Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 3
Tom III: Najato Hajaya / Tom IV: Irieko




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Voe, voe, passarinho...

Em meio ao caos de uma Tokyo devastada...

Com meu próprio sangue escorrendo de mim...

Sentindo os braços dele me envolvendo tão carinhosamente...

...Você sabe que não pode fugir.

Mais ou menos na tarde do dia 24 de abril...

...Eu morri.

Esperanto:Solfege
Petit Ange

Tom III: Najato Hajaya.

“Mas hein...? Tem outro anjo aqui?”

Maiko viu toda a sua vida até ontem pela cabeça: só uma estudante normal que perdera os pais há poucos anos. Tinha só 15 (quase 16!) anos, estudava no segundo colegial, trabalhava até tarde da noite depois das aulas (e por isso não fazia nenhuma atividade extracurricular) e simplesmente teatrava que era uma menina má para se proteger do mundo externo...

E, a partir de ontem, tudo mudou: ela conheceu Himitsu Isono, seu pseudo primo, um lindo rapaz loiro e alto que era tão servil quanto um plebeu da Idade Média. Era idiota, gentil demais, com cara de bobo, e ainda sim... Ele a fazia esquecer da dor. Mas ele era estranho. Era um intruso, algo desconhecido. E, agora a pouco, quando um monstro estranho e random estava prestes a atacá-la, ele protegeu-a.

Até aí, não seria assim tão assustador. Mas o que ele usou para proteger a ambos é que foi a coisa estranha: ele libertou um par de asas rosadas de suas costas, e uma chuva de penas rodeava-os, num belo, porém estranho espetáculo.

Como o sonho que ela teve.

Eu não sei o que tá acontecendo... Mas sinceramente... Foda-se!

Só pára o mundo um pouco que eu quero descer!

“Ô Irieko! Vem logo pra cá!”

Himitsu, por um instante, viu o sol sumir, literalmente, para ele.

Num salto humanamente impossível, uma silhueta pulou o muro que separava os Colégios 1 e 2 do complexo Kusari. E, com a graça de um felino, parou bem ali atrás deles, de frente para o youkai.

Os dois puderam ver uma jovem de uniforme do colégio ao lado. Apesar de pertencerem à mesma rede de ensino, os uniformes diferenciavam-se em algumas coisas. No caso deles, o uniforme feminino do colégio 1 era azul e o do colégio 2 era preto. E outros detalhes que não mereciam serem mencionados.

Quando a chamada ‘Irieko’ virou-se para olhá-los, ela teve de vê-los não de lado, mas de frente, e o motivo os dois descobriram então: um enorme tapa-olho negro e estilizado de algo que parecia couro cobria o seu olho esquerdo.

Os cabelos da jovem eram verdes. VERDES! Maiko via isso em cosplayers, e sinceramente achou que ela também fosse uma.

Mas, oh ironia! As asas dela também eram verdes.

PERAÍ! AS ASAS DELA?!

Sim! De fato, a tal ‘Irieko’ que andava com o estranho de arco-e-flecha tinha asas iguais às de Himitsu! Entretanto, elas eram verdes e pálidas.

“Ah!... As asas!” – a japonesa exclamou, realmente surpresa.

“Eu já encurralei o monstro com a flecha. Vai e acaba com ele, Irieko.”

“Tá certo.”

Foi tudo tão rápido que os dois sequer tiveram tempo de processar direito: a tal ‘Irieko’ estendeu as asas esverdeadas e das mesmas desprenderam-se em torno de seis ou sete penas brilhantes. Elas voaram tão rápido, como mísseis, na direção do youkai que nem sequer Himitsu teve tempo de acompanhá-las com os olhos.

O monstro esverdeado deu um berro profundo e que ecoou muito tempo nos ouvidos da japonesa. Mas então, ele simplesmente sumiu no ar como fumaça.

“O nível desse youkai é muito baixo.” – ela disse.

“Isso significa que a barreira está, obviamente, fraca o suficiente para que tipos como essa porcaria atravessem.”

“EI!” – uma voz estridente fez-se ouvir.

Então, os dois viraram-se, sérios, para Himitsu e Maiko.

“Olha só. Tem um anjo aqui, cara!” – o garoto pôs a flecha não-usada na aljava que levava nas costas e foi até eles. – “Ó, já pode guardar as asas. Nós já matamos esse youkai que tentou roubar a energia de vocês.”

De fato, quando ele disse isso, Maiko percebeu que as asas majestosas de Himitsu simplesmente sumiram. E então, ela voltou-se, irritada, para os estranhos.

“Quem diabos são vocês, criaturas?!” – rosnou.

O rapaz de uniforme colegial masculino do outro colégio olhou-a bem antes de arquear a sobrancelha e dar um meio sorriso, como se estivesse simpatizando com a menina abraçada pelo loiro e de olhar assassino.

“Nós? Nós somos os incríveis...”

Ele iria continuar, mas o sinal para voltarem para a sala tocou de imediato.

“...A-ah, Maiko-chan consegue ficar de pé?” – no mesmo instante, Himitsu ergueu-se e ajudou-a a se erguer, limpando a sujeira da roupa dela, nem mais ligando para a seriedade da situação.

“Eu... Eu consigo...” – sem palavras.

“Ó, nós temos que voltar agora. Faz o seguinte, vocês dois: nos encontrem amanhã que só temos aula de manhã depois das mesmas na frente da Livraria Tonkotsu, tá?”

“Claro. Estaremos lá!” – sorriu Himitsu. – “E muito obrigado por salvarem a Maiko-chan e eu.”

“...De nada.” – Irieko respondeu, guardando suas asas. Não passou de um clarão maldito e, quando tudo voltou ao normal, ela já tinha as costas de uma humana normal, e o pior: sem um rasgo de roupa nem nada.- “Vamos, Na-chan.”

“Não se esqueçam, viu? Livraria Tonkotsu, depois da aula!” – ele também deu um salto pela grade, como a moça de cabelos verdes, e os dois saíram correndo.

Ao ver-se sozinha de novo, Maiko virou-se e encarou Himitsu.

“Você...” – fuzilou-o com os olhos.

“Eu?” – inocentemente.

“COMO OUSA DIZER ‘CONCORDO’ SEM NEM ME CONSULTAR?!” – segurou-o pela gola da camisa, sem nem deixá-lo reagir. – “QUANDO PENSO QUE VOCÊ NÃO É TÃO INÚTIL, LOGO ME PROVA O CONTRÁRIO DE NOVO!”

“Ah! Pe-perdão, Maiko-chan! Por favor, me solte...!” – tonto.

“NÃO, NÃO TE SOLTO! VOU TE BATER ATÉ REDUZIR ESSA SUA CABEÇA DE ABÓBORA QUE SÓ PENSA MERDAS A PATÊ!”

E então, a briga continuou até que eles voltassem para a sala. E provavelmente continuaria por muito tempo...

“Francamente! Esse Himitsu só pensa bobagens!...”

Resmungando isso sozinha, a garota joga-se em sua cama. Depois de mais um dia no qual ela teve de levar (por pressão externa) o ‘primo’ a tiracolo para o trabalho na loja, eles voltaram um pouco mais cedo do que ontem. E então, depois de ter feito a lição e tomado banho, a garota pegou-se pensando nos dois misteriosos que viu hoje de manhã.

Eles usavam o uniforme do Colégio 2 do Kusari. Estiveram sempre ali ao lado, e antes daquilo, a garota nunca os havia notado.

Um deles tinha uma aljava e um arco. Provavelmente, quem fez aquele machucado no ombro do tal ‘youkai’ foi ele. E aquela garota de cabelos longos e verdes acabou num minuto com o que sobrou dele. Eles eram bons. Quase como aqueles lobos solitários de filmes de ação, que são fodões e praticamente invencíveis.

Não, Maiko não queria pensar nisso. Tinha outras coisas em mente.

Como iria se comportar? Ela ia se encontrar (por culpa do loiro idiota!) com dois estranhos, envolvidos num mundo estranho que acabou envolvendo o dela junto. Desde que Himitsu chegou em sua vida, já teve problemas o suficiente. Mas então, veio mais aquele.

Ela fechou os olhos com força, tentando lembrar dos rostos dos estranhos.

O garoto tinha olhos e cabelos negros, como ela. A pele era um pouco mais escura, mas eram parecidos nessas características. Ele tinha, também, um corpo bem desenvolvido como o de Himitsu, quase como se tivesse sido treinado em alguma coisa. E aquela menina o chamou de ‘Na-chan’... O que significava que, em algum lugar do seu nome, tinha ‘Na’.

Aquela menina também era bizarra; aliás, conseguia ser mais do que o guri. E o que era aquele tapa-olho? Aquilo dava-lhe medo só de lembrar. Ela parecia aquelas psicopatas de filme B.

“Maiko-chaaaan~!” – que, aliás, devia ser a cara que a japonesa estava fazendo quando ouviu a voz do loiro diretamente do seu quarto.

“Quié, Himitsu? Cê já fez o suficiente por hoje...” – encarou-o de canto de olho.

O rapaz pareceu tristonho, e baixou a cabeça, ajoelhando-se ao lado da cama dela. – “A Maiko-chan tá brava comigo ainda...?”

“Claro que tô!” – resmungou. – “Você não me conta nada! Não me respondeu a pergunta que te fiz de manhã, abriu umas asas estranhas, fez negócios com um bando de gente pirada!... Você só me mete em confusões! Desde que veio pra minha vida, só tem me envolvido em porcarias!”

Himitsu pareceu atônito ao ouvir aquilo.

“...Então a Maiko-chan... Não está feliz...?”

“Feliz?! Como eu estaria feliz com um cara estranho que fica escondendo tudo de mim?! Eu nem sei se o seu nome é mesmo esse, Himitsu!...”

O meu peito dói... Porra, ele tá doendo pra caramba agora...

Que diabos é isso?...

O que será que era aquilo? A morena sempre leu em romancezinhos tolos e outros livros do tipo que ‘o coração das donzelas dói ao ser ferido’. Mas o que diabos aquele menino tinha para feri-la bem ali?

“Eu te amo, Maiko-chan!...” – ela ouviu-o dizer.

E aquelas três palavras pararam tudo na anatomia dela.

Ela pegou-se encarando aqueles orbes azuis, ponderando realmente se aquilo era mentira ou verdade. E, pela primeira vez em sua vida, Maiko nunca havia visto tanta sinceridade em um par de olhos antes.

Himitsu não estava mentindo quando disse isso.

...Mas como podia?

Ele só a ouvia gritar e berrar. Ninguém poderia se apaixonar por uma macaca violenta que só sabe ganhar advertências. Ninguém jamais poderia amar uma garota sem graça como ela, que fazia questão de pisar em quem a quisesse bem.

Ela não tinha nenhum amigo... Quase 16 anos e nenhum amigo ou namorado.

Então... Como podia Himitsu, que a conheceu ontem, dizer sinceramente que estava apaixonado por ela? Que iria fazê-la feliz? Que nasceu apenas para ela?

Isso não podia ser verdade.

Alguém assim não podia existir.

“Maiko-chan é minha ‘Deusa’. Ela fez o ‘humano’ que há em mim. Eu nunca vou olhar para mais ninguém que não seja a Maiko-chan! Nunca irei fazer ninguém mais feliz além da Maiko-chan...!” – ele continuou, decidido a não parar até que ela entendesse. – “Eu farei de tudo por você, Maiko-chan. Eu te amo.”

Os cabelos soltos da garota nunca pareceram-lhe tão pesados antes.

Aliás, todo seu corpo pareceu insuportavelmente pesado, privado de qualquer reação mais básica como respirar, entreabrir os lábios em surpresa ou até mesmo falar.

“...Mas eu não sei nada sobre você, Himitsu.” – ela sussurrou. – “Não sei quem é você, o que está fazendo aqui... Nem porque me escolheu...”

Ela quis chorar. Quis desesperadamente chorar.

Porque, no fundo do coração, uma parte dela também quis dizer que aceitava-o e todas as conseqüências que viessem. Ela desejou fazer parte daquele feliz conto-de-fadas.

Ela desejou...

“Por favor, amanhã temos aula, Himitsu. Vá dormir.”

“Mas... Maiko-chan...!”

“Eu estou te pedindo... Vá dormir, Himitsu... Me deixe sozinha.” – sussurrou ainda mais forçadamente, como se estivesse tirando forças do âmago do ser para isso. – “Por favor...”

Evidentemente, os dois sabiam que ele jamais negaria um pedido dela.

“...Sim. Eu vou dormir.” – ele ergueu-se, respirando fundo. – “Mas isso não muda o fato que a Maiko-chan é minha ‘Deusa’. Que ela é única para mim.”

“Saia daqui!...” – gemeu, transtornada.

E até que ela não ouviu o som da porta do seu quarto ser fechada, ela não relaxou o corpo. Para falar a verdade, também não relaxou nada depois que ele estava fora.

O loiro era... Como uma criança.

Ele demonstrava suas emoções tão sinceramente. Ele simplesmente dizia como se fosse a coisa mais simples do mundo que amava ou odiava.´

Era como uma criança...

E aquela sinceridade a exauria.

Principalmente porque ele mexia tanto com ela que Maiko desejava partilhar daquilo. Ela sempre soube, desde o primeiro momento, mesmo que não quisesse admitir, que aquele rapaz podia fazê-la feliz, se quisesse.

Ele tinha tudo para fazê-lo. Tudo.

Até mesmo seu coração.

Mas, mesmo assim... Ele apareceu na sua vida do nada. Ela sonhou com ele (ou com seu ‘nascimento’?). Ela viu suas asas... Ela viu o mundo do qual ele parecia fazer parte. E não era um mundo normal.

Ela sequer sabia se ele ‘existia’ de fato...

Himitsu podia saber tudo dela... Mas Maiko não sabia nada dele.

Absolutamente nada. E isso a assustava sem medida.

E por isso, quando acordou naquela manhã, ela estava decidida a pedir respostas ao garoto de aljava. Porque ele parecia dar-se extremamente bem com a moça dos cabelos verdes (aquilo era natural?). Por isso, naquela manhã, quando chegou na escola, ela fingiu ser uma total desconhecida para Himitsu.

Deixou-o enturmar-se com o resto do pessoal (e as malditas tietes sempre em cima), deixou-o viver a vida que ele queria, não aquela dedicada apenas para ela, como se fosse uma rainha.

Maiko já teve o suficiente da servidão do loiro. Não queria mais aquilo.

Por isso, naquela manhã, ela sentou-se sozinha no recreio e não encontrou o garoto ‘Na’ ou a cosplayer de tapa-olho. Ela esteve sozinha todo o tempo, naquela reflexão auto-imposta.

E, na hora da saída, sinceramente, ela queria ter feito a mesma coisa.

Mas uma mão agarrou-a primeiro.

“Oie!~”

Surpresa, ela virou-se para dar de cara com quem imaginou que fosse: o tal Na-chan e a cosplayer. E, para sua surpresa, eles já tinham Himitsu cativo.

O rapaz estava vestido, apesar da fala e aparência desleixada, de uma forma bastante tradicional: uma variante de roupas chinesas. Já a garota, a tal ‘Irieko’, vestia-se mais bizarramente do que se estivesse de uniforme escolar: usava um vestido espalhafatoso e altamente gothic-loli. Naquele momento, a morena sentiu-se a pessoa mais normal do mundo se comparada à eles.

“Você ia fugir da gente, né?” – ele arqueou uma sobrancelha.

Maiko olhou de relance para Himitsu antes de responder. – “Não ia, não! Eu só esqueci que vocês ainda pretendiam levar isso a sério.”

Quando deu por si, a garota estava sentada com Himitsu e os dois estranhos num barzinho, esperando um milkshake e vendo aquele casal de estranhos debaterem sobre o menu do lugar.

“...O que são vocês, moça?” – ela perguntou à queima-roupa.

A ‘moça’ em questão ergueu os olhos castanhos para ela e olhou-a seriamente, sem esboçar uma só reação diante da questão.

“Eu devo?”

“Ela tem um também, Iri-chan.”

A ‘cosplayer’ suspirou. – “Eu sei muito pouco do que somos, senhorita Isono. Não saberia dizer nada além de saber que temos asas que servem para atacar e voar e que nascemos com uma missão altamente definida, bem como com altas prioridades.”

A morena olhou mais uma vez de soslaio para Himitsu, que parecia deveras interessado naquela revelação.

“Você também sentiu, né? Você aí, o ‘Himitsu’.” – o rapaz moreno falou com ele, que virou-se e fez um breve ‘hã’. – “Você sentiu que devia procurar alguém e que tinha uma grande missão. Foi por isso que achou a Maiko Isono aqui, não é?”

De fato, a cara que o loiro fez, pensativo, foi como se estivesse claramente admitindo que sofreu algo mais ou menos assim.

“Quem são todos vocês, senhores? Eu realmente não entendo...” – ela apertou os punhos, sentindo-se inútil por estar cercada de pessoas nas quais sequer podia confiar.

“Ela é a minha assistente e ‘anjo particular’ Irieko. E eu sou Najato Hajaya, caçador de youkais. Não há nada mais para saber além disso, há?”

Na verdade... Eu achava que quanto mais me aprofundava nesse mundo bizarro...

Mais eu sentia que havia cometido o pior erro da minha vida.

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Tom IV: Irieko.

“O que que você acha desse aqui?” – o garoto perguntava, sorrindo. – “Não acha meio... Cheio demais?” – aproveitando, fez gestos obscenos para ilustrar o discurso.

Não acredito que tô fazendo isso...

“Talvez porque isso seja um DVD hentai [1], né não?” – gota enorme.

...Eu acho até que devia me internar por loucura.

“Nah, é por isso que essa parte da loja parecia tão estranha.” – ele continuou rindo, saindo da ala das animações eróticas daquele estabelecimento. – “Olha só... Até a moça tá nos olhando meio estranho.

De fato, uma atendente arqueava discretamente uma sobrancelha, na mais pura descrença por ver um ‘casal’ de adolescentes olhando DVDs hentai.

Como eu pude aceitar essa proposta, droga?!

Dessa vez, o Himitsu sequer abriu a boca! A culpa foi minha mesmo!...

Suspirando, ela deixou o lugar com ele logo atrás.

Provavelmente, a cena deva estar muito estranha, já que não estão a par das novidades desde aquele dia, né?

Então... Depois daquilo, nós soubemos que o Najato Hajaya, esse mané que tá andando comigo, é um caçador de youkais de verdade, e que a Irieko apareceu na vida dele do mesmo jeito que o Himitsu na minha...

Além disso, como ele estuda logo no Colégio nº 2, nós nos vemos todo o recreio, praticamente. O Najato é bem anti-social nas aulas que nem eu, mas faz parte de um clube depois da aula, o clube de Kyuudo. [2]

“Escuta... Najato...”

“Oi?” – quando ele se virava e encarava-a daquele jeito, Maiko até sentia-se meio incomodada; os olhos dele mudavam da seriedade à calmaria muito rápido.

“Aquela coisa sobre que você disse sobre a Irieko... É verdade mesmo...?” – sem-graça de tocar no assunto.

“Sobre ela ser a minha namorada? É sim.” – respondeu, calmamente.

“E por que você escolheu ela...?”

“Ué, porque eu a amo.” – e Maiko teve muita inveja dele quando disse isso. Queria que tudo fosse assim tão simples para ela quanto era para ele. – “Mas por que a pergunta agora, hein, Ma-chan?”

Ignorem esse apelido que ele me deu.

Simplesmente a namorada bizarra dele começou a me chamar de ‘Ma-chan’ porque era parecido com ‘Na-chan’ e ficou assim...

Himitsu ousou me chamar só uma vez de ‘Ma-chan’, mas eu o proibi de continuar.

Basta só uma (ou duas?) pessoa me chamando assim...

“...Como tudo pode ser tão fácil para você?” – sussurrou. – “Não tem vezes nas quais você se assusta, que fica se perguntando o que diabos é aquela pessoa à sua frente... Nunca passou isso pela cabeça?”

“Ma-chan, me diga uma coisa...” – ele pareceu sério. – “...Em quantas batalhas o Himitsu já se envolveu? Contra qualquer tipo de inimigo. Qualquer um mesmo.”

Em quantas batalhas?

A morena parou de imediato de andar quando ouviu isso.

Porque pegou-se pensando: de fato, quantas espécies de batalha o loiro enfrentou? Talvez... Apenas uma. Contra aquele youkai feioso, que rapidamente foi derrotado pela própria Irieko, que parecia muito mais confiante e experiente.

“Acho que só em uma...” – disse, enfim.

“Ele é um bebê. Quase não tem memórias próprias.” – respondeu.

“Um... Bebê...?”

Najato suspirou, passando a mão pelos cabelos negros. E então, sem pensar direito, pegou na mão da garota e puxou-a pela rua.

“Vamos tomar um sorvete? Eu falo bem melhor quando não tô com calor.”

Maiko quis dizer ‘ME SOLTE, IDIOTA!’, mas berrar e socá-lo em pleno movimento de Akihabara [3] não lhe pareceu uma atitude inteligente.

Ela sempre quis saber de onde vinha aquela impressão.

Desde que conheceu o rapaz, ele e suas roupas um tanto tradicionais, ela sempre quis saber como ele conheceu Irieko, como havia se apaixonado por ela, porque estava ali, porque ele a ganhou como ela ganhou Himitsu... Sempre haviam muitas perguntas que ela imaginava não poderem ser respondidas.

Porque, algumas vezes, ele sorria e mudava de assunto.

Como se aquilo, de alguma forma, lhe fosse doloroso.

E, entretanto, ele sempre estava acompanhando-a no recreio ou quando podia. Apesar dele e a outra estudarem no outro colégio do complexo Kusari, de alguma forma, eles se davam bem.

Talvez porque ele também estivesse numa situação semelhante à dela.

E, por isso, Maiko não precisava fingir para ele.

“Tó. Você gosta de suco de laranja?” – um copo apareceu bem diante de suas vistas e, surpresa, ela viu o garoto atrás dela oferecendo-lhe uma bebida gelada.

“Pode deixar, não tenho problema com isso, não.” – agradeceu, sorvendo um pouco do conteúdo refrescante.

Sentando-se ao lado dela, eles ficaram apenas observando as pessoas irem e virem. Akihabara, ainda mais no fim-de-semana, era incrivelmente movimentada.

E o rapaz havia-a arrastado ali para ver algumas novidades no que dizia respeito a alguns jogos (basicamente, ele disse que, de acordo com as narrações, tinha um videogame em casa e queria mais jogos para passar o tempo... Tendo uma namorada de muito tempo, como não haveriam maneiras divertidas de se matar o tédio? Ele só podia ser é muito idiota de vir no sol quente procurar jogos no bairro de nerds e ela ainda mais idiota por acompanhá-lo nisso!).

Eles ficaram mais um pouco em silêncio. Ela fazia desenhos com as gotículas de água do copo de plástico, esperando alguma reação, procurando algo para falar, mas nada vinha. Até que ele respirou fundo.

“...Sabe, quando eu pensei na Irieko, eu tinha começado a ver um anime. E pensei na C.C. [4], que era uma garota desse desenho... A Irieko me veio igual à ela...” – suspirou, com um semi-sorriso, como se fosse-lhe uma lembrança feliz. – “Eu lembro que ela até tinha uma roupa parecida. Tomei um susto!”

“Mesmo...?” – imaginar a cena fez Maiko rir um pouco. – “Eu também passei por isso... Mas na hora me lembrei do Howl...”

“O carinha do Castelo Animado?” – ele também sorriu.

“Esse mesmo.” – meio envergonhada.

“Por isso eu parecia conhecê-lo de algum lugar! Ah, olha pelo lado bom: se ele fosse pra algum Comiket [5] da vida, poderia até receber o prêmio de melhor cosplay!”

Os dois pararam de narrar aquelas coisas absurdas apenas para rirem de suas próprias situações. A japonesa tinha a impressão de que era quase a mesma coisa de estar falando de algum animal de estimação.

“...Eu não sei se isso é certo, mas... Pelo que andei percebendo... Quanto mais batalhas eles lutam... Quanto mais vezes estendem suas asas e compreendem o próprio mundo... Mais eles vão deixando de ser seres puros... Mais eles deixam de ser ‘animais de estimação’, para lembrarem de suas próprias essências... Mas, ainda sim... Eles têm uma missão. Himitsu tem a mesma missão que todos os outros.”

“Mas que diabos de missão é essa?!”

Najato bebeu mais um pouco de seu suco, e tudo que ela ouviu, além dos passos e vozes dos estranhos em Akihabara, foi o som do líquido descendo pela garganta dele.

De verdade, ela não sabia que missão era essa.

Sempre achou o rapaz loiro estranho, aparecendo do nada e tratando-a como a mais especial das rainhas. Simplesmente não entendia.

“...Eles nasceram para fazerem seus ‘Deuses’ felizes. Apenas isso.”

E, quando ouviu isso, o coração de Maiko pareceu quebrar-se.

“Por isso, acredito que, quando você fica triste e tudo o mais, como esteve até agora há pouco... É como se todo o esforço do Himitsu estivesse sendo em vão.”

Ele encarou-a no fundo dos olhos acastanhados.

“...E assim, eu tô dando uma ajudinha pra ele. Nem eu te agüentava ver assim. Ouvi lendas da garota que tinha um punho com a força de uma manada descontrolada, mas não lendas sobre a idiota de cabeça baixa.”

Maiko baixou a cabeça de novo, incapaz de ir contra aquelas palavras.

“Apenas acredite nele, viu? Aproveite e pare de pensar tanto nisso. Pode crer, ele vai fazer tudo por você. Eu já testei esse sistema.” – encarou-a com um sorriso maroto, podendo tanto estar dizendo algo pervo quanto não pervo.

...Só acreditar nele, é?

Era muito fácil para Najato falar.

Ele havia tido muito tempo para se acostumar com a loli de tapa-olho bizarro. E, por mais que isso parecesse não fazer diferença, fazia. Ele convivia com ela muito mais, já sabia dos segredos dela muito mais... Até parecia querer esconder alguma coisa dela. Talvez para que ela não se sentisse triste, talvez para ajudar Himitsu.

O fato é que Maiko não conseguia assim tão fácil.

Desde que os pais morreram, algo nela também morreu. E ela não conseguia mais conviver pacificamente com as dúvidas como antes.

...Se Himitsu chegasse um pouco mais cedo na vida dela, teria podido encontrar alguma doçura. Podia ter se dado muito melhor em fazê-la ainda mais feliz.

Mas agora, as coisas eram diferentes.

Ela era uma criança perdida. Precisava da desconfiança. Precisava muito dela para sobreviver. E toda a aura de mistério que cercava a mais simples ação de Himitsu trazia-a a sensação de que ela não devia se sentir atraída com isso.

Como um imã para problemas.

Ainda sim, quando ele sorria radiante e pedia-a para ir descansar mais cedo, como fez hoje, ela não conseguia acreditar que ele era um humano. E então, lembrava-se das majestosas asas róseas que ele exibiu na escola para ela.

Nunca mais as viu desde então, mas sempre lembrava delas. Do calor delas.

Sinto saudades... Mãe...

De fato, o que ela não daria para ter um colo de mãe de novo...

Estendendo a mão para fora da cama, deixou-a parada no ar, até que sentiu-a sustentada por alguma coisa. Sobressaltada, abriu os olhos, vendo o loiro ajoelhado logo ali, já de pijama.

“Hi-Himitsu...?!” – tomou um susto, retesando-se ainda mais. – “Que diabos você faz aqui...?!”

“Maiko-chan parece triste de novo...” – ele murmurou. – “Eu até compreendo que você não queira falar comigo, porque me pediu para não fazer isso de novo... Mas a Maiko-chan está muito triste... E eu... Eu fiquei preocupado...”

Tomando novamente a mão dela nas suas, a garota sentiu-se corar. As mãos dele eram cálidas e firmes. Mãos de alguém muito gentil.

“...Eu tô bem, Himitsu. Sempre estive.” – resmungou.

“Sei que não posso mais dizer à Maiko-chan que a amo...” – falou baixinho. – “Mas eu... Posso me preocupar com você?...”

A morena podia ouvir Najato falar em sua cabeça.

A sua tristeza é a tristeza do Himitsu. Ele vive exclusivamente por você enquanto o lamento da inocência não chegar, Ma-chan’. E ela não havia gostado nada de ouvir aquilo. Nada mesmo. ‘Ele seria capaz de fazer qualquer coisa por você, acredite.

Eu farei de tudo por você! Eu te amo, Maiko-chan!...’, ele disse.

Como podia? Como ele conseguia servi-la, mesmo depois de tudo que ela dizia?

Ela sempre achou que, se bancasse a tsundere [6], ninguém viria atrás dela. Ela ficaria segura daquele jeito. Ser sozinha era melhor do que sofrer nas mãos de alguém que viesse a gostar... Era como reviver o amor que sentiu pelos pais, abruptamente tirados dela, e reviver também todo o horror que tornou-se sua vida.

Ela sempre achou que se ficasse daquele jeito, que se aprendesse a brigar e se impusesse aos demais... Ela nunca mais seria perturbada. Tudo ficaria bem, com todos falando dela pelas costas, mas ao menos, ninguém da Polícia viria prender seu tio, ela não precisaria ficar em um lar adotivo...

Mas que diabos! Himitsu não se intimidava. Ele se encolheu da primeira vez em que ela o pôs na parede, mas depois, foi como se nada houvesse acontecido.

Ele sempre a perdoou. Sempre fez de tudo por ela.

Tanto que, agora, faziam dias que ela, exatamente, não lavava a louça. Tudo o que antes era seu trabalho, agora era o loiro quem fazia. E com uma destreza ímpar, sempre agradando-a no meio do serviço com o que podia. E por pedido dele, sempre a acompanhando no caminho do trabalho (apesar de que, desde aquela pequena ‘briga’, nenhum deles tenha se falado de fato... Ele passava muito tempo com Irieko, ao menos...). Era um insuportável! Um maldito idiota!

Será que não via que ela estava-o agredindo?

Que estava pondo todo o esforço dele em animá-la no lixo a cada segundo? Será que ele não via que ela não ligava?!

“Maiko-chan permite que eu me preocupe com ela?...”

Isso dói...

Meu coração... Está doendo...

“Hi... Himitsu... Você lavou a louça direitinho...? O ‘titio’ já está dormindo...?” – ela perguntou, numa voz extremamente baixa.

“Ma... Maiko-chan, por que está chorando...?!” – ele se precipitou sobre ela, tocando-lhe o rosto.

Maldito toque. Mil vezes maldito.

...É como se alguém tivesse pisoteado ele.

Tá doendo muito, droga...

Alguém me ajude... Por favor, alguém me salve...

Forçando-se para não soluçar e conter aquele choro, ela tocou-o para afastá-lo de perto dela. Mas esse foi o seu erro.

Ao tocá-lo, foi como se todo seu mundo tivesse vindo a baixo.

...Alguém me salve das palavras dele.

Eu não posso agüentá-las...

Elas doem muito...

E ela fez um esforço realmente grande para não chorar como uma garotinha.

Ainda sentia por entre os dedos os fios sedosos do cabelo loiro dele. Eram tão macios ao toque quanto a pele.

“...Himitsu?”

“O que foi, Maiko-chan?” – ele perguntou, ainda segurando a outra mão dela nas suas, com a feição mais preocupada que ela já o havia visto fazer.

“Me abrace. Eu quero que você me faça feliz. Eu aceito isso...” – declarou, deixando que uma lágrima incômoda escorresse pelo rosto. – “Por isso... Por favor, me abrace só um pouquinho...”

Por um momento, Maiko achou que as palavras de Najato faziam sentido.

Himitsu estava ali apenas por ela...

Ela intensificou o abraço, tentando desesperadamente lembrar da sensação de como era abraçar sua mãe ou seu pai, no passado.

Mas tudo que ela conseguiu foi esquecer que existia um mundo à sua volta quando sentiu os braços tão quentes dela envolverem-na delicadamente.

“Eu senti um ‘outro’ com você.”

Suas asas abriram-se majestosamente por entre o cantar das cigarras, fundindo-se divinamente com o profundo negrume daquela noite.

“Na-chan, sai daí!” – a garota gritou. – “Ele não é um youkai comum!”

Mas o garoto cuja testa sangrava não pareceu ouvir os apelos da mulher de asas esverdeadas nas costas. Ele simplesmente preparou uma nova flecha naquele arco ricamente decorado e apontou para as duas figuras.

Pela luz pálida da lua, um par de gêmeos de penetrantes olhos negros o fitou.

“Onde está o ‘outro’ que vive com vocês?”

“I... Irieko, não diga nada sobre aqueles dois você também...!” – ele pediu, mirando num daqueles dois. – “Não diga nada para esse meio-youkai!”

A jovem de cabelos verdes estendeu suas asas, então, e logo, se tivesse tempo de contar, saberia que dezesseis penas soltaram-se de suas asas, apontando para os dois vestidos de preto como facas afiadas.

“...Dezesseis penas? Nada mal, senhorita.”

Um dos gêmeos, então, também estendeu suas asas.

Uma chuva de penas negras e verdes confundiu-se naquele cenário com cheiro de grama e banhado do argênteo brilho lunar.

“Mas acredito que meu irmão gêmeo e eu ainda temos a vantagem.” – haviam trinta e seis penas apontadas para Irieko.

A mesma engoliu em seco.

[1] Hentai é a designação para uma animação ou desenho erótico.

[2] Kyuudo é a arte tradicional de arco-e-flecha japonesa, com aqueles kimonos específicos e todos os equipamentos de arqueiro.

[3] Akihabara é o bairro dos eletrônicos e mangás. As últimas novidades de ambas as coisas estão sempre neste lugar.

[4] C.C. é a protagonista feminina principal do anime Code Geass.

[5] Essa é a maior e mais famosa conferência de revistas, realizada em Tokyo duas vezes por ano.

[6] Termo designando uma menina de trejeitos tipicamente masculinos.


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