Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 9
Tom XV: Faces Nostálgicas/Tom XVI: A Chegada (...)




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Voe, voe, passarinho...

Em meio ao caos de uma Tokyo devastada...

Com meu próprio sangue escorrendo de mim...

Sentindo os braços dele me envolvendo tão carinhosamente...

...Você sabe que não pode fugir.

Mais ou menos na tarde do dia 24 de abril...

...Eu morri.

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XV: Faces Nostálgicas.

 

Auschwitz, Alemanha – Ano de 1943.

Complexo Aushwitz-Birkenau II.

Se algum dia ela saísse dali, a impressão que levaria do Campo de Concentração Aushwitz seria a cor marrom. Era absolutamente tudo marrom. Cabelos marrons, roupas marrons, comida marrom, gente marrom... Respirou pesadamente, tentando fechar os olhos e dormir, mas o estômago reclamava.

Já era o quarto (ou quinto?) dia sem comer. Sua pele tinha a cor dos mortos, pálida e fraca, e todo o viço que possuía quando ainda era uma cidadã de Varsóvia normal desapareceu. Agora sobrara olheiras profundas, lábios ressequidos e olhos verdes que dançavam frenéticos numa tentativa patética de sobreviver.

Toda a vida que conhecia virou de cabeça para baixo.

Em um momento, todos que conhecia morreram ou estavam como ela, perecendo lentamente de fome. Deuses, como o estômago doía...

Ela poderia comer uma pedra, se lhe oferecessem...

Há pouco mais de duas semanas o Crematoria II [1] começou a ser usado como uma fábrica de morte. A sua mãe, Anka, foi uma das primeiras cobaias. Aqueles cabelos castanhos totalmente rapados não mais balançaram, mas naquele momento, foi como se a impecável figura da mãe continuasse ali. Aniela amava aqueles cabelos... Tinha desejos de, quando crescesse, ficasse com aquele cabelo bem assim.

Mas agora, em Aushwitz, era só crescer um pouquinho para eles já cortarem.

Respirou pesadamente de novo, sentindo todo o corpo retesar-se diante daquele esforço. A boca estava seca. Aniela já não tinha certeza de que conseguiria comer alguma coisa, tampouco beber.

A cabeça estava até enevoada.

Talvez, agora que ela perdeu a mãe para a Crematoria II e o pai para os primeiros ataques nazistas, a única pessoa que lhe restava era ele. Cyryl. Seu querido Cyryl. Ele também parecia padecer do mesmo mal que ela.

Também tinha os olhos distantes, a pele da cor de uma mortalha... Aqueles olhos azuis e aqueles cabelos loiros, que tanto podiam fazê-lo parecer um nazista, já estavam perdendo o brilho, opacos e feios se comparados à perfeição que ele era antes de ter entrado naquela fábrica de morte.

“...Cyryl? Você está acordado?” – não eram poucas as pessoas que ela achava que estavam apenas distraídas quando, na verdade, estavam mortas.

“Estou. Claro, estou sim, Aniela.” – ele respondeu, focando a garota.

“Está com insônia?...”

“Meu estômago dói. Não consigo dormir direito assim.” – explicou, expirando longamente depois do último ponto.

Os pais de Cyryl também haviam perecido.  Isso junto com o pai dela, quando os primeiros ataques à Varsóvia e redondezas foram realizados. Mas ela não queria lembrar da loja deles sendo destruída, de seu pai sendo pisoteado pela multidão assustada que corria, em vão, de um lado para o outro.

Sacudiu a cabeça, fracamente, sentindo a mente enevoar ainda mais apenas com aquele simples gesto que lhe tirou tanta força.

“É, eu também estou com fome...” – murmurou.

Lá ao longe (talvez fosse até perto deles, mas a fraqueza os impedia de ouvir ou sentir qualquer coisa com clareza), eles ouviram um doloroso gemido. Talvez algum pobre coitado com a mesma dificuldade em dormir e viver.

Aniela e Cyryl não estavam nas camas, onde deviam. Eles estavam no chão, olhando para a lua gloriosa no céu. A menina de cabelos castanho-claros estava deitada no colo dele, e a mão carinhosa e grande do menino estava sobre a testa dela.

“...Sabe do que eu sinto mais falta lá de Varsóvia?” – ela perguntou, de repente, querendo falar qualquer coisa apenas para sentir-se viva.

“De klopsiki [2]? Você adorava klopsiki, lembra?” – ele sorriu. Aquela era uma característica boa do menino: ele sempre sorria. Sempre conseguia achar alguma coisa para fazê-la rir, mesmo quando ela estava morrendo, literalmente, de fome. – “Quando íamos jantar fora ou você ia lá em casa, lembra? Minha mãe sempre fazia klopsiki pra você... E você comia como uma porca, Aniela.”

A mesma também riu, mas fez-se de ofendida, apenas para brincar.

“Me desculpe por comer tudo e nunca ter deixado nada pra você!” – resmungou, voltando a encarar a lua. – “Mas não... Eu sinto falta das suas asas.”

Cyryl remexeu-se, ela sentiu.

Mas não disse absolutamente nada sobre o comentário.

“Adorava quando você me levava a passeio com as suas asas verdes. Elas eram lindas... Digo, ainda são, sem dúvidas. Mas aqui em Aushwitz você nem pode mais mostrá-las, não é?”

O estômago dele roncou de novo. – “Algum dia, eu vou te levar voando pra algum lugar bem legal, de novo.”

“...Obrigada, Cyryl. Você é meu único e mais precioso amigo, sabia?”

“Quer que eu cante alguma coisa pra você dormir? Parece cansada, Aniela. Precisa dormir ou amanhã não conseguirá trabalhar.”

Em situações normais, ela iria rir e mandá-lo calar a boca, e dizer que a voz dele era horrível. E eles provavelmente se estapeariam com travesseiros.

Mas agora, ela só queria dormir ali, perto dele. Morrer, talvez.

“Sim, cante... Canta aquela dos Anioł od Śmierć [3]... Eu amo aquela cantiga...”

O menino de cabelos cor-de-limão ouviu alguém suspirar (ou gemer?) lá ao fundo de novo, mas não deu ouvidos. Provavelmente todos estavam cansados demais para reclamarem, e se houvesse algum judeu acordado além deles, certamente não se importaria de ouvir uma melancólica canção-de-ninar para ajudar a dormir.

E quando aquele Anjo chegar,

Em suas mãos o Inferno e o Paraíso trará.

E aquele que ele escolher para amar,

Em pouco tempo a Morte verá. [4]

Iriel suspirou mais uma vez, longe de ser cansaço, dessa vez evitando calculadamente um sorriso irônico ao cantar aquelas estrofes na língua eslava para a pequena polonesa em seu colo.

Às vezes, os humanos eram inteligentes demais até para ele...

 

Tokyo – Japão.

A conversa naquele ambiente era calma. Excepcionalmente calma e distante. E, por isso, perigosa.

“E então, Himi-chan? Como anda o divórcio de seus pais?”

Takuchi Isono parecia outra pessoa quando o loiro estava em casa. Totalmente diferente, e bizarramente também, do que ele era em situações normais.

“Liguei pra mamãe, ontem.” – ele respondeu, com um sorrisinho. – “Ela disse que, no papel, já está quase tudo acertado. Faltam apenas alguns detalhes que ela tem de decidir com meu pai.”

“Esse divórcio está saindo mais demorado do que o esperado, não?” – comentou, enfiando outra porção de arroz na boca.

“É verdade. Peço perdão por estar abusando de sua paciência assim, titio...”

“Por favor, não faça cerimônias do tipo, Himi-chan. Você não está abusando a paciência de ninguém. É até um prazer. Não, Maiko-chan?”

E então, ela virou-se repentinamente para o tio e viu algo nos olhos dele.

Era uma ameaça indizível, mas totalmente presente. Aqueles mesmos olhos de sempre, cheios de ódio e promessas assustadoras.

“...Sim, como o titio disse, é sempre um prazer, Himitsu.” – forçou um sorriso.

A garota olhou de relance para Himitsu e pareceu vê-lo um pouco incomodado. Como aquele olhar que ele dignou à Shiho Himeno antes de dizer “que irritante”.

Depois disso, ela engoliu em seco, e apenas ouviu a conversa entre os dois continuar, totalmente deslocada.

Ela sabia que Himitsu não era uma ‘pessoa’.

E nem imaginava como devia ser essa tal ‘mãe’ dele, que supostamente estava se divorciando do marido e mandaram o filho para a casa do tio, por enquanto.

A história era totalmente verossímil, mas o fato dela saber a verdade por trás dela a tornava até bizarra.

“Himi-chan, se não se importar, eu posso pegar a Maiko-chan um pouquinho?”

...Até que ela foi acordada de seus pensamentos por aquela voz. E uma mensagem subliminar percorreu toda sua espinha, enchendo-a de pavor.

“Sem problemas, titio.” – o tom do loiro era indescritível. Não se podia prever o menor sentimento bom ou ruim ali.

O loiro foi deixado ali lavando a louça, coisa na qual ele mesmo se prontificou a fazer (ultimamente, a maioria dos serviços domésticos era só dele, coisa que ainda era difícil para Maiko aceitar), e deixou que tio e sobrinha fossem conversar a sós na sala, relativamente longe da cozinha e de ouvidos e olhares alheios.

A japonesa sentia as pernas bambearem. Talvez porque, diferente do outro, ela sabia muito bem o que seu tio era. Já sentiu o peso de seu punho, já chorou de dor quando ele a bateu, já ouviu suas ameaças sussurradas enquanto ele puxava seu cabelo, e até mesmo viu os olhos injetados e raivosos.

Ela sabia, portanto, que aquela não era uma amistosa conversa de parentes. Era uma ameaça que precisava ser dada a sós...

“Maiko-chan...”

O lábio tremeu, incontrolável. Ela fez um esforço sobre-humano para erguer a cabeça e tentar encará-lo.

Aquilo era muito diferente do que encarar um veterano da escola, por exemplo.

Nessas horas, é só erguer o punho e socá-lo. Depois ouvir sermão dos professores e do diretor, mas enfim, era só não ter medo das conseqüências e bater.

Mas, com Takuchi Isono, era diferente: ela tinha medo das conseqüências.

E elas podiam ser muitas. Muitas e imprevisíveis...

“S-sim...?” – respondeu, temerosa do que ouviria.

“Então... Eu quero mais dinheiro.”

Ela devia imaginar que era isso. O tio quase nunca falava com ela. E, quando o fazia, tinha motivos muito óbvios; desgosto, dinheiro ou raiva. Sempre tinha algo a ver com um destes tópicos.

“Ma-mas e aquele tanto que eu te dei outro dia, tio? Não é o suficiente...?”

Maiko viu a mão de Takuchi tremer, como se ele quisesse desesperadamente bater o punho em algo, mas contendo-se para não chamar a atenção.

“Chama aquela ninharia de ‘tanto’?!”

Ela voltou a engolir em seco. – “Aquilo não deu nem pro começo! Eu exijo mais dinheiro, entendeu?! Não me importa como irá conseguir. Se precisar, prostitua-se! Mas eu quero mais dinheiro!

Como ela iria arranjar dinheiro, se não se prostituindo, mesmo?...

O salário de seu trabalho na loja de conveniência era aquele, e grande parte dele ia diretamente para Takuchi Isono e ninguém mais.

Como poderia dar mais para ele, se nem tinha para si?

“Tio... Por favor, seja razoável... Eu não posso conseguir mais do que aquilo... Só no fim deste mês, entenda...” – tentou argumentar.

“Por sua causa, meu irmão morreu, garota.” – e então, ele começou.

Maiko parou imediatamente de falar. Ficou totalmente tensa, apertando as mãos e os olhos, rezando para qualquer entidade salvá-la do que viria a seguir.

“...E eu fui obrigado a cuidar de você. E, graças à você, ele não irá mais comemorar nenhum aniversário entre nós.” – cuspiu, rancoroso, aquelas palavras em sua face. – “Então, eu exijo mais dinheiro. Você sabe o que eu faço no dia do aniversário dele, não sabe?”

...Se embebedava até cair. Ela sabia muito bem.

Mas, ainda sim, não podia dar-lhe dinheiro que não tinha.

“Por favor, tio...” – gemeu.

“Se eu não ver esse dinheiro dentro de uma semana em cima da minha mesa, vamos ter problemas. Entendeu, Maiko? Vamos ter sérios problemas.”

Aquilo foi uma ameaça.

Um aviso de guerra. Declarado e pronto para ser cumprido.

Maiko sentiu as pernas ainda mais bambas, e teve de se segurar no sofá para não cair. E, de imediato, milhares de possibilidades passaram pela cabeça.

...O que poderia fazer? Qual delas escolher?

“Maiko-chan!” – e a voz fez com que ela se retesasse.

Entretanto, tão rápido quanto durou o susto, veio o alívio: novamente, era Himitsu. Ele sempre a salvava, e ela o amava por isso.

Sempre quando isso acontecia, ele aparecia, inconveniente, e tirava-a das garras opressivas daquele homem de olhos escuros e raivosos.

“Se não formos agora, vamos acabar nos atrasando. Temos prova logo na primeira aula, lembra?” – ele sorriu, esperando-a.

“S-sim... Vamos...” – ela balbuciou, ainda trêmula.

Ao passar por Takuchi, porém, ela o viu entreabrir os lábios, sem dizer um som, mas fazendo-a perceber exatamente o que queria dizer.

Uma semana’...

 

Depois daquilo, a sua manhã passou de mal a pior. Logo naquela prova, cuja matéria ela havia estudado tanto com o loiro, tudo pareceu borrar-se e transformar-se em sombras fátuas. Tudo no que ela pensava era no tio, em sua ameaça, em todas as possibilidades de arranjar dinheiro...

Talvez devesse parar de andar com Najato e Himitsu (e agora, de novo, Irieko), e passar suas noites em algum restaurante ou fast-food, talvez ir para Shinjuuku e oferecer-se para os velhos fetichistas pedófilos em troca de dinheiro [5]. Mas eles provavelmente não lhe dariam muita grana... Não... Sua honra não podia se manchar até àquele ponto.

Ela pensou em sua mãe. A sua gentil ‘mamãe’, com seus cabelos negros tão lisos, aqueles olhos tão bons... Desejou muito que aquela mulher estivesse viva, apenas para dar-lhe um conselho, um colo, qualquer coisa...

Mas, como o próprio tio disse, a culpa por ela e seu marido, o pai de Maiko, terem morrido era toda da própria filha. De ninguém mais senão dela.

Não, Takuchi Isono sempre dava aqueles ataques nessa época do ano...

Mas geralmente, ela tinha um dinheiro especial guardado para dá-lo. Neste ano, ela não tinha nada. Absolutamente nada, por puro azar.

...A situação era grave, era só no que conseguia pensar.

Tanto pensou e não arranjou saída alguma que a professora, quando tirou sua prova devido ao tempo que já acabara, olhou-a reprovadora ao ver apenas duas ou três questões, no máximo, feitas.

Maiko continuou absorta, não prestando atenção em uma aula sequer.

E, quando enfim o recreio milagroso chegou, Himitsu teve de puxá-la da cadeira para que ela percebesse que existia um mundo à sua volta.

“Você estava tão distraída, Maiko-chan...” – ele disse, preocupado. – “Veja, deu até mesmo tempo de comprar um melonpan de novo e você nem notou.”

“Ah...” – ela deixou escapar, surpresa com aquilo. De fato, a cabeça estava dando voltas, estava em todo lugar, menos onde devia estar. – “...Onde estão Najato e Irieko? Geralmente estão aqui conosco, não?” – desviou.

“Hoje o Hajaya-san foi tratar uns assuntos do clube de kyuudo, e a Irieko foi junto, claro. Parece que haverá uma demonstração na Feira Cultural do grupo do Japão e eles quem irão fazê-la.” – o loiro explicou, com um sorriso, sentado ao lado da garota.

A mesma deu uma mordida no doce, mas logo ele pareceu se transformar em areia na sua boca. Perdeu totalmente a fome.

“...Himitsu?” – e seu primeiro impulso depois disso foi chamá-lo.

“Pois não?” – respondeu.

“Me abrace, por favor. Agora.”

Surpreso, ele ainda ficou encarando-a, como quem pergunta o que diabos ela estava tramando. Mas Maiko permaneceu firme, devolvendo o olhar, não deixando ele ver em nem um instante qualquer hesitação da parte dela.

Ao vê-la falando sério, o loiro estendeu a mão, e puxou-a para si, como quem diz ‘seu desejo é uma ordem’. Sentado na grama e escorado na parede dos fundos do ginásio do complexo escolar, ali parecia até mesmo o lugar perfeito para essas coisas. Ninguém jamais viria. Ele deixou-a encostar a cabeça no peito dele e também permitiu-se acariciar seus cabelos.

“Algum problema, Maiko-chan...?” – ele perguntou, apenas por logística. Desde aquela manhã ele sabia que algo estava errado.

“...É, acho. Você é bonito demais. É até perigoso pras pessoas normais, como eu, por exemplo.” – sussurrou, encolhida em seu abraço como um bebê.

Himitsu riu daquele comentário, e beijou o topo da cabeça dela.

“Você sabe que pode me contar tudo, não?”

“Eu sei...” – mas aquilo, que ele a perdoasse, jamais poderia dizer. Por vários motivos, mas teria que continuar calada.

O som de um celular foi ouvido, quebrando a temporária harmonia entre eles, e então, Himitsu tirou do bolso interno do casaco do uniforme aquele celular que carregava, tipicamente adolescente e azul.

A verdade é que ele, praticamente, nunca o usava por respeito às regras da escola, e também as que Maiko outorgou (já que a maioria das que ligavam ou lhe mandavam e-mails eram apenas tietes que no primeiro dia já pediram, aos gritinhos, o número do telefone e o endereço eletrônico).

Mas, de qualquer forma, foi uma surpresa, porque ele sequer pareceu preocupado em ver o número. Apenas desligou-o, mesmo sendo tão raro receber uma ligação dali.

“...Quem diabos te ligaria a essa hora?” – Maiko ergueu a sobrancelha, a face mostrando a evidente desconfiança.

“Acredito que ninguém importante.” – ele sorriu.

E ela sentiu-se até meio solitária. De fato, Himitsu estava crescendo... Até já mantinha segredos de gente comum próprios...

“Como não? Podia ser alguma tiete, talvez até a sua mãe.” – claro que os dois sabiam que ela não acreditava nisso, era mais fácil ser a primeira opção, mas o loiro entendeu que aquela era uma conversa ‘normal’.

“Tudo bem. Neste momento...” – e ele beijou-lhe, desta vez, a testa. – “...A coisa mais importante pra mim é a Maiko-chan. O resto pode esperar.”

A japonesa sorriu. E então, voltou a agarrar-se nele, temendo que aquela harmonia não pudesse ajudá-la a se esquecer um pouco do que o tio disse-lhe.

“...Você é estranho, Himitsu.” – ela riu.

“Também amo você.” – e ele a acompanhou.

 

O ambiente era abafado e claustrofóbico.

“Está bem. Tudo bem. Eu irei. Obrigado mesmo.”

Num escuro quarto de hotel, de persianas e portas totalmente fechadas, uma silhueta estava sentada na cama, ao lado de uma segunda sombra, maior que ela, deitada em meio aqueles lençóis brancos.

A pequena sombra soltou um suspiro descrente, deixando que a luz do celular que tinha nas mãos iluminasse sua face. Mashiro Himeno, o hanyou.

“Quem era no telefone, querido?” – perguntou a dona da voz feminina, deitada.

“...Ninguém tão importante, mamãe.” – o pequeno virou-se ao responder, sorrindo como uma criança normal para aquela mulher. – “Era só uma pessoa que conheci não faz muito tempo.”

“É mesmo? Que bom.” – a voz cansada dela, mesmo assim, parecia genuinamente feliz por aquilo. – “Fico tão feliz que você esteja se adaptando à este mundo tão rapidamente, meu querido...”

Antes que Hotaru falasse mais, Mashiro ergueu-se e andou até ela, tocando-lhe gentilmente os lábios com os dedos indicador e médio. E calou-a definitivamente.

“Não fale nada, mamãe. Este mundo é ótimo, eu me divirto todos os dias nele.”

Ela sacudiu a cabeça, numa muda afirmativa.

“...E você sabe que eu jamais a deixaria desprotegida. Demorou muito até podermos fugir pela barreira enfraquecida e deixarmos o Mundo Youkai. Antes disso, estávamos sempre escondidos no subsolo da casa da tia Mashiko, lembra? Aliás... Você devia sair um pouco também, sabia? Os ataques deles não estão ainda tão freqüentes.”

Hotaru Himeno arregalou os olhos, como que ofendida com aquela constatação do filho. – “Não posso, Mashiro! Não posso sair daqui, você sabe! E... E se eles me pegarem...?! Me levarão de volta ao castelo... Sem dúvidas, eu você e seu irmão...!”

Mashiro, mais uma vez, calou-a, com sua face e movimentos tranqüilos.

“Pare com isso, mamãe. Ninguém vai fazê-la sofrer mais. Já bastam os anos que passamos escondidos no Mundo Youkai, já basta o nascimento meu e de meu irmão. Chega de sofrimento para você. Agora, eu prometo que isso não irá se repetir nunca mais, entendeu?”

A mulher de cabelos acastanhados deixou o rosto cair de encontro ao travesseiro de novo, respirando profundamente.

“...Quando você vai sair, querido?”

“Nesta semana, posso garantir.”

“Vai levar seu irmão Shiho com você?”

Mashiro não pôde esconder um sorriso melancólico. – “Sim, mamãe. Vou levar o Shiho-kun comigo. Ele passeia mais que eu, tanto que nem está em casa agora, mas vou levá-lo mesmo assim.”

E então, a mulher pôde sorrir mais tranqüila, e logo, já começara a desfiar várias situações no Mundo Youkai onde o caçula serelepe do gêmeo quase sempre os fazia passar por maus bocados.

O menino ria uma vez ou outra, com a mão pousada sobre o rosto da mãe.

E, enquanto isso, esperava Shiho voltar de suas incursões tradicionais pelo mundo humano. E esperava a catástrofe que os Guardiões atuais, um bando de irresponsáveis, iniciariam em breve por causa daquela barreira fragilizada.

Essa mesma catástrofe dos humanos idiotas seria, entretanto, aquela que derrubaria aquele rei youkai infame.

 

 

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Tom XVI: A Chegada da Separação.

 

O dia que ela tanto temeu finalmente chegou...

Com o término das provas de início de ano [6] e todas as atividades possíveis, encerradas providencialmente em tempo para aquele dia, o cenário estava pronto.

Enfim, a Feira Cultural...

A pior tortura de todas, na opinião de Maiko.

Estudantes e mais estudantes de ambos os Complexos Escolares Kusari, tanto o 1 quanto o 2, estavam empenhados em mostrar aos professores e ‘gente de fora’ que poderiam fazer uma boa exposição.

Havia de tudo um pouco naquele lugar: Casas de Terror, Cafés (a grande maioria, como o esperado, maid), palestras, Cerimônias do Chá e tudo o mais...

A agitação daquelas pessoas lhe dava náuseas.

Muitos grupos, em stands, faziam apresentações ao ar livre, distraindo estudantes e pessoas que viam para comer e se divertirem. E, entrando nos prédios escolares, haviam várias outras novidades, como comida e distrações.

Tudo, é claro, com o tema “Países”.

Por outro lado, ela só ouvia comentários sobre o quanto aquela Feira prometia. Afinal, ela era uma maid que não saía do ‘restaurante irlandês’.

O mesmo, pelo menos, parecia estar indo ótimo.

Talvez pelo fato de ter um garçom tão bonito fazendo propaganda na porta... Aliás, a maioria avassaladora de clientes eram mulheres, jovens ou mais velhas, que faziam de tudo: pediam para tirar fotos com ele, seu e-mail, qualquer coisa.

Isso é praticamente assédio! Pedofilia! Cadê as leis desse país?!’, Maiko bradava mentalmente, enquanto atendia um ou outro cliente pervertido.

Ao que parecia, Himitsu era uma bela aquisição para qualquer tipo de negócio...

“Maiko-chan! Vamos sair um pouco, depois?” – de repente, ele lhe parou com aquela pergunta, à queima-roupa.

“C-como? Sair pra onde...?!” – pega de surpresa, aquela pergunta mais lhe pareceu coisa de namorados, e isso a fez corar inconscientemente.

“Hajaya-san vai fazer a demonstração de kyuudo para o pessoal do Japão pelo clube dele, lembra? Vamos assisti-lo?” – ele era todo sorrisos.

“...Tudo bem, vamos.” – ela assentiu, ainda sem-jeito. – “Mas temos de pedir permissão pra reprê pra fazer isso. Por enquanto, nosso trabalho é atender esses pervos que chamamos de clientes.”

Com um movimento da cabeça, apontou as pessoas, mulheres e homens, que tanto esperavam que aquelas ‘estudantes de mini-saia’ e ‘rapazinhos muito bonitinhos’ fossem atendê-los.

“Está certo. Eu falarei com ela.” – assentiu. – “Nos falamos depois?”

“Sem dúvidas.” – deu um sorrisinho.

 

Aparentemente, o dom de Himitsu não se estendia apenas às onee-sans que pediam para tirar fotos com eles: funcionava, até mesmo, com as representantes de classe e CDFs ferrenhas. A permissão para eles saírem e verem a apresentação (com a condição de voltarem imediatamente após isso) foi quase que imediata: menos de cinco minutos! Um recorde!

Eles acabaram saindo de roupa de serviço e tudo, atraindo a atenção, novamente, de muitas mulheres para aquele ‘garçom’ de roupa branca e detalhada em dourado. Maiko respirava fundo, buscando toda a paciência que pudesse encontrar para não aplicar um soco bem dado em alguém.

“É por isso que eu odeio Feiras Culturais... A quantidade de pervertidos estranhos que entra aqui é nojenta.” – resmungou, apenas para não dizer que estava se corroendo de ciúmes mesmo.

“Ora, não é assim tão ruim. Eu até estou me divertindo, na verdade...” – ele sorriu, tranqüilo. – “Está sendo até bem fácil de memorizar o menu, as moças me perguntam tantas coisas sobre como fazemos a comida irlandesa.”

Isono tinha uma ligeira impressão de que era porque elas queriam a sua ‘divina’ presença um pouco mais com elas...

“Opa! Parece que chegamos em tempo!”

Maiko apontou para um aglomerado de gente numa parte dos jardins frontais da escola. Havia um alvo colado no peito de um samurai de palha, parecido com aqueles que usavam em filmes antigos sobre os mesmos.

Ao se aproximarem mais, puderam ver três ou quatro pessoas, uma moça e três rapazes, vestidos com o kimono típico do kyuudo. A hakama [7] azul-escura e o kimono branco, com as luvas de proteção marrom.

“...Que droga! Eu preferia o Najato vestido de indiano, que nem a turma dele.” – Maiko resmungou, com um risinho irônico, ao reconhecê-lo no meio dos arqueiros.

“Parece que tanto ele quanto a Irieko-san escaparam disso.”

“É? Ela também tá no grupo do Japão?!”

“Sim. Pelo que me falaram, pediram para que ela se juntasse ao grupo de demonstração de Cerimônia do Chá tradicional.”

“Não creio! Fizeram jardins japoneses pra isso?!” – se imaginar Irieko de furisode [8] e coque já era difícil, aqueles jardins formosos e delicados de filmes onde se tomava chá assim pareciam ainda mais improváveis.

“Fizeram, sim. Parece que esse ano os representantes foram perfeccionistas nessas coisas.” – Himitsu sorriu.

Ao que parecia, o garoto que apresentava a demonstração de kyuudo chamou a atenção dos presentes para o início do espetáculo. E a moça foi a primeira a se apresentar. Ela ergueu o arco acima de sua cabeça, como era de praxe, e em questão de segundos, a flecha zuniu e acertou perfeitamente o alvo.

Haviam criancinhas e adultos impressionados com a precisão.

Os outros dois rapazes fizeram a mesma coisa, cada qual com sua flecha. Toda aquela apresentação tão formal fazia Najato parecer estranho, tão concentrado e quieto em seu canto. Até que chegou a vez dele, o próprio.

“Posso rir se o idiota se atrapalhar e errar?” – Maiko perguntou, não acreditando naquela cara de menino sério.

“Será que não é melhor rir dele depois?” – ponderou, entendendo a ironia.

“...Na hora é mais divertido.”

Entretanto, ela logo engoliu suas palavras, porque diferente dos outros estudantes, Hajaya tinha duas flechas, ao invés de uma. Obviamente, aquilo angariou a descrença de uns e a admiração de outros. Era incomum, de fato, ver alguém que fosse capaz de atirar duas flechas de uma vez, por muitos motivos.

Focando o alvo, para Maiko mais pareceu o Najato que ela via quando caçavam youkais. Basicamente, ele fazia a mesma coisa que estava fazendo ali, na diferença que numa demonstração ninguém iria morrer se ele demorasse um pouco mais.

E quando ele atirou, os olhos de todos não puderam acompanhar a trajetória das flechas. Só puderam vê-las encaixarem-se perfeitamente, as duas, na esfera central pintada no alvo, mesmo com o espaço já diminuído devido as três flechas outrora já postas ali pelos outros.

“Maldição! Ele é bom...” – Maiko decepcionou-se, boquiaberta, por não ter podido rir da falta de destreza dele.

“Eu já sabia que o Hajaya-san conseguiria. Ele tem treinado bastante pra isso...”

“Sério, eu vou fazer kyuudo um dia. Muito divertido ficar brincando disso.” – ela riu, já se virando.

“Pra onde vai, Maiko-chan?” – Himitsu, ao vê-la se afastar, já a estava seguindo, deixando para trás o bando de curiosos que continuava vendo aquela demonstração chegar ao fim.

“Vou rir da Irieko. Não a imagino de furisode, sério.”

Foi rindo que ela afastou-se daquela parte da Feira e foi andando, informando-se pelas placas e dicas dos outros alunos, até os ‘jardins artificiais’ que fizeram especialmente para aquela Cerimônia do Chá.

E, numa certa área, ela viu uma menina baixinha, irritada, de cabelo preto, parecendo até estrangeira, e outra idiota risonha, ambas vestidas de indianas.

“Namastê é um cumprimento hindu. Significa...” – uma breve pausa. – “Estou feliz em te ver!”

“...O que é aquilo?” – soergueu uma sobrancelha, descrente.

Himitsu não pôde deixar de rir. – “Na verdade, significa ‘curvo-me perante ti’. E ela devia ter dito que, quando se fala isso para outra pessoa, pode significar ‘o Deus em mim saúda o Deus em você’. Ah é, também pode-se dizer Namaskar, mas esse já é um jeito mais formal de saudação. Mas devemos considerar o esforço dela...”

“Você sabia disso desde quando?!” – Maiko pareceu ainda mais impressionada. Ela estudou coisas da Irlanda, e só! Mas ele parecia até um professor falando daquele jeito, se é que fosse verdade!

“...Ah, nunca ouviu falar que Anjos conhecem toda a cultura do mundo, Maiko-chan?” – e, pelo seu tom, não saberia dizer se ele brincava ou falava sério.

Fazia sentido. Maldição, é verdade...

“Aí estão vocês!”

E Maiko tomou mais um susto naquela manhã. – “Representante? O que aconteceu? Parece acabada...”

A menina de óculos respirou fundo, tomando ar, e logo desatou a falar.

“Vocês estão atrasados! Era apenas para ver a apresentação de kyuudo, que encerrou os espetáculos da parte da manhã!... Voltem imediatamente ao restaurante, faltam dois serventes lá.

Nem era uma indireta. De fato, os dois que faltavam estavam bem ali na sua frente, vestidos à caráter e com a maior cara-de-pau.

“...É mesmo, Maiko-chan! Vamos, precisamos atender nossos clientes!”

“Você só lembrou agora disso...?” – veia saltando.

“Francamente, Isono-san e Isono-kun, vocês realmente são parentes, agindo os dois de forma tão irresponsável!” – e ela começou a desfiar um rosário de reclamações sobre os dois, e principalmente da japonesa, que parecia estar levando o ‘primo’ para o mal caminho cada dia mais.

 

O bom de ter voltado é que pôde se distrair mais uma vez. Explicar algum menu do cardápio ou bufar quando um cliente mais sem-vergonha a comia com os olhos sem nem disfarçar era um bom exercício para esquecer que tinha mais seis dias para arranjar dinheiro para Takuchi Isono.

Além disso, era legal ficar se irritando à toa com Himitsu por vê-lo tão bonzinho com as moças que teimavam em querer ser atendidas por ele (mais um pouco, e os outros meninos iriam apedrejá-lo de ciúmes). E ele era tão paciente com as malditas... Não era pra menos que chamava a atenção de todos.

Depois de mais exaustivas horas de serviço em troca de notas, a hora do almoço e da troca de turno chegou. Os que serviam pela parte da manhã foram, enfim, almoçarem e trocaram de lugar um pouco com o turno da tarde.

Quando isso aconteceu, Himitsu pulou imediatamente para junto de Maiko, e pegou em sua mão.

Ela já iria reclamar, mas então, percebeu o sorriso.

Aquele sorriso que ele dava, mas que era forçado, porque ele não queria estar, exatamente, rindo naquela hora.

Aquele que era feito especialmente para outra pessoa.

“O que aconteceu, Himitsu?” – foi seu primeiro reflexo perguntar aquilo, certa de que alguma coisa certamente ocorreu.

“Maiko-chan, vamos comer alguma coisa? Quer algo em especial?” – ele ignorou a outra pergunta, devolvendo-a com uma também.

“Não... Não, obrigada. Ainda não estou com fome.” – sacudiu veemente a cabeça, ainda confusa.

“Então, quer me acompanhar? Temos uns assuntos pra resolver.”

Sem dizer uma palavra, a japonesa o acompanhou, e em pouco tempo, eles já estavam fora da aglomeração daquele prédio. Estavam respirando o ar de fora, que cheirava aos diversos tipos de doces e comidas. Era difícil não esbarrar em um ou outro ‘pedestre’, porque naquela hora em especial, a Feira Cultural estava cheia.

Maiko se perguntava para onde Himitsu estaria levando-a, na sua frente e segurando sua mão tão firmemente. Tinha a impressão, pela cara e as ações dele, de que o assunto era sério, mas nem fazia idéia do que era.

Teve vontade, muitas vezes, de lhe perguntar o que diabos era aquilo, mas em todas, quando abriu a boca, algum medo infundado invadia-a e ela desistia vergonhosamente de dizer qualquer coisa.

E continuava em silêncio, seguindo-o hesitante.

...Era ruim. Muito, muito ruim.

Iria, se continuassem assim, logo começar a levar a cabeça para todos os lugares, e pensaria novamente naquela ameaça iminente. Nem podia imaginar o que o tio faria com ela, caso não arrumasse o dinheiro...

De repente, porém, ela viu alguém entre a multidão abanando freneticamente.

Era um menino. Tinha nas mãos um algodão-doce e um sorrisinho polido. Vestia uma roupa inteiramente negra, e em contraste com a pele branca e os cabelos e olhos também pretos, parecia quase uma assombração.

Ao seu lado, um segundo menino, este sentado no banco, comportado, bebericava um suco de caixinha de algum sabor estranho qualquer, parecendo reconhecer-lhes com os olhos, mas não dizendo ou fazendo nada.

“HÃ?! O que aqueles gêmeos tão fazendo aqui?!” – Maiko perguntou, assustada, já querendo dar meia-volta.

Mas o susto foi ainda maior ao ver que Himitsu arrastava-a exatamente para aqueles dois, para aquele banco.

“Hi-Himitsu... Pare, o que está fazendo...?! Eles são nossos inimigos, lembra?” – tentou demovê-lo da idéia, o lábio tremendo.

“Sehrieeeeel~! Guardamos um lugar, venha cá!” – Shiho sorria, com seu algodão-doce azul nas mãos e nos cantos da boca.

Quando o loiro chegou perto dos dois, ele virou-se para a morena, e a viu completamente temerosa, tensa, a ponto de sequer mexer-se.

“O que aconteceu com ela?” – perguntou Shiho de novo.

“Maiko-chan, não precisa ter medo.” – ele sorriu, tentando tranqüilizá-la. – “Quem chamou os senhores Himeno fui eu. Não precisa ficar assim.”

Mas, como o esperado, longe de aliviá-la, aquilo só a assustou mais.

“Como assim...?!”

“Sehriel nos contou que faz um tempo que você tem desejado saber da verdade, moça... Maiko, não é? E ele nos chamou, por que ninguém é mais capacitado que eu e Mashiro-kun para contar-lhe tudo.”

Eu prometo que, muito em breve, irei lhe contar tudo.

...Himitsu não estava brincando quando falou aquilo em seu ouvido.

“Mas, Maiko-chan... Eu realmente achava melhor que você não soubesse disso... É muito difícil pra você compreender...” – ele coçou a cabeça, sem jeito. – “Tem certeza de que é isso mesmo que quer?”

Mashiro, que até então bebia seu suco calado, pronunciou-se:

“Ele tem razão, Maiko-san. Não é algo que um humano possa assimilar facilmente. Shiho-kun e eu não nos importamos de ir embora de mãos vazias. Mas é importante que esteja preparada para assumir graves conseqüências se quiser continuar com isso, moça.”

As pernas da garota tremiam. Aliás, todo seu corpo o fazia.

Era até engraçado. Por toda uma vida (ou quase), desde que aquele anjo de cabelos dourados apareceu em sua vida, ela sempre quis saber o que ou quem ele era. Era uma curiosidade natural. Mas, de repente, a verdade estava pronta para abrir suas portas, e a jovem já não tinha assim tanta certeza de que desejava ouvir.

Há algum tempo, ela ficou imaginando o pior...

Não era algo fácil, nem divertido, mas Himitsu teve a paciência de chamar até as pessoas mais indicadas para contar tudo, mesmo que essas pessoas sejam suas inimigas mortais e tenham tentado matá-la várias vezes.

...Ao mesmo tempo em que era fofo, também era perigoso.

E ele fez isso tudo pelas suas costas. A coisa era séria mesmo, realmente séria. Himitsu só não lhe contava o que ele julgava perigoso ou impróprio para a compreensão dela. E, se ele achava isso, devia ser porque o era.

Aquele silêncio no qual o cenário ficou embebido, mesmo com a agitação do povo ao redor deles, pareceu a coisa mais dilacerante na qual ela foi jogada.

“Eu...”

E então? Continuava ou não? Maldita hesitação. Estava se sentindo uma tola. Não deveria ter insistido tanto, até o ponto dele levar aquelas idiotices dela a sério. Agora, parecia uma criança medrosa, dando pra trás.

“...Eu quero saber. Quero mesmo.” – decidiu-se, por fim, engolindo em seco. Alguma vozinha irritante no fundo de sua cabeça amaldiçoou-a eternamente por ela ter decidido aquilo. – “Por favor, contem-me tudo sobre vocês.”

Ela sentiu a mão de Himitsu em seu ombro.

Aquela mão gentil fazia uma delicada pressão no mesmo, como se convidasse-a a se sentar. Mashiro cedeu um espaço para ela, enquanto os dois anjos, o de asas negras e o de asas rosas, permaneciam em pé.

“Vocês, humanos, sempre me surpreendem.” – Shiho comentou, mordendo mais um pouco de seu doce. – “Mesmo hesitando e sabendo que não irão gostar, continuam indo atrás do que desejam. É um instinto masoquista o de vocês.”

Maiko ainda parecia boquiaberta com aquela situação.

Há pouco menos de dez minutos ela estava servindo pessoas e pensando em arranjar dinheiro, totalmente alheia àquilo.

E, de repente, ali estava: com três pessoas prontas a partilharem aquele conhecimento secreto e terrível com ela.

A vida é realmente avara demais...

“Maiko-san, você sabe que eles são anjos, não sabe?” – o gêmeo hanyou perguntou, calmamente, oferecendo seu suco para ela, vendo a mesma recusar polidamente.

“Sei, sim.” – ela respondeu, ao ser confrontada pela pergunta de Mashiro.

“E você sabe que, na verdade, eles não são... Anjos?”

Himitsu soltou um profundo suspiro quando ele falou isso, como se temesse essa parte mais do que tudo.

“Como não? Eles têm asas, Irieko até mesmo me explicou que existem classes angélicas, anjos de dois, três pares de asas!...” – ela realmente quis acreditar que aquilo iria acabar bem.

Mas tudo em seu corpo e nos olhos deles dizia exatamente o contrário.

“Você tem idéia de que o nome mais correto que os humanos lhes deram não é ‘Tenshi’, e sim, outro?”

“...Deus, pare de enrolar! O que eles são?” – virou-se para o outro gêmeo e o loiro, angustiada. – “O que vocês são?”

“Desde tempos imemoriais...”

“Deixe de rodeios, Sehriel.” – Shiho assumiu, ao ver o loiro querendo adornar a verdade para torná-la menos cruel. – “Acredito, Maiko-san, que nós possamos ser comparados ao que vocês chamam de Shinigami. Somos os anjos que trazem a Morte.”

E então, os olhos desfocados dela viraram-se, descrentes, para o gêmeo sentado ao seu lado, que completou, num tom frio.

“E, no momento em que você conheceu Himitsu... Você invariavelmente assinou o seu atestado de óbito.”

 

[1] O Crematoria II era originalmente designado como uma mortuária, mas foi redefinido e testado em Março de 1943 para uma câmara de gás.

[2] É uma comida típica da Polônia. Basicamente, é uma carne macia coberta por molho de tomate.

[3] “Anjo da Morte”, em polonês.

[4] Só pra constar: só Deus imagina as idiotices que eu e a Daitenshi inventamos ATÉ sair essas estrofes de rimas toscas e as mais decentes que conseguimos. Apesar de ser sério, quando criamos isso, foi totalmente cômico, sério. XDD

[5] No Japão, isso se chama Enjou Kousai, e acontece muito freqüentemente. Jovens estudantes se vendem por dinheiro à homens mais velhos, principalmente em bairros como Shinjuuku ou Harajuuku, que têm forte apelo erótico.

[6] Nas escolas japonesas, existem provas feitas no início do ano para avaliar o nível dos alunos na volta às aulas, as provas de meio de ano e, por fim, as de fim de ano. Existem outras, claro, mas estas três em especial têm um peso muito grande na média.

[7] Hakama é a parte de baixo de um kimono tradicional de kyuudo ou artes-marciais, assemelhando-se a uma calça larga.

[8] Furisode é um tipo de kimono usado especificamente por mulheres solteiras.


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