Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 2
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Bom, só a introdução e o epílogo são em terceira pessoa, o resto dos capítulos são em primeira pessoa, ok? Espero que gostem :)



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   Inspecionei rapidamente, com uma pontada de desgosto, o quarto que seria meu pelo resto do ano. Não era um quarto ruim, nada do tipo mofado, úmido e escuro que eu esperava de um internato no meio do nada. Era de bom tamanho, com paredes amarelas, uma janela bem grande com vista para a parte de trás do colégio, com cortinas brancas de organza até o chão. Tinha um armário grande, uma cômoda, uma poltrona de aparência confortável perto da janela e uma penteadeira de ferro com um espelho oval. O único problema eram as três camas e todos aqueles objetos pessoais espalhados pelo quarto.

   Não preciso dizer que eu só preciso de uma cama para dormir e que aquelas roupas espalhadas, o secador de cabelo em cima da penteadeira, os chinelos no chão e todas as outras coisas que estavam naquele quarto não pertenciam a mim.

   Eu deveria ter desconfiado que os quartos não seriam individuais. É simplesmente querer demais. Eu teria de dividir o quarto com outras duas garotas.

   Não acho que preciso deixar claro que eu preferiria um quarto minúsculo, úmido e escuro, mas que fosse só meu.

   Pessoas me irritam.

   Larguei minha mochila no chão, deitei-me na cama perto da janela, a que as freiras disseram que era a minha, e fiquei olhando para o teto por alguns minutos. Tentava encaixar no cérebro todas as informações que tinha recebido naquela tarde.

   Assim que chegamos à escola, as freiras foram logo me dando uma lição de História. O Instituto St. Werburgh tinha mais de cem anos e era referência em educação e coisa e tal, nada que realmente fosse fazer diferença na minha vida. Como se o fato de um colégio ser velho o tornasse bom.

   As coisas velhas tendem a morrer e aquela escola era uma anciã.

   Mas até eu preciso admitir que era um lugar bem impressionante, formado por três enormes construções: a da direita era onde ficava o dormitório das meninas, a da esquerda, o dos meninos e na do meio ficavam todas as instalações escolares, auditório e refeitório. Atrás ficava a área de esportes, com quadras, piscinas e até uma pista de equitação.

   A pista de equitação quase fez com que eu não me importasse de dividir o quarto. Quase.

   O negócio é que eu gostava mesmo de cavalos e sempre fui boa em equitação. Mas há algum tempo havia parado de praticar.

   Bom, havia também uma capela atrás da escola, eu podia vê-la parcialmente da janela do quarto, já que ela ficava perto do matagal que as freiras chamavam de “bosque” e algumas árvores mais altas a cobriam um pouco.

   Era um lugar bem bonito até, para quem curte toda essa coisa bucólica. O que, obviamente, não era o meu caso, já que, como irmã Carmem havia dito, eu era jovem da cidade grande. Poluição, assaltos e prédios altos faziam mais o meu estilo.

   St. Werburgh era o lugar mais limpo que eu já tinha visto, as pessoas quase nem usavam carros, o maior crime que essa cidade já havia presenciado foi provavelmente algum adolescente entediado pichando alguma parede e nem preciso dizer que a construção mais alta que havia visto por lá devia ter uns quatro andares. E era a biblioteca da cidade.

   Nada do monóxido de carbono e da sirene do carro da polícia que eu ouvia de vez em quando da minha casa na cidade. Mas eu não me importava, não havia nada que me prendesse a lugar nenhum. Seria só uma questão de tolerar esse lugar até poder ir embora. E eu nem sabia para onde iria depois que saísse dali.

   Como se eu me importasse.

   Teria aulas normais do segundo ano do ensino médio pela manhã e à tarde três atividades, de minha escolha. De segunda a quinta, o toque de recolher era às nove horas da noite e, às dez, as luzes eram apagadas. Às sextas, sábados e domingos, não havia toque de recolher, mas as luzes eram apagadas à meia noite. Mas poucos alunos permaneciam na escola, já que nos finais de semana tinham permissão para ir para suas casas.

   Da minha parte, esperava que todos se mandassem para eu poder ter um pouco de paz.

   Mas na verdade, eu não me incomodava com essas coisas. Não de verdade. Nem com o toque de recolher, nem com as atividades à tarde, nem mesmo se todos os alunos resolvessem ficar na escola nos finais de semana. Eram coisas desagradáveis, admito, mas nada que eu não pudesse tolerar.

   Só tinha uma coisa que me incomodava de verdade naquele lugar: missa aos domingos de manhã.

   Todos os alunos que ficassem na escola durante o final de semana eram obrigados a ir e se você faltasse sem uma justificativa plausível, seria punido. Como, eu não sabia. As freiras não haviam entrado em detalhes. Mas eu tinha certeza que as torturas e churrasquinhos na fogueira tinham morrido com a Inquisição.

   Não tinha medo de “punições”. Já havia conhecido as salas de detenção de todas as escolas em que estudei e, acredite-me, foram muitas. E, bom, talvez toda essa experiência com castigos que adquiri ao longo da minha vida escolar servisse para alguma coisa.

   Porque não tinha jeito de eu aparecer naquela capela aos domingos. Ou em qualquer outro dia.

   Como se ficar rezando na igreja fizesse diferença na vida de alguém. Fala sério. Perder uma hora inteira da minha vida todos os domingos pra ficar ouvindo a Palavra de Deus? Não conseguia pensar numa coisa mais inútil.

   Se Deus existe mesmo, ele definitivamente não vai com a minha cara.

   O sol começava a se pôr no horizonte, fazendo com que o céu ficasse lindo, todo laranja, amarelo e vermelho. Levantei-me da cama e afastei as cortinas da janela para enxergar melhor. Logo minhas colegas de quarto – Willa Becker e Luma Britto – chegariam de suas atividades e toda aquela paz que eu encontrava na solidão acabaria.

   Quando irmã Carmem havia dito os nomes das minhas colegas de quarto, acrescentou que as duas eram “uns amores”, o que havia feito irmã Manuela engasgar com o próprio cuspe. Ou pelo menos foi isso que pareceu. Depois ela ficou tipo “Luma Britto?! Um amor?! Você tem que estar brin...”, mas foi aí que irmã Carmem cortou o barato dela com um olhar que provavelmente congelaria o inferno.

   Essa Luma deve ser o cão.

   Bom, eu sabia que nos últimos anos minha vida não tinha sido grande coisa. E eu realmente não estava esperando que tudo fosse melhorar agora, principalmente num colégio interno numa cidadezinha que parecia ter saído direto do século XIX. Mas eu confesso ter pensado que tudo ia ficar mais ou menos na mesma. Nunca passou pela minha cabeça que eu acabaria num lugar onde seria obrigada a assistir à missa no domingo e ainda teria de dividir o quarto com uma garota que tudo levava a crer ser o diabo encarnado.

   Quer dizer, a simples menção do nome dela fez uma freira perder a compostura, o que mais eu poderia pensar?

   Eu tinha de suportar, é claro. Digo, todas essas coisas altamente irritantes daquela escola. Mas para quem já suportou o que eu havia suportado na vida, seria ridiculamente fácil. Mesmo com toda a fofoca que, eu tinha certeza, estava rolando sobre mim.

   Porque estava meio claro que St. Werburgh, tanto a cidade quanto a escola, não costumava abrigar muitos forasteiros. Principalmente garotas esquisitas de 16 anos que chegaram na escola depois de o semestre ter começado.

   E isso porque eles, os alunos, não sabiam o pior. Não sabiam de nada, aliás. Nem que eu só estava ali porque minha última escola havia me chutado e meu pai achou que um internato daria um jeito em mim.

   Isso sim seria um prato cheio para aqueles caipiras.

   Só que não havia nada de errado comigo. As pessoas é que, normalmente, me achavam um problema.

   Tudo bem, talvez houvesse um problema comigo. Ou dois. Mas nada que fosse da conta de ninguém.

   Suspirei e fui pegar minha mochila. Tinha que trocar de roupa antes do jantar, que por acaso era às 7. Quem diabos sente fome às 7 horas da noite?

   Resignada, peguei uma calça jeans, uma blusa e um casaco da mochila. Tinha poucas roupas lá, já que, graças a pressa do meu pai em me botar para fora de casa, não pude arrumar uma mala. Bianca, minha irmã mais velha, havia dito que arrumaria tudo e me mandaria assim que possível.

   É, talvez no ano que vem.

   Bianca não morre de amores por mim, exatamente.

   O que queria dizer que eu precisaria comprar roupas, o que eu não acreditava que seria uma coisa muito fácil de se fazer por ali. Não havia visto nenhuma loja de departamentos no caminho para a escola. E mesmo se tivesse, eu não tinha muito dinheiro.

   A outra opção seria usar o uniforme da escola para ir a todo lugar.

   É isso mesmo. Uniforme.

   Eu ainda não tinha o dito cujo, o que queria dizer que poderia aproveitar uns últimos momentos com meus jeans preferidos. Na verdade, eu nunca nem tinha visto o maldito, mas tinha certeza de que boa coisa não era. Bianca tinha parecido particularmente feliz ao me informar que eu precisaria usá-lo na nova escola para onde estava sendo mandada.

   O que queria dizer que eu provavelmente ia odiar.

   Saí do meu quarto no segundo andar e me dirigi para o banheiro. Deixe-me só dizer que o dormitório feminino possuía apenas três banheiros, um no primeiro andar, um no segundo e um no terceiro. Banheiros comunitários, daqueles enormes, onde a gente não tem privacidade nenhuma.

   Tomei um banho quente bem rápido, aproveitando que o banheiro estava vazio, não tinha nenhum interesse em deixar que as outras garotas daquele internato me vissem tomar banho. Será que as pessoas não pensam, não? Tem muita gente por aí que não curte exibição.

   Depois do banho, me enrolei na toalha e fui até o espelho. Fiquei encarando meu reflexo por um tempo. Fitei aquelas olheiras gigantes embaixo dos meus olhos azuis acinzentados e a palidez do meu rosto. Meu cabelo preto, longo e molhado grudava-se na minha testa e pescoço, e me fazia parecer uma assombração.

   Eu já fui muito bonita. Houve um tempo em que eu andava bem vestida o tempo todo e cuidava da minha aparência. Meus cabelos costumavam estar sempre bem aparados e eu nunca sonharia em sair de casa sem cobrir minhas olheiras.

   Balancei a cabeça para espantar esses pensamentos. Não gostava nadinha de quando começava a pensar na minha antiga vida. Não havia espaço para essas lembranças na minha vida de agora, mas, por alguma razão, não conseguia expurgá-las.

   Eram parte de mim.

   Vesti-me e voltei ao quarto. Eram quase sete horas da noite agora e o sol já tinha sumido completamente. Estávamos no outono, mas St. Werburgh, pelo que meu pai havia me dito, era uma cidade muito fria no inverno e muito quente no verão. E agora eu percebia que ele estava falando a verdade, pelo menos a respeito do frio.

   Calcei meus tênis e prendi meu cabelo numa trança que batia na minha cintura. Coloquei meu casaco de moletom e resolvi achar meu caminho até o refeitório, onde o jantar seria servido.

   Sei que falei que jantar às sete horas era meio excessivo, mas o negócio era que eu estava mesmo com fome. Não havia comido nada desde que tinha saído de casa, naquela manhã.

   Agora era a hora de enfrentar a horda de estudantes que, muito provavelmente, estaria se acotovelando para colocar as mãos na comida depois de um dia cheio. Isso, é claro, se eu não me perdesse no labirinto que era aquele lugar.


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Notas finais do capítulo

Não deu pra revisar direito, então qualquer erro, me perdoem. Beijos :)