Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 6
IX: Suriel X: O Prólogo da Miséria




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Voe, voe, passarinho...

Em meio ao caos de uma Tokyo devastada...

Com meu próprio sangue escorrendo de mim...

Sentindo os braços dele me envolvendo tão carinhosamente...

...Você sabe que não pode fugir.

Mais ou menos na tarde do dia 24 de abril...

...Eu morri.

Esperanto:Solfege
Petit Ange

Tom IX: Suriel.

Uma forte chuva teimava em cair, molhando-lhes as roupas e os cabelos. No fundo da mente, Maiko chegou a pensar em como voltaria para casa com ela e Himitsu totalmente molhados de chuva. Mas, tão logo veio esse pensamento, ele foi embora.

Havia coisas mais preocupantes no momento.

Como, por exemplo, aquele rapazinho de roupas e asas negras que se aproximava tão perigosamente dos dois.

“Shiho-kun!” – chamou o primogênito, sorrindo. – “Lembre-se de que ele ainda tem muito de um ‘Obviam’ [1] dentro de si, por isso, não vá maltratá-lo muito.”

Virando-se, o garoto de asas negras também sorriu. – “Pode deixar, Mashiro-kun. Prometo ser gentil com Sehriel.”

Maiko ouvia tudo, realmente ouvia, mas de tão apavorada, não tinha certeza de que conseguia memorizar tudo aquilo, ou mesmo pensar algo com clareza que não fosse mentalizar a grande vontade que tinha de fugir.

“...Sehriel. Sentimos sua falta, sabia? Você sumiu.”

Himitsu só teve o reflexo de apertar mais a miúda japonesa em seus braços.

“Maiko-chan... Não se preocupe, eu vou protegê-la, tá?” – e, ao contrário do que ela achou, ele encarou-a e sorriu. Aquele maldito e infantil sorriso.

“...Tá.” – era só o que podia dizer.

Tudo o que podia fazer contra uma entidade sobrenatural, sendo ela a humana que era, apenas seria confiar no loiro.

“Vamos acabar com tudo isso logo, Sehriel? Me deprime ver suas asas desperdiçadas em vão por aqui.”

Nenhum dos dois sabia do que aquele pequeno estava falando.

Apenas escutavam-no, dando alguns passos cautelosos para trás, tentando manter o máximo de distância possível de seu sorriso cínico.

Maiko agarrou-se mais ao pescoço dele, sentindo roçar em seu rosto os cabelos loiros. A franja dele caía-lhe pelo rosto, dando uma aparência ainda mais perfeita à ele (como ela nunca percebeu que ele ficava simplesmente perfeito depois de um banho?! Definitivamente, precisava de óculos!). E aqueles olhos determinados... Sem dúvidas, aquele era um lado de Himitsu que ela não conhecia.

“Ah! Que tal se eu fizesse um favor pra você?” – e o som daquele levantar de vôo de um pássaro fez-se presente, mostrando toda a envergadura das majestosas asas negras de corvo daquele menino. – “Que tal se eu acabasse com aquela sua missão aqui e agora?”

“Maiko-chan.” – ela ouviu, de repente, assustando-se com a quebra da tensão por aquela voz repentina.

“O que?” – ao olhá-lo, a japonesa pareceu nunca tê-lo visto assim, tão sério.

“Segure-se em mim. Com toda sua força, e não solte em situação alguma.” – continuou, mas mesmo com a voz séria, ele mantinha um sorriso para ela.

“O-o que... Que vai fazer...?!” – assustou-se.

“Apenas segure-se.”

Maiko fez o que ele pediu, sentindo-o quente mesmo quando a chuva gelada caía sobre os dois. Quando encostou o rosto em seu ombro, ouviu o palpitar longínquo de seu coração. Estava assustado. Como o dela. E, por um segundo, ela sentiu-se uma idiota; ela quis desesperadamente um par de asas, uma arma, qualquer coisa que pudesse salvá-los.

Desejou, quem sabe, até mesmo poder matar aquele garoto. Ou apagá-lo, resetar aquele dia, como se tudo não passasse de um jogo. Como se fosse acordar e correr até a cama do loiro, procurando-o para ver se ele estava na sua casa.

De repente, ela sentiu um frio estranho na barriga. Achou que algo estava muito estranho, e quando abriu os olhos, de fato, ela soube o porquê da sensação.

“ESTAMOS VOANDO?!”

A exclamação da garota foi totalmente auto-explicativa, e ela agarrou-se ainda mais forte nele quando viu os prédios outrora tão enormes apenas um ponto ínfimo no céu.

Lá embaixo, ela teve a impressão de ouvir Najato chamando-a, mas só então deu-se conta de que ela não estava voando sozinha; era Himitsu o dono da façanha. De fato, penas rosadas eram deixadas às vezes das asas majestosas.

“Co... Como faz isso...?!” – boquiaberta demais para pensar em qualquer outra coisa para perguntar.

“Desculpe. A Maiko-chan está assustada?” – sorriu, cordialmente.

“É claro que sim! Mas acho que me acostumo...” – é claro, mesmo fazendo essa pose, agora ela estava ainda mais agarrada nele. – “Como consegue voar assim... E tudo o mais... Nessa chuva...?!”

Para Himitsu, aquilo até já parecia meio natural.

“Najato-san me ensinou. Ele disse que devo evitar baixas altitudes e lugares com muita gente. Por isso, estamos saindo deste bairro, se não se importar.”

“N-não, eu não me importo...” – e ela estava em condições de reclamar de algo?

Maiko se sentiu uma protagonista de filme da Disney. E, olhando bem, ela até que estava se acostumando bem com aquela total maluquice. Sinceramente, achou que gritaria bem mais, que ficaria com muito mais medo. Mas tirando aquele pânico e aquele frio no estômago de pensar na possibilidade de cair, até que não era nada mal.

Ela ficou admirada de ver Himitsu voar. Tudo bem, anjos sempre voam e ela que foi idiota de nunca pensar na possibilidade, mas agora que estava vendo-o daquele jeito, por um instante, ela o achou a criatura mais perfeita acima e abaixo da terra. Aqueles cabelos loiros, já naturalmente esvoaçantes, quando jogados na violência do vento daquele vôo, então, pareciam ainda mais tentadores.

Mas então, Himitsu fez um esgar de dor.

E ela viu uma trilha de sangue cair, como naqueles filmes onde alguém joga um balde de água ou de tinta pela janela do trigésimo quinto andar.

“Hi... Himitsu...?!” – aquele sangue a assustou. De verdade. E a fez acordar para a vida: eles não estavam num filme feliz da Disney.

Logo atrás dele, um par de asas negras os seguiam: o pequeno Shiho também era um anjo, ela quase esqueceu. E, como o próprio disse, ele os queria.

Havia um círculo feito de penas em volta dele, e um espaço estava vazio. Provavelmente, a pena que acertara Himitsu e jorrou aquele sangue. E quando ela viu, mais uma daquele amontoado de penas negras (droga, eram muitas! Agora ela sabia porque Irieko teve dificuldades com o moleque!) deixou aquele espaço demarcado, numa velocidade indizível.

“C-cuidado!” – ela tentou dizer, mas foi tarde.

Mais uma vez, tudo que ela pôde ver foi o sangue. E ela achou que seu coração fosse saltar pela boca, realmente.

“EI, MOLEQUE DESGRAÇADO!” – berrou para Shiho, totalmente irada. – “QUER FAZER O FAVOR DE PARAR COM ESSA PORCARIA!”

Mas o ‘moleque’ sequer pareceu tentado a responder àquele grito.

“...Ma-Maiko-chan.” – sussurrou.

Virando-se para o loiro, ela o viu pálido. Parecia estar sentindo dor, ou quem sabe, esforçando-se até para manter a consciência. Não se surpreenderia se ele caísse de repente, tinha muito sangue vazando dele.

“Sim...?!” – ela nunca se apressara tanto em responder à alguém.

“Segure-se mais, tá?”

Ele a segurou mais também, ao mesmo tempo em que ela apertava o abraço que lhe dava, e fechou os olhos, contendo uma exclamação surpresa, quando viu-se descendo como um míssel, com um zumbido estranho nos ouvidos.

Quando Himitsu finalmente parou de encurtar a distância até o chão (será que alguém estava vendo-os?), ela respirou com dificuldade, tremendo totalmente.

“...Porque essa é uma das manobras mais simples que eu farei, se quisermos escapar inteiros daquele menino.” – ele completou, com uma gota. – “Maiko-chan está bem?”

“Eu... Eu... Claro...” – apesar do estômago dizer exatamente o contrário.

“Sinto muito, Sehriel...” – a voz do garoto fez-se ouvir, mostrando-o logo ali do lado deles, como que por encantamento. – “...Mas precisará de muitíssimo mais do que isso para escapar do meu julgamento.”

Trinta e seis penas. Todas as malditas penas que rodeavam aquele garoto.

Maiko arregalou os olhos, chocada, quando sua visão foi totalmente obscurecida.

“Você é um maldito hanyou, não é?”

“Sim. Devo admitir que sim.”

Por outro lado, o gêmeo Mashiro Himeno parecia tranqüilo, mesmo tendo apontado diretamente para sua têmpora uma flecha repleta da energia daquele caçador.

“E por que está com um ‘Anjo’?” – rosnou. – “Por que aquele ‘Anjo’ está atacando os seus iguais?”

“Porque ele é um ‘Erasi’ [2]. É simples assim.”

E, antes que Najato falasse qualquer coisa, o moreno completou. – “E porque tanto aquela que você chama de ‘Irieko’ quanto aquele que aquela garota chamou de ‘Himitsu’ são ‘Construxi’ [3]. São tipos totalmente diferentes.”

O caçador de youkai quis dizer que sabia disso. Mas, de repente, ele pegou-se surpreendido por aquele comentário. Irieko nunca lhe falara que havia distinções.

“...E qual a diferença entre eles?” – se fosse mesmo para matar aquele moleque, que pelo menos tirasse informações antes.

“Anjos como o Shiho vêem a este mundo para ‘apagar’. Anjos como aqueles que andam com você vêm para ‘tirar o equilíbrio natural das coisas’.”

“Como assim, ‘tirar a harmonia das coisas’?” – arqueou a sobrancelha.

Mashiro estendeu o pé e ficou olhando, distraído, para seu próprio sapato totalmente molhado naquela chuva que estendia-se. Na mesma hora, Najato soltou a flecha, vendo aquela movimentação suspeita do meio-youkai, e um grande silêncio instalou-se entre eles, sendo apenas quebrado pelo periódico som de sirenes ao fundo e o inquietante cortar daquelas gotas caindo violentamente no chão.

O gêmeo de negros cabelos e olhos tocou em seu rosto, com um riso de surpresa, apenas para perceber que a flecha pegara de raspão no seu rosto, a ponto de arrancar sangue. E, naquele momento, ele chegou a simpatizar com o caçador.

“Erasi são como o que humanos chamam de ‘Anjos da Morte’. Eles vêm e levam, sem conversas. Já os Construxi vêm ao mundo e tomam formas diversas também, mas, de alma em alma, cuidam para que as pessoas não sofram.”

Najato, então, pareceu entender toda a verdade acerca Irieko.

Então... Era isso... Que você não queria me contar...

Tudo aquilo que ela falou e tudo aquilo que ela não falou, apenas para não feri-lo. E, naquele momento, ele a amou. Mesmo com todos os ‘entretanto’, ele a amou mais do que a qualquer outro neste mundo.

Mas tudo não passou de um segundo de sua vida, segundos que separaram-no de pegar uma nova flecha na aljava e apontá-la de novo para o pequeno hanyou.

“Aquele tal de Shiho... Ele não é o seu irmão, não é?” – e tornou-se ainda mais sério quando disse isso, esquecendo os pensamentos de gratidão.

Mashiro não respondeu imediatamente, como fez das outras vezes.

Mas parecia que não se importava de conversar com o caçador que tentou matá-lo e que odiava a raça dele.

“...Não. O meu verdadeiro irmão Shiho Himeno... Morreu.” – erguendo um pouco a camisa, ele mostrou uma enorme cicatriz reta e com uma aparência deveras grotesca, que começava na lateral da barriga. – “Aquele Shiho... Se chama Suriel. Da mesma forma que ‘Himitsu’ não se chama ‘Himitsu’ e ‘Irieko’ não é ‘Irieko’ de fato.”

O caçador pareceu ponderar, horrorizado.

“...Você desejou, do mesmo jeito que desejamos aquelas pessoas... Que aquele anjo voltasse na forma do seu irmão...?”

Em meio à chuva, Mashiro ergueu os olhos, calando-se totalmente ante a pergunta.

Parecia um cachorro de ouvidos aguçados que ouve qualquer coisa que um humano jamais iria conseguir.

“Mesmo que eu seja um meio-youkai, acredite, estamos no mesmo barco.” – ele sorriu. – “Mas agora, acho que você deve correr.”

Passando a mão pelo ferimento que ainda sangrava, continuou. – “Pelo que vi, acho que meu irmão feriu seriamente o Sehriel.”

Os cabelos loiros dele sempre foram seu xodó. Às vezes, quando ele brincava com os dela, ela tinha vontade de ficar sentindo a maciez deles, de aspirar aquele perfume inebriante, de simplesmente ficar observando-os, porque ela simplesmente os amava. Sempre amou os cabelos de Himitsu. Quando se espalhavam no chão, quando ele virava-se e eles esvoaçavam junto, quando caíam pelos ombros... Sempre adorou qualquer coisa que viesse dele.

Mas daquilo ela não gostou.

Nunca havia visto tanto sangue numa pessoa só. Quando o tio a espancava demais, às vezes, ela sangrava... Mas não era daquele jeito abundante. A camisa escolar do loiro estava totalmente manchada. Do tipo, se alguém o visse agora, certamente pensaria que ela era vermelha naturalmente.

E aquelas asas... As asas rosadas dele estavam estendidas de qualquer jeito, manchadas de escarlate. Ele tentou atacar, mas as penas que falharam em sua missão estavam jogadas em cima de seu corpo ou pelo chão molhado.

Maiko arrastava o corpo inconsciente, vendo a trilha de abundante sangue que deixava enquanto o fazia. Himitsu estava assustadoramente pálido e respirava com dificuldades. E, pela primeira vez em sua vida, ela achou que iria morrer. Ela e o rapaz.

“Por favor... Nos deixe em paz...”

Era só o que ela pedia, naquele fio de voz, desde que viu aquelas penas negras acertá-lo até ele cair em queda livre, numa rasante que apavorava-a só de lembrar, de encontro ao chão. Provavelmente foram as próprias asas que aliviaram a queda, mas o som que o corpo de Himitsu fez quando bateu no chão foi arrepiante.

“Eu sinto muito... Mas não posso fazer o que me pede, Maiko Isono. Um ‘Erasi’ nunca pode deixar que um ‘Construxi’ se intrometa em seu trabalho.” – sorriu. – “Espero que compreenda isso.”

Erasi? Construxi? Às favas com aquilo! Ela só queria tirá-lo dali!

Só queria uma ambulância ou qualquer coisa do tipo. Só não queria que aquele sangue continuasse manchando a calçada (o que as pessoas iriam pensar amanhã, quando vissem aquilo?).

“Blábláblá! Sai da minha frente agora ou eu... Eu te mato!” – ameaçou, pensando mil e uma formas de tentar escapar enquanto falava.

“Ah, é...?” – Shiho arqueou a sobrancelha, com um meio sorriso. – “Fiquei curioso agora... Como se mata um ser inorgânico?”

“Desse jeito aqui, ó.”

Shiho teve tempo de virar um pouco a cabeça.

E uma flecha atravessou seu peito.

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Petit Ange

Tom X: O Prólogo da Miséria.

Eleanor...

Olhando para suas próprias mãos, tudo que viu foi o sangue.

...Eleanor!

Tudo o que ouviu foram os gritos.

Krysz...

Sentiu a dor em suas costas. Elas rasgavam. Palpitavam.

...Krysz!

Quando aquilo iria acabar?

As asas cor-de-rosa. Um rosa pálido e maculado como um botão de flor. O cor-de-rosa da dor e da miséria. Majestosas e desejosas asas rosas.

Um par de asas. Um ‘anjo’ na Terra.

Fraülein!...

O que fizera para merecer isso?

...Fraülein!!

Para merecer aquelas asas?

Ryuuya...

As malditas e perfeitas asas cor-de-rosa, que distribuíam a dor e o prazer simultaneamente nos olhos das pessoas.

...Por favor, Ryuuya...

Por que é que estava ali, afinal?

Não me leve... Não vá...

Alguém poderia responder?

Himitsu...

Com uma aguda dor, o rapaz despertou, sofregamente. Todo o corpo doía e tremia como se ele tivesse sido pisoteado por uma manada de elefantes loucos.

Abrindo os olhos, ele sentiu debaixo de si uma superfície macia que logo identificou como uma cama. Fechando os olhos e retesando o corpo, uma dor absurda tomou-o, fazendo virar-se na direção daquele palpitar: a lateral de sua barrida doía, o braço também... Para ser sincero, tudo doía muito.

Inclusive o coração. Por alguma razão, ele acordou com lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. Nunca entendeu seu significado, mas pensou sobre elas bastante.

Até perceber que alguém segurava sua mão.

Era calorosa e pequenina. Mãos de uma garotinha.

A mão de Maiko...

Ela estava deitada ali do seu lado, naquela cama, sentada numa cadeira. A mão dela estava em cima da dele, quente, como se tivesse adormecido segurando-a daquele jeito.

Aquele era o quarto dele... Só agora percebeu. Ela ficou no quarto dele.

Encarando-a, como quem não acredita que aquilo está acontecendo, ele percebeu o rosto dela. E soube, de alguma forma, que era tudo real. Os cabelos negros e soltos espalhavam-se pela superfície do colchão, proporcionando uma agradável sensação ao toque, quando ele baixou a outra mão para tocá-los.

Ela parecia tranqüila. Parecia até mesmo uma criancinha imaculada no sono.

Por um momento, ele sentiu pena. Ele não quis fazer nada daquilo.

Inclinando-se, pôs uma incômoda mecha dos cabelos loiros atrás da orelha quando chegou perto do rosto dela, para não acordá-la. E então, percebeu de novo aquilo que já tinha notado antes, mas não teve coragem de perguntar.

O rosto dela... O seu corpo também... Tinham marcas.

Ela havia brigado com alguém? Com quem? Por que? A Maiko que ele conhecia era frágil e quebradiça demais para brigar com alguém.

Pode ser que no começo ela lhe desse medo, mas agora ele sabia que era apenas um disfarce feito para protegê-la.

Era por isso que ele queria ser aquele ‘disfarce’ para ela.

Para que ela não precisasse mais fingir ser algo que não era de fato.

Sua respiração bateu no rosto da garota, e ele sentiu o cálido calor que emanava dela. Há quanto tempo estava deitada ali, fazendo companhia a ele? Há quanto tempo estava desmaiado? O que será que teria acontecido?

“...Himitsu.”

Ele retesou o corpo ao ouvir a voz dela murmurar seu nome, mas logo relaxou quando viu que Maiko continuou dormindo. E então, ele procurou qualquer espécie de machucado nela. Não viu nada, senão aqueles que eram os que ele já tinha avistado anteriormente. Nenhum novo.

Talvez aquela queda em alta velocidade tenha machucado-a, mesmo que ele tivesse usado seu próprio corpo para amortecer a queda dela. Não. Pelo menos no sono, não havia nem sinal de desconforto.

Segurando a mão dele fortemente, ela parecia até... Protegida?

Aproximando-se cada vez mais do rosto dela, ele tirou os cabelos negros que atrapalhavam-lhe a visão do rosto pálido.

“Maiko-chan...” – sussurrou-lhe de volta, roucamente, no ouvido.

Himitsu agradeceu que ela estivesse desacordada. Porque assim, de alguma forma, ele pôde sentir com toda a passividade que queria aqueles lábios (apesar de achar, por tudo que já viu, que ela não resistiria caso ele tentasse... Talvez).

Eram macios e doces, mornos e gentis.

Eram exatamente a Maiko Isono que só ele conhecia.

Beijar uma donzela adormecida era um golpe sujo... E, além disso, se inclinar daquele jeito fez seus machucados doerem... E, mesmo assim, ele não quis se separar dela. Permaneceu inerte daquele mesmo jeito, com a respiração dela batendo em seu rosto, e vice-versa. Do jeito que queria ficar.

Obrigado”, “desculpe”, “eu sinto muito”, “eu te amo”...

Tantas e tantas frases que ele queria dizer com aquele simples beijo, mas todas elas entalaram na garganta, na visão daquela pequenina adormecida... Todas ficaram silenciadas no fundo de sua mente, naquele espaço secreto e negro.

“Ela ficou com você até agora...” – uma voz disse, quando abriu a porta.

Vestido com uma roupa que parecia ser de Himitsu, Najato apareceu com dois copos com chá quente.

“Tive de me desdobrar muito pra convencê-la a tomar banho e te deixar sozinho comigo um minuto.” – sorriu.

“Muito obrigado, Hajaya-san.” – ele também sorriu, pondo desta vez a mão dele sobre as dela. – “Foi o senhor quem fez... Esses pontos de emergência?”

“Sim. Os Hajaya são treinados na arte médica também, porque não podemos aparecer no hospital com ferimentos e responder às perguntas que os médicos fazem.” – explicou. – “Tive de convencê-la de que não era um idiota e ia te matar...”

Himitsu deu um leve sorriso, acariciando os cabelos da garota.

“Quanto tempo eu dormi?” – perguntou.

“Algumas horas. A sua recuperação é surpreendente.” – sentou-se na outra cadeira que havia no quarto, que, de fato, era a dele. – “É o que se esperar... De um ser inorgânico.”

O loiro respirou profunda e dolorosamente, como se ouvir aquilo tudo o magoasse.

“Não conta pra Maiko-chan... Ela vai ficar triste e ainda mais confusa...”

“Uma mente é muito complexa. Imagine então duas mentes em um só corpo! Esse é o maior defeito de vocês... Vocês não conseguem separar a sua existência fátua da verdadeira, não é?”

“Está enganado...” – sussurrou. – “Eu sou Himitsu. Eu sou o ‘humano’ criado pela Maiko-chan. Ela é minha ‘Deusa’. Eu sou Himitsu Isono... Ainda sou Himitsu Isono.”

Às vezes, quando Najato insistia, Irieko respondia a mesma coisa.

O moreno nunca entendeu o que é aquela insistência em provar-se o ser que via-se diante de sua frente. Ele sinceramente não se importava. Não agora, que já sabia de tudo. Ele sempre achou que poderia ficar assustado, mas diferente disso, sentia uma imensa tranqüilidade invadi-lo.

“O anjo... Ele te chamou de...”

“Sehriel, né? Eu lembro.” – passou a mão pelos cabelos. – “Mas é estranho... Quando ele fala esse nome, não me vem nada.”

Himitsu desviou o olhar dos olhos castanhos de Najato e fixou seus orbes azuis no arco e na aljava do rapaz, displicentemente jogados num canto do quarto.

“O que aconteceu com os senhores Himeno...?”

“Eu acertei uma flecha no tal Shiho, mas ele é um ‘anjo’, e por isso, dificilmente irá morrer. Já o tal Mashiro, eu saí de perto dele assim que me avisou que você tinha sido atacado.” – Najato disse, apoiando o rosto na mão. – “Você estava péssimo, Himitsu... A Maiko não parava de soluçar... Ela achou mesmo que ia morrer. Disse que você caiu de uma altura absurdamente alta enquanto voavam e foram atacados e tudo...”

Mais uma vez desviando os olhos de um objeto, agora definitivamente ele colocou-os onde queria; no perfil imaculado da japonesa.

Ficou acariciando seus cabelos, passando os sedosos fios negros por seus dedos.

“...Eles não vão nos deixar em paz, né?” – perguntou, engolindo em seco ao perceber, finalmente, isso.

“Aparentemente, não. E a Irieko ainda não está totalmente recuperada.” – suspirou.

“Eu vou proteger a Maiko-chan. E a Irieko-san, sem dúvidas, vai proteger o Hajaya-san. Por isso, não precisa se preocupar. De alguma forma... Não vamos perder, né?” – forçando um sorriso, por um instante, o moreno achou que aquele rapaz alto e loiro voltou a ser o ser inocente e estranho que ele conheceu.

Deixando aquilo de lado por um momento, ele deu um risinho irônico.

“O tio de vocês não está.”

“Ah, é?!” – ao que parecia, pelo menos nisso, Himitsu ainda era um marreco inocente. – “O-onde o titio está...?!”

“Não sei. Nós chegamos aqui e ele não estava aqui (ainda bem). Mas é melhor assim, acho. Não sei se seria legal ver seu ‘sobrinho’ todo arrebentado.”

“É... Melhor não...” – concordou, cabisbaixo.

Najato, um tanto sem-graça, coçou a cabeça, tentando procurar as palavras para começar um assunto que, só pela cara, não era coisa boa.

“Você... Notou os machucados dela?”

Ele já havia percebido que não era qualquer coisa. – “Sim... Mas eu achei que a Maiko-chan não ia gostar se eu comentasse assim, do nada...”

“Por mais que a fama dela no colégio seja a de ter um punho pesado pra caramba e de ser violenta e tal... Eu não acho que isso aí seja obra de estudante.” – apontou para os machucados recentes. – “Sabe como é, né... O jeito que ela falou do tio de vocês... Eu tava com o ‘Faro de Tiranos’ ligado, e não achei boa coisa...”

Himitsu concordou.

De fato, ela sempre falava de Takuchi Isono de uma forma que não era natural numa relação de afeto. Mas ele nunca tinha comentado abertamente porque a garota parecia se incomodar muito quando abordada sobre esse assunto.

E, como sempre, ele nunca queria incomodá-la. Por isso, omitia-se na maioria das vezes, mesmo sabendo que aquilo não era normal. Sempre aparecendo quando podia antes que alguma coisa desse errado.

“...Pode deixar, eu vou ficar de olho nela.” – sorriu.

“Acho que já tá tarde. Você devia dormir, viu? Amanhã precisa fingir que está bem porque tem aula.”

“Não posso.” – ele riu. – “Preciso trabalhar. Muita coisa pra fazer.”

“Que? Não sei se percebeu, deve ser quase três da manhã...” – gota.

“É, mas a Maiko-chan e eu temos uma lição de Matemática e ela foi escalada pra resolver a questão no quadro... Preciso resolver pra ela e ajudá-la a entender amanhã...”

“...Por que não a acorda amanhã pra Maiko fazer?” – gota ainda maior.

“Ela tá cansada... Não quero acordá-la cedo só pra isso.” – ele sorriu, tranqüilo. Najato percebeu que ele parecia muito melhor quando falava da morena.

Ao vê-lo se levantar, mesmo com um pequeno esgar de dor, o rapaz Hajaya viu que, afinal, as coisas tinham se ajeitado um pouco por ali.

“Olha, se é assim, eu vou voltar, tá?” – foi se levantando também. – “Vou fazer a ronda sozinho mais um pouco e ir dormir. Vê se descansa, viu? Amanhã você vai trabalhar de novo.” – olhar de ‘nunca mais vai furar um dia de serviço’.

“Sim. Desculpe você ter tido todo esse trabalho, Hajaya-san.” – sorriu, sem-graça.

“Que nada... Vem, vamos até a porta.”

Os dois foram até o corredor falando sobre os planos e o local que seria a patrulha para amanhã, e comentando possíveis planos de ataque ou de fuga caso encontrassem aqueles gêmeos bizarros mais uma vez (o que ambos sabiam que, cedo ou tarde, iria acontecer).

No fim, Najato atravessou o corredor sozinho, dando um tchau enquanto Himitsu, escorado na porta, também despedia-se.

Quando finalmente o adolescente caçador sumiu de suas vistas, ele respirou fundo, passando a mão pelos sedosos fios loiros.

Himitsu voltou ao seu quarto, vendo a garota ainda sentada daquele jeito.

E só então percebeu que não devia deixá-la daquele jeito, ou ela podia ficar com uma dor horrível no pescoço (se é que já não ia ficar).

Aproximando-se rapidamente dela, a pegou no colo, e só então notou o quanto era ela leve. Antes, naquela situação emergencial, quando voou com ela, só tinha em mente escapar e manter sua segurança, mas agora, estando em paz, ainda que dolorido, estava notando o quanto ela era... Pequena.

Parecia uma criança dormindo. E era tão diminuta em relação a ele.

Mesmo tendo um soco muito mais forte que o dele (que, por sinal, nem sabia querer brigar), ela ainda era tão frágil... Era quase impossível ligar uma Maiko à outra. Eram duas pessoas totalmente opostas naquele momento.

Presa em seu colo, Himitsu permitiu-se sorrir. Gostava quando seu corpo colava-se ao dela. Era gentil, era bom.

Atravessando o corredor, abriu com a mão mais vaga a porta do quarto dela, e deixou a luz apagada, guiando-se apenas pela luz do corredor. Lá, deitou-a delicadamente na cama, como se sequer estivesse tocando-a de fato. Cobriu-lhe até o pescoço, porque depois daquela chuva, o clima esfriou consideravelmente.

E então, ao vê-la tão plácida e tranqüila no sono, ajoelhou-se no chão e segurou a mão dela, levando-a até seu rosto, encostando-a ali. Permitiu-se ficar muito tempo daquele jeito, apenas desfrutando o contato da pele aveludada dela em seu rosto.

Novamente, aquele impulso despudorado acometeu-o.

E novamente, ele viu-se tocando com toda a delicadeza que podia ter nos lábios dela com os seus. Atreveu-se até mesmo a fechar os olhos de novo.

“Maiko-chan...” – sussurrou no momento em que seus lábios se separaram, muito próximo deles de novo. – “Me perdoe...”

[1] Significa, ao pé da letra, ‘Esquecido’, ‘Outro’, em latim.

[2] Aproximadamente, ‘Apagador’, ‘Destruidor’, também em latim.

[3] ‘Construtor’, ‘Aquele que sustenta’, nem preciso dizer em que língua. XD


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