Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 19
Capítulo 18


Notas iniciais do capítulo

Boa Madrugada, morceguinhos :)))
tá, ninguem vai ler isso agora porque só essa criatura desorientada aqui está acordada até agora ¬¬
Enfim, tenho mais um capítulo aqui e eu nem demorei tanto dessa vez, né? Faz menos de 15 dias que eu postei, eu acho...
Bom, eu adorei escrever esse capítulo, espero que vocês também gostem. Tomara que entendam huaeahuse. E não se aflijam, respostas estão chegando :))
Um agradecimento super especial à Balii, por ter feito uma recomendação perfeita pra história. Garota, esse cap só saiu por sua causa hahaha
Boa leitura :**



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  Eu acordei com as costas doloridas, o estômago roncando de fome e uma dor de cabeça épica. Levantei o tronco, apoiando-me nos cotovelos, e pisquei algumas vezes até que meus olhos se acostumaram parcialmente à escuridão. Um ressonar calmo e tranquilo vinha da minha direita, e eu logo discerni os traços bonitos de Gabriel, que dormia profundamente. Do meu outro lado só havia um travesseiro amassado e um cobertor morno.

   Não foi o desconforto nem a fome que me acordaram. Foi o barulho da água caindo no chuveiro do banheiro. Procurei o pulso esquerdo de Gabe embaixo das cobertas e comecei a apertar todos os botões do seu relógio digital, até o visor brilhar com uma fraca luz verde. Dei um suspiro fraco ao perceber que só passava um pouco das cinco da manhã. Amaldiçoei mentalmente o monitor de todas as maneiras que conhecia, levantando-me silenciosamente para não acordar Gabe – pelo menos alguém ali respeitava o sono alheio.

   Não pude conter um gemido ao ficar de pé. Meus ossos pareciam moídos. Essa noite ia totalmente entrar para o meu top 5 de piores noites da minha vida.

   Tateei no escuro até o armário, abrindo-o ao mesmo tempo em que ouvia o chuveiro ser desligado no banheiro. Passei a procurar por uma calça que eu pudesse segurar na cintura por tempo suficiente para chegar ao meu dormitório. Estava fazendo uma bela bagunça nas roupas do monitor fascista – e me divertindo um pouco com isso – quando a porta do banheiro foi aberta, lançando uma faixa de luz branca artificial na escuridão do quarto.

   – Que porra você tá fazendo? – o dito monitor fascista perguntou, sua voz tão mal humorada como eu sabia que a minha seria.

   – Estou indo para Nárnia, não é óbvio? – retruquei ironicamente, virando-me para fitá-lo e perdendo a fala momentaneamente.

   Paulo Chermont estava sem camisa.

   Paulo Chermont estava sem camisa.

   Ele havia colocado as calças do uniforme, e só. Os pés estavam descalços no chão frio e ele obviamente tinha feito um trabalho porco ao se secar, já que eu surpreendi minúsculas gotas d’água percorrendo livremente os músculos duros e definidos do peito e do abdômen dele, às vezes prendendo-se nos poucos pelos quase loiros que ele tinha quando a pele chegava mais perto do cós da calça. Certo, aquela visão deixaria qualquer garota desorientada.

   E Julieta Vaughan é o quê?

   É...na mosca.

   – O que você está tentando fazer, hein? – soltei, tentando soar casual e sarcástica a respeito do peito nu e perfeito do Chermont. – Cortar diamante com a barriga?

   – Você está fazendo a maior bagunça – reclamou, ignorando minha falha tentativa de provocação e empurrando-me para o lado, para poder arrumar o estrago que eu havia feito. – Que droga.

   Certo, o monitor tinha T.O.C.

   – Eu preciso de uma calça – expliquei tão mal humorada quanto ele. – Ou você quer que eu ande por aí desse jeito? Meu uniforme está inutilizado.

   Chermont bufou e garimpou uns jeans surrados numa das gavetas, jogando-os em mim.

   – Tenta isso – mandou.

   Rolei os olhos. Garoto arrogante! Entrei no banheiro e fechei a porta, sem trancá-la. Lavei o rosto e suspirei ao ver meu reflexo no espelho. Eu tinha bolsas escuras embaixo dos olhos – e isso era uma novidade? – e marcas de lençol nas bochechas. Meu cabelo, ainda úmido, caía emaranhado pelas minhas costas.

   Eu estava um caco.

   Escovei os dentes com o dedo e tentei desembaraçar meus cabelos com um pente que havia na bancada. Desisti depois de alguns minutos e só prendi meus cachos bagunçados em um nó no alto da cabeça. Peguei as calças do monitor e as vesti. No momento em que soltei o cós, a calça caiu no chão. Abaixei-me e a puxei para cima, mas se soltasse minhas mãos, ela ia cair de novo. Cabiam pelo menos duas Julietas e meia ali. 

   – Essa porcaria não serve! – reclamei em voz alta para o garoto ouvir.

   A porta do banheiro foi aberta e Paulo entrou, segurando um cinto.

   — A mão ia cair se você batesse na porta? — soltei, irritada.

   — O mau humor grudou em você, né? — retrucou ele, aproximando-se muito de mim e começando a colocar o cinto na calça que eu segurava.

   — Espaço pessoal, conhece o conceito? — perguntei, tentando me afastar, sentindo-me desconfortável com a proximidade do garoto. Que ainda estava sem camisa. E me tocando.

   — Boca fechada, conhece o conceito? — devolveu, puxando-me de volta para perto dele tão rápido que eu tive que apoiar as mãos no seu peito para não cair.

   Ficamos parados, estáticos, por meio minuto. Eu olhava para as minhas mãos pálidas em sua pele, sentindo gotas de suor se formando em minha nuca, apesar do tempo frio. Sentia também o peso do olhar de Paulo sobre mim, apesar de não ter levantado meus olhos para ver seu rosto. Mas o monitor era assim, tinha um olhar tão intenso que eu o sentia como uma coisa física, que fazia um arrepio percorrer todo o meu corpo. Era estranho e inquietante estar tão perto dele. Mas não era desagradável. Suas mãos estavam dos dois lados do meu quadril, segurando as ridículas calças folgadas no lugar, e sua pele era morna e macia sob meus dedos. Nossa respiração era sincronizada e pesada, parecendo uma só. Ofegante. Úmida.

   Assustei-me quando Paulo se mexeu. Ele começou a colocar o cinto na calça, precisando chegar ainda mais perto de mim, fazendo com que meu rosto ficasse bem próximo do seu peito, tanto que eu podia beijá-lo se quisesse, e tinha certeza de que ele sentia minha respiração em sua pele. Deveria ter tentado me afastar de novo, mas não o fiz. Parecia que estávamos fazendo uma coisa muito mais íntima do que aquilo. Eu sentia o calor subir do meu pescoço para o meu rosto, queimando minha pele fria. Sentia-me em brasas.

   O cinto era grande demais também. Mais um pouco e daria duas voltas em meu corpo, então não tinha buracos suficientes. 

   — Segura — Paulo mandou, sua voz um pouco mais rouca e áspera do que tinha sido minutos antes.

   Surpresa das surpresas, obedeci, segurando a calça com o cinto inútil na cintura, sem fazer nenhum comentário ferino sobre o poder ter subido à cabeça do garoto, fazendo-o arrogante e mandão. Ele se afastou e abriu uma das gavetas, pegando alguma coisa.

   Era um canivete.

   – Não vai doer nadinha, eu prometo – ela disse, avançando com a lâmina prateada nas mãos. Os olhos azuis vidrados, insanos. – Eu vou fazer com muito carinho, Julieta. Vai acabar bem rápido. Logo você não vai sentir mais nada.

   Um tremor que eu conhecia muito bem começou a percorrer meus membros. Medo. Deixa um gosto amargo na boca, meio como cera de vela. Minhas pernas enfraqueceram e minhas mãos tremiam. Parei de respirar. Imagens do passado e do presente se misturavam em minha cabeça, bagunçando o frágil sistema que prendia aquelas lembranças. O frio cobria-me de dentro para fora, como se o sangue estivesse congelando em minhas veias. Não podia tirar os olhos daquele objeto...tão comum, quase inofensivo.

   Nem sempre.

  Eu ouvia um zumbido nos ouvidos, sentia o banheiro ao meu redor como se estivesse coberto por névoa, eu não conseguia focalizar nada direito. Minha cabeça estava leve, do jeito que ficava quando tomava muita tequila. Sabia, com a parte consciente e racional do meu cérebro, que estava tendo uma reação exagerada. Ridícula.

   Mas o medo não é racional.

   Nem aquelas lembranças.

   – Julieta! Julieta! – ouvi a voz de Paulo como se ele estivesse do outro lado de um campo de futebol. Mas sentia suas mãos segurando meu rosto, tirando o cabelo da minha testa suada.

   – Fala alguma coisa! O que você tem? O que está sentindo? – eu agora ouvia sua voz mais claramente, como se eu tivesse tirado fones de ouvido. Seus olhos estavam muito verdes quando eu levantei minha cabeça para vê-lo. Seu rosto era um borrão, mas a cor dos seus olhos era intensa o suficiente para que eu pudesse vê-los quase com clareza.

   Prendi-me naquilo. No verde dos seus olhos. Faziam-me pensar em dias ensolarados e grama recém-cortada. Um cenário onde nada de ruim pode acontecer. Uma ilusão. Mas uma ilusão que ia me impedir de enlouquecer naquele momento. Uma ilusão que ia me tirar daquelas lembranças, que ia me trazer de volta. Algo no presente ao qual eu podia me agarrar. Era uma ilusão real. Meio que um paradoxo, não é?

   – Respire – Paulo mandou, mas sua voz era suave, não arrogante.

   Respirei. Ainda olhando diretamente dentro daquele verde que me acalmava. E senti que estava ali de novo. A névoa se dissipou e meus dedos começaram a formigar, como acontece depois que você acorda de um pesadelo muito real e percebe que não pode se mexer. A tontura passou e eu conseguia focalizar o rosto bonito daquele garoto. Os cabelos castanhos molhados e ligeiramente ondulados caindo em sua testa larga, as sobrancelhas grossas, a ponte do nariz perfeito, os lábios cheios. Percebi que estava no chão e que nem havia sentido quando caí. Paulo estava ajoelhado na minha frente e sua expressão era preocupada enquanto ele colocava os fios que haviam escapado do meu coque desajeitado atrás das minhas orelhas.

   – Vejo que você ainda não conhece a definição de espaço pessoal – consegui dizer, apesar de minha voz soar patética e trêmula até para os meus ouvidos.

   Mas Paulo sorriu. Parecia aliviado e seu sorriso era lindo. Era quente. Eu o sentia descongelando o sangue em minhas veias, como um cobertor elétrico.

   E eu não queria admitir que, naquele momento, não queria que nenhuma outra pessoa estivesse ali, além dele.

   – E vejo que nem doente você deixa de ser irritante – Paulo disse, ainda sorrindo, acariciando meu rosto com seus polegares. – Pode se levantar?

   Neguei com a cabeça, envergonhada por parecer fraca. O monitor nem piscou antes de passar um braço em minhas costas e o outro atrás dos meus joelhos, erguendo-me como se não fosse nada. Como sempre fui alta, não era carregada pelos outros com frequência, por isso envolvi meus braços ao redor do pescoço de Paulo, com medo de cair. Ele riu pelo nariz e me colocou na bancada de pedra fria do banheiro.

   – Acho que a chuva de ontem pegou você de jeito, Vaughan – disse, colocando a mão aberta na minha testa para verificar minha temperatura. – Você está suando frio. Pensei que fosse desmaiar.

   – Eu não desmaio – menti.

   – É, você só gosta de me assustar.

   – Eu só... – comecei, incerta do que dizer. Nunca a verdade, é claro. Aprendi do modo mais difícil que a honestidade é uma vadia. – Não sei, acho que foi a chuva mesmo.

   – Sabia. Vou levar você na enfermaria.

   – Não! – gritei, fazendo-o me olhar curiosamente. – Quer dizer...se você me levar para a enfermaria, vão saber que eu não dormi no meu dormitório.

   Ele acenou com a cabeça, concordando.

   – Tem razão. Eu vou leva-la para o seu quarto, mas quero que você fique lá, entendeu? Não vá para a aula. Eu aviso que você está doente e, se você piorar, quero que me ligue. Aí eu te levo na enfermaria. Certo?

   Assenti.

   – Quero que você fale, Julieta – ele ordenou, sério. – Certo?

   – Sim – respondi, cansada. Qualquer coisa para ele me deixar em paz.

   O monitor deu um sorriso torto e afagou minha bochecha. Seus olhos estavam ligeiramente mais castanhos agora. Acho que era a luz. Gostava deles do mesmo jeito.

   – Vou ajeitar esse cinto para você – ele disse, agachando-se no chão para pegar o que eu imaginei ser o canivete, para fazer um furo novo no cinto, para caber em mim.

   Fechei os olhos. Apertei-os bem, como uma criança com medo de levar uma injeção. Sentia-me exatamente assim, só que pior. Injeções só doem por um momento, depois passam. As lembranças que aquele canivete reviveu em mim doíam como uma ferida fresca, aberta, ensanguentada. E a dor não passava. Nunca.

   – Pronto, agora serve direitinho – o ouvi dizendo, ajustando o cinto no meu corpo. – Ei, Julieta, por que está de olhos fechados?

   Só abri os olhos quando ouvi o barulho da gaveta fechando, esperando que Paulo tivesse guardado o canivete. Passei os olhos rapidamente pelas mãos de Paulo até a outra ponta da bancada de pedra e não vi nada. Suspirei de alívio.

   – Tem certeza de que está bem? – Paulo perguntou, levando as mãos até meus cabelos e soltando-os.

   Os cachos úmidos e embaraçados caíram em meus ombros e Paulo passou os dedos neles, soltando-os delicadamente.

   – S-sim – gaguejei.

   Não queria ele tão perto, por medo de gostar. Sabia que gostaria. Gostava do seu toque em meus cabelos, gostava do jeito como me olhava, como respirava o mesmo ar que eu. E aquilo era tão errado. Tudo que é bom machuca. Tudo que é bom, não serve para mim. Eu não sou boa. Eu não sou boa. Não posso ter aquilo, não posso ter o que privei outra pessoa de ter para sempre. Carinho, amor. Ela não podia mais ser tocada daquele jeito, não podia mais sentir o coração acelerar com a proximidade de alguém, não podia mais se sentir fraca de tanta vontade de passar os dedos pelo corpo de alguém. Ela não podia mais ser amada.

   Porque ela estava morta.

   E eu também.

   Mas mesmo sabendo disso, permiti que Paulo desembaraçasse meus cabelos. Permiti que ele chegasse perto. Que me visse no meu momento mais frágil. Não queria impedi-lo e nem iria fazer isso. Bebia aquele momento como alguém que morre de sede no deserto. Mas prometi silenciosamente a mim mesma que seria só aquela vez. Permiti-me sentir o gosto doce e amargo do carinho. Do toque de outra pessoa. Era diferente com Paulo. Era diferente com ele, porque eu me sentia diferente. Eu me sentia viva e inteira, como se todos os pedaços estraçalhados da minha alma se unissem mais uma vez. Como se isso fosse possível. Como se eu fosse só uma garota e ele só um garoto. Sentia-se certo. Bom. Parecia que todos os meus pecados podiam ser perdoados. Parecia que Paulo podia...podia afastar a minha dor.

   Mas o errado sempre parece certo por um tempo. Sempre é bom por um tempo.

   Mas depois destruiria tudo o que restava de mim mesma.

   E podia destruí-lo.

   Eu não podia ser tão má, tão egoísta, tão cruel a ponto de arrastar outra pessoa na minha miséria. No meu pesadelo. Nas trevas que me envolviam a cada dia da minha vida.

   Ele merecia coisa melhor.

   Mas eu precisava tanto dele.

   Eu o queria tanto. Meu coração doía.

   Meu coração batia.

   E era uma dor tão doce, um veneno delicioso. Que mata lentamente. Mas que é tão bom, que não importa.

   Levantei minha mão e toquei o rosto dele. Senti o início de sua barba áspera sob meus dedos. Ele sorriu e beijou a palma da minha mão.

   É. É tão bom que não importa.

...

   – Gabe, acorda – chamei, afastando os cabelos pretos do rosto dele enquanto Paulo olhava a cena, irritado.

   Gabe acordou e piscou algumas vezes antes de focalizar o olhar escuro em mim.

   – Julieta?! – disse, surpreso, depois a compreensão se espalhou por seus olhos. – Ah, sim...que horas são?

   – Cedo – respondi enquanto ele se sentava. – Eu estou indo pro meu dormitório. Você devia ir para o seu quarto, descansar um pouco antes da aula.

   Ele negou com a cabeça.

   – Não, eu estou ótimo – disse, bocejando. – Vou levar você até lá.

   Paulo escolheu esse momento para se aproximar e dizer:

   – Eu vou levá-la, Kimak. E quando eu voltar, espero não ter que olhar pra sua cara.

   Rolei os olhos e dei um beijo na bochecha de Gabe.

   – Não ligue para esse idiota – eu disse, forçando um sorriso. – Mas é melhor eu ir com ele mesmo. Ele é monitor, pode dar uma desculpa se alguém nos pegar. E eu não quero causar problemas para você.

   – Você nunca é um problema, Julieta – ele respondeu.

   – Eu sou o pior dos problemas – retruquei e, aproximando-me mais dele, sussurrei em seu ouvido, para Paulo não ouvir. – Se você quiser matar aula, vou ficar o dia inteiro no meu quarto.

   Levantei-me e acenei para ele, saindo do quarto, seguida pelo monitor carrancudo. Assim que ele bateu a porta atrás de nós, o senti colocando algo sobre meus ombros. Virei-me e percebi que era um agasalho de moletom. Não disse nada, apenas o vesti e fui andando. Os corredores ainda estavam vazios e silenciosos, já que não era nem seis da manhã ainda. Descemos as escadas em um silêncio desconfortável, o som dos nossos sapatos no chão sendo o único ruído audível.

   Aquele momento no banheiro parecia muito distante agora. Ele havia acabado tão rápido como tinha começado, quando Paulo foi dar um passo para mais perto de mim e tropeçou nas roupas que eu deixara no chão na noite anterior. Foi embaraçoso. Resolvi levantar da bancada e calçar meus sapatos para ir embora, parando para acordar Gabe antes.

   Chovia lá fora. A chuva forte da noite passada ainda não havia passado e se derramava sobre tudo, fazendo com que o mundo ficasse escuro. Deprimente. O sol não parecia disposto a aparecer, nem parecia que já era manhã.

   – Vamos? – chamou Paulo, abrindo o guarda chuva preto que havia trazido.

   Eu me aproximei e ele passou o braço pela minha cintura. Queria me afastar, mas fui andando ao seu lado pelo caminho chuvoso e solitário. As luzes ainda estavam ligadas, mas a chuva as enfraquecia. Difícil imaginar uma manhã que se parecesse menos com uma. Para mim ainda era noite e eu agradeci mentalmente ao fato de Paulo achar que eu estava doente e me mandar ficar no quarto, já que a última coisa que eu queria era ter um dia de aula estressante com toda aquela chuva e a noite terrível que eu tive.

   Não falamos nada nem encontramos ninguém no curto caminho. A barra da calça que Chermont havia me emprestado já estava enlameada e eu sentia arrepios de frio cada vez que o jeans molhado encostava nos meus tornozelos. Inconscientemente, me percebi mais agarrada ao garoto ao meu lado, simplesmente para me proteger do frio. Seu calor me atraía, me tentava a abraçá-lo e só ficar assim até a chuva passar.

   Preciso parar de pensar essas coisas. Essa não sou eu.

   Quando chegamos perto do dormitório feminino, eu já tinha aguentado o que podia. Soltei-me dele sem aviso e andei apressadamente até a entrada, sentindo a chuva esfriar meu corpo febril, infiltrando-se nas minhas roupas e cabelo. Não olhei para trás. Sentia-me tão diferente , tão fraca, vulnerável. Tão tentada a simplesmente ceder.

   Nunca quis tanto ser uma garota normal.

   Uma mão envolveu meu braço e me virou antes que eu pudesse me abrigar da chuva no dormitório. O sol havia finalmente tentado uma tímida saída através da chuva e da escuridão, mas era fraco como uma lâmpada coberta por um lençol. Mas eu podia ver perfeitamente o rosto de Paulo enquanto ele me olhava com ternura. Seus olhos estavam apertados, gotas de chuva prendendo-se em seus cílios e escorrendo por seu cabelo molhado. O guarda chuva estava esquecido, jogado em algum lugar atrás dele. Sua boca estava vermelha pelo frio, parecendo tão tentadora como sempre foi. Para mim.

   Pensei que ele fosse me beijar. Queria que ele me beijasse. Porque eu não poderia fazê-lo. Não mais. Não poderia começar algo fadado a morrer lentamente daquele jeito. Eu sabia todas as implicações e consequências que aquele ato traria, não tinha desculpas. Mas ele não. Ele era inocente, não sabia o quanto eu era errada para ele. Não sabia o quanto eu o machucaria, se ele deixasse. Não sabia o quanto eu era podre. Miserável. Desgraçada.

   Ele não sabia de nada.

   E se dependesse de mim, ele nunca saberia.

   Paulo não me beijou. Ele soltou meu braço e levou a mão até meu rosto, acariciando gentilmente minha bochecha com as costas dos dedos. Um carinho tão suave que eu quase não podia senti-lo. Quase como um daqueles beijos de borboleta que minha mãe me dava antes de dormir. Fazia-me sentir segura e amada, protegida dos monstros que existiam fora do meu cobertor quentinho. Aquele toque de Paulo fez-me sentir assim por um instante. E eu senti lágrimas escaparem dos meus olhos. Não creio que ele tenha percebido, elas se confundiam com as gotas de chuva que também percorriam meu rosto. Mas minhas lágrimas eram quentes e a chuva, gelada.

   Paulo baixou a mão antes que minhas lágrimas pudessem tocar seus dedos. E então, virou-se e foi embora, deixando-me totalmente confusa.

   De certa forma, seria mais fácil se ele tivesse apenas me beijado.

   Porque aquele simples toque era muito mais doce.

   E muito mais perigoso.


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Notas finais do capítulo

Hey, espero que tenham gostado. Obrigada a todo mundo que comentou no cap passado: Cee, Ravie, Sofia Paura e Thatajovi *-*
Obrigada :)