Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 20
Capítulo 19


Notas iniciais do capítulo

Hey, madrugadoras o/
Demorei um pouquinho mais, né? É o enem chegando e eu tendo revisão até querer vomitar ¬¬
Enfim, eu comecei esse cap há um tempão, mas só agora consegui terminar, eu devia estar dormindo, amanhã tenho aula, mas estou aqui, yeeey o/
Enfim, o cap de hoje não tá muito legal, mas acho que é porque eu não sei escrever a Julieta não sendo ela e nesse cap ela realmente não tá sendo a mesma de sempre. Mas é isso mesmo, mudanças, mudanças chegando yeey :)
Ok, to enrolando já e tenho que fazer meus agradecimentos:
Primeiro pra Lucinda briel e pra Fernanda Malik, porque elas foram incríveis e deixaram recomendações muito fofas pra Manchas. Muito obrigada meninas, eu amei *-*
E também quero agradecer a uma antiga leitora que nunca esqueceu essa história, Lillth, muito obrigada por não me abandonar.
Bom, espero que gostem :)



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   Arrastei-me pelas escadas em tal nível de exaustão que, se me encostasse em algum lugar, cairia em um sono profundo imediatamente, ignorando minhas roupas molhadas e tudo ao meu redor. Estava tão cansada que o frio e a umidade não me incomodavam. Eu quase não conseguia manter os olhos abertos.

   Apesar de o dia anterior ter sido cansativo e seguido de poucas horas de sono terrivelmente incômodas e mal dormidas, a maior parte do meu cansaço não era físico. Minha mente estava sobrecarregada. Muito sobrecarregada. Havia coisas demais acontecendo para que eu pudesse processar tudo. Não só do lado de fora, mas aqui dentro também. Eu me sentia perdida. Não conseguia compreender o que estava sentindo nem comandar a direção dos meus próprios pensamentos. Para falar a verdade, eu nem sabia o que pensar. Não sabia se estava pensando. As poucas seguranças que eu tinha na vida pareciam subitamente frágeis.

   Eu estava perto de não saber mais quem eu era. De começar a agir como outra pessoa. De ter um colapso.

   Durante todos os meus 16 anos, isso aconteceu apenas uma vez. Por uma vez, eu errei. Perdi o controle. Eu me perdi. Eu deixei de ser quem eu era e, por isso, sou assombrada até hoje.

   Não podia repetir o mesmo erro.

   Continuei andando de maneira automática até a porta do meu quarto, tentando esvaziar minha mente de tudo o que não tivesse a ver com roupas secas, cama quentinha e muitas, muitas horas de sono.

   Porém, ao abrir a porta, percebi que meu sono teria que ser adiado.

   Luma Britto e Willa Becker, apesar de ser ainda muito cedo, estavam despertas e arrumadas. As duas me encararam quando eu entrei, Willa parecendo meio assustada e Luma com mal disfarçado nojo.

   – Ah, é a vadia do Paulo, Willa – exclamou ela com uma falsa voz inocente, sem tirar os olhos de mim. – Resolveu lembrar que isto aqui é uma escola e não um dos prostíbulos que você frequenta?

   Não disse nada. Estava cansada demais para me importar com qualquer coisa que a garota com cabelos cor de rosa pudesse dizer, então só passei por ela, esbarrando em seu ombro, e peguei minha mochila jogada no canto do quarto, colocando-a em minha cama e a abrindo.

   – Você não passou a noite aqui – continuou, parecendo irritada com o meu desprezo. – E nós vimos tudo pela janela, como você e Paulo chegaram juntos ao dormitório. Você está ferrada.

   Continuei ignorando-a enquanto caçava algo para vestir na minha mochila. Acabei pegando um short folgado com elástico e uma camisa do Queen grande demais, com um furo na manga. Ambos foram arrancados com violência das minhas mãos e jogados no chão por Luma, que parecia furiosa. Eu estava lenta demais para reagir, por isso, quando a garota me empurrou, eu perdi o equilíbrio e caí no chão, batendo o joelho na beirada da cama.

   – Qual é o seu problema, esquisita? – ela soltou enquanto Willa ofegava e corria até nós, parando atrás da amiga. – Não sabe que eu posso correr para o gabinete da Madre Superiora e contar tudo? Todo mundo sabe que você está na Werburgh por um fio. Por que não começa logo a arrumar suas porcarias, mendiga? Se eu contar o que vi, você vai ser chutada daqui ainda hoje!

   Certo, ela tinha conseguido. Agora eu estava irritada. Muito irritada. Levantei-me, ignorando a pontada no joelho, e tirando o cabelo do rosto. Willa pareceu encolher atrás de Luma, e mesmo a garota com cabelo de pirulito recuou alguns passos.

   Estresse, noite mal dormida, chuva, fragmentos do meu passado ainda latejando em minha cabeça...é, minha aparência devia ser mesmo assustadora.  

   – Luma, deixa ela – Willa choramingou. – Vamos sair daqui.

   – Cala a boca – rosnei. Ela deu um gritinho agudo e irritante, e saiu correndo do quarto.

   Ponto para a Britto. Ela estremeceu, mas não recuou nem mais um passo.

   – Escuta aqui, cabeça de açúcar – comecei, aproximando-me da desgraçada com os olhos apertados e os dentes trincados. – Você quer correr para a Madre Superiora e dizer que eu passei a noite fora do dormitório? Vai. Quer dizer que me viu voltando de manhã com o Chermont? Pode ir. Quer saber? Diga que eu passei a noite transando com todo o dormitório masculino – quando cheguei perto o bastante para tocá-la, Luma tentou dar um passo para trás, mas eu fui mais rápida e fechei meus dedos em seus cabelos, fazendo-a ofegar. – Mas vá agora – eu disse, puxando seu rosto para mim e falando quase em seu ouvido. – Vá antes que eu quebre as suas duas pernas e você não possa mais ir a lugar nenhum.

   Empurrei-a e tive a satisfação de vê-la cair no chão enquanto vários fios de cabelo cor de rosa haviam ficado em minha mão fechada.

   – Louca! – ela gritou, os olhos úmidos com lágrimas não derramadas, provavelmente de dor. Ter vários fios de cabelo arrancados assim não deve ser muito bom. – Você está morta, Vaughan!

   Eu apenas olhei para baixo, para ela, e disse, na voz minha voz mais fria:

   – Um.

   Luma estremeceu e se levantou bem rápido, mas não se moveu nem na minha direção nem para a porta.

   – Não tenho medo de você – ela disse, mas sua voz era trêmula.

   Aproximei-me dois passos.

   – Dois.

   E ela saiu correndo do quarto.

   Suspirei e me senti, subitamente, mil vezes mais cansada do que antes. Devagar, peguei minhas roupas do chão e decidi tomar um banho. Eu tinha alguns minutos antes que as outras garotas do segundo ano lotassem o banheiro. Não achava que seria capaz de aguentar risinhos mal disfarçados e olhares pelo canto dos olhos enquanto tomava banho. Não nessa manhã. Não sem quebrar alguma coisa. Ou alguém. Já não suportava dividir o banheiro com essas meninas barulhentas normalmente, hoje seria...difícil. Não sabia se conseguiria me manter de pé. Já tinha gastado toda a minha energia.

   Então eu precisava me apressar, porque o frio havia finalmente vencido meu entorpecimento e chegado aos meus ossos. As roupas molhadas do Chermont haviam grudado, geladas, em minha pele.

   Mas o pior era o cheiro dele. O cheiro dele parecia grudado nas roupas e na minha pele, lembrando-me de tê-lo perto o bastante para discernir o verde e o castanho dos seus olhos. Eu sentia como se ele continuasse ali comigo, impondo sua presença, forçando sua entrada em minha vida. Se eu fechasse os olhos, poderia vê-lo, os cabelos molhados caindo sobre os olhos, os cílios com pequenas gotas d’água. Se eu ficasse bem quieta, podia até sentir a textura dos seus dedos na minha bochecha, as gotas geladas da chuva em meu rosto, a intensidade do seu olhar sobre mim, a fraca luz do sol nascendo atrás dele.

   Com a mão em punho, bati no meu próprio peito. Uma, duas, três vezes. Queria que doesse. Queria que meu coração parasse de bater tão forte. Não queria pensar nele, não devia pensar nele. Suspirei, peguei minhas roupas e fui até o banheiro.

   Não vi ninguém no corredor e o banheiro ainda estava vazio. Peguei uma toalha no armário e coloquei minhas roupas secas lá. Tirei as molhadas e as deixei no chão mesmo. Pendurei a toalha e liguei o chuveiro. A água quente parecia uma benção e fez meu corpo se arrepiar com o choque térmico. Meus dentes batiam, mas eu não me importava. Fechei os olhos e deixei a água bater em meu rosto.

   De repente, a porta do chuveiro individual que eu estava usando foi aberta com força e eu fui puxada para fora tão rapidamente, que não tive tempo de reagir. Tropecei e caí de joelhos no chão, sentindo uma dor enorme no que já estava machucado. Levantei os olhos e vi que havia quatro garotas no banheiro. Eu já havia visto todas, mas só conhecia duas.

   Beatrice Ferrer, terceiro ano, monitora, aluna responsável pelas aulas de música e vadia em tempo integral. A primeira vez que eu vi o nome dela, quando estava no gabinete daquela freira-múmia, não pensei que alguém que fosse boa o bastante em música para ser a aluna responsável pela matéria, podia ser tão detestável e nojenta. Mas aparentemente, talento não necessariamente significa bom caráter. E, infelizmente, eu precisava admitir que a Ferrer tinha de talento o que tinha de ódio no coração. E acredite, não era pouca coisa.

   Nem preciso dizer que eu a detestava, já que 99% da população da Werburgh já havia caído na minha lista negra. Se eu tivesse uma bomba atômica, já saberia aonde jogar. Mas a garota alcançava os meus limites.

   Afinal, além de antipática, ela nunca me deixava chegar perto do piano na aula de música. Era a aula mais inútil de todas, porque, assim como na do Chermont, eu era deixada de lado para observar, sem poder fazer nada.

   A galera dessa escola faz algum tipo de curso pra aprender a ser intragável ou só se esforçam muito comigo mesmo?

   – Então é verdade o que a gente escutou? – Beatrice perguntou, jogando a juba de perfeitos cabelos castanhos para trás com uma mão. – Você passou a noite com Paulo Chermont?

   Vicentini tinha razão. Realmente não existiam segredos nessa escola. Eles têm uma central de informação ou o quê?

   – O que o Paulo pode querer com essa aberração? – a loira ao lado de Beatrice perguntou.

   Essa era a outra que eu “conhecia”. Laura Larson. Também do terceiro ano e também uma querida colega da aula de música. Essa, ao contrário da Ferrer, era só insuportável mesmo, nem tinha talento algum para compensar os sérios buracos em sua personalidade.

   Mas, afinal, quem era eu pra julgar?

   Mas, oh, espere, não era eu que estava perseguindo pessoas no banheiro e cuspindo ofensas em cima delas.

   As outras duas eram do meu próprio ano, uma baixinha de cabelos castanhos quase vermelhos e a outra um pouco mais alta com cabelos curtos e mechados, e dividiam um quarto perto do meu. Não sabia o nome delas e, realmente, não podia me importar menos. Já tinha visto as duas andando com as minhas colegas de quarto, e só. Não fazia nenhuma atividade vespertina com elas e pouco prestava atenção ao que acontecia nas aulas mesmo. Levantei os olhos para as quatro e, ainda no chão, levei minha mão até minha toalha pendurada e a puxei, envolvendo meu corpo com ela. E ia levantar quando a Larson empurrou-me de volta para baixo, fazendo-me perder o equilíbrio e cair de novo.

   – Você não escutou a Beatrice, Vaughan? – ela soltou, olhando-me com desprezo. – Ela fez uma pergunta. Você passou ou não a noite com Paulo Chermont?

   Eu fechei os olhos e suspirei, frustrada. Estava começando a achar que o garoto era propriedade de todas as garotas desse maldito colégio. Por que ele precisava me perseguir, então? Por que ele precisava se esforçar pra mexer tanto comigo? Ele já tinha sua própria cota de psicopatas atrás dele, por que precisava de mim? Por causa dele, eu tinha que ouvir as besteiras de todas as mal amadas da Werburgh. Por que elas simplesmente não cortavam o monitor em pedacinhos e dividiam entre si? Me livrariam do garoto e das reclamações e acusações delas.

   Talvez eu devesse cortá-lo em pedacinhos pra poupar trabalho.

   – Oh, o gato comeu a língua da grande rebelde da escola – caçoou Beatrice.

   – Pois é – respondi, ainda no chão. – Só o seu cérebro não conseguiu satisfazê-lo.

   A garota demorou alguns segundos para entender a ofensa, e então se abaixou e segurou meus cabelos com força, meio como eu tinha feito com a Britto apenas minutos atrás. Eu ainda precisava segurar a toalha em volta de mim – não importava se eu ia apanhar, eu não ia ficar sem roupa na frente daquelas garotas de novo – mas libertei uma mão pra tentar afastá-la, mas a menina meio ruiva do meu ano me segurou, enquanto a Ferrer torcia dolorosamente meu cabelo.

   – Eu vou falar uma só vez, vadia – ela cuspiu, o rosto bem próximo do meu. – Fica longe dele. O Paulo não é pra você. Nunca mais chega perto dele.

   – Eu adoraria fazer isso – retruquei, quase com tédio. Aquilo era tão ridículo que realmente chegava a ser entediante. – De verdade. Apenas diga pro seu querido monitor parar de me perseguir e eu ficarei feliz de nunca mais ter que olhar na cara dele.

   – Você tá louca? O Paulo nunca perseguiria ninguém, muito menos uma qualquer feito você!

   – É mesmo? – eu disse com falsa inocência e mordi meu lábio, como se estivesse pensando. – Vamos fazer uma aposta, então? Eu vou ficar o dia todo no meu quarto hoje e aposto que, antes do dia acabar, o Chermont vai vir aqui me ver.

   Ela puxou meu cabelo mais forte, fazendo-me piscar e trancar os dentes com a dor. Céus, odeio brigas de menina! Um soco na cara é melhor que um puxão de cabelo em qualquer circunstância.

   – O Paulo nunca entraria no dormitório feminino! – a Laura disse atrás da Beatrice. – Ele é monitor, ele sabe que é proibido.

   – Isso mesmo – concordou a Ferrer. – Ele nunca viria aqui.

   – Pois eu digo que ele vai quebrar as regras só para me ver – eu continuei, ignorando a dor no meu couro cabeludo. – Ele vai vir aqui.

   E eu tinha quase certeza de que ele iria. Eu só precisava ligar pra ele e dizer que tinha piorado que ele viria me pegar para levar à enfermaria. Claro que elas não precisavam saber disso.

   A desgraçada, com a ajuda da garota que me segurava, me empurrou de volta para o box onde eu estava tomando banho e fechou a porta na minha cara. Eu me levantei e tentei empurrar a porta, mas ela não saía do lugar.

   Como, eu me perguntei, a acéfala conseguiu trancar a porta pelo lado de fora?

   – Abre essa droga! – gritei, os punhos batendo na porta. – Abre isso agora!

   Eu ouvi risadas do lado de fora e a voz da Beatrice dizendo:

   – Quem sabe se passar um tempo aí dentro você para de inventar mentiras e de perseguir o homem das outras? Tchau tchau!

   Luma Britto, Beatrice Ferrer...esse homem era de quantas mesmo?

   Eu pensei que realmente iria desmaiar, de tão cansada que estava. Minha mente era uma bagunça tão grande que eu deixei aquelas criaturinhas amaldiçoadas me intimidarem e não fiz nada para me defender, e bem que aquela maldita da Beatrice podia aproveitar um nariz quebrado. Mas não me preocupava com isso, não no momento em que minhas pernas estavam tremendo e minha prioridade era sair daquele banheiro antes que ele ficasse lotado de mais cabecinhas de vento. Eu estava exausta e pronta para cair no choro. Tudo o que eu não precisava era de uma plateia.

   Depois de socar inutilmente a porta por alguns minutos, finalmente desisti e resolvi me esgueirar pelo pequeno espaço entre a porta e o chão. Enrolei bem a toalha em meu corpo e me ajoelhei, sentindo o joelho latejar. O espaço era pequeno, mas eu consegui passar com algum esforço, rastejando pelo chão molhado. Levantei-me meio tonta e percebi que as roupas do Chermont que eu havia deixado ali no chão não estavam mais lá. Ah, dane-se, eu não me importava em devolver mesmo e aquelas meninas podiam fazer bom proveito das roupas dele, tenho certeza de que acabariam fazendo macumba ou algo do tipo.

   Também percebi o grande “vadia” escrito com batom vermelho no espelho do banheiro. Quanta criatividade. Elas estavam tentando me ofender ou só estavam assinando seus nomes mesmo? O espelho nem era meu! Será que elas não pensaram no quão ridículo era aquilo? Dei de ombros mentalmente, se eu fosse tentar entender o que movia o cérebro de garotas como essas...o melhor era simplesmente ignorar.

   Cambaleei até o armário embutido e suspirei aliviada ao perceber que meu short folgado e minha velha camisa do Queen continuavam lá, intactos. Pelo menos tão intactos quanto estavam quando eu os tirei da minha mochila. Estava fechando o armário quando um grupo barulhento de meninas do meu andar entrou no banheiro. Elas olharam para mim com espanto, mas eu não me importei em olhar de volta. Chega de pessoas por hoje. Odeio pessoas como regra geral. Tudo o que eu queria era me teletransportar para a pequena e mal cuidada casa no meio das árvores, onde eu podia ficar isolada, mas o cansaço era tanto que já seria um avanço se eu pudesse chegar até minha cama no dormitório.

   Ignorei todo mundo e saí do banheiro ainda enrolada na toalha, atravessei o corredor cheio de meninas bobas e recém-despertadas de um sono relaxante – estava cansada demais até para sentir inveja – e me tranquei no meu quarto. Luma e Willa, felizmente, não estavam lá e eu pude trocar de roupa e jogar a toalha molhada e suja na cama da menina com cabeça de algodão doce sem ser perturbada.

   Joguei-me na minha cama arrumada, em cima das cobertas, e abracei o travesseiro com força. Estava cansada demais para dormir. Droga. Minha vida era definitivamente amaldiçoada. Tanta coisa acontecendo na minha cabeça e eu ainda precisava ser bombardeada por todas as garotas ciumentas dessa escola. Meu joelho doía. E eu sentia fome. E frio, mas só o pensamento de levantar para poder me enfiar no edredom embaixo de mim era doloroso. Meu cabelo molhado havia grudado no meu rosto, mas eu não me sentia capaz nem de levantar uma mão para tirá-lo de lá.

   Eu tentei fechar os olhos e enxerguei os de Paulo na escuridão das minhas pálpebras fechadas. Brilhantes, verdes e castanhos. Úmidos e intensos. Abri os olhos e ele continuou ali. Eu o queria longe. Eu o queria perto. Abracei mais o travesseiro, enterrando a cabeça nele e apertando os olhos. Senti o sabor quente e doce dos seus lábios e a textura áspera e macia daqueles dedos acariciando minha bochecha suavemente enquanto gotas de chuvas escondiam minhas lágrimas.

   O que você fez comigo?

   O que você está fazendo comigo?

   Abri os olhos e minha visão era turva. O mundo estava torto, instável. Eu sentia a quente umidade nas minhas bochechas, denunciando o motivo para eu estar enxergando tão mal. Eu sempre odiei chorar, desde pequena. Das três, eu sempre fui a filha mais chorona, a mais fácil de provocar, a que sentia tudo de maneira muito mais forte. A minha alegria era sempre a mais evidente, assim como a minha tristeza. A minha dor sempre doía mais.

   E quando eu amava, era completamente. Era por inteiro. Era com tudo o que eu tinha. Com tudo o que eu era.

   E por isso eu odiava chorar. Odiava que todos pudessem ler minhas emoções com tanta facilidade, como se estivessem escritas em meu rosto. Minha mãe costumava dizer que isso me fazia ser bonita. Dizia que havia algo de mágico e belo na maneira como minha alma era estampada em meus olhos.

   Ela também dizia que chorar era bom. Que as lágrimas eram a resposta do meu corpo, quando eu sentia uma dor muito grande. Ela dizia que eu devia transformar essa dor em pequenas gotas de água salgada e tirá-las de mim, deixá-las escorrer por meus olhos e irem embora.

   E assim, pararia de doer.

   Talvez minha mãe estivesse errada. Eu chorava e continuava sentindo dor. Talvez eu apenas não tivesse derramado lágrimas suficientes.

   Talvez a dor não fosse em meu corpo. Talvez as lágrimas não eliminassem as dores na alma.

   Talvez eu estivesse ficando maluca.

   Eu me lembrei do enterro da minha irmã. Bianca estava chorando nos braços do meu pai. O resto era um borrão de pessoas vestidas de preto com flores brancas nas mãos. Minha mãe não estava lá. A manhã era quente e ensolarada. Um dia bonito e preguiçoso, do tipo errado para um enterro. E eu estava sozinha.

   Eu percebi naquele momento que era como eu iria viver dali em diante. Sozinha. Não era como se eu tivesse uma alternativa. Eu não tinha. Eu havia sido arrastada para um caminho onde ninguém poderia me acompanhar. Eu carregava um peso que ninguém dividiria comigo. Ter a alma estampada nos olhos não era mais uma opção. Ter aquele horror escrito no rosto era impensável. Eu havia perdido a beleza que minha mãe costumava tanto amar.

   Eu não chorei naquele dia. A dor que eu sentia era tão grande que lágrimas não seriam capazes de me dar nenhum alívio. Meu rosto era uma máscara fria e estática, como nunca havia sido antes. Meus sentimentos estavam tão enterrados que ninguém poderia vê-los. Nunca mais. Eu agora era intocável.

   Mas alguém conseguiu. Alguém conseguiu me ver de verdade nessa maldita escola no fim do mundo. E era por isso que eu estava assim, tão fraca, tão assustada, tão vulnerável. Por isso eu não consegui me erguer contra as malucas que vieram me intimidar. Por isso eu estava trancada em meu quarto, agarrada ao travesseiro, chorando como a menina idiota e ingênua que eu fui um dia. Ele me viu. Aos poucos, a cada dia, ele era o único que realmente me enxergava. Ele olhou em meus olhos e, como um furacão que destrói cidades, ele destruiu meu pequeno e invisível exército protetor. Eu estava completamente indefesa para ele. Completamente desprotegida e...

   E assustada por sentir vontade de não fazer nada a respeito.

   Se eu fosse escutar meu coração, como meu avô costumava me pedir para fazer, ele diria que queria ter Paulo Chermont por perto. Ele diria que queria ouvir a voz do monitor nazista gritando comigo. Que queria ver o sorriso bonito dele e como a luz se infiltrava em seus cabelos meio ondulados, fazendo alguns fios loiros aparecerem em meio ao castanho. Meu coração diria que o mundo ao meu redor era muito doloroso, muito amargo. E Paulo poderia adoçar minha vida, poderia me permitir sonhar e finalmente viver. Esquecer o passado e viver por inteiro novamente. Ele diria que queria os lábios de Paulo nos meus, beijando-me até o mundo acabar. Aquecendo-me, protegendo-me.

   Meu coração queria que Paulo me amasse. Meu coração queria amar.

   Enrolei-me mais na cama e, pela segunda vez naquela manhã, fechei minha mão e bati no meu próprio peito. No meu coração. Uma, duas três vezes. Continuei. Parei de contar. Eu continuava com lágrimas nos olhos. Meu lábio inferior preso entre meus dentes até que eu senti gosto de sangue. E eu implorei. Como nunca fiz na minha vida, eu implorei para o meu coração.

   Pare. Não bata por ninguém. Não bata por ele. Não por ele.

   Não por ele. 


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Notas finais do capítulo

Vocês tem notado que meus caps têm ficado menores que o normal, né? É a falta de tempo u.u eu sinto falta de fazer uns mega caps de 6 mil palavras mimimi
Enfim, como eu sei que poucas pessoas comentam em Manchas, apesar de eu ter bastante leitores, eu preciso agradecer a quem comenta. Muito obrigada, suas lindas, os reviews de vocês me deixam inspirada e comovida.
Como agora tá tarde, eu não vou responder a eles agora, mas amanhã, na aula de física (hoho, quem odeia fisica aqui levanta a mão o/) eu respondo pelo celular.
Beijos e até o próximo cap (que vai demorar um pouco pra sair, porque eu só vou voltar a atualizar aqui depois do enem, espero que entendam u.u)