Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 8
Tom XIII: O Primeiro / Tom XIV: O Silêncio do Anjo




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Voe, voe, passarinho...

Em meio ao caos de uma Tokyo devastada...

Com meu próprio sangue escorrendo de mim...

Sentindo os braços dele me envolvendo tão carinhosamente...

...Você sabe que não pode fugir.

Mais ou menos na tarde do dia 24 de abril...

...Eu morri.

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XIII: O Primeiro.

 

“Iriel...” – o anjo de asas negras sorriu. Aquele rosto pálido e pequenino de adolescente de quatorze anos reluzindo de genuína alegria.

“Suriel...” – já o da moça de cabelos esverdeados estava sério. O orbe não coberto pelo tapa-olho mostrava um brilho quase homicida.

“Já se recuperou dos ferimentos?” – ele perguntou, planando mais baixo, mais pra perto dela. – “Sentimos sua falta, eu e o Mashiro-kun.”

“Eu poderia ter vindo há mais tempo, claro.” – ela continuou, séria, sem se mover um milímetro do lugar, com Maiko nas mãos. – “Mas parece que você estava se divertindo o suficiente com o Sehriel.”

Himitsu apenas ficou olhando para Maiko, e vice-versa, parecendo até alheio àquela enrolação.

“Sehriel é muito sério. Isso desde os velhos tempos.” – ele respondeu, dando de ombros. – “Não tem tanta graça brincar com ele como tem com você, Iriel.”

“Acontece que, hoje, eu não vim pra brincar, Suriel.”

E, quando disse isso, ergueu Maiko.

A japonesa sentiu-se um bebê, tamanha era a facilidade da anjo em fazer isso, até como se ela fosse um Simba sendo ‘batizado’ no ciclo da vida.

Quando o loiro viu isso, baixou imediatamente e logo, ela viu-se nos braços de Himitsu mais uma vez. Chegou a corar e até a sentir falta de ar, mas sacudiu a cabeça, tentando manter-se focada na conversa dos dois.

“Maiko-chan, está tudo bem?...” – ele voltou ao solo, escondendo as asas de novo, cessando a chuva de penas rosas daquele espetáculo multicolorido. – “Ele machucou você em algum lugar?”

“N-não... Eu estou bem, obrigada...” – ela sussurrou, olhando-o. Não tinha visto ainda tanta preocupação nos olhos dele.

“Me perdoe, Maiko-chan. Me desculpe não ter te protegido.” – ele sussurrou.

Geralmente, se via esse tipo de olhar em crianças. Mas, por algum motivo, lá estava o velho Himitsu: os olhos dele estavam totalmente fixados nos dela, inocentes. Estavam, mais uma vez, pedindo-lhes desculpas e mais desculpas. Se ele pudesse, estaria se chicoteando por ter sido tão ‘inútil’.

E, por alguma razão, aquilo partiu-lhe o coração. Até que ela sentiu o mesmo doer. Sacudiu a cabeça com mais veemência, tentando não tossir ou engasgar, com o ar lentamente voltando aos pulmões de forma correta.

“Não se desculpe, Himitsu. Eu fiquei feliz... Que você tentou me ajudar. Fiquei realmente satisfeita.” – forçou um sorriso, e aproveitou para tentar espantar qualquer desconfiança que ainda pudesse ter.

Ele precisava, naquele momento, de apoio. Que ela confiasse nele, só um pouco.

“Fico feliz que recuperou sua humana, Sehriel. Seria triste se você tivesse que voltar agora pra lá, não é?” – Shiho sorriu-lhe, do alto.

Irieko olhou para o loiro, e sacudiu a cabeça, como quem diz para que ele não se preocupasse que ela iria assumir.

“Ah... Senhorita (ou senhor?) Iriel, acho que seu ‘Deus’ está desacordado. Parece grave isso que ele tem. É o quê?” – e de repente, a voz de Mashiro se fez ouvir.

Ele continuava lá em cima, sentado nos tentáculos lodosos e verdes que aumentaram exponencialmente, cobertos por uma estranha aura negra, e continuavam ali do mesmo jeito. O gêmeo também parecia na mesma posição de antes, sem se mexer um milímetro do lugar, com aquele sorriso de escárnio e ao mesmo tempo polido.

“Diga para o seu anjo não me seguir. Eu só quero tirar meu ‘Deus’ daqui e ir embora. Não pretendia estender as asas para lutar.” – apontou para o par de majestosas asas verdes.

“Sem problemas.” – Mashiro acatou. – “Shiho-kun, dê passagem, por favor.”

Soltando um suspiro entediado, Shiho cruzou os braços. – “Está certo, Mashiro-kun. Você adora estragar minha diversão, não é, Iriel?”

Irieko deu o primeiro passo na grama úmida, e o som de seus sapatos de gothic loli em contato com aquela superfície estranha produzia um som ainda mais bizarro.

“Envolver ‘Deuses’ para forçar Anjos a lutarem é uma atitude extremamente covarde, sabia, Suriel?” – a moça dos cabelos verdes emendou, olhando unicamente para aquele Najato caído.

“De fato, eu falei a mesma coisa para o Shiho-kun, mas ele disse que acha divertido vê-los desesperados.” – o gêmeo hanyou deu um sorrisinho.

“Você falando de covardia, Iriel? Os Anjos não são afetados pela moral humana, lembra-se?” – e, enquanto dizia isso, o outro gêmeo voou para perto de Mashiro e escondeu as asas, cessando também a sua contribuição naquela chuva encantada de penas. Sentou-se do mesmo jeito que o outro, mas balançando suas pernas. – “Somos seres inorgânicos. Não somos nenhuma entidade presa aos grilhões da moral.”

Irieko sacudiu a cabeça, em negativa.

Mas quem respondeu àquela frase foi Himitsu, para a surpresa de todos.

“Entretanto, apenas entidades providas de alma têm sentimentos. E nós, os Anjos, seres inorgânicos, temos sentimentos. Ou seja, temos uma alma, como os homens. E, no instante em que fomos abençoados com sentimentos, o mínimo de moral se faz necessária, Suriel.”

Maiko achou que alguém iria mesmo precisar ajudá-la para fechar a boca. Aquele era Himitsu falando?! Estava tão sério e tinha tanta desenvoltura! E ainda mais segurando-a daquele jeito nos braços! Parecia até um príncipe de contos-de-fadas!

Claro que não era nenhuma surpresa, mas ele estava admitindo ser um anjo. Um tal de ‘ser inorgânico’. Aquilo era, definitivamente, bizarro! A japonesa mal conseguia absorver todas as informações com aquele clima.

Ao contrário do que se esperava, Shiho apenas deu uma risada breve.

“Como o esperado do Seigi no Tenshi [1]! Você é muito sério!”

“E você, como o Yami no Tenshi [2], devia ser um pouco mais íntegro.” – Irieko repreendeu-o. Se fosse possível, os três pareciam velhos companheiros.

“Ah, até você, Iriel? Nem mesmo o Houka no Tenshi [3] vai me defender?”

Mais uma vez, a japonesa estava atônita. Ouviu mesmo o que achou que ouviu?! Agora, além dos nomes bíblicos estranhos, eles estavam se chamando de outro jeito! E, o pior, nem estavam se atacando!

Estavam até numa certa harmonia!

Antes que ela pudesse perguntar alguma coisa, realmente assustada com aquela atmosfera, Irieko pegou Najato, desmaiado, nos braços e jogou-o nas costas, como se ele fosse um saco de batatas ou coisa assim. Ela tinha uma extrema facilidade em carregá-lo, por mais que ele fosse até mais alto e mais pesado.

“Seu inconseqüente... Eu falei pra tomar os remédios.” – ela resmungou, como se ele pudesse estar ouvindo-a.

“Vamos embora, Irieko.” – Himitsu avisou, já indo com Maiko na frente.

“Sim, vamos. Já é o bastante por agora.” – ela concordou, levando o arqueiro desacordado consigo.

Lá de cima, Mashiro olhou para o lago curiosamente.

“Hum... Vão deixar este youkai aqui no lago, impune?” – parecia descrente.

“Cedo ou tarde os Guardiões irão detectá-lo. Este Soku-ya não tem condições de ir contra um youkai fortalecido com a energia de um Anjo. Nem mesmo contra um meio-youkai igualmente fortalecido. Não agora.”

“Já vão embora?” – perguntou Mashiro, apenas acompanhando-os com os olhos.

Parecia até mesmo uma criança caprichosa que, por um arroubo, deixou seus brinquedos, com quem antes brincava tão animadamente, irem embora porque foi uma idéia que passou-lhe pela cabeça.

“Se nos deixarem, é o que pretendemos.”

Tanto Mashiro quanto Shiho pareciam tranqüilos, ponderando entre deixar e não deixar. Mas não se moveram de seus lugares em nenhum momento.

“Nos vemos por aí, Sehriel e Iriel.” – abanou o anjo de asas negras.

“...Que irritante.” – e este comentário também foi de Himitsu.

 

Nagoya – Japão. Quatro anos atrás.

Área de Oncologia do Hospital Geral.

Deitado na cama de brancos lençóis, tudo que ele podia fazer era olhar o teto, ouvir os bips que marcavam o compasso do seu próprio coração ou o do seu vizinho de quarto, e quem sabe, relembrar das lições que o pai passava ou de alguma história de dormir que, quando pequeno, ouvia da mãe.

Seu companheiro de quarto era, na verdade, uma companheira. Era uma moça que trabalhava num orfanato e foi diagnosticada com câncer de mama, pelo que sabia.

Era meio que tradição os pacientes ali se identificarem pelo câncer que tinham.

No caso, ele era “aquele do câncer de pulmão”.

Desde que fora internado na Oncologia, ele descobriu muitas coisas, algumas interessantes, outras nem tanto. Descobriu que o câncer de pulmão era a maior causa de morte cancerígena entre os homens, que é responsável por mais de um milhão de mortes por ano... Ah sim, ele fazia parte dos 20% que têm câncer de pulmão sem ser fumante (aliás, ninguém de sua família fumava, como podia?).

Num dia qualquer, treinando com o pai, ele começou a tossir.

Naqueles tempos, havia estado frio e de repente começou a esquentar, por isso, achou no começo que fosse só um resfriado começando. Mas aí, a tosse não parou, e ele começou a ver sangue no chão, respingos assustadores cada vez que a tosse piorava... Ouviu o pai, Masaru Hajaya, chamando a esposa, a médica da família que também lhe ensinou muito de Medicina para ser um ‘Soku-ya Zoku’...

Não lembrava, para falar a verdade, muito daquele dia.

Só recordava de um diagnóstico precoce, uma biópsia para confirmar, e voilà! Diagnóstico comprovado de câncer de pulmão aos 11 ou 12 anos.

Os doutores todos disseram que a faixa de sobreviventes em cinco anos era de 14%, que havia esperanças, mas... Mas não.

O câncer era maligno. Inoperável. Iria crescer e consumi-lo.

E o pior... Era por causa genética.

Além de acabar com toda e qualquer possibilidade de viver, também acabou com as chances de ser um pai, em algum dia distante. Logo ele, que de vez em quando pensava em constituir família e ter um herdeiro para a causa dos Hajaya.

A explicação médica para esse carcinogênese bizarro era por demais extensa e cheia de nomes chatos para uma criança de onze anos gravar. Por isso, Najato ficou do lado de fora, sentado quieto na cadeira e encarando um bando de lápis de cor e uma folha branca de papel enquanto os pais discutiam hipóteses e o seu futuro no consultório.

Quando os pais chegaram perto dele, depois de quase duas horas de conversa, a senhora Sachie Hajaya inclinou-se sobre o filho e deu-lhe o abraço mais apertado que ele recebeu. Foi simplesmente sufocante.

E ela chorou. Chorou muito. O senhor Hajaya, ao contrário dela, não parecia se importar com o garoto. Mas ele não ligou... O pai sempre foi frio.

“O que será do Najato agora? O que faremos com o Kaze...?” – perguntava-se, chorosa, a mulher de cabelos castanhos.

Kaze Hajaya, o irmão mais novo de Najato, ainda era pequeno demais para poder levar a ambição de um caçador. Era inexperiente demais. O pai ainda precisaria treiná-lo, e seria tarde demais quando ele já tivesse idade para poder ir a Tokyo ajudar os Guardiões. Não procedia deixar nas mãos do tempo.

Por isso, Najato quis, mesmo com câncer, mesmo tossindo sangue, mesmo sabendo que iria morrer... Ele quis ir para Tokyo. Ele quis ser um Soku-ya.

Assim, decidiu-se que ele ficaria na área da Oncologia até ter alta, ganharia alguns remédios para aliviar a dor e iria sozinho para Tokyo.

Sozinho...

Fechando os olhos, lembrando-se de toda sua trajetória até parar naquela cama, naquele quarto de Hospital, ele deixou escapar um suspiro.

Estava cansado. Aquelas sessões todas e os choros da mãe exauriam-no.

Porque ele tinha de fingir que não estava ligando. Tinha de ser forte para consolar a mãe, que parecia jamais ser capaz de superar aquela crise.

E foi pensando nisso, vencido pelo tédio e pelo cansaço, que acabou adormecendo. Tudo o que queria era a confirmação de que teria alta, de que já podia ir embora, e então iria para casa, treinaria mais um pouco e voaria para Tokyo. Iria correndo ajudar os Guardiões, porque os youkais não davam trégua, mesmo que nenhum deles estivesse, de fato, reunidos.

Nos sonhos, de repente, ele viu-se de pé, naquela roupa ridícula de paciente da Oncologia, num ambiente totalmente enegrecido.

E, de repente, uma delicada e abundante chuva de penas verdes começou a cair.

É quente... E tão gentil...

Sua vida já era por demais complicada antes de ouvir aquela voz, aquela vibração nostálgica de sexo indefinido.

Depois dela, tudo começou a ficar ainda mais sem sentido.

 

Tokyo – Japão.

“Ai...” – gemeu, assim que abriu os olhos.

“Volte a se deitar. Pode piorar se ficar forçando seus pulmões.”

Najato olhou para a porta de seu quarto, reconhecendo imediatamente o calor daquele ambiente, e logo, deu de cara com uma Irieko mais do que curada, vestida numa camiseta do próprio arqueiro, branca, e trazendo um pouco do chá que haviam feito naquela mesma tarde.

“Eu tive outro ataque...?” – perguntou-se, deitando como ela ordenou.

“Teve sim. E desmaiou de novo. Mas não se preocupe, eu e Himitsu conseguimos cuidar de tudo com sucesso.” – a anjo de cabelos verdes explicou, segurando o copo de chá em suas mãos. – “Parece que seus acessos têm ficado cada vez mais freqüentes. Talvez porque você não ande tomando os remédios, não?”

Najato não evitou um olhar melancólico para o teto, pensando na missão concluída sem seu apoio. Respirou fundo, realmente fundo, temendo que seus olhos transbordassem se ele falasse algo.

“...E de que adianta?” – a voz tremeu quando cuspiu aquilo. – “Esses remédios só amenizam um pouco a dor. Só isso. Não é que eles vão me curar.”

“E não é isso que você quer? Viver um pouco mais?” – Irieko questionou.

“Não ligo pra isso.” – deu de ombros, ainda mais amargo. – “Não mesmo, Iri-chan. Eu só preciso me manter um pouco mais, coisa que meu câncer vai deixar, até a barreira fechar. Depois, minha utilidade chegará ao fim.”

A anjo de asas verdes e olhos duros como pedra suspirou. E então, ajudou-o a se erguer um pouco e, com um sorrisinho, ofereceu-o, depois que assoprou bastante, o chá morno diretamente nos lábios.

“...Você é tão teimoso, Na-chan.”

Hajaya sorriu, e aceitou o chá que ela lhe oferecia como se fosse um inválido.

“Eu sei. Mas eu sei que você ama a minha teimosia.” – deu um risinho irônico e, por que não, superior.

“Claro, claro.” – revirou os olhos. – “Mas... Você precisa aprender a se cuidar mais. Esse seu câncer não é brincadeira. Devia tomar os remédios.”

“Ô Irieko, eu sei disso desde os meus onze anos. Já deu de bancar a minha mãe, né? Até me deu arrepio, agora!” – resmungou, não gostando nadinha do que a anjo havia dito.

“...Maldito teimoso.” – resmungou também, num tom baixo e assassino.

Mas então, mesmo com aqueles xingamentos, depois de oferecê-lo todo o chá em silêncio, até ver que o copo havia acabado, ela deixou-o em cima da mesa de cabeceira e desviou sua atenção novamente para o moreno.

Entreabrindo os lábios, ela tocou em sua testa, como se vendo se ele tinha febre.

“Quer alguma coisa, Na-chan?”

“...Quero sim.” – ele a encarou, sério.

“O que?”

Najato, delicadamente, pegou a mão dela que descansava em sua testa e beijou-a, num gesto cavalheiresco e divertido. Irieko não moveu-se em seu lugar, acompanhando com os olhos o trajeto da mão até os lábios dele, sentindo a maciez dos mesmos nas costas da mão.

Ela, então, fechou os olhos, não contendo um suspiro.

“Quero você comigo. Só isso.”

Irieko soltou-se daquele gesto com delicadeza, e então, foi sua vez: ela deixou sua mão parada no seu rosto, num carinho que nunca aconteceu.

“E eu estarei com você. Até o fim.” – declarou, séria. – “Você sabe disso.”

 

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XIV: O Silêncio do Anjo.

 

Mundo Youkai. Dez anos atrás.

Arredores da Cidade principal.

Um gemido de angústia lacerou o silêncio no qual o estabelecimento estava mergulhado. Uma jovem de pele pálida e vestes puídas estava ao lado de uma segunda mulher, de olhos afáveis e uma aparência que lembrava de longe uma humana, mas não tanto. A pele pendia para um tom mais azulado e a sensação ao toque mais parecia ser a de tocar num animal marinho de escamas.

Ainda sim, dois seres diferentes coexistiam e estavam se ajudando mutuamente, já faziam mais de dois anos.

Desde que aquela jovem que mordia os lábios e apertava nervosamente as mãos foi considerada uma fugitiva procurada pelo próprio soberano Kuro, como tantas outras pobres humanas que tinham a infelicidade de virem a cair naquele buraco de luxúria e pânico que era as masmorras femininas do castelo, a velha youkai Mashiko e o marido estavam cuidando dela. A primeira vez em que a viram, ela estava grávida, delirando em febre e muito debilitada.

Só depois de um banho é que eles puderam ver que a cor dos cabelos daquela humana eram de um castanho escuro e seus olhos eram negros como a noite pura do inverno. E só depois quando ela os considerou ‘amigos’, ao menos confiáveis, só depois de muitos gritos histéricos e lágrimas, é que o casal pôde saber que o nome dela era Hotaru Himeno.

Hotaru era uma prisioneira humana no mundo youkai.

Ele sempre foi cheio disso.

E por isso, ela não podia ser vista, porque não eram poucos os youkais que, por medo, seriam capaz de entregá-la e acabar mais um pouco com sua vida. Por isso, o casal de youkais enchiam-na de precauções e nunca deixavam ninguém saber que estavam com uma humana grávida do soberano Kuro ou de qualquer um de seus servos e ministros...

A jovem calada era prestativa e tentava fazer o máximo que podia. Talvez, pensava Mashiko, ela fazia isso para esquecer do mundo do qual foi tirada. Ela era tão jovem e bonita... Será que tinha família e amigos do outro lado da barreira?

Hotaru falava muito pouco sobre sua vida antes do Mundo Youkai, se tivesse.

Talvez, a revelação mais próxima de sua vida foi quando ela deu à luz os gêmeos. Cega pela dor, ela gritou pela mãe, pelo pai e por qualquer um que pudesse lembrar. Até que a maternal youkai que a escondeu tocou em sua mão e falou por sua mãe. Foi o mais próximo de amor de segunda-mãe que Hotaru jamais recebera.

Por causa disso, depois quando se recuperou de novo, ela deu o nome de Mashiro à um dos gêmeos, homenageando sua ‘mamãe do coração’. Ao outro gêmeo, ela deu o nome de Shiho, que era sua outra ‘pessoa importante’. A “justiça” e a “verdade” [4], como ela mesma explicou depois.

Para falar a verdade, Mashiko nunca entendeu como aquela mulher não rejeitou suas crias. Ao contrário, ela sempre pareceu muito ligada à elas.

E isso sempre a surpreendeu.

Como amar um par de gêmeos filhos de algum youkai do castelo, tornando aquelas crianças hanyous, tabus sociais, seres raros e frágeis, e para completar, eram gêmeos siameses. Toracófagos [5], só para piorar.

Hotaru conviveu quatro anos com aqueles pequeninos exatamente daquele jeito.

Mas, um dia, ela pediu se havia alguém que pudesse separá-los. Talvez por perceber que o mundo é um lugar por demais cruel para duas crianças unidas em todos os sentidos, principalmente no Mundo Youkai.

Mashiko era a parteira da região, e acabou por virar uma boa média de crianças angariando experiência na área, enquanto o marido trabalhava em outra coisa. Por isso, ela mesma decidiu separar os pequeninos, não podendo confiar em ninguém mais. Se algum youkai de vontade fraca descobrisse-a ali e chamasse os guardas do Castelo, todos teriam problemas. Ela e os gêmeos também. Não podia arriscar a vida dos pequenos Himeno e nem da mãe.

A gentil youkai pediu para a humana sair dali, que seria doloroso ficar assistindo, mas mesmo assim, ela foi teimosa e disse que iria estar presente naquele instante tão decisivo na vida dos filhos.

Mashiko a via rezar, e perguntava-se que tipo de deus humano deixava uma mulher ser trazida àquele Inferno e passar por tantas provações.

Perguntou-se que tipo de deus deixa dois seres inocentes já nascerem com tantos estigmas e tantas barreiras.

E, enquanto perguntava-se tantas outras coisas, fez o primeiro corte na pele dos pequenos. Um deles (o pequeno Shiho, sem dúvidas. Ele era o mais serelepe) remexeu-se, retesando a senhora e a mãe por breves instantes. As ervas do Mundo Youkais eram fortes o bastante para minarem totalmente a sensação de dor, quando queriam. Era só saber administrar na dose certa.

E Mashiko continuou a cirurgia improvisada. Levou muito tempo, exigiu muito de sua paciência, de todo seu amor por aquela frágil humana que considerava a filha que nunca poderia ter... Até que chegou onde não queria ter chegado.

O coração de gêmeos toracófagos é apenas um órgão bombeando dois corpos.

E Hotaru sentiu-se no meio de uma lição de Darwin. “A Evolução escolhe o mais apto e elimina o mais fraco”.

“Minha querida...” – a youkai de olhos lavanda cortou o silêncio da cena. – “Eu... Não posso mais.”

Havia apenas uma frase no ar. ‘Escolha um de seus filhos’.

Como poderia escolher uma daquelas crianças? Como seria capaz de deixar a outra morrer? Era quase como pedir para que ela arrancasse todos os órgãos do corpo e tivesse de continuar vivendo. Hotaru Himeno não podia deixar nenhum de seus filhos morrer! Não podia, simplesmente não podia!

“Não há... Não há outro jeito...?” – perguntou, num fio de voz, querendo acreditar que alguma solução surgiria.

“...Eu sinto muito, minha pequenina. Não há como um ser, humano ou youkai, sobreviver sem coração.”

Mordendo os lábios, a morena baixou os olhos.

E um sussurro realmente fraco escapou dos lábios. – “Escolha o que tiver mais chances. Pode considerar a posição do coração, a saúde... Qualquer coisa... Qualquer...”

Com o coração na mão (oh, ironia!), Mashiko fez a infeliz escolha. E odiou-se a vida inteira por sentir o corpo do outro gêmeo esfriando.

...Algumas horas depois, Mashiro Himeno dormia placidamente, com uma enorme cicatriz no corpo, enquanto a jovem mãe chorava sobre o cadáver do filho Shiho.

 

Tokyo – Japão.

Quando Maiko percebeu, estavam novamente em casa. E, por algum motivo, Takuchi Isono não estava ali. Ela pareceu perceber um suspiro de alívio em Himitsu, mas não falou nada. Deixou que ele, que a segurava em seu colo, a levasse até o banheiro e falasse com a voz mais calma que podia que ela se lavasse de novo, já que a roupa estava muito suja.

Sem reclamar, ela viu-se fazendo o que ele pediu, e quando se despiu, deixou que ele (que esperava na porta) levasse as roupas para a máquina de lavar. Assim que terminou de banhar-se pela terceira ou quarta vez, Maiko pôs seu pijama, soltando um longo suspiro ao sentar-se na cama.

Himitsu tinha ido tomar banho e deixar suas próprias roupas para lavar. E, enquanto ele fazia isso, a japonesa pegou-se pensando.

...Ele era um Anjo. Claro, ela sempre soube disso. Mas um anjo que escondia segredos demais, alguns deles tão sérios que ele pedia desculpas com os olhos o tempo todo. E, além disso, ele parecia cada vez mais distante do Himitsu que ela conheceu pela primeira vez, aquele ser inocente e incapaz de mentir ou de fazer metade do que ele estava fazendo.

Por que mesmo que o loiro fazia tudo isso...?

Ah. Como podia esquecer? Era, como sempre, por ela. Maiko era, para Himitsu, o princípio de sua vida. O fim de sua vida. O Alfa e o Ômega. Saber-se tão importante assim a fazia temer. Fazia-a encher-se de vergonha e, ainda sim, de satisfação. Ali estava algo que não seria de mais ninguém: o coração dele.

Najato disse que ele era seu anjo e ela, sua ‘Deusa’. O próprio Himitsu também já havia dito isso. Ele também disse que a amava mais do que tudo. Que faria o que precisasse por ela. O que ela desejasse.

...Será mesmo? Ele faria mesmo tudo que estivesse ao seu alcance e até o que nem estivesse para satisfazê-la?

Por que toda essa serventia? Não entendia.

Maiko nunca teve muitos atrativos. Foi uma criança lesada e sem curvas, e à medida que foi crescendo, não foi adquirindo muitos atributos também. Era de beleza mediana, tinha cabelos negros e mesmo lisos, não tão perfeitos quanto os de outras colegas. Tinha cicatrizes indizíveis pelo corpo, não tinha seios fartos ou curvas sinuosas. Não tinha nenhum atrativo...

Além disso, era violenta, grosseira, egoísta, idiota... Podia ficar citando todos os seus defeitos até se cansar. E, mesmo assim, Himitsu apenas sorria e a adorava. Todas as malditas vezes, demonstrando seu amor não em palavras, mas em ações. Cada pequena coisa que ele fazia era para ela, por ela e por amor a ela.

Era muito estranho.

E, mais do que estranho, doloroso.

Maiko parou de pensar quando ouviu Himitsu entrando. E, de repente, toda aquela tensão que ela acumulou quando Irieko contou-lhe parte da verdade pareceu magicamente voltar.

“Desculpa entrar assim, Maiko-chan...” – ele deu um sorrisinho amarelo, também já com um pijama e os cabelos úmidos. – “...Mas eu vim perguntar se você não quer comer alguma coisa.”

“...Você tá com fome?” – devolveu.

“Errr... Não, na verdade...”

“Nem eu.”

Ela baixou a cabeça de novo, esperando. E então, ouviu o som da porta batendo devagar, e achou que o loiro foi embora. Engoliu em seco. Mas então, ouviu seus passos se aproximando. E, mais uma vez, engoliu em seco.

Himitsu sentou-se ao seu lado na cama, em silêncio. Ela tinha a cabeça baixa, mas se a erguesse, saberia que ele a encarava, preocupado como sempre.

“...Eu não sei o que você é.” – de repente, ela declarou, como quem entrega os pontos vergonhosamente, erguendo a cabeça.

E então, os olhos acastanhados dela e os azuis dele se encontraram.

“Eu realmente não sei o que ou quem você é, Himitsu.” – continuou. – “E, talvez, eu nunca venha a saber.”

Maiko percebeu que ele não falou absolutamente nada nem se mexeu. O Himitsu Isono de antigamente iria, provavelmente, sussurrar seu nome e buscar algum conforto para ela, seja com palavras ou com ações.

“...E por que quer saber?” – então, ele perguntou.

Poucas vezes o rosto dele era tão sério. Aqueles cabelos úmidos e loiros escorriam por seu rosto perfeito e os ombros pálidos, fazendo-a perder o foco por alguns segundos. Mas logo, ela tentava visualizar de novo o rosto dele, mas sempre sentindo o seu cheiro há poucos centímetros.

“Isso não irá influenciar em nada, Maiko-chan... Por favor, diga-me: por que quer saber o que eu sou...?” – sua voz parecia quase dolorida.

“...Você sabe o que você é?” – ela ousou perguntar.

E então, ela viu Himitsu baixar o olhar, como quem afirmava sem dizer nada.

E ela entendeu. Ela entendeu que ele já sabia quem era, o que estava fazendo ali, e não queria contá-la por alguma razão...

Longe de pregá-la, aquele pensamento a fez desejar gritar.

Qualquer coisa, para qualquer um... Mas apenas gritar para afastar aquele nó tão grande que começava a se formar em torno de sua garganta.

“Eu nasci para fazê-la feliz. Você é minha ‘Deusa’, Maiko-chan.”

Himitsu sorriu. Melancólico, forçado de novo. E Maiko entendeu aquele estranho dèja-vu. Ele estava repetindo exatamente o que disse naqueles dias inocentes, no princípio de sua existência...

“É... Eu sou sua ‘Deusa’...”

Mas, quando deu por si, ela já chorava. Uma, duas, várias lágrimas caíam pelo rosto e não davam trégua.

A japonesa envergonhou-se, tentou virar o rosto, mas uma mão a deteve.

Virando-se para encará-lo, Maiko viu o rosto de Himitsu muito, muito próximo do seu. Perigosamente próximo. E aqueles olhos azuis estavam tão sérios... Eles nunca foram daquele jeito antes. Nunca mesmo.

“Sei que você me proibiu de dizer isso, mas... Eu te amo, Maiko-chan.” – ele declarou mais uma vez, com a mão no rosto molhado dela. – “Muito, muito mesmo. Eu te amo com todas as forças. Eu amo você.

Pareceu-lhe que ela estava presa novamente naquele youkai lodoso. A falta de ar foi a mesma que sentiu naquela hora.

Talvez Irieko estivesse certa... Talvez fosse mesmo TPM...

Tudo o que sabia é que, no mesmo instante, ela atirou-se sobre ele. Não de forma contida, não de forma apaixonada, mas simplesmente atirou-se nele e passou os braços em volta daqueles ombros tão fortes, daquele corpo tão quente. E deixou-se ficar, ouvindo o coração dele, a sua respiração.

Maiko sentiu-o corresponder àquele abraço tão desesperador. E ao saber-se daquele jeito com ele, tentou falar algo, qualquer coisa, mas a voz não saía.

Quando enfim afastou-se um pouco para olhá-lo, ela viu aqueles olhos ciano como o céu totalmente perdidos numa melancolia solitária, numa tristeza secreta como seu nome, que só ele e talvez ninguém mais jamais experimentaria.

E isso a deixava em polvorosa. Não desejava ver aquela dor nele.

Era para ele ser feliz. Era para ele a fazer feliz e também o ser.

...Como queria ter sido uma ‘garota normal’, como Irieko lhe falou. Uma pessoa normal, sem preocupações, apenas para que ele jamais tivesse que estar se torturando como estava fazendo agora.

Maiko sentiu novamente a mão quente de Himitsu em seu rosto, limpando aquelas lágrimas que teimavam em cair. E ela achegou-se mais àquela mão, buscando o calor protetor, buscando qualquer coisa dele...

Era desesperador.

Deus, como doía não poder fazer nada.

Ela abriu os olhos e um impulso indecente e, ainda sim, seguro, a fez inclinar-se. Tão logo entendeu o que o próprio corpo estava fazendo, ainda arriscou olhá-lo.

Himitsu fechou os olhos, puxando-a para si.

Ela o amava quando ele fazia isso... Quando isso acontecia. Falando até parecia que foram muitas vezes, mas mesmo pouquíssimas, foram especiais.

Quando ele a beijava... Era como se o mundo derretesse e ficasse em segundo plano. Ela já não sentia mais nada, nem ouvia ou enxergava. Era como se tudo em seu corpo fosse apenas criado para que ela sentisse suas mãos em suas costas ou em seu rosto, seus lábios roçando nos dela e sua língua buscando território.

Naquele ínfimo momento, Maiko Isono esqueceu-se do que ela era, do que o próprio Himitsu era... Ali, apenas eram duas almas que se amavam. Só isso.

Desta vez, quem inclinou-se foi ele, sem parar com aquele beijo tão casto, e Maiko retesou-se ao sentir o corpo dele em cima do seu. Suspirou profundamente por entre alguma brecha que encontrou, e entreabriu os olhos.

E então, sentiu os cabelos loiros dele, ainda meio molhados, roçarem em seu rosto, provocando-lhe cócegas.

Himitsu sentou-se de novo, com aquele sorriso divino, e puxou as cobertas.

“...Seja uma boa menina e vá dormir, Maiko-chan.” – ele disse. – “Amanhã, temos aula. E logo, a Feira. Você precisa estar bem.”

A japonesa olhou-o descrente, e depois para as cobertas, a cama já preparada para recebê-la. E então, dando de ombros, se deitou, deixando que ele a cobrisse.

“Himitsu?” – chamou, ainda de faces afogueadas.

“Sim?” – ele respondeu, plácido.

“...Eu também te amo.”

Pego de surpresa, demorou alguns segundos até ele entender e então sorrir, radiante, porém tranqüilo diante daquela declaração.

Inclinou-se devagar e capturou mais uma vez os lábios dela, delicadamente.

“...Mesmo que nós nos abracemos até sufocar, nós nunca iremos nos tornar um só, Maiko-chan. [6]” – e então, sussurrou aquilo em seu ouvido, baixinho, dolorosamente, apenas para que ela o ouvisse.

As lágrimas de Maiko ainda pareciam molhar o travesseiro quando ela ouviu aquilo, quieta, tentando entender o que diabos ele disse.

E então, antes que ela pudesse lhe perguntar, ele replicou, emendando:

“Eu prometo que, muito em breve, irei lhe contar tudo.” – disse isso com um casto beijo no lóbulo de sua orelha. – “Juro pelo amor que sinto por você.”

Eu te amo, Himitsu. Juro que o amo assim...

Não preciso de mais nada. Se não quiser me contar, por mais que eu reclame... Eu não irei me importar.

“Durma aqui comigo...” – e ao invés de externar seus pensamentos, o que ela disse foi isso, num tom súplice. – “Por favor...”

“Eu velarei seu sono, Maiko-chan. Não se preocupe.” – o loiro sorriu.

E, naquela noite, Maiko realmente adormeceu pela primeira vez sem pesadelos: ela dormiu segurando a mão gentil de Himitsu, sentindo a testa dele encostada na sua. Ela dormiu ‘sonhando com os anjos’, como sempre desejou.

Ela dormiu declarando seu amor a ele milhares de vezes, até cansar.

...Dormiu sem nem imaginar o que a esperava.

 

[1] Literalmente, “Anjo da Justiça” em japonês.

[2] “Anjo da Escuridão”, também em japonês.

[3] Literalmente, “Anjo do Disparo”. Mas a palavra ‘houka’ (砲火) refere-se ao clarão de qualquer espécie de disparo, sendo, portanto, traduzido aproximadamente como “Anjo da Luz”.

[4] A “justiça” (司法) e a “verdade” (真白) referem-se aos kanjis que compõe o nome de Shiho e de Mashiro, respectivamente. O “hou” de Shiho significa “ordem”, “lei”, “justiça”, enquanto que o “ma” de Mashiro significa “verdade”.

[5] É uma classificação de gêmeos siameses que indica os que, especificamente, são ligados pelo tórax e dividem apenas um coração.

[6] Essa frase do Himitsu é um trecho da música “Michiyuki”, cantado por Kaori Hikita, e é o tema de encerramento do anime ‘Loveless’.


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