrendo por meus poros.

   – Ela me odeia.

   – Ela não odeia – ele rebateu, fazendo-me arquear uma sobrancelha. – Ela só não gosta de você.

   Eu ri sem humor.

   – E tem diferença?

   – Sim. E não é bem por sua culpa que ela não gosta de você. A culpa é minha.

   Como eu pude começar a pensar que esse cara estava se tornando previsível?

   – Do que você está falando, Chermont?

   – Ela acha... – ele respirou fundo. – Ela acha que você vai me machucar.

   Eu pisquei, ficando com a mente em branco. Como tudo o que aquele garoto dizia podia me deixar tão confusa? Era como se eu estivesse lendo um livro e tivesse pulado uma página sem querer. Simplesmente não fazia sentido.

   – Como...? – comecei, mas balancei a cabeça, tentando organizar meus pensamentos. – Por que raios ela acha que eu vou machucar você?

   E assim que as palavras saíram da minha boca, foi como se tudo ficasse mais lento. Ou como se eu começasse a perceber tudo. O ponto é que eu nunca esqueceria o rosto de Chermont naquele momento. A luz do abajur iluminava sua pele naturalmente dourada e alguns fios daquele cacho que caíra em sua testa haviam se prendido em seus cílios compridos. Ele não pareceu notar. Seus lábios estavam partidos e eu podia sentir sua respiração quente. Seu rosto estava corado e seus olhos brilhavam com o peso das palavras que ele estava para dizer. Eles nunca estiveram tão verdes. Tão lindos que machucavam. Em contrapartida, sua voz estava clara e quase sem emoção, quando ele disse:

   – Ela sabe que eu estou me apaixonando por você...de novo.

...

   – Você não vai mais me pintar?

   Gabe olhou para mim e respondeu:

   – Eu não disse isso. Eu disse que não preciso mais de você para pintar.

   – E o que isso quer dizer?

   Ele deu o que parecia ser um sorriso e desceu da mesa onde estava sentado para ir parar na minha frente.

   – Quer dizer que eu já tenho o seu rosto completamente memorizado. Posso pintar sem precisar ficar olhando para você.

   Eu dei de ombros. Fazia um mês que o garoto estava trabalhando naquele quadro, apesar de só ter tido tempo pouquíssimas vezes para me pintar durante aqueles dias. E agora que ele dizia que estava quase acabando, não precisava mais que eu posasse para ele.

   – Então o que me resta é ir pro quarto dormir até o horário da minha detenção – eu disse.

   – Você dorme demais – ele reclamou.

   – E você é uma pessoa estranha que gosta de acordar cedo – eu rebati e ele riu. – Só você mesmo pra me fazer vir aqui na nossa única tarde de folga. E nem vai me pintar. Por que me fez vir então?

   Era início de tarde de uma sexta feira chuvosa. E como o dia seguinte era o dia em que os pais viriam à escola, todos os alunos precisavam passar o fim de semana lá. E as atividades vespertinas de sexta feira foram suspensas para que tudo pudesse ser arrumado para o lindo sábado da família.

   Uma pena que, apesar disso, eu ainda tinha que me apresentar para o meu último dia de detenção.

   Desde a terça-feira, minhas detenções passaram a ser responsabilidade do Chermont e eu não vira mais o italianinho fajuto. Eu me divertia mais com ele. Ficar uma hora por dia na presença do Chermont era muito desconfortável. Ao contrário do Vicentini, ele não fazia comentários engraçados nem me provocava. Ficávamos em silêncio o tempo todo.

   Era terrível.

   Eu estava aliviada que hoje era o último dia dessa tortura. E o fato de não ter nenhuma atividade à tarde era um bônus. Eu esperava poder escapulir para a casa no meio do bosque e ficar sozinha por um tempo, mas Gabe insistiu que eu fosse até à sala em que ele normalmente me pintava.

   E agora estava dizendo que não ia precisar de mim.

   O garoto estava querendo me irritar.

   – É que eu tive uma ideia e achei que você fosse gostar – ele respondeu.

   – A única ideia da qual eu gosto no momento é a de conseguir umas horas de sono – eu respondi rolando os olhos.

   Ele só deu de ombros e voltou a se sentar na mesa, sem falar nada.

   – Ok, estou escutando – eu disse.

   – Bom, nós dois somos os delinquentes da Werburgh – começou – mas nunca fazemos nada que os típicos delinquentes fazem.

   – E o ponto é...

   – O ponto é que você quer ir para a detenção tanto quanto eu quero que você vá. O ponto é que eu preciso esquecer por um momento que serei obrigado a aguentar minha mãe amanhã. O ponto é que você precisa de roupas novas. E eu pensei que pudéssemos nos divertir um pouco e fazer jus à nossa fama.

   Eu pisquei, começando a compreender o plano.

   – Você está falando em fugir? – perguntei.

   – Apenas por algumas horas – ele respondeu, um pequeno sorriso aparecendo no canto dos seus lábios. – Nós podemos pegar o trem e ir comprar roupas pra você. Também podemos ia ao cinema e comer alguma coisa. E você vai escapar da detenção. Pode ser divertido.

   Eu sorri e fui me sentar na mesa ao lado dele, passando meu braço por seus ombros.

   – Meu amigo – eu disse – você é um gênio.

   Nós rimos e, uma hora depois, havíamos conseguido escapar da escola e estávamos entrando no trem para ir à cidade mais próxima, que era ligeiramente mais civilizada, já que tinha algo que se assemelhava a um shopping e um cinema.

   A viagem durou muito pouco, pois nós descemos logo na primeira parada do trem. Eu me deixei ser guiada por Gabe, já que não conhecia nada ali. Era uma cidade um pouco maior que St. Werburgh, mas que também tinha aquele jeito de cidade pequena. Fomos andando para o “shopping” da cidade, que na verdade era uma grande loja de departamentos.

   – Certo, do que você precisa primeiro? – Gabe perguntou quando entramos.

   – Jeans, por favor – eu disse e ele riu.

   Fomos até a seção de roupas femininas e enchemos os braços com calças jeans. Aproveitamos e pegamos logo algumas camisetas, jaquetas e moletons. Gabe foi ótimo todo o tempo e não reclamou do tempo que eu levei para experimentar e escolher as roupas que queria. Foi até engraçado. Ele me obrigou a experimentar dois vestidos, um cor de rosa envelhecido com pequenas bolinhas pretas, pregas e mangas compridas, e um de lã azul também com mangas compridas e saia evasê.

   – Combina com seus olhos – ele disse quando eu saí do provador usando o vestido azul. – Você devia levá-lo.

   – Você não pode estar falando sério – eu disse, olhando-me no grande espelho que havia ali. – Onde eu usaria isso?

   – Amanhã, no dia da família.

   – Eu não vou participar disso.

   – Você não tem escolha, Julieta.

   Bufei e voltei para o provador, mas ainda o escutei dizer.

   – Você vai ser a garota mais bonita da escola com esse vestido.

   Eu ri baixinho e coloquei minha roupa de volta. No fim, por insistência do Gabe, eu acabei levando os dois vestidos, além de duas calças jeans, algumas camisetas, uma jaqueta, dois moletons, um pijama de flanela e meias calças, já que eu tinha o talento de arruiná-las.

   Depois fomos à seção de calçados, onde eu comprei um tênis de corrida novo, botas e um par de sapatilhas pretas – essas por insistência do Gabe. Segundo ele, eu não poderia usar nenhum dos meus vestidos com tênis.

   – Precisa de mais alguma coisa? – ele perguntou, ajudando-me a carregar as sacolas.

   – Não, acho que já tenho tudo de que preciso – respondi, seguindo com ele para a saída. – O que inclui a futura bronca que meu pai vai me dar por ter gastado tanto.

   Nós fomos para fora e o sol já estava se pondo, deixando o céu com aquela claridade alaranjada. Gabe acenou para um táxi e entramos nele. O cinema – nosso próximo destino – não era tão longe, mas como estávamos com os braços cheios de sacolas, Gabe achou melhor irmos de carro.

   – Seu pai é muito rígido? – ele perguntou cautelosamente.

   Conversar sobre família era meio perigoso para pessoas como Gabe e eu e ele entendia isso.

   – Não exatamente – eu respondi com sinceridade. – Ele costumava nos mimar muito na infância, mas...hoje ele é meio diferente comigo.

   – Só com você?

   – Às vezes eu acho que sim. Eu nunca fui a preferida dele e agora...agora ele é meio severo comigo. Não posso dizer que eu não dei motivos também.

   – O que você fez?

   – Além de ter sido expulsa de três escolas nos últimos dois anos? – falei rindo e ele me olhou cético. – Eu me meti em algumas confusões. Algumas bem sérias.

   Antes que Gabe pudesse perguntar mais alguma coisa, o taxista estacionou na frente do cinema e nós descemos. Gabe foi comprar os ingressos enquanto eu fiquei encarregada da pipoca. Nos encontramos na entrada alguns minutos depois.

   – Frankenweenie? – perguntei ao ver as entradas.

   – Era a única sessão vazia – ele disse dando de ombros. – Hoje é sexta feira, afinal.

   – Nenhum problema. Eu gosto do Tim Burton.

   Fomos na direção da sala do filme, mas acabei esbarrando em uma mulher e derrubando algumas das minhas sacolas.

   – Desculpe – eu disse, abaixando para pegar o que havia caído.

   – Não, a culpa foi minha – a mulher disse.

   Ela e Gabe me ajudaram a juntar tudo e eu levantei e olhei para ela.

   – Obrigada... – eu disse, mas congelei ao vê-la.

   Era uma mulher obviamente bonita, de cerca de quarenta anos, com cabelos curtos muito loiros. Ela era pequenina, quase uma cabeça menor que eu, e parecia muito delicada. Mas o que me assustou foram seus olhos. Olhos grandes, algo entre o castanho e o verde. Olhos que eu conhecia muito bem.

   – Gabriel? – ela soltou, surpresa, ao ver Gabe ao meu lado.

   – Sra. Chermont – ele disse, claramente desconfortável.

   – Mãe! – uma menininha chamou e se engatou no braço da mulher. – Eu quero chocolate!

   Eu abaixei meus olhos para vê-la e dei de cara com a irmãzinha do Chermont, Mari.

   – Ei, você é a Julieta, né? – a pequenina soltou ao me ver.

   Eu só fiquei encarando mãe e filha sem dizer nada. Eu me sentia meio perdida.

   – Você a conhece, filha? – a mãe perguntou para a pequenina engatada em seu braço.

   – Claro, mamãe – ela respondeu sorridente. – Ela é a namorada do Paulinho.

   A mulher me olhou chocada. Acho que minha expressão também era parecida. Eu não pensei rápido o bastante para negar ou dizer alguma coisa e Gabe fez uma coisa pela qual eu só poderia agradecer.

   Puxou minha mão e me fez correr até entrarmos na sala do cinema, deixando a mãe e a irmã do Chermont para trás na maior demonstração de falta de educação juvenil.

   – Obrigada – eu sussurrei enquanto procurávamos um lugar na sala escura. O filme já havia começado.

   – Ei, somos delinquentes – ele respondeu baixinho. – Temos que fazer esse tipo de coisa ou vão pensar que estamos amolecendo.

   Eu ri baixinho e deixei-o me puxar até dois lugares na última fila.

   E então eu me permiti esquecer tudo por algumas horas. Era a primeira vez em anos que eu ia ao cinema e tinha me esquecido o quanto gostava disso. Eu ri e me diverti. E, enquanto a mão do Gabe segurava a minha com carinho, eu fingi que era uma garota normal saindo com um amigo ou namorado numa noite de sexta feira.

   E, pela primeira vez em dois anos, eu realmente me perguntei.

   Eu não podia mesmo ser essa garota?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Bom, o próximo cap provavelmente também vai demorar como esse :( mas é porque na minha cidade o Enem só serve pra uma universidade, então eu ainda tenho 3 provas pra fazer :(
Espero que vocês entendam e mais uma vez, muito obrigada a todo mundo que comentou. Vocês são maravilhosas. Nem sei mais o que dizer, eu to toda emocionadinha hoje uahehauehauhe
Ah sim! O próximo capítulo tem algumas revelações oO mas nada do que vocês já não desconfiem :)
Vou responder aos comentários agora. Beijooos e até o próximo!