Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 13
Capítulo 12


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente :)
Desculpa por não ter postado sábado, o capítulo já tava pronto, mas eu passei o final de semana inteiro fora de casa, aí não deu pra postar :(
Bom, mas aqui tá o capítulo. Boa leitura :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/162378/chapter/13

   - Um beijo? – ele repetiu, não de maneira surpresa, mas como se estivesse considerando a ideia. – Talvez seja uma solução.

   Antes que eu pudesse respirar, Gabe já estava muito próximo de mim, curvado para o seu rosto alcançar o meu. Seus olhos eram como dois poços profundos, impossíveis de ler, enfeitados por cílios tão compridos que eu podia ver a sombra deles embaixo dos seus olhos. A pele do rosto dele, apesar de pálida como a minha, era limpa e uniforme, sem nenhum vestígio de sardas. Ele era tão bonito que eu tinha vontade de beijá-lo.

   E não era isso que eu estava prestes a fazer?

   Era simplesmente inacreditável que ele estivesse realmente levando aquilo a sério. Eu não havia nem parado um segundo para pensar antes de sugerir esse absurdo, mas...percebi que era realmente o que eu queria. Queria conhecer o sabor daqueles lábios descorados e finos, queria saber se eles ficariam vermelhos depois de me beijar.

   Mas, principalmente, queria apagar a memória de outro beijo, de outros lábios, de outro garoto.

   Senti o calor subindo pelo meu pescoço até chegar ao meu rosto e fechei os olhos, esperando sentir a pressão dos seus lábios nos meus. Tinha certeza de que seu beijo seria gentil e suave. E talvez eu realmente precisasse disso. De gentileza e suavidade, ainda que eu não as merecesse.

   Só que os segundos passaram e eu não senti nada. Abri os olhos e reparei que Gabe já não estava próximo de mim. Estava na frente da tela, com um pincel fino em uma mão e uma palheta de cores na outra.

   O quê?! De novo?!

   - Você já está vermelha – ele disse, percebendo meu olhar acusatório. – Não precisou do meu beijo.

   Já posso matar esse garoto?

   - E não passou pela sua cabeça que eu talvez quisesse que você me beijasse? – perguntei, direta, trincando os dentes de raiva.

   Ele parou o que estava fazendo e apoiou o pincel na mesa. Olhou bem dentro dos meus olhos, com aquela expressão indiferente que nem um robô seria capaz de imitar.

   - Não, não passou – respondeu, antes de pegar outro pincel e continuar como se nada tivesse acontecido.

   Soltei um pequeno sorriso involuntário. De alguma maneira, eu sabia que ele estava sendo sincero e isso me deixou surpresa e um pouco desconfortável. Mas ao mesmo tempo, era como se eu não pudesse esperar outra resposta dele. Eu gostei. Gabe era...refrescante. Era como tomar um refrigerante bem gelado num dia de verão, direto da lata. Era bom, mas o primeiro gole fazia a garganta arder em desconforto. Eu percebi que realmente gostava de estar com ele. Gostava da mistura do seu mistério com sua honestidade quase agressiva. Gostava de querer ficar perto dele, e não afastá-lo como estou sempre fazendo com as outras pessoas.

   A princípio, havia pensado que nós éramos parecidos, mas eu estava errada. Éramos diferentes do resto das pessoas, mas também éramos diferentes entre nós. Ele tinha uma calma infinita que parecia fluir para mim. Gabe parecia...inocente. O que fazia com que as palavras que Paulo havia despejado em cima de mim fossem mentiras. Não via um mundo onde Gabe pudesse ser perigoso.

   Mas talvez esse fosse o maior perigo para mim.

   Ele estava tão concentrado em seu trabalho que parecia não sentir o tempo passar. Seu rosto era como uma máscara de determinação, como se ele pusesse todos os seus esforços naquilo. Acho que isso é chamado de...dedicação. Fico até surpresa de lembrar a palavra, já que ela não faz parte da minha vida há muito tempo.

   O tempo foi passando lentamente, pelo menos para mim. Eu não conseguia enxergar o que Gabe pintava do lugar onde estava, mas eu suspeitava que ele fosse bom no que estava fazendo, já que não rabiscou esboço nenhum com lápis e começou a pintar direto. Não tinha relógio, então não sabia quantas horas haviam passado, mas meus músculos já protestavam por ficar tanto tempo na mesma posição e minha coluna parecia que ia partir.

   - Hum, Gabe – comecei, disposta a encerrar por hoje, mesmo sendo apenas a modelo e ele, o pintor. – Será que podemos continuar outro dia? Minhas costas estão me matando.

   Ele não deu sinal algum de ter ouvido.

   - Gabe! – gritei, fazendo-o finalmente parar de trabalhar o olhar para mim, um pouco surpreso, como se não lembrasse que eu estava ali, apesar de estar me pintando. - Eu já estou cansada disso, podemos continuar outro dia?

   Ele precisou parar para pensar por um momento, como se tivesse acabado de voltar de um transe. Parecia que Gabe viajava para seu próprio mundinho quando pintava e eu o havia feito voltar para o mundo real muito abruptamente.

   Adorável.

   - Ah, claro – ele respondeu finalmente, olhando o relógio no seu pulso. – São onze horas da manhã, ficamos aqui por muito tempo.

   Levantei-me e comecei a me esticar um pouco, meus braços e pernas estavam duros. Gabe começou a guardar o seu material e quando eu me aproximei para ver a tela, ele me impediu, colocando-se na minha frente.

   - Você não pode ver – disse, sério.

   - Mas não sou eu aí? Por que não posso ver?

   - Não está terminado.

   - E daí?

   - Eu só mostro meus trabalhos para as pessoas quando eles estão terminados.

   Suspirei e dei de ombros, afastando-me da sua preciosa tela. Eu estava curiosa e queria ver o trabalho do Gabe, mas iria respeitá-lo e esperar a tela ficar pronta.

   - Já está quase na hora do almoço, estou com fome - eu comentei.

   - Se é assim, você quer almoçar comigo? - Gabriel perguntou, ainda guardando suas coisas.

   - Pensei que meninos e meninas não pudessem almoçar juntos no refeitório - respondi.

   - E não podem. Mas eu não vou almoçar no refeitório. Nem na escola, para ser sincero.

   - Então onde você vai comer? - perguntei, curiosa. Ele iria sozinho a um restaurante?

   - Em casa. Quer ir?

   Ele estava me convidando para almoçar na casa dele, com a família dele? Não, nunca. Não iria mesmo. Eu sempre odiei esse tipo de situação, quando tenho que fingir ser uma garota normal e sociável. E sou antisocial mesmo, já deve estar na cara que eu não gosto de conhecer pessoas novas.

   Gabriel Kimak era uma exceção.

   - Não, obrigada - respondi. - Eu...

   - Eu moro sozinho - ele disse, antes que eu pudesse concluir minha desculpa.

   - Quê?

   - Eu moro sozinho - ele repetiu, finalmente me fitando com aqueles olhos negros. - Eu tenho a impressão de que isso pode influenciar na sua decisão.

   - E por que você acha isso? - perguntei, meio na defensiva.

   Ele riu e, por um momento, fiquei paralisada. 

   O som da risada dele era lindo.

   - Talvez não seja educado dizer, mas eu...sinto que você tem problemas com família - ele disse, com o olhar cheio de compreensão. - Não apenas com a sua família, mas com o conceito em geral. Não vou te perguntar o que aconteceu, não é da minha conta e eu sei que você não me diria ainda que fosse. Mas...eu entendo.

   Se tem uma coisa no mundo que me faz querer triturar os ossos de alguém, é quando as pessoas sentem pena de mim. Mas...Gabe não estava sentindo pena de mim naquele momento, eu sabia, podia enxergar isso nele. Era mais como se ele tivesse passado por uma situação semelhante e realmente, realmente, pudesse entender. Aproximei-me dele quase que involuntariamente e estiquei minha mão até que ela tocasse o rosto dele. Sua pele era exatamente como parecia ser. Macia e fria. Gabe fechou os olhos por um momento, como se gostasse do toque da minha mão. Nunca o tinha visto tão vulnerável. Tão bonito.

   Afastei-me.

   - Eu vou com você - disse.

   - Ok - ele respondeu, abrindo os olhos e voltando a arrumar as coisas. Como se nada tivesse acontecido. - É melhor que você leve alguma roupa para trocar, podemos demorar a voltar.

   - Certo, onde eu encontro você?

   - Nos portões do colégio.

   Assenti e saí da sala, deixando-o sozinho. Dirigi-me rapidamente para o dormitório, sem encontrar ninguém no caminho, a não ser duas freiras que caminhavam para o refeitório. St. Werburgh, vazia como estava, parecia sinistra e assombrada. E mesmo sendo apenas o final da manhã, o céu estava cinzento e nublado, fazendo com que fosse necessário ligar as luzes dos corredores da escola. Cheguei ao meu quarto e peguei minha mochila. Não tinha muita coisa lá mesmo, eu precisava ir às compras urgentemente. Antes de sair, peguei uma escova que estava em cima da penteadeira - e que a julgar pelos fios cor de rosa presos nela, pertenciam a Luma - e dei uma rápida escovada no cabelo.

   Estava muito frio lá fora e eu agradeci mentalmente pelo fato de Gabe já estar me esperando nos portões quando eu cheguei. O menino era rápido. Ele também segurava uma mochila, preta como sua roupa.

   - Vamos a pé - ele disse. - Quer que eu leve a sua mochila?

   - Não, obrigada - respondi. - Ela não está pesada.

   Ele assentiu e nós seguimos em silêncio pela íngreme estradinha de cascalho rodeada por árvores altas e arbustos, porém, quando estávamos quase chegando à cidade, eu comentei:

   - Uma pena que você ainda não tenha idade para dirigir - eu já estava ofegante, mas pelo menos o exercício me fazia sentir menos frio.

   - Eu tenho 18 anos e uma carteira de motorista - ele disse como resposta.

   - Sério? - eu perguntei, já que ele ainda estava no segundo ano e parecia ter a minha idade.

   - Eu reprovei um ano na escola. E, antes que você pergunte, eu tive que vender o meu carro no início do semestre.

   Não disse nada, afinal eu não gosto que os outros fiquem se metendo nos meus problemas e com ele podia ser assim também. E se não fosse, ele mesmo teria que tomar a iniciativa para me falar sobre essas coisas. Mas eu estava intrigada com ele, com seus mistérios e segredos. Queria saber tudo sobre Gabriel Kimak, mas não ia forçá-lo a falar nada, criando assim uma situação desagradável entre nós. 

   O engraçado é que esta era a primeira vez que eu sentia curiosidade em relação a alguém em dois anos. Era como se algo no garoto me chamasse, me atraísse, atiçasse meus sentidos. Ele tinha a capacidade de enxergar as coisas de maneira diferente e muito além da superfície.

   Assim como o Chermont.

   Tire já esse garoto da cabeça, Julieta.

   Continuamos andando em silêncio mesmo depois de chegarmos à cidade. Era a primeira vez que eu realmente a via, sem ser passando rápido e espiando pela janela do carro. Era realmente bem simpática, cheia de casinhas de arquitetura antiga, uma encostada na outra, parede com parede. E cada uma de uma cor diferente, o que dava ao lugar um ar meio alegre, mas ao mesmo tempo, antigo. As ruas eram um pesadelo. As calçadas eram estreitas e tortas e as pistas não eram asfaltadas, a maioria era de paralelepípedos. Mas eu cheguei a notar uma ou duas que eram de terra batida mesmo. Não sabia onde era a casa do Gabe e também não perguntei, só esperava que não estivesse muito longe.

   Chegamos até uma esquina, duas ruas depois da praça central da cidade, onde havia uma pequena e charmosa padaria, de onde vinha um cheiro maravilhoso de pão recém assado. Não havia quase ninguém por ali, por causa do horário.

   - É aqui - Gabriel disse, parando na frente do lugar.

   - Você mora numa padaria? - perguntei, perplexa.

   - Na verdade, eu moro em cima da padaria - ele respondeu, me guiando até uma escadinha estreita de cimento ao lado do estabelecimento. - O aluguel é barato.

   Assenti e subi os degraus disformes logo atrás dele, até chegarmos a um tipo de "terraço". Não havia nenhum tipo de proteção ali, grades nem nada do tipo. Havia apenas um varal com algumas roupas e uma espécie de palanque de madeira. Passamos por lá até chegarmos a uma porta, que Gabe abriu com uma chave que tirou do bolso. Assim que entrei, reparei que o lugar era bem limpo e organizado para um cara jovem que morava sozinho, apesar de ser bem pequeno e escasso de móveis ou decoração. A cozinha e a sala ficavam no mesmo aposento, separadas por um balcão. E havia apenas uma porta, que estava fechada. A cozinha era mínima e só tinha uma geladeira e um fogão velhos, alguns armários brancos na parede em cima da pia e uma cafeteira em cima do balcão. Já a sala era composta por uma mesa pequena de madeira com duas cadeiras que não combinavam. Mais nada. Nem sofá, nem TV, nem qualquer tipo de objeto pessoal.

   - Minimalista você, não? - soltei, quase sem querer. Ele riu.

   - Passo pouco tempo aqui - respondeu, pendurando sua mochila em um gancho atrás da porta. - Só os finais de semana e as férias. O resto do tempo eu fico na Werburgh.

   Werburgh era como os alunos do chamavam o colégio, para não ser confundido com o nome da cidade. Eu tinha escutado algumas garotas se referindo à escola dessa maneira no refeitório.

   - Bom, o que vamos comer? - perguntei, entregando a minha mochila a ele, para pendurá-la atrás da porta também.

   - Eu vou cozinhar, espero que você goste de torta de carne.

   - Você sabe cozinhar? Sério?

   - Eu moro sozinho, precisei aprender a sobreviver, não é?

   Eu sorri. Estava agradavelmente surpresa. Gabriel estava se mostrando uma companhia melhor a cada minuto e eu estava quase feliz por estar ali com ele. Não entendia direito aquilo, nunca havia me sentido próxima de alguém com quem não tivesse uma relação sanguínea, então era uma coisa nova para mim. E, apesar de eu realmente odiar coisas novas ou diferentes das quais estou acostumada, não me sentia daquele jeito naquele momento. Era quase como se eu me sentisse segura com ele. E aquilo me assustava e fascinava.

   - Seu sorriso é lindo - ele disse de repente, arrancando-me dos meus devaneios.

   Enrubesci, mas não disse nada. Gabe tirou o casaco e o colocou no encosto de uma das cadeiras da sala, depois foi até a única porta do apartamento e a abriu, entrando em seguida e deixando a porta aberta. Eu continuei parada onde estava, mas consegui dar uma olhada no aposento. Era o quarto dele, composto por uma cama de casal, um armário velho e uma pequena cômoda ao lado da cama. Era pequeno e limpo, como o resto do lugar, e tinha uma outra porta que dava para o banheiro, onde Gabe entrou para lavar as mãos e o rosto. Saiu de lá e voltou à sala com uma toalha na mão e a franja preta pingando água. Dirigiu-se à cozinha e começou a tirar ingredientes da geladeira e dos armários.

   - Quer ajuda? - ofereci, apesar de estar muito cansada. Com a péssima noite de sono, o fato de ter ficado horas sentada na mesma posição e a caminhada até ali, era uma surpresa eu ainda me aguentar em pé.

   - Não, obrigado - ele respondeu, fitando-me demoradamente. - Eu prefiro cuidar de tudo sozinho e você parece exausta. Não quer descansar um pouco na minha cama?

   - Posso? - eu me sentia um pouco envergonhada com o pensamento de deitar na cama dele, mas estava tão cansada que decidi empurrar esse sentimento para o fundo da mente.

   - Sim.

   Assenti e fui em direção ao quarto, que era mais quentinho que o resto da casa. Tirei os tênis e sentei na beira da cama, passando os dedos pela colcha macia por um momento. Deitei a cabeça no travesseiro e me encolhi, abraçando as pernas. Estava tão cansada e a cama dele era tão macia e confortável. Além disso, o travesseiro do Gabe tinha um cheiro maravilhoso. Fechei os olhos e adormeci quase imediatamente.

   Não sei o que me fez acordar. Em um momento eu estava completamente aninhada e confortável na cama cheirosa do Gabe e no outro eu estava abrindo os olhos. Senti imediatamente o cheiro maravilhoso que vinha da cozinha e invadia minhas narinas, fazendo meu estômago acordar também, e gritando. Mas não acho que tenha sido isso que me fez sair do meu sono profundo. Eu não tinha como saber, mas algo me dizia que a intensidade daquele olhar levantaria até defunto. É, Gabe estava encostado na porta do quarto, em uma posição totalmente casual, mas seu olhar grudado em mim era o completo oposto. Não havia nada de casual naquele olhar. Ele era deliberado, intenso, proposital. Aqueles olhos tão escuros estavam tão fixos, tão imóveis e atentos, que era como se estivessem querendo enxergar através de mim.

   Senti-me ligeiramente incômoda ao imaginá-lo me olhando daquele jeito enquanto eu dormia, no momento em que estava mais vulnerável e exposta. E as palavras daquele maldito do Chermont fizeram uma rápida, porém desastrosa, visita à minha cabeça.

   Gabriel Kimak é o pior tipo de delinquente e eu não quero você perto dele. É perigoso. Por favor, me escute dessa vez.

   - O almoço está pronto – Gabe anunciou, tirando-me desses pensamentos absurdos.

   Ora, claro que era absurdo. Eu costumo confiar nos meus instintos e todos eles diziam que Gabriel Kimak era tudo, menos um marginal perigoso. Eu não tinha razão nenhuma para temê-lo e se, por um momento, eu fiquei assustada, a culpa era daquele monitorzinho de beira de estrada que havia contaminado a minha cabeça com o seu veneno.

   Mas é que...por apenas um momento eu pensei ter visto algo no olhar do Gabe...algo como...

   Crueldade.

   - Você não estava com fome? – Gabe perguntou, parecendo totalmente indiferente como sempre, ainda parado na porta do quarto.

   Eu assenti e finalmente levantei, seguindo-o para a sala e varrendo os pensamentos malucos para fora da minha cabeça.

   Mania de perseguição, já pode ir embora.

   - Hum, Gabe, aonde foi parar a comida? - perguntei ao ver que a mesa da sala estava vazia.

   - Achei que seria uma boa ideia comer lá fora - ele respondeu, já indo na direção da porta. - Por isso levei tudo para o terraço.

   - O quê? - exclamei, horrorizada. - Você está louco? Está o maior frio lá fora!

   - Quer dizer que você não gosta do frio?

   - Odeio o frio.

   Gabe pareceu ponderar por um instante, depois foi até o quarto, abriu o armário e tirou algumas coisas de lá. Pegou também os tênis que eu havia abandonado ao lado da cama e foi até mim.

   - Meias, tênis, um casaco bem quente, gorro de lã e um cachecol - disse, empilhando tudo nos meus braços. - Assim você vai ficar protegida do frio e ainda vai poder desfrutar de um almoço com uma vista muito bonita da cidade.

   Resignada, fiz o que ele disse e vesti tudo, saindo logo em seguida para o terraço.  Continuava frio lá fora, mas não era nada insuportável. Reparei que Gabe havia colocado uma toalha de mesa verde no palanque de madeira, arrumando o almoço em cima. A torta de carne dele parecia realmente deliciosa e eu mal podia esperar para provar. Também tinha pãezinhos recém assados - morar em cima de uma padaria tem suas vantagens -, alguns vegetais feitos no vapor, uma jarra de suco de maçã e algumas frutas em uma vasilha de plástico.

   - Confesso que estou impressionada - comentei, logo depois de provar o primeiro pedaço da torta. - Você é um garoto de muitos talentos, não é?

   Gabe riu e tomou um gole do suco. Estávamos sentados no palanque de madeira, aproveitando um almoço muito gostoso. Eu já nem me incomodava com o frio e, dali de cima, podia ver a praça, a ponte e o rio, além de todas aquelas ruas estreitas e charmosas. De fato, eu precisava concordar que a ideia do Gabe tinha sido ótima e eu estava adorando almoçar ali.

   - Você é quem está dizendo - ele respondeu, ainda com um vestígio de sorriso nos olhos. Eu não resisti e sorri também. Era bom ficar ali com ele, vendo-o sorrir despreocupadamente daquele jeito. Eu não o conhecia tão bem assim, mas se algum modo eu sabia que aquele sorriso tinha estado longe por muito tempo.

   Assim como o meu.

   Comemos em um silêncio agradável, quebrado de vez em quando por alguma pergunta sobre a cidade que eu fazia. E ele sempre me respondia com gentileza. Ficamos ali mesmo depois de termos acabado de comer, conversando sobre nada em especial. Mas mesmo assim eu fiquei sabendo certas coisas sobre ele. Gabriel tinha nascido em St. Werburgh, mas passara o último ano fora da cidade, voltando apenas esse ano. Ele gostava de gatos, mas não podia ter nenhum já que animais de estimação eram proibidos na escola e não havia ninguém para cuidar de um na sua casa durante a semana. Gabe adorava o frio quase tanto quanto eu detestava, não gostava de cores muito chamativas, de lugares muito lotados, de grandes cidades e do Natal.

   - Somos dois, então - eu disse, sobre a sua última afirmação. - Odeio o Natal.

   - Por alguma razão em especial? - perguntou.

   - Sim e não. É complicado.

   - Eu sei. Sempre é.

   Olhei ao redor e reparei que o sol já estava se pondo no horizonte. Nem havia sentido o tempo passar. Gabriel e eu estávamos mais uma vez mergulhados naquele silêncio agradável, o que me permitia pensar sobre algumas coisas. Conversamos tanto, para duas pessoas que obviamente não tinham muito traquejo social, e mesmo assim, mesmo com todas as coisas que eu havia descoberto sobre ele, ainda não entendia o porquê de as pessoas o ignorarem na escola. Também não entendia a insistência do Chermont de me colocar contra ele, de me manter longe dele.

   - O que você quer perguntar? - Gabriel disse de repente, olhando-me diretamente nos olhos.

   - Como?

   - Eu posso ver no seu rosto que você está curiosa sobre alguma coisa. Vá em frente, pergunte. Talvez eu possa responder.

   Dei um meio sorriso. Não gosto de pessoas observadoras, mas não me incomodava com essa característica em Gabe. Não sei a razão, apenas não me incomodava.

   - Certo - eu disse, encarando-o também. - Por que o Chermont te odeia tanto? E por que ninguém na escola fala com você?

   Eu sabia muito bem que não tinha o direito de fazer aquelas perguntas, até porque se ele fizesse qualquer pergunta que fosse de longe tão pessoal como as que eu fiz, eu me recusaria a responder. Mas eu estava tão curiosa a respeito dele que as palavras foram saindo da minha boca quase por vontade própria. Não pude me controlar e agora não dava para voltar atrás, mesmo sabendo que ele dificilmente me responderia. Nós praticamente tínhamos acabado de nos conhecer!

   E eu não estava errada.

   - Você pode facilmente obter essas respostas de qualquer aluno da Werburgh - ele respondeu, desviando os olhos e observando os últimos e fracos raios de sol abandonarem o céu.

   - Provavelmente, mas eu não quero ouvir de outra pessoa a não ser você.

   - Uma pena, pois eu não posso dizer nada. E já estou cansado de mentiras – ele parecia quase...desapontado.

   - Não precisa mentir, já que eu não vou insistir. E também não vou procurar outra maneira de saber. Se um dia quiser me contar, me conte. Se não...bem, vou ter de conviver com isso, certo?

   Ele deu aquele meio sorriso e se levantou, começando a recolher as coisas de cima da toalha. Eu o ajudei, também em silêncio e nós limpamos tudo. Estava cada vez mais frio, então entramos, guardamos as sobras e lavamos a louça. Na verdade, Gabe lavou e eu enxuguei. A água estava fria e ele não queria que eu ficasse com mais frio. Então ficamos lá, lado a lado, os ombros se tocando, até terminarmos tudo. Tirei o casaco dele que estava vestindo, o gorro e o cachecol, os dobrei e coloquei em cima da cama. Estava ficando muito escuro lá fora e eu achava melhor voltarmos logo para o colégio. Mas Gabriel estava sentado em uma das cadeiras da sala, aparentemente sem intenção de se levantar.

   - Nem sempre foi assim - ele disse de repente, assustando-me. Estava sentado de costas para mim, fitando a janela com aparente interesse, então não podia ver seu olhar.    Mas sua voz era gélida. - Nem sempre fui assim. Você já teve amigos, Julieta?

   - Não - respondi com sinceridade, depois de hesitar por alguns segundos.

   - Pois não os tenha. Eles vão te trair.

   - Não precisa ser um amigo para trair. As pessoas costumam fazer isso não importa a relação que tenham.

   - Você é esperta. Eu não fui.

   Neguei com um movimento de cabeça, que ele não pôde ver. Esperta, eu? Não que eu saiba.

   - E você, já teve amigos? - perguntei, antes que a coragem me faltasse.

   - Sim, tive amigos. Um em especial, era um grande amigo. Meu melhor amigo. Quase um irmão.

   - E ele...te traiu?

   - Sim...como todos os outros. E eu o traí também. - ele se levantou e andou até a janela, ainda de costas para mim. As luzes estavam apagadas e eu mal podia enxergá-lo na penumbra. - Você me perguntou por que o Chermont me odeia tanto...não é? Ainda quer saber?

   - Sim - respondi depressa.

   Gabe suspirou e passou os dedos pelo cabelo preto como a noite. Parecia cansado, mas ainda assim...me assustava.

   - Ele me odeia porque...eu era o melhor amigo dele.

   Arregalei os olhos, em choque. Ele estava falando sério, eu podia perceber pelo ligeiro tremor em sua voz. Um tremor que não era de medo, mas de raiva, ódio. O que havia acontecido entre eles? Em quem acreditar? Paulo estava certo quando disse que Gabriel era perigoso ou só estava querendo manter todos longe do garoto como uma espécie de punição por sabe Deus o quê? Eu estava com a cabeça dando voltas, precisava ficar sozinha e pensar, entender aquilo.

   Por que raios eu me importava?

   Dane-se, eu me importava e pronto. Não era uma característica da minha personalidade me importar com os problemas dos outros, mas eu não estava com paciência para tentar entender aquele sentimento. Eu apenas o sentia. E, por enquanto, era o bastante.

   - Acho melhor voltarmos para a escola - eu disse, nervosa, para as costas de Gabriel. - Está ficando tarde.

   Gabriel se virou para mim, mas eu ainda não conseguia discernir suas feições naquela semi escuridão.

   - Não - ele disse, com o rosto ainda encoberto pelas sombras, mas os olhos...de alguma maneira eu sabia que eles estavam me fitando do mesmo jeito que fitaram naquela tarde, enquanto eu dormia. - Vamos ficar aqui.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Deixem reviews e me façam feliz, aí eu posto o próximo capítulo na sexta feira :)
Beijos :)